Post on 25-Aug-2020
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Mentiras piedosas Título Original: White Lies
Linda Howard
Lucas Stone e Jay Granger
“Este Livro faz parte de um Projeto individual, sem fins lucrativos e de fã para fãs de romances. A comercialização deste produto é estritamente
proibida.”
Traduzido por : ILNETE
Resumo Nada poderia ter preparado Jay Granger para a visita de dois agentes do
FBI... nem para as notícias que lhe traziam. Steve, seu ex-marido, tinha sofrido um acidente que o tinha deixado gravemente ferido e o FBI necessitava que Jay confirmasse sua identidade.
O homem que Jay encontrou na cama do hospital era virtualmente irreconhecível. Certamente porque estava esgotada e um pouco assustada, Jay confirmou que se tratava do Steve Crossfield. Mas quando despertou do coma não era nada como ela recordava a seu ex-marido. Além disso, não lembrava de nada de sua vida junto a ela. De repente nada lhe resultava familiar, nem seu aspecto, nem sua intensa personalidade, nem o desejo que provocava nela. Quem era esse homem? E... romperia-se a paixão que havia entre eles quando descobrisse sua verdadeira identidade?
Capítulo 1
Se tivesse que estabelecer uma classificação dos piores dias de sua vida, aquele
provavelmente não seria o primeiro, mas, definitivamente, ocuparia um dos três primeiros
postos.
Jay Granger tinha estado dominando sua impaciência durante todo o dia,
controlando-se estritamente, até terminar com a cabeça doendo e um ardor de estômago.
Nem sequer durante o agitado trajeto até sua casa em uma sucessão de ônibus
abarrotados se permitiu derrubar-se. Durante todo aquele longo dia, obrigou-se a
conservar a calma apesar da frustração e a fúria que a embargavam e, naquele momento,
sentia-se como se não pudesse liberar-se de suas próprias restrições mentais. O único
que queria era estar sozinha.
De modo que continuou agüentando, nas pontas dos pés, com as costelas
deslocadas pelas cotoveladas e as narinas dominadas pelo intenso aroma das pessoas.
Começou a chover justo antes de que saísse do último ônibus. Era uma chuva gelada que
quando chegou a seu edifício a tinha impregnado até os ossos. Naturalmente, não levava
guarda-chuva; supunha-se que aquele tinha que ser um dia ensolarado.
Mas por fim tinha chegado em casa, onde estava a salvo dos olhares dos curiosos,
já fossem estas compassivos ou zombadores. Estava sozinha, felizmente sozinha. Um
suspiro de alívio abandonou seus lábios enquanto começava a fechar a porta. Nesse
instante, seu autodomínio se quebrou e fechou a porta com todas as suas forças. Mas
aquele pequeno ato de violência não lhe serviu para liberar a tensão. Possivelmente a
teria ajudado demolir todo seu edifício de escritórios ou estrangular Farrell Wordlaw, mas
ambas as coisas estavam proibidas.
Quando pensava em como tinha trabalhado esses últimos cinco anos, até quatorze e
dezesseis horas diárias, e no trabalho que levou para casa durante os fins de semana,
entravam-lhe vontades de gritar, de quebrar coisas. Sim, definitivamente, queria
estrangular Farrell Wordlaw. Mas essa não era uma conduta apropriada para uma
profissional, uma sofisticada executiva de uma prestigiosa firma de investimentos. Por
outra parte, era um comportamento perfeitamente adequado para alguém que acabava de
passar a fazer parte das listas de desempregados.
Malditos fossem.
Durante cinco anos, dedicou-se por inteiro a seu trabalho, anulando sem piedade
todas aquelas facetas de sua personalidade que não encaixavam com sua imagem
profissional. No princípio, o fazia sobre tudo porque necessitava do trabalho e do dinheiro,
mas Jay era muito apaixonada para fazer algo pela metade. Muito em breve se deixou
apanhar naquela corrida de ratos pela fome constante de êxito, de novos triunfos, dos
mais altos e melhores lugares. E, durante cinco anos, esse mundo se converteu em sua
vida. Mas acabavam de expulsá-la com um chute.
E não porque não tivesse tido êxito. Tinha-o tido, sim. Muito possivelmente. Havia
pessoas às que não gostavam de tratar com ela porque era mulher. Ao dar-se conta
disso, Jay tinha tentado ser tão direta e agressiva como qualquer homem. Queria que
seus clientes confiassem em que podia atendê-los como qualquer homem. Tinha
terminado por mudar sua forma de falar, de vestir, jamais deixava que uma lágrima
aparecesse em seus olhos... Jamais ria. Tinha aprendido a beber uísque, embora na
realidade nunca tinha chegado a desfrutá-lo.
Tinha pago esse rígido controle sobre seus sentimentos com dores de cabeça e um
ardor de estômago constante, mas mesmo assim, jamais tinha abandonado seu papel
porque, apesar de todas as tensões, desfrutava da provocação que representava. Era um
trabalho excitante, com o estímulo constante de uma ascensão rápida, e durante todo
esse tempo, Jay tinha estado disposta a pagar o preço por isso.
Pois bem, por decreto do Farrell Wordlaw, tudo tinha terminado. Farrell o sentia
muitíssimo, mas o estilo de Jay não era compatível com a imagem que Wordlaw, Wilson &
Trusler queria projetar. Ele apreciava profundamente seus esforços e estava disposto a
lhe dar as melhores referências, assim como duas semanas de prazo para que pudesse
pôr todos seus assuntos em ordem. Mas nada disso ocultava a triste verdade: jogavam-na
para que ocupasse seu posto Duncan Wordlaw, o filho do Farrell, que se tinha
incorporado à firma no ano anterior e sempre andava um passo atrás dela no
desempenho de suas funções. Jay estava pondo em evidencia ao filho de um dos sócios
mais antigos da firma, de modo que tinha que ir-se. Em vez da ascensão que tinha estado
esperando, ganhou-se uma demissão.
Estava furiosa, mais do que podia chegar a expressar. Uma das coisas que maior
satisfação lhe teria dado teria sido deixar Wordlaw com todo seu trabalho pendente, mas
a fria e dura realidade era que necessitava do salário dessas duas semanas. Se não
encontrasse outro trabalho imediatamente, perderia seu apartamento. Desfrutava de um
bom nível de vida, mas unicamente graças a seu salário e logo que não tinha dinheiro
economizado. Certamente, o último que esperava era perder seu trabalho porque Duncan
Wordlaw rendesse menos do que devia.
Cada vez que Steve perdia um posto de trabalho, limitava-se a encolher-se de
ombros, a rir e lhe dizer que não se preocupasse, que já encontraria outro. E sempre o
encontrava. O trabalho não era importante para ele, e tampouco sua segurança. Jay
soltou uma tensa gargalhada enquanto abria um frasco de tabletes contra a acidez
estomacal. Steve! Fazia anos que não pensava nele. De uma coisa estava certa, jamais
se tomaria com tanto desenvoltura como seu ex-marido o fato de estar desempregada.
Lhe gostava de saber como ia pagar sua próxima refeição. Steve adorava a emoção.
Necessitava a excitação da adrenalina, necessitava-a mais que a ela. E ao final,
isso tinha acabado com seu casamento.
Mas pelo menos ele jamais sofreria aquela tensão nervosa, pensou enquanto
mastigava os tabletes e esperava que lhe aliviassem o ardor do estômago. Steve teria
estalado os dedos diante do Farrell Wordlaw, haver-lhe-ia dito o que podia fazer com
aquelas duas semanas pendentes e teria saído assobiando de seu escritório.
Possivelmente fosse uma atitude irresponsável, mas Steve nunca teria permitido que um
simples trabalho levasse o melhor dele.
Enfim, essa era a personalidade do Steve, mas não a sua. Era um homem divertido,
mas no final, as diferenças tinham pesado mais que a atração que havia entre eles. A sua
tinha sido uma separação amistosa, embora para Jay também tinha sido um tanto
desesperador. Steve nunca cresceria.
Mas por que pensava nele naquele momento? Seria porque o associava ao
desemprego? Jay começou a rir ao ser consciente disso. Sem deixar de rir, serviu-se um
copo de água e lançou um brinde ao vento:
–Pelos bons tempos –disse.
Tinha havido muitos momentos bons. Tinham rido e desfrutado como os dois jovens
saudáveis que eram, mas não tinham sabido fazer durar seu casamento.
Esqueceu-se do Steve e voltou a surgir a preocupação. Tinha que encontrar outro
trabalho imediatamente, um trabalho bem remunerado, mas não confiava em que Farrell
lhe desse umas recomendações especialmente elogiosas. Sim, certamente a poria pelas
nuvens por escrito, mas depois comentaria a todo mundo relacionado com o negócio dos
investimentos de Nova Iorque que não encaixava no perfil de sua firma. Possivelmente
deveria tentar outra coisa; entretanto, só tinha experiência nesse campo e não tinha
dinheiro suficiente para começar em outros terrenos.
Com uma repentina sensação de pânico, foi repentinamente consciente de que tinha
trinta anos e nem a menor idéia do que ia fazer com sua existência. Não queria passar o
resto de sua vida tomando antiácidos e dedicando o tempo livre a recuperar suas
esgotadas forças.
Depois de sua separação, como reação contra a filosofia vital do Steve, capaz de
deixar tudo para o dia seguinte e decidido a desfrutar do presente, foi-se ao outro extremo
e tinha eliminado toda possível diversão de sua vida. Acabava de abrir a porta do
congelador e estava olhando com desagrado suas provisões de mantimentos congelados
quando soou a campainha do porteiro automático.
Decidida a esquecer-se do jantar, algo que ultimamente fazia com excessiva
freqüência, pressionou o interruptor.
–Sim, Dennis? –perguntou ao porteiro.
–O senhor Payne e o senhor McCoy querem vê-la, senhorita Granger –respondeu
Dennis brandamente. –São dois funcionários do FBI.
–O que? –perguntou Jay, sobressaltada e convencida de ter ouvido mau.
Dennis repetiu a mensagem, mas as palavras continuavam sendo as mesmas.
Jay estava totalmente aniquilada.
–Lhes diga que subam –respondeu.
Não sabia que outra coisa dizer. Do FBI? Que demônios...? A menos que dar uma
portada fosse contra lei, do pior que podiam acusá-la era de ter quebrado a etiqueta de
seu travesseiro. Mas, por que não? Aquele era um final horrível para um dia igualmente
horroroso.
Soou a campainha um segundo depois e correu a abrir com a cara convertida em
uma máscara de confusão. Os dois homens que havia do outro lado lhe mostraram suas
identificações.
–Sou Frank Payne –disse o policial de mais idade. –E este é Gilbert McCoy. Se
fosse possível, nós gostaríamos de falar com a senhorita.
Jay os convidou a entrar em seu apartamento com um gesto.
—Estou completamente desconcertada –confessou. –Por favor, sentem-se.
Gostariam de um café?
–Obrigado –respondeu Frank Payne com imensa sinceridade. – Hoje foi um dia
muito longo.
Jay foi à cozinha e conectou a cafeteira. Depois, para prevenir males maiores,
meteu-se na boca outros dois antiácidos. Ao final, tomou ar e voltou para sala, onde os
dois homens estavam comodamente sentados no sofá de cor cinza azulada.
–O que tenho feito? –perguntou Jay meio em brincadeira.
Ambos os homens sorriram.
–Nada –lhe assegurou McCoy com um sorriso. –Só queríamos lhe falar de um antigo
conhecido.
Jay se sentou em uma poltrona estofada a jogo com o sofá e suspirou aliviada. O
ardor de estômago diminuiu ligeiramente.
–De que antigo conhecido? –possivelmente andassem detrás do Farrell Wordlaw. Ao
melhor ainda ficava justiça no mundo.
Frank Payne tirou uma caderneta do bolso interior de sua jaqueta e a abriu para
consultar umas notas.
–É você Janet Jean Granger, ex esposa do Steve Crossfield?
–Sim.
De modo que aquilo tinha que ver com o Steve. Deveria haver imaginado. Mesmo
assim, parecia-lhe surpreendente. Era como se, de algum jeito, tivesse conjurado a
aqueles dois homem ao ter pensado minutos antes em seu ex-marido, algo que quase
nunca fazia. Steve estava tão longe de sua vida que mal podia recordar sua cara. Em que
confusões podia haver-se metido com sua louca necessidade de emoção?
–Seu ex-marido tem algum parente?, alguma pessoa próxima?
Jay sacudiu lentamente a cabeça.
–Steve é órfão. Cresceu em uma série de lares de acolhida e, por isso eu sei, não
tinha contato com nenhum de seus pais adotivos. Quanto a amigos íntimos –se encolheu
de ombros, – a verdade é que não tornei a vê-lo nem sei nada dele desde que nos
divorciamos faz cinco anos, assim não tenho a menor idéia dos quais podem ser seus
amigos.
Payne franziu o cenho.
–Poderia recordar o nome do dentista ao que ia quando estava casado com você, ou
possivelmente de algum médico?
Jay negou com a cabeça e o olhou fixamente.
–Não. Steve tinha uma saúde de ferro.
Os dois homens se olharam com o cenho franzido. McCoy disse ferozmente:
–Droga, isto não vai ser fácil. Não acabamos de sair de um beco sem saída quando
já estarmos em outro.
No rosto de Payne se refletia um profundo cansaço, e também algo mais. Voltou a
olhar a Jay com expressão preocupada.
–Acredita que já estará preparado o café, senhorita Granger?
–Deve estar. Volto agora mesmo.
Sem saber por que, Jay estava tremendo quando entrou na cozinha e começou a
colocar as xícaras, o leite e o açúcar na bandeja. O café acabava de filtrar-se, de modo
que pôs a jarra na bandeja. Mas quando esteve tudo pronto, ficou ali quieta, com o olhar
cravado na fumaça que saía da cafeteira. Steve devia ter problemas sérios,
verdadeiramente sérios, e ela lamentava, embora não pudesse fazer nada por ele. De
fato, parecia-lhe quase inevitável. Sempre tinha deslocado detrás da aventura e,
desgraçadamente, as aventuras muitas vezes fugiam da mão dos problemas.
Jay levou a bandeja ao salão e a deixou em uma mesinha, diante do sofá. Franzia o
cenho com expressão preocupada.
–O que tem feito Steve?
–Nada ilegal, ao menos que nós saibamos –respondeu Payne precipitadamente. –É
só que está envolvido em... uma situação delicada.
Olhou a Jay com inquietação.
De repente, ela reparou em quão bonitos eram os olhos do policial: uns olhos claros
e estranhamente compassivos. Olhos amáveis. Não eram absolutamente a classe de
olhos que teria esperado de um agente do FBI.
Frank se esclareceu garganta.
–Muito delicada. De fato, nem sequer sabemos como chegou até aí. Mas precisamos
encontrar alguém que possa identificá-lo com certeza.
Jay empalideceu. As implicações daquela sinistra declaração buliam em sua mente.
Steve estava morto. E embora o amor que em outro tempo tinha sentido por ele tivesse
desaparecido, embargou-a uma dilaceradora tristeza pelo que tinham vivido. Steve era
alegre, sempre estava rindo, seus olhos escuros estavam iluminados por um brilho de
júbilo constante. Saber que sua risada tinha desaparecido para sempre era como perder
uma parte de sua própria infância.
–Está morto –balbuciou com o olhar fixo na xícara de café.
A mão começou a lhe tremer e fez oscilar perigosamente o escuro líquido.
Payne alargou rapidamente a mão para lhe tirar a xícara e deixá-la na bandeja.
–Não sabemos –disse, com o semblante cada vez mais inquieto. – Se produziu uma
explosão e só sobreviveu uma pessoa. Acreditam que é Crossfield, mas também poderia
tratar-se de um de nossos homens. Não estamos seguros, e é fundamental que
saibamos. Não podemos lhe explicar nada mais.
Tinha sido um dia longuíssimo, um dia terrível, e a situação não melhorava. Jay se
levou as mãos às têmporas e pressionou com força, tentando encontrar algum sentido ao
que lhe estavam dizendo.
–Não tinha nada que o identificasse?
–Não –respondeu Payne.
–Então por que acreditam que é Steve?
–Sabemos que estava ali. Encontrou-se parte de sua carteira de motorista.
–E por que não lhes basta os dados com os que contam para saber quem é? –gritou.
– Por que não identificam aos outros e averiguam quem é mediante um processo de
eliminação?
McCoy desviou o olhar. Os amáveis olhos do Payne se obscureceram.
–Não ficou nada que nos permita identificá-lo. Nada.
Jay não queria ouvir nada mais. Não queria saber nenhum detalhe, embora podia
imaginar-se perfeitamente aquele assunto. Ficou repentinamente fria, como se o sangue
tivesse deixado de correr por suas veias.
–Steve? –perguntou com voz débil.
–O homem que sobreviveu se encontra em uma situação crítica, mas os médicos
são moderadamente otimistas. Tem alguma oportunidade. Faz dois dias nem sequer
estavam seguros de que pudesse sobreviver uma noite.
–E por que é tão importante saber agora mesmo quem é? Se sobreviver, poderão
perguntar-lhe E se morrer... –interrompeu-se bruscamente.
Não podia dizê-lo, mas o pensava. Se morresse, já não importaria. Não haveria
sobreviventes e eles poderiam fechar o caso.
–Não podemos lhe dizer nada, exceto que precisamos saber quem é esse homem.
Precisamos saber quem morreu para estar seguros dos passos que devemos dar.
Senhorita Granger, posso lhe dizer que minha agência não está diretamente envolvida
nesta situação. Simplesmente, estamos colaborando com outras porque é um assunto
que concerne à segurança nacional.
De repente, Jay compreendeu o que queriam dela. Estariam satisfeitos se pudesse
ajudá-los a localizar alguma peça dental ou algum relatório médico do Steve, mas esse
não era seu principal objetivo. Queriam que fosse com eles para identificar pessoalmente
a aquele homem ferido.
–E nenhuma das outras agências de segurança pode dizer se a descrição desse
homem encaixa com seus dados? –perguntou com voz apagada. –Certamente terão
medidas, impressões digitais, essa classe de coisas.
Tinha o olhar baixo, de modo que não pôde ver o repentino receio que apareceu no
rosto do Payne. O policial se esclareceu de novo a garganta.
–Seu marido, seu ex-marido, e nosso homem medem... mediam o mesmo. Não é
possível tirar as impressões digitais: as mãos estão queimadas. Mas você sabe muito
mais sobre ele que qualquer outra pessoa que possamos localizar. Tem que haver algo
dele que você possa reconhecer, alguma marca de nascimento ou cicatriz que possa
recordar.
Jay continuava confusa. Não podia compreender por que não eram capazes de
reconhecer a um de seus próprios homens, a não ser que estivesse terrivelmente
desfigurado... Estremecida, não se permitiu completar a imagem que aparecia em sua
mente. O que ocorreria se fosse Steve? Jay não o odiava, jamais o tinha odiado. Era um
uva sem semente, mas nunca tinha sido um homem cruel. Inclusive depois de ter deixado
de amá-lo, tinha continuado lhe guardando carinho de uma maneira quase fraterna.
–Querem que vá com vocês –disse.
–Por favor –rogou Payne com voz fica.
Jay não queria ir, mas Payne o apresentava como se fora uma espécie de dever
patriótico.
–De acordo. Irei procurar meu casaco. Onde está?
Payne voltou a esclarecê-la garganta e Jay se esticou. A essas alturas, tinha
compreendido já que o policial o fazia cada vez que tinha que lhe dizer algo embaraçoso
ou desagradável.
–Está no Hospital Naval da Bethesda. Terá que preparar uma mala. Temos um avião
particular nos esperando no aeroporto Kennedy.
Os acontecimentos estavam indo muito rápido para sua capacidade de assimilação.
Jay se sentia como se o único que pudesse fazer fosse seguir o rumo que lhe marcavam
sem opor a menor resistência. Tinham passado muitas coisas aquele dia. Para começar,
tinham-na despedido, um golpe suficientemente brutal já por si só, e depois aquilo... A
segurança que tanto se esforçou em conseguir se desvaneceu em questão de minutos no
escritório do Farrell Wordlaw, deixando-a vertiginosamente indefesa, incapaz de pisar em
um terreno firme. Sua vida tinha sido absolutamente tranqüila durante os últimos cinco
anos. Como podia ocorrer tão rapidamente tudo aquilo?
Aturdida, colocou dois vestidos na mala e tirou a bolsa de cosméticos do banheiro.
Enquanto guardava tudo o que ia necessitar em uma pequena nécessaire de plástico,
ficou estupefata ao ver seu reflexo no espelho. Estava pálida, tensa, e muito magra.
Enfermizamente magra. Tinha os olhos afundados e os maçãs do rosto excessivamente
proeminentes como resultado das longas horas de trabalho e de alimentar-se a base de
tabletes contra o ardor de estômago. Assim que retornasse à cidade, teria que ficar a
procurar outro trabalho, além de terminar com o seu, e isso significaria pular mais
refeições.
De repente se envergonhou de si mesma. Como podia estar preocupando-se com o
trabalho quando Steve, ou quem quer que fosse, estava na cama de um hospital, lutando
por sua vida? Steve sempre lhe havia dito que se preocupava excessivamente pelo
trabalho, que não podia desfrutar do momento porque sempre estava preocupada com o
que poderia acontecer no dia seguinte. E possivelmente tivesse razão.
Steve! Os olhos lhe encheram de lágrimas enquanto guardava a nécessaire na mala.
Esperava que estivesse bem.
No último momento, lembrou-se da roupa íntima. Estava nervosa, normalmente era
uma pessoa muito mais organizada.
Ao final, fechou a mala e agarrou a bolsa.
–Estou pronta –anunciou nada mais sair do dormitório.
Observou agradecida que um dos policiais tinha levado a bandeja do café à cozinha.
McCoy tomou sua mala e ela foi tirar um casaco do armário. Payne a ajudou a vesti-lo em
silêncio. Jay olhou a seu redor para assegurar-se de que todas as luzes estavam
apagadas: continuando, saíram os três ao vestíbulo e Jay fechou a porta atrás dela,
perguntando-se por que se sentia como se jamais fosse retornar.
Dormiu no avião. Não pretendia fazê-lo, mas quase no mesmo instante no que
levantaram o vôo e se relaxou no cômodo assento de couro, as pálpebras tinham
começado a lhe pesar de tal maneira que não tinha podido manter os olhos abertos.
Quando Payne estendeu uma manta sobre ela, nem sequer o notou.
Este permanecia frente a ela, observando-a pensativo. Não se sentia muito cômodo
com o que estava fazendo, arrastar a uma mulher inocente a todo aquele desastre. Nem
sequer McCoy sabia até que ponto aquilo era um desastre, nem de até que ponto se
complicaram as coisas. Para seu companheiro, a situação era idêntica a que havia
descrito A Jay Granger: um simples problema de identificação. Só umas poucas pessoas
sabiam que havia algo mais. Possivelmente unicamente dois, além dele. Possivelmente
só uma, mas uma com muitíssimo poder. E quando essa pessoa queria que se fizesse
algo, terei que fazê-lo. Payne o conhecia desde fazia anos, mas nunca tinha chegado a
sentir-se cômodo em sua presença.
Jay parecia cansada e estranhamente frágil. Estava muito magra. Devia medir mais
de um metro e setenta e pesava menos de cinqüenta quilos. E havia algo nela que o fazia
pensar que aquela magreza não era normal. Perguntou-se se seria suficientemente forte
para ser utilizada como escudo.
Provavelmente seria uma mulher atrativa quando tivesse descansado e houvesse
um pouco de carne em seus ossos. Tinha um cabelo bonito, de cor mel, e tão espesso e
sedoso como um casaco de pele de lontra. Os olhos eram de cor azul escuro. Mas
naquele momento só parecia cansada. Não tinha sido um dia fácil para ela.
Mesmo assim, tinha-lhe feito algumas pergunta que lhe tinham feito sentir-se
incômodo. Se não tivesse estado tão cansada e nervosa, poderia ter tirado temas dos que
ele não queria falar diante do McCoy. Era essencial para o plano que ninguém o
questionasse. Não podia haver nenhuma dúvida absolutamente.
O vôo de Nova Iorque até a Bethesda foi curto, mas a sesta lhe permitiu recuperar a
sensação de equilíbrio. O único problema era que, quanto mais alerta estava, mais irreal
lhe parecia aquela situação. Olhou o relógio enquanto Payne e McCoy a acompanhavam
pela escadinha do avião particular e a conduziam para um carro oficial que os estava
esperando na pista, e se surpreendeu ao ver que tão somente eram as nove em ponto.
Em umas horas, sua vida se tornou do reverso.
–Por que Bethesda? –murmurou ao Payne enquanto o carro ronronava pelas ruas.
Os flocos de neve dançavam no ar como pétalas de flores empurrados pela brisa.
Jay fixou neles o olhar, perguntando-se com ar ausente se uma tormenta de neve poderia
impedir de retornar a casa.
–Por que não está em um hospital civil? –insistiu.
–É uma questão de segurança –Payne falava tão baixo que apenas o ouvia. –Mas
não se preocupe. O trouxemos para os melhores peritos em traumatologia, tão civis como
militares. E estamos fazendo tudo o que podemos por seu marido.
–Meu ex-marido –replicou Jay fracamente.
–Sim, sinto muito.
Enquanto giravam pela avenida Wisconsin, que os levaria até o Hospital Naval, a
neve começou a cair com mais intensidade. Payne se alegrava de que Jay não tivesse
feito nenhuma outra pergunta sobre os motivos pelos que aquele homem estava em um
hospital militar em vez de, por exemplo, no hospital da Universidade do Georgetown. É
obvio, tinha-lhe respondido a verdade. A segurança era a razão pela que tinha ingressado
na Bethesda. Mas não era a única. Payne observou como caía a neve perguntando-se se
haveria alguma forma de reunir todos aqueles cabos soltos.
Quando chegaram ao centro médico, só ele saiu do carro com ela: McCoy inclinou a
cabeça a modo de despedida e se afastou com o carro. Os flocos de neve não
demoraram para branquear suas cabeças, apesar de que Payne a agarrou por cotovelo e
correu com ela ao interior do hospital, onde o calor derreteu aqueles flocos de neve.
Ninguém lhes prestou a menor atenção quando entraram no elevador.
Quando as portas deste se abriram de novo, saíram a um silencioso corredor.
–Esta é o andar da UTI –lhe esclareceu Payne. O quarto fica por aqui.
Voltaram-se para a esquerda, onde dois homens de uniforme custodiavam uma
porta de dupla folha, cada um deles com sua respectiva pistola. Deviam conhecer o
Payne porque nada mais vê-lo, um dos guardas lhe franqueou o passo.
–Adiante –lhe disse educadamente Payne enquanto entravam.
A unidade estava deserta, exceto pelas enfermeiras que controlavam as equipes de
manutenção das constantes vitais e vigiavam continuamente o estado de seus pacientes.
Mesmo assim, Jay percebeu o surdo zumbido que invadia a unidade, era o som das
máquinas que mantinham vivos aos pacientes ou ajudavam a sua recuperação. Pela
primeira vez, lhe ocorreu pensar que Steve devia estar conectado a alguma dessas
máquinas, que estaria completamente imobilizado. Ao pensá-lo, esteve a ponto de
tropeçar. Resultava-lhe difícil de assimilar.
Payne continuava agarrando-a pelo cotovelo, lhe proporcionando discretamente seu
apoio. Deteve-se ante uma porta e se voltou para ela com seus olhos claros
transbordantes de preocupação.
–Quero prepará-la um pouco. Está seriamente ferido. Tem o crânio fraturado e os
ossos do rosto destroçados. Respira através de um tubo conectado à traquéia. Não
espere que se pareça com o homem que você recorda.
Esperou um instante e a olhou com atenção, mas Jay não disse nada e, ao final,
abriu a porta.
Ela entrou no quarto e, durante um décimo de segundo, foi como se tanto seu
coração como seus pulmões deixassem de funcionar. Depois, seu coração começou a
pulsar e Jay respirou profunda e dolorosamente. As lágrimas alagaram seus olhos
enquanto cravava o olhar naquele homem imóvel, convexo sobre a brancura de uma
cama de hospital. Um nome tremeu entre seus lábios. Parecia-lhe impossível que
aquele... que aquele homem pudesse ser Steve. Era quase literalmente uma múmia.
Tinha as duas pernas engessadas e presas por um complexo sistema de correntes e
molas. As ataduras das mãos se estendiam até os cotovelos e a cabeça e o rosto
estavam cobertos de gazes. Só eram visíveis os lábios, o queixo e a mandíbula, e
estavam inchados e descoloridos. Sua respiração assobiava fracamente através de um
tubo conectado à garganta, e havia vários tubos que entravam e saíam de seu corpo. Os
monitores colocados na cabeceira registravam cada uma de suas funções vitais. E estava
quieto. Muito quieto.
A Jay lhe secou de tal maneira a garganta que lhe doía ao falar.
–Como vou poder identificá-lo? –perguntou bruscamente. – Você sabia que não
poderia identificá-lo, sabia o aspecto que tinha!
Payne a olhava com compaixão.
–Sinto muito. Sei que é uma forte impressão. Mas necessitamos que tente. Você
esteve casada com o Steve Crossfield, conhece-o melhor que qualquer outra pessoa.
Possivelmente haja algum detalhe que recorde: uma cicatriz, alguma marca de
nascimento... Algo. Tome o tempo que necessite e observe-o. Eu estarei lá fora.
Saiu e fechou a porta atrás dele, deixando-a só no quarto com aquele corpo imóvel,
os inquietantes assobios dos monitores e o débil assobio de sua respiração. Jay apertou
os punhos e as lágrimas voltaram a nublar seu olhar. Tanto se se tratasse do Steve como
se não, sentia uma pena tão intensa que resultava dolorosa.
Conseguiu aproximar-se até a cama. Evitou cuidadosamente os tubos e os cabos
enquanto avançava sem afastar o olhar de seu rosto... ou daquela parte de seu rosto que
ainda podia ver. Steve?, realmente era Steve?
Sabia o que Payne queria. Não o tinha explicado com detalhe, mas não fazia falta
que o fizesse. Queria que levantasse o lençol e estudasse o corpo daquele homem
indefeso e nu, exceto pelas ataduras que cobriam seu corpo. Pensava que devia
conhecer intimamente aquele corpo, mas cinco anos eram muito tempo. Ainda recordava
o sorriso do Steve e o brilho travesso de seus olhos castanhos, mas outros detalhes se
apagaram muito tempo atrás de sua mente.
A aquele homem não importaria que lhe tirasse o lençol e o olhasse. Estava
inconsciente; de fato, se não fosse por aquelas milagrosas máquinas conectadas a seu
corpo, poderia inclusive estar morto. Nunca se inteiraria. E pelo que Payne lhe tinha dado
a entender, se pudesse identificar aquele corpo, estaria rendendo um grande serviço ao
país.
Não podia deixar de olhá-lo. Estava tão terrivelmente ferido... Como era possível que
um homem pudesse estar tão ferido gravemente e continuar vivo? Se pudesse recuperar
a consciência, quereria seguir vivendo? Seria capaz de voltar a caminhar?, de utilizar
suas mãos, de ver, de pensar? Ou possivelmente depois de ver suas feridas decidisse
morrer?
Também era possível que tivesse uma enorme vontade de viver. Possivelmente isso
fosse o que o tinha mantido vivo durante todo esse tempo, a determinação podia mover
montanhas.
Vacilante, Jay alongou uma mão e lhe tocou o braço direito, justo por cima das
ataduras que cobriam suas queimaduras. Sentiu sua pele quente e afastou
precipitadamente os dedos. Não sabia por que, mas tinha imaginado que estaria frio.
Aquele intenso calor era outro sinal de que a vida seguia vibrando em seu interior apesar
de sua quietude. Lentamente, voltou a aproximar a mão de seu braço e a posou
ligeiramente sobre a parte interior do cotovelo, com muito cuidado para não tocar a
agulha através da qual administravam soro a suas veias.
Estava quente. Estava vivo.
O coração pulsou com força em seu peito e uma emoção intensa a embargou até tal
ponto que pensou que ia arrebentar, tal era o esforço que estava fazendo por controlá-la.
Destroçava-a pensar o que aquele homem tinha passado, o muito que ainda estava
lutando, desafiando a suas escassas probabilidades de sobreviver com um espírito tão
feroz e orgulhoso que lhe impedia de entregar-se à morte. Se tivesse podido, teria sofrido
aquela dor em seu lugar.
Aquele corpo já estava atrozmente invadido. Como se não tivesse suficiente com
suas feridas, os médicos tinham inserido tubos de drenagem em seu peito, e também
saíam tubos dos lados. Cada dia, pessoas desconhecidas o olhavam e o tratavam como
se não fora nada mais que um pedaço de carne. E tudo para lhe salvar a vida.
Ela não invadiria sua privacidade, não daquela maneira. O pudor podia não significar
nada para o ferido, mas ela ainda podia escolher.
Toda sua atenção estava pendente dele. Naquele momento não existia nada no
mundo mais que esse homem estendido em uma cama de hospital. Seria Steve? Seria
possível que reconhecesse alguma sinal apesar da inflamação e das ataduras que o
cobriam? Tentou recordar.
Steve tinha aqueles músculos? Seus braços eram tão fortes? Podia ter mudado, ter
ganho peso, fazer suficiente exercício para ter alargado ombros e braços.
Tinham-lhe depilado o peito. Baixou o olhar para a sombra de pêlo que o cobria.
Steve tinha cabelo naquela zona, embora não muito.
E a barba? Olhou sua mandíbula, o que podia ver dela, mas tinha a cara tão torcida
que nada lhe resultava familiar.
Algo úmido desceu pela bochecha de Jay e, surpreendida, passou-se a mão pela
cara. Nem sequer era consciente de que estava chorando.
Payne entrou no quarto e lhe ofereceu silenciosamente seu lenço. Quando ela se
secou a bochecha, separou-a da cama, rodeou-lhe a cintura com o braço e deixou que se
recostasse nele.
–Sinto muito. Sei que não é fácil.
Jay sacudiu a cabeça, sentindo-se como uma estúpida por haver-se derrubado
daquela maneira, sobre tudo à luz do que tinha que lhe dizer.
–Não sei. Sinto muito, mas não posso lhe dizer se é ou não Steve. Simplesmente...
não posso.
–E acredita que poderia sê-lo? –insistiu Payne.
Jay se esfregou as têmporas.
–Suponho que sim. Não posso dizer-lhe tem tantas ataduras...
–Compreendo-o. Sei o difícil que é, mas preciso dizer algo a meus superiores. Seu
marido tinha essa altura? Há algo nele que lhe resulte familiar?
Se a compreendia, por que a estava pressionando? A dor de cabeça do Jay piorava
por segundos.
–Não sei! –soluçou. –Suponho que Steve é assim alto, mas me resulta difícil
assegurá-lo estando deitado. Tem o cabelo negro e os olhos castanhos, mas deste
homem nem sequer posso lhe assegurar isso.
Payne baixou o olhar para ela.
–Esses dados aparecem no relatório médico. Cabelo negro e olhos castanhos.
Em um princípio, Jay não compreendeu a importância daquela informação; mas de
repente abriu os olhos como pratos. Não tinha tido a sensação de reconhecer o ferido,
mas ainda estava aturdida pela tormenta de sentimentos que tinha provocado nela.
Compaixão, sim, mas também admiração pelo fato de que continuasse lutando. E um
respeito quase dilacerador pela determinação e o valor que lhe supunha.
Muito fracamente, com o rosto pálido, disse:
–Então deve ser Steve, não é verdade?
Uma expressão de imenso alívio cruzou o rosto do Payne, mas desapareceu quase
imediatamente.
–Notificarei a meus superiores que o identificou. Trata-se do Steve Crossfield.
Capítulo 2
Quando Jay despertou à manhã seguinte, ficou muito quieta na cama e percorreu
com o olhar o quarto daquele hotel desconhecido tentando orientar-se. Os
acontecimentos do dia anterior lhe resultavam quase todos imprecisos, exceto a
lembrança, nítida como a água, daquele homem ferido do hospital. Steve. Aquele homem
era Steve.
Deveria havê-lo reconhecido. Embora tivessem passado cinco anos, em outro tempo
o tinha amado. Algo nele deveria lhe haver resultado familiar apesar de suas feridas.
Assaltou-a um estranho sentimento de culpa, embora sabia que era ridículo. Mas era
como se, de algum jeito, tivesse abandonado o Steve ao reduzi-lo ao nível de um pouco
tão insignificante para sua vida que nem sequer recordava seu aspecto.
Com uma careta, levantou-se da cama, mas voltou a tombar-se. Steve lhe dizia
constantemente que se animasse, e utilizava para isso um tom cheio de impaciência.
Esse era outro aspecto de sua personalidade no que eram incompatíveis. Jay era muito
intensa, envolvia-se muito no que a rodeava, enquanto que Steve se deslizava
alegremente pela superfície.
Podia retornar a Nova Iorque essa mesma manhã, mas não queria fazê-lo. Era
sábado, não tinha nenhuma pressa, sempre e quando chegasse a tempo de estar na
segunda-feira no trabalho. Não queria passar-se todo o fim de semana em seu
apartamento compadecendo-se por sua demissão, e queria voltar a ver o Steve. Ao que
parece, também Payne o desejava. Não tinha comentado nada de voltar para Nova
Iorque.
A noite anterior estava tão cansada que, pela primeira vez desde fazia muito tempo,
tinha dormido profundamente e, como conseqüência, as olheiras não estavam tão
marcadas como no dia anterior. Olhou-se no espelho, perguntando-se se sua demissão
era um desastre ou uma bênção. Tinha estado forçando-se até um ponto perigoso para a
saúde. Tinha perdido mais peso do que sua constituição lhe permitia e seu rosto aparecia
gasto, em especial sem maquiagem. Nunca tinha sido uma beleza, mas em outra época
era uma mulher bonita. Seus olhos azuis e seus cabelos cor de mel eram seus traços
mais chamativos, e o resto de seu rosto podia ser descrito como normal.
O que diria Steve se a visse naquele momento?
Mas por que não podia tirá-lo da cabeça? Era natural que estivesse preocupada com
ele, que o compadecesse por causa de suas terríveis feridas, mas o certo era que não
podia evitar perguntar-se o que pensaria, o que diria Steve sobre ela. Não o Steve de
outra época, a não ser o homem no que se converteu: um homem mais duro, mais forte,
com uma força de vontade que o tinha mantido vivo nas piores circunstâncias. O que
pensaria aquele homem dela? Ainda a desejaria?
Esse pensamento a fez ruborizar-se e se separou do espelho para meter-se na
ducha. Devia estar enlouquecendo! Steve era um inválido. Nem sequer podiam garantir
que fosse sobreviver, apesar de sua natureza lutadora. E inclusive no caso de que o
fizesse, talvez não voltasse a ser o mesmo. A operação podia não ter funcionado, algo
que não saberiam até que lhe tivessem tirado as ataduras dos olhos. Inclusive podia ter
sofrido uma lesão cerebral. Possivelmente não pudesse falar, nem caminhar, nem
alimentar-se por si mesmo.
As lágrimas voltaram a deslizar-se por suas bochechas. Por que não era capaz de
deixar de chorar por ele? Cada vez que pensava no Steve, começava a soluçar. E era
ridículo, tendo em conta que nem sequer tinha sido capaz de reconhecê-lo. Payne lhe
havia dito que iria procurá-la às dez, de modo que obrigou a si mesmo a deixar de chorar
e a preparar-se. Conseguiu fazê-lo com tempo mais que suficiente e então descobriu,
para sua surpresa, que estava faminta. Normalmente não tomava o café da manhã,
sobrevivia com dose intermináveis de café até a hora do almoço, e então, o estômago lhe
ardia de tal maneira que não era capaz de comer muito. Mas a tensão do trabalho
começava a desaparecer, e queria comer.
Pediu um café da manhã ao serviço de quartos que recebeu com urgência. Lançou-
se sobre a bandeja como se estivesse morta de fome e devorou a omelete e a torrada em
um tempo recorde. Tinha terminado de tomar o café da manhã meia hora antes de que
Payne batesse na porta.
Dissimuladamente, este estudou seu rosto e analisou cada detalhe. Tinha estado
chorando. Aquela situação a estava afetando, e embora isso era precisamente o que
queriam, ainda lhe doía que estivesse sofrendo. Mas também era certo que seu aspecto
era muitíssimo melhor aquela manhã. A cor tinha voltado para seu rosto. Seus olhos
pareciam maiores e brilhantes do que recordava, embora em parte era conseqüência das
lágrimas. Esperava que não tivesse que derramar muitas mais.
–Já chamei o hospital para comprovar seu estado –a informou, agarrando-a pelo
braço. –Boas notícias. Seus reflexos vitais estão melhorando. Continua inconsciente, mas
as ondas cerebrais se encontram em crescente atividade e os médicos cada vez são mais
otimistas. Está melhorando muito mais do que ninguém esperava.
Jay não respondeu que, tendo em conta que esperavam que morrera, algo
significava uma melhoria. Não queria pensar no perto que tinha estado Steve de morrer.
Não compreendia, seu ex-marido se converteu em alguém inesperadamente importante
para ela nos poucos minutos que tinha permanecido ao lado de sua cama.
O hospital estava muito mais concorrido pela manhã que a noite anterior. Os dois
guardas que custodiavam as portas da UTI tinham mudado, mas também eles pareceram
reconhecer ao Payne nada mais vê-lo. Jay se perguntou quantas vezes teria ido Payne a
ver o Steve e se realmente precisaria estar de novo ali. Poderia haver-se limitado a
receber informação sobre o ferido por telefone. Fosse qual fora a confusão em que Steve
se colocou, devia ser extremamente importante e Payne parecia desejar estar presente
no momento no que recuperasse a consciência... Se isso chegasse a acontecer.
Payne deixou que Jay entrasse sozinha no quarto com a desculpa de que queria ir
falar com alguém. Ela assentiu com ar ausente e toda sua atenção concentrada no Steve.
Empurrou a porta semi-aberta e entrou, deixando o Payne no corredor, virtualmente com
a palavra na boca. Um sorriso de cansaço apareceu nos lábios do policial enquanto
olhava a porta fechada do quarto; continuando, voltou-se e caminhou com passo enérgico
pelo corredor.
Jay olhou fixamente ao homem convexo na cama. Steve. Ao voltar a vê-lo, resultava-
lhe mais difícil aceitar que aquele fosse seu ex-marido. Ela tinha conhecido a um Steve
vibrante, transbordante de energia; e aquele homem permanecia tão imóvel que esteve a
ponto de fazer perder a Jay seu precário equilíbrio.
Estava na mesma postura que a noite anterior; as máquinas seguiam zumbindo e os
soros continuavam alimentando-o, fluindo até o seu corpo através das agulhas. O forte
aroma de anti-séptico lhe irritou o nariz e, de repente, perguntou-se se, em algum canto
de sua mente, Steve seria consciente daquele aroma. Poderia ouvir embora fora incapaz
de responder?
Aproximou-se da cama e lhe tocou o braço como tinha feito a noite anterior. O calor
de sua pele lhe provocou um comichão nas gemas dos dedos. Sentiria algo Steve? Seria
consciente de suas carícias?
–Steve? –sussurrou com voz trêmula.
Resultava-lhe estranho falar com uma pessoa imóvel, sabendo além que estava em
um coma tão profundo que não era consciente de nada e que, se por alguma sorte de
milagre fosse capaz de ouvi-la, não poderia nunca responder. Mas inclusive sabendo-o,
algo a impulsionou a tentá-lo.
–Sou Jay. Está ferido –lhe explicou, sem deixar de lhe aca-riciar o braço. –Mas ficará
bem. Tem as pernas quebradas e as tem engessadas, por isso não as pode mover. Além
disso lhe inseriram um tubo na garganta para te ajudar a respirar, por isso não pode falar.
E não pode ver porque tem os olhos estão cobertos pelas ataduras. Mas não se preocupe
com nada, aqui lhe estão cuidando muito bem e está melhorando.
Possivelmente não fosse certo que fora a recuperar-se, mas não sabia o que outra
coisa lhe dizer. Se podia ouvi-la, queria tranqüilizá-lo e não lhe dar novos motivos de
preocupação.
Esclareceu-se garganta e começou a lhe falar dos últimos cinco anos, pelo que tinha
estado fazendo depois de seu divórcio. Contou-lhe inclusive que a tinham despedido e lhe
falou da vontade que tinha de dar ao Farrell Wordlaw um bom murro no nariz.
Era uma voz serena e incrivelmente tenra. Não compreendia as palavras, porque a
inconsciência continuava envolvendo sua mente em capas e capas, de escuridão, mas
ouvia a voz, sentia-a, ao igual a algo quente na pele. E aquele minúsculo e tênue contato
o fazia sentir-se menos sozinho. Algo intenso e vital em seu interior se concentrava
naquele contato e o obrigava a abandonar a escuridão, apesar de que continuava
sentindo a presença dos monstros que estavam esperando para destroçá-lo com suas
temíveis garras e seus dentes brutais. Certamente teria que suportar essa tortura antes
de alcançar aquela voz, e estava muito débil. Possivelmente nunca chegasse até ela. Mas
a voz o atraía como um ímã e o tirava da profunda sensação de isolamento que o
envolvia.
–Lembro-me da boneca que me deram de presente de Natal quando tinha quatro
anos –disse Jay, falando com voz baixa e sonhadora. –Era muito macia, como um bebê
de verdade, tinha o cabelo encaracolado e os olhos castanhos com umas pestanas
enormes. Quando a deitava, fechava os olhos. Chamei-a Chrissy em honra a que era
minha melhor amiga. Arrastava essa boneca por toda parte, até que chegou um momento
em que ficou com o aspecto de uma dama velha e desgastada. Dormia com ela, sentava-
a a meu lado quando comia e lhe fiz percorrer quilômetros e quilômetros sentada em meu
triciclo. Depois, comecei a crescer e perdi o interesse pela Chrissy. Deixei-a na estante,
com o resto de minhas bonecas, e me esqueci dela. Mas a primeira vez que te vi, Steve,
pensei que tinha os olhos da Chrissy. Assim era como de pequena chamava os olhos
castanhos. Sim, Steve, você tem os olhos da Chrissy.
A respiração de Steve parecia haver-se feito mais repousada, mais profunda. Jay
não podia estar segura, mas tinha a sensação de que tinha mudado o ritmo com o que se
elevava e descia seu peito. O som de sua respiração assobiava através do tubo que tinha
conectado à garganta. Ela seguia lhe acariciando delicadamente o braço, apesar da
intensa dor moral que lhe causava aquele contato.
–Acredito que inclusive cheguei a te dizer em um par de ocasiões que tinha os olhos
da Chrissy, mas me parece que você não gostava disso –riu, e o som de sua risada
pareceu esquentar aquela habitação presidida pelo impessoal zumbido das máquinas. –
Sempre gostou de proteger sua imagem de homem. E um aventureiro não podia ter os
olhos da Chrissy, não é verdade?
De repente, Steve teve um espasmo no braço. Aquele movimento surpreendeu a Jay
de tal maneira que afastou a mão e empalideceu. Era a primeira vez que se movia,
embora ela sabia que provavelmente tivesse sido um espasmo muscular completamente
involuntário. Seus olhos voaram para o rosto do ferido, mas não viu nada novo nele. As
ataduras cobriam ao menos dois terços de sua cabeça e seus lábios feridos continuavam
imóveis. Lentamente, alongou a mão e voltou a lhe tocar o braço, mas Steve permanecia
completamente quieto ante seu contato e, ao cabo de uns segundos, Jay começou a lhe
falar outra vez, tentando tirar lembranças de sua infância.
Frank Payne abriu sigilosamente a porta do quarto e se deteve o ouvir a voz de Jay.
Esta continuava ao lado da cama; diabos, não se tinha movido nem um milímetro e levava
ali, o policial olhou o relógio, perto de três horas. Se tivesse sido a esposa do tipo o teria
compreendido, mas se supunha que era seu ex-marido, e tinha sido ela a que tinha
decidido pôr fim a seu matrimônio. Mas mesmo assim, seguia ali, com toda sua atenção
centrada nele, como se estivesse animando-o a melhorar.
–Gostaria de um café? –perguntou-lhe Payne brandamente, tentando não assustá-
la.
Mas Jay voltou bruscamente a cabeça para ele, com os olhos abertos como pratos.
Ao vê-lo, sorriu.
–Sim, boa idéia –se separou da cama, deteve-se e se voltou de novo para o Steve
com o cenho franzido. –Odeio deixá-lo sozinho. Se compreender algo, deve ser terrível
estar aí, apanhado e ferido, sem saber por que, acreditando-se completamente sozinho.
–Não é consciente de nada –lhe assegurou Payne, –está em coma e, agora mesmo,
é preferível que permaneça assim.
–Sim –se mostrou de acordo Jay.
Sabia que Payne tinha razão. Em sua situação, se Steve estivesse consciente,
sofreria de maneira terrível.
Aquele trêmulo raio de consciência se desvaneceu; a voz tinha desaparecido e o
tinha deixado sem rumo. Sem aquela guia, voltou a afundar-se na escuridão. Em um
nada.
Frank se deteve um longo momento frente à péssima comida da cafeteria e o café,
surpreendentemente bom. Não era um grande café; na realidade, nem sequer podia
dizer-se que fora bom, mas era muito melhor do que esperava. O seguinte turno poderia
não ser tão bom, de modo que queria desfrutar do café durante tanto tempo como
pudesse. Não estava alargando o café unicamente por isso; não sabia exatamente como
tirar o tema que tinha estado rondando por sua cabeça durante todo o almoço, mas tinha
que fazê-lo. O Homem o tinha deixado muito claro: Jay Granger tinha que ficar. Não
queria que identificasse o paciente e se fosse. Queria que se sentisse emocionalmente
envolvida no que via, ao menos o suficiente para sentir-se obrigada a ficar. E quando o
Homem queria algo, conseguia-o.
Frank suspirou.
–E o que ocorrerá se ela se apaixona por ele? Diabos, já sabe como é. As mulheres
o perseguem, são incapazes de resistir tinha perguntado.
–É possível que sofra –lhe tinha respondido ele, com sua voz acerada. –Mas sua
vida está em perigo e as opções são limitadas. Por alguma razão, Steve Crossfield estava
ali quando ocorreu tudo. Sabemos nós e sabem eles. Não temos uma lista de
possibilidades entre as que escolher. Crossfield é a única opção.
Não precisava dizer nada mais. Se Crossfield era a única opção, sua ex-esposa
também o era, posto que era a única pessoa que podia identificá-lo.
–McCoy engoliu? –tinha-lhe perguntado bruscamente o Homem.
–Completamente –tinha respondido Frank. E tinha endurecido a voz para
acrescentar: –Não acreditará que Gilbert McCoy é...
–Não, sei que não o é. Mas McCoy é um agente muito bom. Se ele engoliu, isso
significa que estamos fazendo um bom trabalho.
–E o que ocorrerá se ela estiver a seu lado quando recuperar a consciência?
–Isso é o de menos. Os médicos dizem que estará muito confuso e desorientado
para encontrar sentido a nada. Avisar-nos-ão assim que começar a sair do coma. Não
poderemos mantê-la fora do quarto sem levantar suspeitas, mas estaremos atentos. Se
começar a recuperar a consciência, a tiraremos dali até que possamos falar com ele.
Embora não há muitas possibilidades de que ocorra.
–Leva uma eternidade removendo esse café –a voz de Jay interrompeu seus
pensamentos.
Frank Payne elevou o olhar para ela e voltou a baixá-la para o café. Levava tanto
tempo removendo-o que se ficou frio. Esboçou uma careta ao dar um gole a aquele café
supostamente não tão mau.
–Estava tentando pensar na forma de lhe pedir algo –admitiu.
Jay o olhou com estranheza.
–Só há uma forma de fazê-lo. Peça-me isso.
–De acordo –tomou ar. –Não volte amanhã para Nova Iorque. Fique aqui com o
Steve. Necessita-a, e logo a necessitará muito mais.
Aquelas palavras a golpearam com dureza. Steve nunca a tinha necessitado. Era ela
que o necessitava e esperava muito mais de sua relação do que seu ex-marido podia lhe
dar. Ele sempre tinha querido manter certa distância entre eles, tão mental como
emocionalmente, alegando que Jay o asfixiava. Ela recordou o momento no que lhe tinha
gritado aquelas palavras. E pensou depois no homem que permanecia quieto e imóvel em
uma cama de hospital. Voltou a experimentar aquela inquietante sensação de irrealidade.
Sacudiu a cabeça lentamente.
–Steve é um solitário. Deveria sabê-lo pela informação que tem sobre ele. Não me
necessita agora e não me necessitará quando despertar. Provavelmente, nem sequer
goste da idéia de que alguém tenha que cuidar dele, e muito menos sua ex-esposa.
–Estará muito confuso quando despertar. Você é a única que pode ajudá-lo, é o
único rosto que conhece, alguém em quem pode confiar, que lhe proporcionará certa
segurança. Os médicos dizem que quando despertar estará muito confuso e nervoso, que
possivelmente inclusive delire. Ajudará ter a seu lado a alguém que conhece.
Jay voltou a negar com a cabeça.
–Sinto muito, senhor Payne. Não acredito que Steve queira que fique a seu lado,
mas inclusive nesse caso, não poderia ficar embora quisesse. Ontem me despediram.
Ficam duas semanas no escritório e não posso me permitir o luxo de deixar de trabalhar
durante esse tempo. Além disso, tenho que encontrar outro trabalho.
Payne deixou escapar um assobio.
–Deve ter sido um dia infernal, não é verdade?
Jay não pôde menos que rir apesar da seriedade da situação.
–Sim, essa é uma boa descrição.
Quanto mais conhecia o Frank Payne, mais gostava. Havia algo excepcional nele.
Era um homem de peso e estatura médias, cabelo castanho com alguns fios brancos e
olhos claros. Tinha um rosto agradável, embora não especialmente atrativo. Mesmo
assim, havia nele uma firmeza que inspirava confiança.
Parecia pensativo.
–É possível que possamos fazer algo por você. Me deixe investigá-lo antes de
reservar um vôo de volta. Gostaria de ter a oportunidade de mandar a seu chefe a
passeio?
Jay respondeu com um doce sorriso e naquela ocasião foi Payne o que riu.
Um momento depois, Jay compreendeu que aquela pedido significava que estavam
convencidos de que Steve sobreviveria. Estava de novo no quarto, ao lado da cama, e lhe
pressionou brandamente o braço enquanto experimentava um imenso alívio.
–Vai conseguir –lhe sussurrou.
Estava a ponto de anoitecer e tinha passado todo o dia junto à cama. de vez em
quando, uma enfermeira lhe pedia que saísse, mas à exceção daqueles minutos e os que
tinha passado almoçando com o Frank, tinha estado em todo momento com o Steve.
Tinha-lhe falado até terminar com a garganta seca, até que já não era capaz de pensar
em nada que fazer ou dizer, mas inclusive então, tinha continuado posando a mão em
seu braço. Possivelmente assim ele soubesse que estava ali.
Entrou uma enfermeira e olhou A Jay com curiosidade, mas não lhe pediu que
abandonasse o quarto. Revisou os indicadores dos monitores e tomou notas em uma
caderneta.
–É estranho –murmurou. –Embora provavelmente não. -Os batimentos do seu
coração são mais fortes e a respiração mais pausada quando você está com ele. Quando
saiu para almoçar, seus reflexos vitais pioraram e tornaram a remontar quando retornou.
E comprovei que ocorreu o mesmo cada vez que lhe pedimos que abandonasse o quarto.
Ao coronel Lunning lhe vão interessar muito estes gráficos.
Jay olhou de marco em marco à enfermeira e depois se voltou para o Steve.
–Sabe que estou aqui?
–Não de uma forma consciente –respondeu precipitadamente a enfermeira. –Com a
dose de medicamentos que lhe estamos administrando, não vai despertar de repente
para falar com você. Esteve lhe falando durante todo o dia, não é verdade? Certamente,
parte de sua conversa lhe chega de uma ou outra maneira. E você deve ser muito
importante para ele para que tenha respondido tão positivamente.
A enfermeira saiu do quarto e Jay olhou o Steve completamente atônita. Inclusive no
caso de que houvesse sentido sua presença, por que ia afetá-lo daquela maneira?
Mesmo assim, não podia desprezar a teoria da enfermeira, pois ela mesma tinha notado
que o ritmo de sua respiração tinha mudado. Resultava-lhe virtualmente impossível
acreditar, porque Steve jamais a tinha necessitado. Tinha desfrutado com ela durante um
tempo; entretanto, algo o fazia mantê-la sempre a uma pequena, mas significativa
distância. E como não era capaz de amá-la em profundidade, não se tinha permitido
tampouco aceitar o amor que lhe oferecia. O único que Steve queria era uma relação
superficial, um amor ligeiro ao que pudesse pôr fim sem remorsos. Assim tinha acabado
sua relação e ela mal tinha pensado no Steve depois de sua separação. Por que de
repente ia haver se convertido em alguém tão importante para ele?
Riu com tristeza ao compreendê-lo. Steve não estava respondendo a sua presença,
estava respondendo a uma carícia e a uma voz que se dirigiam expressamente a ele e se
diferenciavam do contato e as vozes distantes dos médicos e enfermeiras que o
rodeavam. Qualquer outra pessoa em sua situação teria melhorado. Se Frank Payne
tivesse permanecido lhe falando ao lado da cama, o resultado teria sido o mesmo.
E assim o disse uma hora depois, enquanto o coronel Lunning estudava os gráficos,
esfregando o queixo e olhando-a de vez em quando com expressão pensativa. Frank
permanecia a seu lado, procurando manter o semblante inexpressivo, mas sem perder um
só detalhe.
O coronel Lunning era um homem que vivia entregue à vida militar e à medicina. Não
estava destinado na Bethesda, mas não tinha questionado as ordens quando o tinham
chamado em metade da noite para levá-lo até ali. A um grupo de médicos entre os que
ele se encontrava, lhes tinha atribuído a tarefa de salvar a vida daquele homem. Em
princípio, nem sequer sabiam como se chamava. Agora figurava um nome em seu
histórico, mas continuavam sem saber por que era tão importante salvar sua vida. Mas
não importava. O coronel Lunning utilizaria todos quão meios que estivessem a seu
alcance para ajudar o seu paciente. E naquele momento um dos meios era aquela mulher
magra de olhos azul escuro e boca apaixonada.
–Não podemos passá-lo por alto, senhorita Granger –disse o coronel com franqueza.
–É a sua voz a que responde, não à minha nem a do senhor Payne nem às das
enfermeiras. O senhor Crossfield não está em um coma profundo. Respira por si mesmo
e ainda tem reflexos. Não é ilógico pensar que pode ouvi-la. É possível que não a
compreenda e, certamente, não pode responder, mas é de todo possível que a ouça.
–Mas tenho entendido que seu coma está induzido pelas drogas –protestou Jay. –
Quando as pessoas estão drogadas, não estão completamente inconsciente?
–Há diferentes níveis de consciência. Me permita lhe explicar suas lesões de uma
forma mais precisa. As pernas as tem unicamente quebradas, não há nada que possa lhe
impedir de caminhar em um futuro. Tem queimaduras de segundo grau nas mãos e nos
braços, mas as piores queimaduras são as das palmas das mãos e as dos dedos. É como
se tivesse agarrado um tubos quente, ou possivelmente utilizou as mãos para proteger o
rosto. Tinha o baço destroçado e tivemos que tirar-lhe. Um dos pulmões foi perfurado,
mas as feridas mais graves são as da cabeça e o rosto. Tinha o crânio fraturado e os
ossos da cara feitos pedacinhos. Operamos-lhe imediatamente e para controlar o inchaço
do cérebro e evitar futuros danos, tivemos que lhe administrar grandes dose de
medicamentos. É isso o que o mantém em coma. Agora, quanto mais profundo é o coma,
menos são as funções cerebrais. Em um coma profundo, o paciente nem sequer é capaz
de respirar por si mesmo. O nível do coma depende em parte da tolerância do paciente às
drogas, que varia em cada pessoa. A tolerância do senhor Crossfield parece ser superior
à média, de modo que seu coma não é tão profundo como deveria. Não incrementamos a
dose porque não foi necessário. Com o tempo, iremos diminuindo-a gradualmente e
terminaremos com o estado de coma. Ele pode superar a situação com seus próprios
meios, mas, francamente, encontra-se definitivamente melhor quando você está com ele.
Ainda desconhecemos muitas coisas sobre o comportamento da mente e sua influência
sobre o corpo, mas sabemos que existe relação entre ambos.
–Está me dizendo que se recuperará mais rápido se eu ficar?
O coronel sorriu.
–Em poucas palavras, sim.
Jay se sentia cansada e confusa, como se tivesse passado horas em um labirinto de
espelhos, tentando encontrar a saída e encontrando uma e outra vez com um reflexo. E
não era só por todas aquelas pessoas que insistiam em que ficasse; em parte, era
também por ela mesma. Algo tinha ocorrido em seu interior quando havia tocado o Steve,
algo que não compreendia. Estava segura de que nunca havia sentido nada parecido,
nem sequer quando estavam casados. Era como se de repente Steve fora mais do que
tinha sido, como se tivesse mudado de uma forma que ela sentia, mas não podia definir.
Jay desejava não ter que assumir tamanha responsabilidade. Não queria ficar.
Aquele estranho sentimento que experimentava para o Steve a fazia sentir-se ameaçada.
Se fosse embora naquele momento, não lhe daria oportunidade de desenvolver-se. Mas
se ficasse...
Cinco anos atrás, não tinha sofrido por seu divórcio porque o amor entre eles jamais
tinha chegado a ser profundo e ao final, simplesmente, desvaneceu-se. Mas Steve era um
homem diferente; tinha mudado durante esses cinco anos, converteu-se em alguém cuja
força podia sentir-se inclusive através de sua inconsciência. Se voltasse a apaixonar-se
por ele, nunca poderia superá-lo.
Mas se partisse, sentiria-se culpada por não havê-lo ajudado.
Necessitava de outro trabalho. Tinha que voltar para Nova Iorque e fazer algo para
impedir que sua vida se desintegrasse. Além disso, estava cansada daquelas pressões
constantes. Não queria partir, mas lhe dava medo ficar.
Frank advertiu a tensão que refletia seu rosto, sentiu-a vibrar através dela.
–Saiamos à sala de espera –disse, dando um passo adiante para agarrá-la pelo
braço. –Precisa descansar. -Verei-o mais tarde, coronel Lunning.
O coronel assentiu.
–Tente convencê-la. Este homem a necessita.
Uma vez no corredor, Jay murmurou:
–Odeio que as pessoas falem de mim como se eu não estivesse. E estou farta de
que me manipulem –ao dizer aquela última frase, estava pensando em seu trabalho, mas
Frank lhe dirigiu um intenso olhar.
–Não quero pô-la em uma situação difícil –respondeu diplomaticamente. –Mas
necessitamos que continue falando com seu marido. Perdão, seu ex-marido, sempre o
esquecimento. Em qualquer caso, estamos desejando fazer tudo o que esteja em nossas
mãos para ajudar na sua recuperação.
Jay afundou as mãos nos bolsos e diminuiu o passo, como se estivesse pensando
em algo.
–Vão prender o Steve?
Frank não vacilou.
–Não –respondeu com absoluta certeza.
Aquele homem ia contar com os melhores médicos e o melhor amparo que o país
pudesse lhe proporcionar. A Frank teria encantado poder dizer a Jay os motivos, mas não
era possível.
–Acreditam que, simplesmente, estava no lugar equivocado no momento
equivocado. Mas tendo em conta seu passado, é possível que tentasse fazer-se
acusação da situação. Inclusive é possível que tentasse ajudar quando tudo lhe estourou
em pleno rosto. E algo que possa recordar, ajudará-nos.
Chegaram à sala de espera e Frank abriu a porta para que Jay o precedesse.
Felizmente, estavam sozinhos. O policial se aproximou da máquina do café e colocou
várias moedas.
–Café?
–Não, obrigada –respondeu Jay cansada enquanto se sentava.
Tinha o estômago inusualmente tranqüilo e não queria chateá-lo com a nociva
beberagem que normalmente saía daquelas máquinas. Não tinha sido consciente de
quão cansada estava, mas nesse momento, a fadiga era tal que inclusive se enjoava.
Frank se sentou frente a ela com uma xícara de café entre as mãos.
–Falei com meu superior e lhe expliquei sua situação –começou a dizer. –Ficaria se
não tivesse que preocupar-se com o trabalho?
Jay fechou os olhos enquanto se esfregava a testa, em um esforço por concentrar-se
no que ele acabava de lhe dizer. Não recordava ter estado nunca tão cansada, era como
se toda sua energia a tivesse abandonado. Tinha a mente intumescida. Ao longo de todo
o dia, tinha estado tão concentrada no Steve que todo o resto parecia haver-se apagado e
quando por fim se permitia relaxar-se, o cansaço a deixava em um estado de lassidão
física e mental.
–Não compreendo –murmurou. –Preciso trabalhar para ganhar dinheiro.
–Ficar aqui poderia converter-se em seu trabalho –lhe explicou Frank, desejando
não ter que pressioná-la.
Jay parecia incapaz de fazer nada mais que permanecer sentada. Mas
possivelmente fosse mais fácil convencê-la naquele momento, com a fadiga interpondo-se
em sua capacidade de raciocínio.
–Far-nos-emos acusação do aluguel de seu apartamento e de todos seus gastos.
Para nós é muito importante.
Jay abriu os olhos e o olhou com incredulidade.
–Pagariam-me por ficar aqui?
–Sim.
–Mas eu não quero que me dêem dinheiro para estar com ele! Quero ajudá-lo, não o
compreende?
–Mas não pode por culpa de sua situação econômica –disse Frank, assentindo. –O
que lhe estamos oferecendo é nos fazer acusação de sua situação econômica. Se tivesse
dinheiro suficiente, vacilaria na hora de ficar?
–É obvio que não! Faria algo para ajudá-lo, mas a idéia de aceitar esse dinheiro me
parece repugnante.
–Não vamos pagar lhe para que fique com ele, vamos pagar lhe para que possa ficar
com ele. Entende a diferença?
Jay devia estar voltando-se louca, porque era capaz de ver a diferença. E o olhar de
Frank era tão amável que instintivamente confiava nele, embora tinha a sensação de que
ali estavam ocorrendo muitas coisas que ela não alcançava a compreender.
–Conseguir-lhe-emos um apartamento perto daqui, para que possa passar mais
tempo com ele –continuou Frank em tom amável e razoável. –Também nos faremos
acusação do apartamento de Nova Iorque, para que possa voltar depois para ele. Se me
disser que sim neste momento, poderá se mudar na segunda-feira para o seu
apartamento.
Tinha que haver algum argumento em contra, pensou Jay, mas não lhe ocorria
nenhum. Frank estava suprimindo todos os obstáculos do caminho; far-lhe-ia sentir-se
mesquinha se se negasse a fazer o que lhe propunha quando se tomou tantas moléstias
por ela e eles, quaisquer pessoas que fossem, tinham tanto interesse em que ficasse.
–Terei que voltar para casa –disse, impotente. –Terei que voltar para Nova Iorque a
procurar mais roupa, e terei que me despedir de meu trabalho –de repente, soltou uma
gargalhada, –se é que é possível despedir-se de um trabalho do que já lhe despediram.
–Encarregar-me-ei de lhe organizar a viagem.
–Quanto tempo acredita que estarei aqui?
Frank lhe sustentou o olhar.
–Um par de meses pelo menos. Possivelmente mais.
–Meses!
–Steve terá que submeter-se a reabilitação.
–Mas para então já estará consciente. Eu pensava que só queriam que ficasse até
que o pior tivesse passado!
Frank se esclareceu garganta.
–Nós gostaríamos que ficasse até que possa deixar o hospital.
–Mas por que?
–Necessitá-la-á. A recuperação será muito dolorosa. Não o hei dito até agora, mas
terá que voltar para lhe operar os olhos. Provavelmente, às seis semanas da operação
poderemos lhe tirar as ataduras. Quando recuperar a consciência estará muito confuso,
sofrerá dores e, além disso, não poderá ver. Jay –sussurrou, –você vai ser sua tabela de
salvação.
Ela permanecia sentada, como atordoada, olhando o policial de cima abaixo. Era
como se, de repente, fora muito tarde. Steve ia necessitá-la muito mais do que nem ela
nem ele poderiam ter imaginado.
Capítulo 3
Resultava estranho estar de volta em Nova Iorque. Jay tinha chegado no domingo
pela tarde e tinha passado várias horas fazendo a bagagem, guardando a roupa e seus
objetos pessoais, mas se sentia estranha em seu apartamento, como se já não
pertencesse àquele lugar. Fazia as malas como uma autômato, com a mente posta no
hospital da Bethesda. Como estaria Steve? Tinha passado a manhã com ele, lhe falando
constantemente e lhe acariciando o braço, mas a punha nervosa estar tanto tempo
separada de seu lado.
Na segunda-feira pela manhã se vestiu para ir ao escritório pela última vez e foi
consciente de uma profunda sensação de alívio. Até que não a tinham despedido, não se
tinha dado conta da carga que representava aquele trabalho, do competitiva que se
tornou. E a competência era algo bom, mas não a gastos da saúde, embora, em parte,
tinha que culpar daquela atitude a sua próprio paixão. Tinha canalizado todo seu gênio,
desejos e energias naquele trabalho, não se tinha permitido nenhuma outra válvula de
escape. Tinha sorte de não ter terminado com uma úlcera.
Quando chegou ao escritório, situada em um edifício alto que alojava a outras muitas
firmas, esteve procurando entre seus companheiros uma caixa de papelão em que
guardou todos os objetos pessoais de seu escritório. Não eram muitos: um lápis de lábios,
um par de meias, um pacote de lenços de papel, uma caneta de ouro e um par de
lâminas. Acabava de terminar e estava alargando a mão para o telefone para chamar o
Farrell Wordlaw quando soou o intercomunicador.
–O senhor Clements do EchoSystems na linha três, senhorita Granger.
Jay pressionou o botão.
–Por favor, passe todas as minhas chamadas ao Duncan Wordlaw.
–Sim, senhorita Granger.
Jay tomou ar e marcou o número do escritório do Farrell. Dois minutos depois,
dirigia-se para ali.
Seu chefe a recebeu com um beatífica sorriso, como se não tivesse sido ele quem a
tinha demitido três dias atrás.
–Tem bom aspecto, Jay –disse brandamente. –Já pensou em algum outro trabalho?
–Para falar a verdade, não muito –respondeu. –Queria lhe dizer que não vou poder
trabalhar durante estas duas semanas. Esta manhã vim esvaziar minha escrivaninha e já
deixei dito que passem todas as minhas chamadas ao Duncan.
Produziu-lhe uma boa dose de satisfação vê-lo empalidecer.
–Mas isso é muito pouco profissional! –espetou-lhe, ficando de pé. -Contávamos
com você para atar os últimos cabos soltos.
–E para que ensinasse a Duncan a fazer meu trabalho –o interrompeu com ironia.
–Nestas circunstâncias, não sei como vou poder lhe oferecer as recomendações que
lhe tinha prometido. E sem umas referências favoráveis, não poderá voltar a trabalhar em
nenhuma firma de investimentos –replicou Farrell em tom ameaçador.
–Não penso voltar a trabalhar em nenhuma outra firma de investimentos, obrigada.
Jay observava ao Farrell e virtualmente podia ver o movimento das engrenagens de
seu cérebro enquanto este considerava as possibilidades que ficavam. Sabia que ia
deixá-lo plantado e que a culpa era dele por havê-la tratado injustamente.
–Bom, possivelmente me precipitei um pouco –disse, forçando-se a manter um tom
paternal. –Realmente, suporia um problema para a firma que os assuntos dos que estava
ocupando-se não fossem devidamente atendidos. Possivelmente se acrescentasse duas
semanas mais de salário e um bônus, poderia reconsiderar sua decisão de nos
abandonar tão precipitadamente.
–Obrigada, mas não –declinou a oferta. –Não será possível, vou estar fora da
cidade.
O pânico começava a aparecer no rosto do Farrell. Se os investimentos das que ela
tinha estado ocupando-se fracassavam, a firma deixaria de ganhar milhares de dólares de
benefícios.
–Mas não pode nos fazer algo assim! Onde pensa ir?
Jay já podia imaginar as chamadas aterradas do Duncan. Dirigiu ao Farrell um frio
sorriso.
–Ao Hospital Naval da Bethesda, mas não penso me pôr ao telefone.
Farrell parecia completamente estupefato.
–Ao Hospital Naval?
–É uma emergência familiar –respondeu Jay enquanto se voltava para a porta.
Quando esteve fora de novo, com a pequena caixa de papelão sob o braço, soltou
uma gargalhada de puro júbilo. Alegrava-se de haver ficado sem trabalho e de ter sido
capaz de levar aquela expressão de pânico ao rosto do Farrell Wordlaw. Era quase tão
agradável como ter podido estrangulá-lo. E por fim era livre para retornar com o Steve,
para deixar-se arrastar por aquele poderoso impulso que não era capaz nem de
compreender nem de resistir.
Frank foi procurá-la no aeroporto para ajudá-la com a bagagem e Jay não dissimulou
a alegria que lhe produziu encontrá-lo ali.
–Não sabia que vinhas! –exclamou.
Frank não pôde evitar um sorriso. Os olhos de Jay resplandeciam como o mar e as
linhas de tensão tinham abandonado seu rosto. Era como se se alegrasse de ter podido
pôr fim a seu trabalho, e assim o comentou.
–Sim, foi... uma grande satisfação –admitiu com um sorriso. – Como está Steve
hoje?
Frank se encolheu de ombros.
–Não tão bem como quando o deixou.
Era muito estranho, mas era verdade. Seu pulso se debilitou e lhe resultava mais
difícil respirar. Inclusive estando inconsciente, aquele homem a necessitava.
A preocupação escureceu o olhar do Jay. Mordeu-se o lábio. A necessidade de ver o
Steve se fazia mais intensa, era como se umas correntes invisíveis estivessem puxando-a
para ele.
Mas antes tinha que instalar-se no apartamento que Frank lhe tinha conseguido, algo
para o que se requeria tempo e que estava devorando sua paciência. O apartamento era
a metade de que tinha ela em Nova Iorque. Só contava com duas habitações: a sala de
estar e o dormitório. A cozinha era diminuta e estava situada em um canto e havia um
espaço minúsculo que fazia as vezes de sala de jantar. Mas parecia um lugar confortável,
sobre tudo porque Jay pensava passar a maior parte de seu tempo no hospital. Aquele
seria somente um lugar em que dormir e fazer algumas refeições.
–Também te consegui um carro –comentou Frank enquanto colocava a última mala.
Sorriu ao ver a expressão de surpresa do Jay. –Isto não é Nova Iorque. Necessitará
algum meio de transporte para te mover –tirou umas chaves do bolso e as deixou sobre a
mesa. –Assim poderá ir ao hospital quando gostar. Tem permissão para ver o Steve a
qualquer hora. Eu não estarei sempre por ali, como até agora, mas em minha ausência,
qualquer outro agente se ocupará de tudo.
–Vais vir agora comigo ao hospital?
–Agora? –surpreendeu-se Frank. –Não vais desfazer as malas?
–Já as desfarei esta noite. Preferiria ir ver Steve.
–De acordo –em segredo, pensava que seu plano estava saindo excessivamente
bem. –Por que não me segue em seu carro, para que vá aprendendo o caminho? Você...
sabe conduzir, não é verdade?
Jay assentiu com um sorriso.
–Só levo cinco anos em Nova Iorque. Nos outros lugares nos que vivi, sempre me
tem feito falta um carro. Mas te advirto que levo bastante tempo sem conduzir, assim terá
que me dar algum tempo para me acostumar.
Na realidade, conduzir era como montar em bicicleta: um nunca se esquecia de
como se fazia. Depois de alguns minutos para familiarizar-se com o carro, Jay seguiu ao
Frank sem dificuldade.
Até que não esteve no hospital e se aproximou da cama do Steve, não começou a
desaparecer o nó de tensão que tinha no estômago. Fixou o olhar na cabeça enfaixada
de seu ex-marido e o coração começou a lhe pulsar com força. Com infinito cuidado,
posou os dedos em seu braço e começou a falar.
–Estou aqui. Ontem tive que ir a Nova Iorque para trazer minhas coisas e me
despedir de meu trabalho. Me recorde que te conte algum dia o que passou. Em qualquer
caso, vou ficar a seu lado até que esteja melhor.
A voz retornou. Penetra lentamente entre as capas escuras que envolvem sua mente
formando um pequeno vínculo com sua consciência. Ele ainda não compreende as
palavras, mas não é consciente disso. A voz, simplesmente, aparece, é como uma luz em
um lugar no que antes não havia nada. Às vezes a voz é serena e outras vibra de
diversão. Ele não é consciente dessa diversão, mas percebe a mudança de tom.
E deseja mais. Quer aproximar-se mais a esse som e começar a lutar contra essa
névoa que obscurece sua mente. Mas cada vez que tenta, uma dor ardente penetra em
todo seu corpo obrigando-o a refugiar-se na escuridão que o protege. Então a voz volta a
chamá-lo, até que a dor ataca uma vez mais e tem que retirar-se.
O braço se moveu como o tinha feito na outra ocasião, e ao igual a tinha ocorrido
então, Jay afastou bruscamente a mão. Deixou de falar e ficou olhando-o fixamente.
Depois de uma ligeira pausa, voltou a posar a mão e reatou o que lhe estava dizendo. O
coração lhe pulsava com força. Certamente tinha sido um movimento involuntário
daqueles músculos obrigados a manter a mesma postura durante tanto tempo. Era
impossível que estivesse tentando responder, já que os medicamentos que lhe estavam
administrando anulavam a maioria de suas funções cerebrais. A maioria, mas não todas,
havia dito o coronel Lunning. Se Steve era consciente de sua presença, poderia estar
tentando comunicar-se com ela?
–Está acordado? –perguntou-lhe brandamente. –Pode mover o braço outra vez?
O braço permaneceu imóvel sob seus dedos e, com um suspiro, Jay retomou seu
monólogo. Por um instante, a sensação tinha sido tão forte que, apesar de tudo o que lhe
haviam dito, tinha pensado que Steve estava consciente.
Retornou ao hospital à manhã seguinte, antes de que o sol fora algo mais que uma
tímida claridade para o oeste. Não tinha dormido muito bem, principalmente porque os
ruídos não lhe resultavam familiares, mas tampouco podia jogar toda a culpa ao
apartamento novo. Tinha permanecido acordada na escuridão, tentando analisar e
descartar a absurda convicção de que, por um instante, Steve tinha tentado ficar em
contato com ela da única forma que podia. Apesar de toda sua análise, a lógica não
significava nada quando recordava o que havia sentido.
«Já basta!», arreganhou-se a si mesmo enquanto subia no elevador para a UTI.
Estava-se deixando levar pela imaginação, alimentando sua tendência a entregar-se
totalmente àquilo que lhe interessava. Nunca tinha sido uma pessoa capaz de controlar
suas emoções, embora virtualmente se deixou a saúde tentando sê-lo. Desejava até tal
ponto a recuperação do Steve que estava imaginando respostas onde não as havia.
O quarto estava iluminado apesar da hora, posto que, em seu estado, a luz ou a
escuridão não supunham para ele nenhuma diferença. Jay supunha que as enfermeiras
deixavam as luzes acesas para facilitar o trabalho. Fechou a porta, aproximou-se da cama
e posou a mão em seu braço.
–Estou aqui –disse brandamente.
Steve tomou ar e seu peito se estremeceu.
Aquele gesto sacudiu Jay como uma corda tensa que de repente tivesse escapado a
sua mão. Aquela profunda sensação de comunicação que ia além de toda lógica, além
das palavras, estava de novo aí, e naquela ocasião era muito mais intensa. Steve sabia
que estava ali. De algum jeito, tinha-a reconhecido. E estava lutando para chegar até ela.
–Pode me ouvir? –sussurrou com voz trêmula, fixando o olhar nele. –Sente minha
mão, é isso? Quando te toco o braço pode senti-lo? Deve estar confuso e assustado, não
sabe o que aconteceu e está tentando compreendê-lo, mas agora é muito difícil. Por-te-á
bem, prometo-lhe isso, embora ainda te levará algum tempo.
A voz. Havia algo nela que o arrastava, apesar da dor que esperava para cravar-se
nele cada vez que abandonava a escuridão. Aterrava-o essa dor, mas era mais intenso o
desejo daquela voz. Queria estar mais perto daquela mulher. Em algum momento, muito
tênue como para que pudesse recordá-lo ou compreendê-lo, deu-se conta de que era
uma mulher. Estava carregada de ternura e representava a única segurança que podia
encontrar no meio do vazio e a escuridão de sua mente e de seu mundo. Não sabia
virtualmente nada, mas conhecia aquela voz. Algum instinto primário a tinha reconhecido,
desejava-a, e nela encontrava a força para lutar contra a escuridão e contra a dor. E
queria que ela soubesse que ele estava ali.
Voltou a mover o braço. O movimento era muito lento para ser um espasmo
muscular involuntário. Naquela ocasião, Jay não retirou a mão. Ao contrário, esfregou
brandamente seu braço enquanto cravava o olhar em seu rosto.
–Steve? Pretendia mover o braço? Poderia tentá-lo outra vez?
Era estranho. Algumas daquelas palavras pareciam ter sentido. Outras não tinham
sentido absolutamente. Mas ela estava ali, mais perto, e a voz era cada vez mais clara.
Ele só podia ver escuridão, era como se o mundo nunca tivesse existido, mas ela estava
muito mais perto. A dor torturava seu corpo com uma intensidade que cobria sua pele de
suor, mas não queria retroceder depois de ter chegado tão longe, não queria retroceder a
aquele escuro vazio.
O braço? Sim. Ela queria que movesse o braço. Não sabia se podia fazê-lo. Doía-lhe
tanto que não sabia se poderia voltar a tentá-lo. Afastaria-se dele se não movesse o
braço? Não poderia suportar ficar novamente sozinho, em um lugar em que tudo era tão
frio, tão escuro e vazio... Não, não poderia suportá-lo depois de ter estado tão perto
daquele calor.
Tentou gritar, mas não pôde. A dor era incrível, rasgava-o como se fora um animal
selvagem que estivesse cravando suas presas e suas garras nele.
Moveu o braço.
O movimento foi apenas perceptível, um tremor que não teria notado se não tivesse
tido a mão sobre seu braço. Steve tinha começado a suar, seu peito e seus ombros
brilhavam baixo as luzes fluorescentes. O coração do Jay pulsava com força enquanto se
inclinava para ele e fixava o olhar em seus lábios.
–Steve, pode me ouvir? Sou Jay. Não pode falar porque tem a garganta entubada,
mas estou aqui. E não irei embora.
Ele entreabriu os lábios lentamente, como se estivesse tentando formar com eles
palavras que se negavam a deixar-se apanhar. Jay permanecia inclinada, contendo a
respiração e com uma intensa dor no peito enquanto Steve tentava forçar seus lábios e
sua língua para articular uma palavra. Ela sentia a força de seu desespero e sua
obstinada determinação enquanto, frente a toda lógica, lutava contra a dor e as drogas
para ser capaz de formular uma palavra. Era como se não pudesse renunciar fora qual
fora o preço. Havia algo nele que não lhe permitiria entregar-se.
Voltou a tentá-lo. Seus lábios inchados e faltos de cor se moviam com agônica
determinação. Moveu a língua para sussurrar uma palavra que apenas se ouviu.
–Dor.
Jay tomou ar várias vezes, alheia às lágrimas que começavam a deslizar-se por
suas bochechas. A dor de seu peito se fez mais intenso. Apertou-lhe o braço com muita
delicadeza.
–Agora mesmo volto. Darão-lhe algo para acalmar a dor. Só vou deixar te um
momento. Em seguida volto, prometo-lhe isso.
Jay voou até a porta, abriu-a bruscamente e saiu ao corredor. Devia ter estado no
quarto mais tempo de que pensava porque o terceiro turno tinha voltado para casa e o
primeiro turno do dia tinha começado seu trabalho. Frank e o coronel Lunning estavam na
habitação das enfermeiras, falando em um tom baixo e imperioso; ambos os homens
elevaram o olhar quando correu para eles. Frank a olhou com uma sorte de horrorizada
incredulidade.
–Está acordado! –gritou com voz engasgada. –Há dito que lhe dói. Por favor, têm
que lhe dar algo.
Ambos passaram na frente dela, empurrando-a virtualmente para sair.
–Supunha-se que isto não tinha que acontecer –disse Frank com uma voz tão dura
que Jay apenas a reconheceu como dele.
Mas tinha que sê-lo, embora suas palavras não tivessem nenhum sentido. O que se
supunha que não tinha que acontecer? supunha-se que Steve não tinha que recuperar a
consciência? Tinham-lhe mentido? Esperavam em realidade que Steve morrera? Não,
não podia ser. Nesse caso, Frank não se teria tomado tantas moléstias para que ficasse.
As enfermeiras corriam já para o quarto do Steve, mas quando Jay tentou entrar,
fizeram-na sair ao corredor. Esperou fora, escutando as vozes agitadas do interior,
mordendo o lábio e secando-as lágrimas que se deslizavam por suas bochechas. Ela
deveria estar ali. Steve a necessitava.
No interior do quarto, Frank observava ao coronel Lunning enquanto este analisava
as constantes vitais e a atividade cerebral do paciente.
–Não há dúvida –lhe confirmou o coronel com ar ausente enquanto trabalhava. –
Está recuperando a consciência.
–Mas se estar cheio de medicamentos, pelo amor de Deus! –protestou Frank. –
Como é possível que recupere a consciência se não lhe diminuíram a dose?
–Está lutando para sair do estado de coma. Tem uma constituição condenadamente
forte e essa mulher que está no corredor teve um forte efeito nele. A adrenalina é um
estimulante muito poderoso. A pressão do sangue aumentou e também seu ritmo
cardíaco. Ambas as coisas são sintoma de uma estimulação adrenalínica.
–Vão aumentar lhe a dose?
–Não. O coma era para tentar evitar que o cérebro se inflamasse e pudesse lhe
causar mais dor. Em qualquer caso, estava a ponto de começar a lhe diminuir a dose. O
único que tem feito ele foi adiantar-se um pouco. Teremos que manter os calmantes para
a dor, mas já não devemos mantê-lo em coma.
–Jay acredita ter lhe ouvido dizer que sofre dores. É possível que sofra apesar das
drogas?
–Se tiver acessado a um nível de consciência que lhe permite comunicar-se, é
possível que também esteja suficientemente consciente para notar a dor.
–Pode ouvir o que dizemos?
–É possível. Eu diria que sim. Mas que nos compreenda é algo completamente
diferente.
–Quanto tempo passará até que possamos interrogá-lo?
O coronel Lunning lhe dirigiu um olhar duro.
–Não poderemos nos comunicar com ele até que o inchaço do rosto e a garganta
tenha remetido o suficiente para poder desentubá-lo. Eu diria que ainda falta uma
semana. E não espere que possa ser uma fonte de informação. É possível que nem
sequer recorde o que lhe ocorreu, e embora assim seja à larga, podem passar meses até
então.
–Existe algum perigo de que revele A Jay alguma informação classificada?
Frank não queria falar muito. O coronel Lunning sabia que Steve era um paciente
muito importante, mas não conhecia mais detalhes.
–Não é provável. Estará muito aturdido e confuso, possívelmente inclusive delire, e,
em qualquer caso, ainda não é capaz de falar. Mas lhe prometo que você será o primeiro
em vê-lo quando lhe tirarmos o tubo.
Frank fixou o olhar no homem que permanecia imóvel na cama. Levava tanto tempo
inconsciente que lhe resultava difícil admitir que pudesse ouvir ou sentir, ou que tentasse
comunicar-se. Mas sabendo o que sabia dele, Frank compreendeu que deveria haver-se
preparado para algo um pouco parecido. Aquele homem nunca renunciava, jamais
deixava de lutar, nem sequer quando as probabilidades de fracasso eram tantas que
qualquer outro teria abandonado. Essa era a razão pela que tinha sobrevivido em tantas
ocasiões quando outros não o tinham feito, como tinha ocorrido aquela vez.
–É possível que seu cérebro sofra algum dano irreversível? –perguntou
tranqüilamente, recordando que Steve podia ouvi-lo e que não havia forma de saber até
que ponto podia compreendê-lo.
O coronel Lunning suspirou.
–Não sei. Recebeu uns cuidados excelentes e isso é muito importante em um
processo de recuperação. É possível que se produza um dano tão mínimo que nem
sequer possa perceber-se, mas eu agora mesmo não apostaria por nenhuma opção.
Simplesmente, não posso dizê-lo. O fato de que tenha despertado e tenha respondido à
presença da senhorita Granger foi completamente inesperado. Superou de repente vários
estados da recuperação. Jamais em minha vida tinha visto nada parecido. Normalmente,
a primeira etapa é de letargia, nela é necessária uma vigorosa estimulação para terminar
de despertar ao paciente; depois vêm o delírio e a agitação extrema, como se todos os
processos cerebrais tivessem enlouquecido. Continuando, o paciente começa a tranqüili-
zar-se, mas se encontra muito confuso. No seguinte estado, poderia dizer-se que é como
uma espécie de autômato. É capaz de responder a algumas pergunta, mas incapaz de
realizar qualquer tarefa que não seja extremamente simples. As funções cerebrais mais
complexas retornam gradualmente.
–E em que estado se encontra ele neste momento?
–É capaz de comunicar-se, como se estivesse no estado de autômato, mas acredito
que retrocederá. Isto teve que supor um esforço tremendo para ele.
–E se diminuir a dose de medicamentos, aumentará sua capacidade de
comunicação?
–Possivelmente. Também é possível que este incidente não volte a repetir-se, que
retorne às etapas clássicas da recuperação.
–Há algo em que possa estar seguro? –perguntou Frank, exasperado.
O coronel Lunning lhe dirigiu um olhar firme.
–Sim, estou seguro de que sua recuperação depende da senhorita Granger. Façam
que não se afaste dele. Necessitá-la-á.
–E acredita que será seguro para ela permanecer a seu lado quando suspender os
sedativos?
–Insisto nisso. Ajudá-lo-á a conservar a calma. Acredita que ela será capaz de
suportá-lo?
Frank arqueou as sobrancelhas.
–Essa mulher é muito mais forte do que parece.
Jay se tinha entregue com devoção ao Steve, de uma maneira que Frank não
esperava e não alcançava a compreender. Era como se algo a impulsionasse a estar a
seu lado, algo que não tinha nada que ver com o que normalmente se entendia por
atração. Se tivesse sido mais adiante, quando Steve estivesse completamente
consciente... Enfim, os efeitos daquele homem sobre as mulheres sempre tinham
parecido incríveis a seus superiores. Mas naquele momento era pouco mais que uma
múmia, incapaz de utilizar os encantos que o tinham feito tão famoso, de maneira que
tinha que haver algo mais.
Em qualquer caso, tinha que comunicar ao Homem o que tinha acontecido.
De repente, a porta se abriu e Jay entrou. Dirigiu ao Frank um olhar duro e enérgico
com a que parecia estar desafiando-o a tirá-la outra vez.
–Vou ficar –disse com veemência enquanto se colocava ao lado do Steve e posava
a mão em seu braço. Elevou o queixo com gesto de determinação. –Steve me necessita e
penso ficar aqui.
O coronel Lunning afastou o olhar de Jay para olhar ao Steve e a seguir se voltou
para o Frank.
–Sim, é melhor que fique –disse com suavidade, e consultou o histórico que tinha na
mão. –Muito bem, vou começar a diminuir a dose de sedativos neste instante para que
termine de abandonar o coma. Levar-lhe-á de vinte e quatro a trinta e seis horas e não sei
como vai reagir, de modo que quero que permaneça constantemente em observação –
voltou a olhar A Jay. –Senhorita Granger..., posso chamá-la de Jay?
–Claro.
–Até que lhe tenhamos retirado completamente os sedativos, permanecerá uma
enfermeira no quarto durante a maior parte do tempo. A reação do paciente é
imprevisível. Se ocorrer algo, é importante que te afaste imediatamente da cama e não
atrapalhe nenhuma dos trabalhos que tenhamos que fazer, compreende-me?
–Sim.
–Posso confiar em que não desmaiará? Poderá resisti-lo?
–Sim.
–De acordo. Confio em ti –a mediu com seu firme olhar de militar e deve ter se
tranqüilizado com o que viu, porque de repente assentiu com um brusco gesto de
aprovação. –Não será fácil, mas acredito que o suportará.
Jay se voltou para o Steve, concentrou nele toda sua atenção e se esqueceu do
resto das pessoas que havia no quarto, como se tivessem deixado de repente de existir.
Não podia evitá-lo, Steve deslocava todo o resto de sua consciência. Frente a ele, outros
perdiam toda importância, era como se se transformassem em desenhos animados, em
seres de uma só dimensão. Nada importava exceto ele, e desde seu agônico intento de
falar com ela, aquela sensação era muito mais intensa. Era uma experiência que a
destroçava e a aterrava, porque estava muito além de tudo o que até então tinha vivido,
mas não podia resistir a ela. Era muito estranho; Steve exercia muita mais influência
sobre ela naquela situação da que tinha antes, quando estava em pleno uso de suas
faculdades e de seu transbordante encanto. Continuava completamente imóvel, e durante
a maior parte do tempo inconsciente, mas mesmo assim, algo profundo e primário a
empurrava para ele. Bastava estar no mesmo quarto que Steve para que seu coração
pulsasse a um ritmo mais forte e o sangue corresse com renovada energia por suas
veias.
–Ei querido –sussurrou, lhe acariciando o braço. –Já pode voltar a dormir. Não se
preocupe, não lute contra a dor, te limite a deixá-la fluir. Eu estou a seu lado e não me
partirei. Estarei a seu lado quando voltar a despertar.
Lentamente, o pulso do Steve foi serenando-se, e também o ritmo de sua respiração.
A tensão sangüínea diminuiu. O ar vaiava através do tubo que tinha conectado à
garganta, um som que se teria convertido em um suspiro se não tivesse sido por aquele
artefato. Jay permanecia ao lado da cama, lhe acariciando lentamente o braço enquanto
ele dormia.
«Quem é?» Voltou a despertar e gritou em silêncio enquanto se abria caminho
através do véu de escuridão para um horror inclusive maior. A dor era tal que tinha a
sensação de que o estava devorando vivo, mas podia suportá-lo porque, apesar de sua
intensidade, era preferível à horrorosa sensação de vazio. Deus, o teriam enterrado vivo?
Não podia mover-se, não podia ver, não podia ouvir. Era como se seu corpo tivesse
morrido mas sua mente permanecesse viva. Apavorado, tentou gritar de novo, mas não
pôde.
Onde estava? O que lhe tinha ocorrido?
Não sabia. Que o céu o ajudasse. Não sabia!
–Estou aqui –ronronou a voz brandamente. –Sei que está assustado e não
compreende nada, mas estou aqui. E seguirei contigo.
A voz. Resultava-lhe familiar, tinha-a ouvido em seus sonhos. Não, não só em
sonhos. Era algo mais profundo que isso. Sentia-a em suas vísceras, em seus ossos, em
suas células, em seus genes e em seus cromossomos. Era parte dele e tentou
concentrar-se nela com um intenso e quase doloroso reconhecimento. Mas lhe resultava
imensamente estranho relacionar-se com algo que sua mente consciente pudesse
produzir.
–Os médicos dizem que provavelmente estará muito confuso –continuou dizendo a
voz.
Era uma voz serena, tenra e ligeiramente rouca. Como se fora a voz de uma mulher
que tivesse estado chorando. Uma mulher. Sim. Definitivamente era a voz de uma mulher.
E tinha a vaga lembrança daquela voz chamando-o, ajudando-o a sair de uma estranha e
sufocante escuridão.
A voz começou recitar uma lista de lesões e ele a escutou com fera concentração.
Pouco a pouco, foi dando-se conta de que estava falando dele. Era ele o que estava
ferido. Não estava morto, não; não o tinham enterrado vivo.
Percorreu-o uma onda de imenso alívio que o deixou absolutamente exausto.
A voz continuava ali quando voltou a emergir à superfície. Naquela ocasião, o terror
inicial durou menos que a vez anterior. Ao prestar atenção, decidiu que a voz soava mais
rouca que chorosa.
Sempre estava ali. Ele não tinha consciência do tempo, só da dor e da escuridão,
mas tinha ido dando-se conta de que havia duas classes de escuridão. Alguém estava em
sua mente, paralisando seus pensamentos, mas contra aquela podia lutar. Pouco a
pouco, essa escuridão tinha ido diminuindo. Mas depois estava a outra, a ausência de luz,
a incapacidade de ver. Teria tornado a sofrer um ataque de pânico se ela não tivesse
estado ali. Ela, que lhe explicava sua situação uma e outra vez, como se soubesse que só
podia ir compreendendo gradualmente suas palavras. Não estava cego: tinha os olhos
tampados com ataduras, mas não estava cego. Tinha as pernas quebradas, mas poderia
voltar a caminhar. As mãos lhe ardiam, mas voltaria às utilizar. Havia um tubo conectado
a sua garganta para ajudá-lo a respirar; mas muito em breve o tirariam para que pudesse
voltar a falar.
E ele acreditava. Não a conhecia, mas confiava nela.
Tentou pensar, mas as palavras ricocheteavam em sua cabeça, fazendo que lhe
resultasse impossível lhes encontrar sentido. Não sabia... Eram muitas as coisas que não
sabia. Não sabia nada. Mas tampouco era capaz de reter as palavras e ordenar as de
forma adequada, como teria podido fazer se ao menos soubesse o que era o que não
sabia. Nada tinha sentido e estava cansado de lutar.
Ao final despertou e descobriu que seus pensamentos eram mais claros; a confusão
era diferente, porque as palavras de repente cobraram sentido embora todo o resto
continuasse sem o ter. Ela estava ali. Podia sentir uma mão no braço, perceber a ligeira
rouquidão de sua voz. Teria estado a seu lado constantemente? Durante quanto tempo?
Tinha a sensação de que tinha estado a seu lado sempre, e aquilo o inquietava, porque
acreditava que deveria sabê-lo exatamente.
Eram muitas as coisas que queria saber e não podia perguntar. A frustração o
devorava. Flexionou o braço sob a mão que o acariciava. Deus, o que ocorreria se aquela
mulher o deixasse? Ela era o único vínculo que unia o mundo exterior à prisão de seu
corpo, seu único vínculo com a prudência, a única janela em um universo em plena
escuridão. E de repente, a necessidade de saber se materializou em seu interior em um
simples pensamento, em uma só palavra: quem?
Seus lábios formaram aquela palavra, que se traduziu unicamente em silêncio. Sim,
essa era a palavra que queria. Todo o resto ficava resumido nessa única palavra.
Jay posou delicadamente a mão sobre seus lábios.
–Não tente falar –sussurrou. –Eu recitarei o alfabeto. Cada vez que chegue à letra
que está procurando, tenta mover o braço. Eu continuarei repetindo o alfabeto uma e
outra vez até que formemos as palavras que quer dizer. Acha que poderá fazê-lo? Move o
braço uma vez se for sim e dois se for não.
Jay estava esgotada. Tinham passado dois dias desde a primeira vez que Steve
tinha recuperado a consciência e tinha estado a seu lado a maior parte do tempo. Tinha
falado com ele até ficar sem voz, tentando lhe proporcionar com suas palavras a ponte
que o conectasse com a realidade. Sabia quando estava acordado, sentia quando estava
aterrorizado, sentia-o lutar tentando compreender o que lhe estava ocorrendo. Mas
aquela era a primeira vez que seus lábios se moviam, e ela estava tão cansada que não
tinha sido capaz de compreender o que estava tentando lhe dizer. O jogo do alfabeto era
a única maneira que lhe ocorria de tentar comunicar-se com ele, mas não sabia se Steve
seria capaz de concentrá-lo suficiente como para que funcionasse.
Steve moveu o braço. Só uma vez.
Jay tomou ar, obrigando-se a vencer seu cansaço.
–De acordo. Começamos, A, B, C, D...
Começou a renunciar à esperança à medida que ia recitando as letras do alfabeto e
o braço do Steve permanecia imóvel sob sua mão. Tinha pontudo muito longe. O coronel
Lunning lhe tinha advertido que passariam dias até que a mente do Steve estivesse
suficientemente limpa como para que pudesse compreender real-mente o que estava
ocorrendo a seu redor. Mas então chegou à letra Q e sentiu que o braço do Steve se
movia.
Jay se interrompeu.
–Q?
Steve voltou a mover o braço uma vez.
–Muito bem –respondeu Jay, presa do júbilo. –A primeira letra é a Q. Vamos pela
segunda.
Steve voltou a mover o braço quando chegou ao U.
E uma vez mais quando chegou a E.
E voltou a movê-lo quando pronunciou a M.
Jay estava atônita.
–Quem? Essa é a palavra? Quer saber quem sou?
Steve moveu o braço.
Não sabia; claro que não sabia. Jay não podia recordar se havia tornado a lhe
mencionar quem era ela depois de ter falado com ele a primeira vez. Acreditava acaso
que podia recordar sua voz depois de cinco anos sem falar-se?
–Sou Jay –disse com delicadeza. –Sua ex-esposa.
Capítulo 4
Steve permanecia completamente imóvel. Jay tinha a impressão de que estava
afastando-se dela, embora não fora capaz de mover um só músculo. Uma dor
surpreendentemente aguda floresceu em seu interior e se arreganhou por isso. O que
esperava? Steve não podia levantar-se para abraçá-la, não podia falar e, provavelmente,
estava esgotado. Era consciente de tudo isso, mas mesmo assim, tinha a sensação de
que estava afastando-se dela. Incomodar-lhe-ia ser tão dependente de sua pessoa?
Sempre lhe tinha gostado de guardar as distâncias. Ou possivelmente lhe incomodasse
que fora ela a que estava a seu lado em vez de uma enfermeira com a que não tivesse
nenhuma relação pessoal. Ao fim e ao cabo, quando esse tipo de serviços se prestavam
com motivos profissionais, sempre se mantinha certa distância que permitia conservar ao
paciente um certo grau de independência. Mas quando esse tipo de trabalho se fazia por
motivos pessoais, suportava um preço que não podia pagar-se em dólares e que,
certamente, Steve não estava disposto a pagar.
Jay imprimiu a sua voz uma calma que estava muito longe de sentir.
–Quer fazer alguma outra pergunta?
Dois movimentos do braço. Não.
Havia se sentido separada de seu lado em tantas ocasiões que reconheceu seu
rechaço imediatamente, apesar da sutileza e da falta de palavras. E lhe doeu. Fechou os
olhos e lutou para controlar-se antes de voltar falar. Passaram vários segundos até que
foi capaz de dizer:
–Quer que fique contigo?
Steve permaneceu imóvel durante um longo momento. Depois moveu o braço. E
voltou a movê-lo. Não.
–De acordo, não voltarei a te incomodar.
Seu autodomínio era frágil; sua voz, tênue e tensa. Jay não esperou para ver se
Steve tinha algo que responder, mas sim se voltou e abandonou o quarto. Sentia-se
doente. Inclusive depois de seu rechaço, requeria um grande esforço para ela sair e
deixá-lo sozinho. Queria ficar a seu lado, protegê-lo, lutar por ele. Deus, inclusive teria
estado disposta a compartilhar sua dor se tivesse podido. Mas Steve não a queria. Não a
necessitava. Tinha tido razão ao pensar que não apreciaria seus esforços, mas o vínculo
que tinha sentido entre eles durante esses dias era tão forte que tinha ignorado as
advertências do sentido comum e tinha deixado que Frank a convencesse de que ficasse.
Bom, o melhor que podia fazer era comunicar ao Frank que sua estadia naquela
cidade tinha terminado, que tinha que partir. Seus problemas não tinham mudado: seguia
tendo que encontrar trabalho. Tirou uma moeda da bolsa, procurou um telefone público e
chamou o número que Frank lhe tinha dado. Durante os últimos dois dias, Frank Payne
não tinha passado tanto tempo no hospital como ao princípio; de fato, esse dia em
concreto nem sequer se passou por ali.
Frank respondeu rapidamente e ouvir sua voz acalmada a ajudou a tranqüilizar-se.
–Olá, sou Jay. Queria que soubesse que meu trabalho terminou. Steve não quer que
continue a seu lado.
–O que? –parecia surpreso. –Como sabe?
–Há-me isso dito.
–Como demônios lhe vai dizer isso. -Não pode falar e não é capaz de escrever. E,
em qualquer caso, o coronel Lunning há dito que ao princípio estaria um pouco confuso.
–Esta manhã melhorou muito. E encontramos um sistema para nos comunicar –lhe
explicou cansada. –Fui lhe recitando o alfabeto e ele movia ligeiramente o braço quando
chegava à letra que queria. É capaz de soletrar perguntas e respostas. Um movimento do
braço significa sim e dois, não.
–O contaste ao coronel Lunning? –perguntou-lhe Frank bruscamente.
–Não, não o vi. Só queria que soubesse que Steve já não quer que esteja com ele.
–Pede que chamem o coronel por megafone. Quero falar com ele. Agora.
Para ser um homem tão amável, Frank podia chegar a mostrar-se muito autoritário
quando o propunha, pensou Jay enquanto se dirigia à habitação das enfermeiras para
solicitar que chamassem o coronel Lunning. Cinco minutos depois, apareceu o coronel
com aspecto cansado e vestido com o uniforme verde com o que entrava na sala de
cirurgia. Escutou atentamente A Jay e, continuando, sem dizer uma só palavra,
aproximou-se do telefone e falou tranqüilamente com o Frank. Jay não entendia o que
estava dizendo, mas quando desligou, Lunning chamou uma enfermeira e se dirigiu
diretamente ao quarto do Steve.
Jay esperou no corredor, esforçando-se por controlar seus sentimentos. Embora
conhecia o Steve e podia esperar-se um pouco parecido, continuava lhe doendo. Naquele
momento estava sofrendo muito mais do que tinha sofrido com seu divórcio. Sentia-se
estranhamente... traída, afligida, como se tivesse perdido uma parte de si mesmo, algo
que não havia sentido cinco anos atrás. Enfim, esse era outro clássico exemplo de como
a intensidade com a que vivia-lhe fazia interpretar equivocadamente as coisas.
Aprenderia alguma vez?
O coronel Lunning passou muito tempo no quarto de Steve. Um exército de
enfermeiras entrava e saía constantemente do quarto. Em menos de meia hora chegou
Frank com o rosto tenso e sério. Apertou o braço de Jay em um gesto de consolo quando
chegou a seu lado, mas não se deteve falar com ela. Ele também desapareceu no interior
do quarto do Steve, como se estivesse ocorrendo algo terrivelmente importante em seu
interior.
Jay se dirigiu à sala de espera e permaneceu sentada com as mãos cruzadas no
colo enquanto tentava decidir o que ia fazer a seguir. Voltar para Nova Iorque,
obviamente, e procurar trabalho. Mas a perspectiva de lançar-se de novo ao mundo dos
negócios a deixava fria. Não queria retornar. Não queria deixar ao Steve. Inclusive depois
do ocorrido, não queria separar-se de seu lado.
Quase uma hora depois, Frank entrou na sala de espera. Dirigiu-lhe um olhar intenso
antes de aproximar-se da máquina do café e tirar dois copos. Jay elevou os olhos e
conseguiu lhe dirigir um sorriso quando se aproximou dela.
–De verdade tenho aspecto de necessitá-lo? –perguntou com ironia, assinalando o
café com a cabeça.
Frank lhe estendeu um dos copos de café.
–Já sei que sabe inclusive que é pior do que parece. Mas tome-o de todas formas.
Se não o necessitar agora, necessitá-lo-á dentro de um momento.
Jay tomou a taça, bebeu um sorvo e esboçou uma careta. Era um autêntico mistério
que alguém tivesse sido capaz de obter um sabor tão horrível misturando água e café.
–Por que vou necessitá-lo dentro de um momento? Tudo terminou, não é verdade?
Steve me há dito que vá. É evidente que não quer que fique com ele, de modo que minha
presença só pode incomodá-lo e entorpecer sua recuperação.
–Não, nem tudo terminou –disse Frank, com o olhar cravado em seu próprio café.
A rotundidade de seu tom fez que Jay o olhasse com atenção. Frank estava gasto. O
cansaço se refletia em todas suas feições.
Um calafrio percorreu as costas do Jay. Endireitou-se nervosa em seu assento.
–O que passou? –perguntou. –Sofreu uma recaída?
–Não.
–Então o que ocorre?
–Não recorda –disse Frank. –Não recorda nada. Tem amnésia.
Frank tinha razão; necessitava do café. Bebeu o copo de café e, continuando,
levantou-se em busca de outro. A cabeça lhe dava voltas e se sentia como se acabassem
de lhe dar um murro no estômago.
–O que outra coisa podia ir mau? –perguntou. Falava para si mesmo, mas Frank
sabia o que queria dizer.
O policial suspirou. Não contavam com aquilo. Necessitavam que o paciente
despertasse, que fosse capaz de falar, de compreender o que teria que fazer. Aquele
último episódio tinha estragado todo o plano. Nem sequer sabia quem era! Como ia
proteger a si mesmo se nem sequer sabia de quem tinha que defender-se? Não podia
distinguir aos amigos dos inimigos.
–Esteve perguntando por ti –disse Frank, tomando sua mão.
Jay o olhou fixamente e começou a levantar-se, mas Frank lhe segurou a mão,
fazendo que voltasse a sentar-se.
–Estivemos lhe fazendo muitas perguntas –continuou lhe explicando. –Utilizamos
seu sistema, embora seja um pouco lento. Quando lhe disse que era sua ex-esposa o
confundiu, assustou-o. Não se lembrava de ti e não sabia o que fazer. Recorda que ainda
está muito confuso. Para ele é muito difícil concentrar-se, embora esteja avançando muito
rápido.
–Está seguro de que perguntou por mim? –perguntou Jay com o coração palpitante.
Apesar de tudo o que Frank havia dito, seus sentimentos pareciam haver-se
concentrado naquela única frase.
–Sim. Soletrou seu nome uma e outra vez.
As vontades de ir a seu lado eram tão fortes que resultavam quase dolorosas. Jay se
obrigou a permanecer sentada para tentar compreender algo mais.
–Tem amnésia total? Não se lembra de nada?
–Nem sequer sabe como se chama. – Frank voltou a exalar um pesado suspiro. –
Não recorda nada da explosão, não sabe por que estava ali. Tem a mente completamente
em branco, droga –terminou, expressando sua impotência e sua frustração.
–O que opina o coronel Lunning?
–Diz que uma amnésia total é algo extraordinariamente estranho. - O mais freqüente
com amnésias parciais que bloqueiam as lembranças do acidente e todo o ocorrido pouco
antes de que acontecesse. Com o traumatismo craniano sofrido pelo Steve, cabia esperar
algum episódio amnésico, mas isto... –fez um gesto de impotência.
Jay tentou recordar o que tinha lido sobre a amnésia, mas o único que ia a sua
mente era a utilização dramática que dela se fazia nas telenovelas. Invariavelmente, o
amnésico recuperava a memória durante um momento de especial carga dramática, bem
a tempo para evitar um assassinato ou para impedir que o matassem a ele. Era um bom
elemento para o melodrama, sim, mas não sabia nada mais do tema.
–Recuperará a memória?
–Provavelmente, ou ao menos em parte. Mas não podemos estar seguros. É
possível que a recupere de forma quase imediata ou que dure meses em voltar a recordar
algo. O coronel Lunning diz que irá recuperando a memória pouco a pouco e que
normalmente, os primeiros em reaparecer são as lembranças mais estranhas.
«Poderia». «É possível». «Provavelmente». «Normalmente». Todas elas eram
palavras para dizer que, simplesmente, não sabiam o que ia ocorrer. E enquanto isso,
Steve seguia na cama, incapaz de falar, incapaz de ver, incapaz de mover-se. Quão único
podia fazer era ouvir e pensar. O que sentiria ao estar tão desorientado, tão afastado de
tudo o que podia lhe resultar familiar, tão afastado inclusive de si mesmo? Steve não tinha
nenhum ponto de referência. Pensar no pânico que devia estar sentindo lhe rasgava o
coração.
–Ainda está disposta a ficar ? –perguntou Frank, cravando nela seus olhos cheios de
preocupação. –Até sabendo de que isto poderia durar meses, anos inclusive?
–Anos? –perguntou Jay com um fio de voz. –Mas você só queria que ficasse até que
o tivessem operado os olhos.
–Então não sabíamos que não ia ser capaz de recordar nada. O coronel Lunning diz
que estar perto de coisas e pessoas que lhe resultam familiares pode estimular sua
memória, lhe dar uma sensação de estabilidade.
–Quer que fique até que tenha recuperado a memória –disse Jay.
A idéia a aterrava. Quanto mais ficasse com Steve, mais fortes seriam seus
sentimentos para ele. O que ocorreria se se apaixonasse por Steve mais profundamente
que a primeira vez e logo, quando ele retornasse a uma vida livre e sem compromissos,
perdia-o de novo? De fato, se já temia querê-lo muito para ser capaz de afastar-se dali,
como poderia afastar-se de seu lado sabendo que a necessitava?
–Precisa de você –disse Frank, expressando em voz alta seus pensamentos. –Está
perguntando por ti. Responde tão intensamente a sua presença que está confuso, tal
como predisse o coronel Lunning. E nós também lhe necessitamos, Jay. Necessitamos
que ajude como só você pode fazê-lo, porque necessitamos que nos explique o que sabe.
–Se os sentimentos não me comoverem, terá que provar outra vez com a estratégia
do patriotismo? –perguntou Jay com cansaço e apoiou a cabeça contra o respaldo da
cadeira. –Mas não é necessário. Não o deixarei. Não sei o que vai ocorrer nem como
vamos poder nos relacionar se não recuperar logo a memória, mas não o abandonarei.
Levantou-se e abandonou a sala. Frank permaneceu sentado durante alguns
segundos mais, com o olhar fixo no copo que tinha entre as mãos. Pelo que acabava de
lhe dizer, sabia que Jay tinha a sensação de estar sendo manipulada, mas mesmo assim,
estava disposta a deixar que o fizessem porque Steve era importante para ela. Frank
tinha que comunicar ao Homem o último desenvolvimento dos acontecimentos e se
perguntava o que poderia ocorrer a seguir. Ambos contavam com a voluntariosa
participação do Steve, com a contribuição de seu talento e suas capacidades. Mas iriam
ter que deixá-lo sair à rua tão indefeso como um menino. Ele não era capaz de
reconhecer o perigo e eles tampouco podiam arriscar-se a lhe transmitir informação que
pudesse dificultar sua recuperação. O coronel Lunning tinha sido muito firme ao afirmar
que quão pior podiam fazer era alterá-lo emocionalmente. Necessitava calma e
tranqüilidade, estabilidade emocional; dessa maneira, recuperaria mais rapidamente a
memória. Mas fora qual fora a decisão que seu superior tomasse, o ferido estava
correndo um risco. E se seu agente se encontrava em uma situação de risco, Jay também
corria perigo.
Para Jay era duro voltar a entrar no quarto do Steve depois da sacudida emocional
que acabava de suportar. Necessitava de tempo para recuperar o controle, mas voltava a
sentir aquele vínculo tão especial que os unia. Era tão intenso que só pensava em chegar
ao quarto do Steve e acariciá-lo. Ele a necessitava nesse instante e sua necessidade era
maior que a que Jay tinha de tempo para recuperar-se. Abriu a porta e sentiu que a
atenção de Steve se centrava nela, embora nem sequer se moveu. Foi como se estivesse
contendo a respiração.
–Eu voltei –disse com voz baixa, aproximou-se da cama e posou a mão em seu
braço. –Parece que sou incapaz de permanecer longe daqui.
Steve começou a mover rapidamente o braço e Jay entendeu a mensagem.
–De acordo –disse, e começou a recitar o alfabeto.
«Sinto muito».
O que podia dizer? Negar que a tinha afetado? Steve saberia que não era verdade.
Ele sentia seu vínculo tanto como ela, porque estava no outro extremo da corda invisível
que os unia.
Steve voltou o rosto ligeiramente para ela e entreabriu seus lábios feridos enquanto
esperava uma resposta.
–Não passa nada –respondeu ela. –Não era consciente de que tinha recebido uma
forte impressão.
«Sim».
Era surpreendente a expressividade que Steve podia transmitir com um só
movimento, mas Jay advertiu seu esgotamento e também que ainda estava impactado.
Impactado, mas controlando a situação. De fato, sua capacidade de controle era
surpreendente.
Jay começou a recitar de novo o alfabeto.
«Medo».
Aquela palavra a golpeou com força. Era algo que o antigo Steve jamais teria
admitido, mas o homem no que se converteu era muito mais forte, e sabia que podia
admiti-lo sem perder nem um ápice de sua força.
–Eu sei, mas ficarei contigo durante todo o tempo que quiser –lhe prometeu.
«O que aconteceu?» Steve fez aquela pergunta com um ligeiro movimento de braço.
Em voz baixa, Jay lhe explicou o da explosão, mas não lhe deu mais detalhes. Era
preferível que pensasse que tinha sido um acidente.
«Olhos»
De modo que não tinha compreendido tudo o que lhe havia dito e necessitava que o
tranqüilizasse.
–Terão que voltar a te operar, mas o prognóstico é bom. Voltará a ver outra vez,
prometo-lhe isso.
«Paralítico?»
–Não! Tem quebrado as pernas e estão engessadas, por isso não pode mover.
«Dedos».
–Os dedos? –perguntou Jay com incredulidade. –Os dedos ainda estão ali.
Steve moveu os lábios para esboçar um lento e doloroso sorriso.
«Toca-os», pediu-lhe.
Jay se mordeu o lábio.
–De acordo.
Queria que lhe tocasse os dedos para saber se ainda tinha alguma sensibilidade
neles, para assegurar-se de que não se ficou paralítico. Jay se aproximou dos pés da
cama e posou os braços sobre os dedos de seus pés, deixando que absorvessem o calor
de suas mãos. Quando voltou para seu lado, tocou-lhe o braço.
–Os sentiu?
«Sim». E voltou a lhe dirigir aquele indício de sorriso.
–Algo mais?
«Mãos».
–Estão enfaixadas pelas queimaduras, mas não são queimaduras de terceiro grau.
Ficarão bem.
«Peito. Dói».
–Tem uma perfuração pulmonar e um tubo no peito. Procura não atirá-lo.
«Graciosa».
Jay soltou uma gargalhada.
–Não sei como pode ser alguém tão silencioso e tão sarcástico ao mesmo tempo.
«Garganta».
–Tem um tubo conectado à traquéia porque não respira bem.
«Cara quebrada».
Jay suspirou. Steve queria informação, não que o protegessem.
–Sim, alguns ossos de seu rosto estão quebrados. Não tem o rosto desfigurado, mas
sim o suficientemente inchado para que te resulte difícil respirar. Assim que ceda a
inflamação, tirar-lhe-ão o tubo.
«Levanta o lençol e comprova o...»
–Não penso fazer algo assim! –respondeu com indignação, deixando de soletrar
assim que compreendeu para onde se dirigiam suas palavras. Depois não pôde menos
que soltar uma gargalhada, porque Steve parecia realmente impaciente. –Tudo está em
seu lugar, me acredite.
«Funciona?»
–Isso terá que averiguá-lo por ti mesmo.
«Afetada».
–Não, não sou nada afetada, e te comporte se não quiser que venha uma enfermeira
a te tirar a sonda. Então averiguará da forma mais dura o que quer saber.
Assim que teve terminado a frase se ruborizou violentamente e não a ajudou muito
vê-lo sorrir outra vez. Não pretendia que suas palavras soassem daquela maneira.
O esforço que tinha feito terminou por esgotá-lo. Ao cabo de uns minutos, Steve
soletrou a palavra «dormir».
–Não pretendia te cansar –murmurou Jay. –Vamos, dorme.
«Ficará?»
–Sim, claro que ficarei. Não voltarei para meu apartamento sem te avisar.
Sentiu um nó na garganta ante a insegurança do Steve e permaneceu ao lado da
cama, com a mão em seu braço enquanto sentia como sua respiração ia fazendo-se mais
rítmica e sossegada.
Inclusive sabendo-o adormecido lhe custava afastar a mão de seu braço e afastar-se
da cama. Permaneceu a seu lado durante um longo momento. Um sorriso curvava seus
lábios. A personalidade do Steve era tão forte que se manifestava apesar das limitações
que tinha para comunicar-se. Queria saber a verdade sobre sua situação, não se
conformava com vagas promessas nem com a ambígua conversação dos médicos. Podia
ter esquecido seu próprio nome, mas isso não lhe tinha feito mudar. Era um homem forte,
muito mais forte que cinco anos atrás. E fosse o que fosse o que lhe tivesse passado
durante aquele lustro, parecia havê-lo endurecido. Era mais duro, mais forte, sua força de
vontade era quase feroz, ao igual à energia que emanava de seu corpo. OH, anos atrás
Steve era um uva sem semente encantador, endemoniadamente inquieto e atrevido, com
um brilho no olhar que convidava a voltar-se para qualquer mulher. Mas naquele
momento era... perigoso.
Aquela palavra a surpreendeu em um princípio, mas quando a analisou,
compreendeu que descrevia exatamente ao homem no que seu ex-marido se converteu.
Era perigoso. Jay não se sentia ameaçada por ele, mas o perigo não constituía
necessariamente uma ameaça. Era um homem perigoso por causa de sua férrea e
implacável vontade; quando aquele homem decidia fazer algo, ninguém estava a salvo se
se interpunha em seu caminho. Em algum momento durante os últimos cinco anos, algo o
tinha mudado drasticamente e Jay não estava segura de querer saber o que tinha sido.
Tinha que ter sido um cataclismo, algo terrível para lhe haver forjado aquele caráter. Era
como se Steve tivesse tido que despir-se até enfrentar-se ao mais básico da existência
humana, como se tivesse se visto obrigado a prescindir de todos os traços que não eram
necessários para sobreviver e tivesse tido que adotar outros novos que sim o eram. E o
que tinha ficado era algo forte, puro, inquebrável, que lhe proporcionava uma curiosa
capacidade de recuperação. Era um homem que não admitia a derrota, que não sabia o
que significava essa palavra.
O coração lhe pulsava violentamente no peito enquanto permanecia com o olhar fixo
no Steve, com toda sua atenção concentrada nele de tal maneira que poderiam ter sido
as únicas duas pessoas do planeta. Assustava-a e a atraía com tal intensidade que
afastou a mão de seu braço assim que aquele pensamento cobrou forma em sua mente.
Deus santo! Seria uma estúpida se voltava a deixar-se encerrar naquela armadilha. Mais
inclusive depois de todo o ocorrido, posto que Steve era essencialmente um solitário; sua
personalidade se afiou de tal maneira que devia viver completamente trancado em si
mesmo. Da vez anterior, tinha conseguido sair de sua relação virtualmente ilesa. Mas o
que ocorreria naquela ocasião se permitisse querê-lo muito? Estava assustada, e não só
porque se achasse a beira de um precipício emocional, mas sim porque inclusive se
atrevia a imaginar-se aproximando-se ainda mais do Steve. Aquilo era como estar
contemplando a uma pantera em uma jaula, olhando através das barras e sabendo-se a
salvo, mas sentindo ao mesmo tempo o perigo só que reprimido.
Fazer amor com ele no passado era um jogo divertido e apaixonado. Mas como seria
depois de uma experiência como aquela? Desapareceria toda diversão? Jay assim
imaginava. A experiência devia ser tão intensa e elementar como tirar o chapéu de
repente apanhado em meio de uma tormenta.
Jay começou a dar-se conta de que logo que podia respirar e se obrigou a afastar-se
da cama. Não queria que Steve significasse tanto para ela. E tinha muito, muito medo de
que já fosse assim.
–O que temos que fazer? –perguntou Frank com voz tranqüila e seus olhos claros
fixos em uns olhos negros.
–As decisões já estão tomadas –respondeu o Homem com voz igualmente tranqüila.
–Não tivemos mais remédio. Se agora fizermos algo fora do normal, poderíamos levantar
suspeitas e ele agora não está em condições de reconhecer a seus inimigos.
–Pôde-se localizar o Piggot?
–O perdemos em Beirut, mas sabemos que teve contato com seus antigos
companheiros. Voltará de novo para a superfície. E estaremos esperando-o.
–Quão único temos que conseguir é manter vivo a nosso homem até que possamos
neutralizar o Piggot –disse Frank pesaroso.
–Conseguiremos. De uma ou outra forma, temos que evitar que os assassinos de
Piggot lhe ponham as mãos em cima.
–Quando recuperar a memória, não lhe vai fazer nenhuma graça o que temos feito.
Um sorriso fugaz apareceu nos lábios de seu superior.
–Ficará furioso. Mas não penso correr nenhum risco com sua segurança até que
seja capaz de cuidar de si mesmo. E possivelmente nem sequer então. Já o descobriram
em uma ocasião e poderia acontecer outra vez. Tudo depende de que consigamos
apanhar ao Piggot.
–Não lhe tenta voltar a trabalhar sobre o terreno para poder apanhá-lo você mesmo?
Seu superior se reclinou em seu assento e dobrou os braços por detrás da cabeça.
–Não, acredito que já me domesticaram. Eu gosto de voltar para casa pelas noites
com Rachel e os meninos. Não quereria ter que ir olhando por cima do ombro quando vou
pela rua.
Frank assentiu, recordando a época em que aquele homem era o objetivo de todos
os delinqüentes e terroristas que formavam parte daquele sinistro mundo. Nesse
momento vivia a salvo, fora daquele ambiente. Ou ao menos isso era o que a maioria das
pessoas pensavam. Um reduzido grupo de pessoas sabia que as coisas eram de outra
maneira. Aquele homem oficialmente não existia. Nem sequer alguns agentes que
seguiam suas instruções sabiam que as ordens procediam dele. Vivia enterrado tão
profundamente entre as curvas da burocracia que não havia maneira de relacioná-lo com
o trabalho que realmente fazia. O Presidente sabia algo sobre ele, mas Frank duvidava de
que tivessem conhecimento de sua existência o Vice-presidente ou qualquer outro
membro do departamento de Estado ou da agência que o empregava. E era possível que
o próximo Presidente do país nem sequer chegasse a inteirar-se de quem era. Aquele
homem decidia por si mesmo em quem podia confiar. Frank era uma dessas pessoas. E
também o era o homem que estava ingressado no Hospital Naval da Bethesda.
Dois dias mais tarde, tiraram do Steve o tubo do pulmão, pois a perfuração já tinha
sanado. Quando deixaram Jay de novo em seu quarto, esta permaneceu ao lado da
cama, lhe acariciando o ombro e o braço até que sua respiração se normalizou e
começou a secar as gotas de suor que cobria seu corpo.
–Já passou tudo, já passou tudo –murmurou.
Steve moveu o braço, indicando que queria soletrar e Jay começou a recitar o
alfabeto.
«Não divertido».
–Não – ela se mostrou de acordo.
«Mais tubos?»
–Tem uma sonda no estômago para te alimentar –Jay o sentiu esticar os músculos,
como se estivesse antecipando o futuro dor.
Steve soletrou um amargo impropério.
Jay moveu a mão sobre seu peito com um gesto carregado de compaixão, sentindo
a aspereza do pêlo que começava a crescer e evitando a ferida que o tubo tinha deixado
em seu corpo.
Steve tomou ar e se obrigou a si mesmo a relaxar-se.
«Levantar cabeça».
Jay demorou vários segundos em averiguar o que queria. Steve devia estar
incrivelmente ulcerado depois de ter estado convexo durante tanto tempo sem poder
mover as pernas ou levantar os braços. Só movia os braços quando lhe trocavam as
ataduras. Jay pressionou o botão que havia na cabeceira da cama e foi levantando-o
centímetro a centímetro, mantendo ao mesmo tempo a mão sobre seu braço para que
pudesse lhe indicar quando queria que se detivera. Steve tomou ar várias vezes enquanto
seu peso se deslocava para os quadris e a parte inferior de seu corpo e depois moveu o
braço para detê-la. Soltou um silencioso juramento enquanto esticava os músculos,
tentando vencer a dor. Ao cabo de uns segundos, acostumou-se à nova postura e
começou a relaxar-se.
Jay o observava atentamente. Seus enormes olhos azuis refletiam a dor que ele
sentia, mas sabia que estava melhorando dia a dia e ser testemunha daquela progressiva
melhoria a enchia de júbilo. O inchaço da cara estava remetendo e os lábios os deixava
virtualmente normais, embora ainda não tivessem desaparecido quão feridas obscureciam
seu queixo e sua garganta.
Jay quase podia sentir sua impaciência. Steve queria falar, queria ver, queria
caminhar, queria ser capaz de mudar de postura quando estava na cama. Sentia-se
prisioneiro de seu corpo e não gostava. Jay pensou que devia ser um autêntico inferno
estar apanhado por aquelas lesões e desconhecer além disso a própria identidade. Mas
Steve não estava renunciando; ele fazia mais pergunta a cada dia, tentava encher o vazio
de lembranças. Possivelmente esperasse que alguma palavra mágica o ajudasse a
retornar a si mesmo. Jay falava com ele inclusive quando não o fazia pergunta, com
intenção de lhe oferecer informação básica sobre sua vida e uma perspectiva da que
olhar-se.
Um movimento do Steve a alertou e começou a recitar de novo o alfabeto.
«Quando casamos?»
Jay conteve a respiração. Era a primeira pergunta pessoal que fazia Steve, era a
primeira vez que queria saber algo sobre o passado de sua relação.
–Estivemos casados durante três anos –conseguiu responder com calma. –E nos
divorciamos faz cinco.
«Por que?»
–Não foi um divórcio traumático –refletiu. –Nem tampouco foi traumático nosso
matrimônio. Suponho que, simplesmente, esperávamos coisas diferentes da vida. Fomos
nos distanciando e ao final o divórcio foi quase mais uma formalidade que algo que
rasgasse nossas vidas.
«O que você queria?»
Era a pergunta do milhão de dólares. O que ela queria? Estava segura do que
esperava da vida até o dia no que a tinham despedido do trabalho e Frank Payne havia
tornado a levar ao Steve a sua vida. Nesse momento não estava segura de nada; em um
curto espaço de tempo tinha suportada mudanças que tinham desviado por completo o
rumo de sua vida. Olhou ao Steve e comprovou que esperava pacientemente uma
resposta.
–Estabilidade, suponho. Queria que assentássemos nossa relação, algo que não
gostava. Divertíamo-nos estando juntos, mas não encaixávamos um com o outro.
«Filhos?»
Aquela idéia a sobressaltou. Curiosamente, enquanto estavam casados, Jay não
tinha tido nenhuma pressa por formar uma família.
–Não, não tivemos filhos –jamais tinha sido capaz de imaginar a si mesmo tendo um
filho com o Steve. Naquele momento... OH, Deus, bastava-lhe pensá-lo para ficar a
tremer.
«Voltou a casar?»
–Não, não tornei a me casar. E acredito que você tampouco. Quando Frank me
notificou seu acidente, perguntou-me se tinha algum outro parente ou amigo íntimo, de
modo que suponho que continuava solteiro.
Steve tinha estado escutando-a atentamente, mas de repente seu interesse pareceu
intensificar-se. Jay podia senti-lo como se fora uma carícia contra sua pele.
«Família?»
–Não, seus pais estão mortos e se tiver algum outro parente, eu nunca o conheci.
Evitou lhe dizer que se ficou órfão muito cedo e que tinha crescido em lares de
acolhida. O fato de não ter família parecia inquietá-lo, embora jamais tinha insinuado que
fora algo que o perturbasse quando estavam casados.
Steve permanecia muito quieto e a linha de seus lábios se converteu em uma
lúgubre careta. Jay tinha a sensação de que eram muitas as coisas que queria lhe
perguntar, mas a mera complexidade daquelas questões o frustrava. Para ajudá-lo a
esquecer-se dessas perguntas que ele não era capaz de formular e de respostas que
certamente não gostaria, Jay começou a lhe falar de como se conheceram e, pouco a
pouco, viu que ia relaxando o gesto de seus lábios.
–Como era nosso primeiro encontro, eu estava um pouco nervosa. Bom, mais que
um pouco, se quiser que te seja sincera. Os primeiros encontros são uma tortura, não
acha? Tinha chovido durante todo o dia e a rua estava cheia de atoleiros. Saímos do
carro e, justo nesse momento, passou uma caminhonete por cima de um atoleiro.
Terminamos os dois ensopados da cabeça aos pés, e assim ficamos, rindo um do outro
como se fôssemos dois autênticos estúpidos. Nem sequer me atrevo a pensar o aspecto
que tinha, mas lembro que te gotejava a água pelo nariz.
Steve esticou os lábios como se lhe doesse sorrir, mas não pudesse evitá-lo.
«O que fizemos?»
Jay se pôs-se a rir.
–Com esse aspecto, não eram muitas as coisas que podíamos fazer. Voltamos para
meu apartamento e, enquanto a roupa secava, ficamos conversando e vendo televisão. É
obvio, não chegamos à festa que pretendíamos ir. Continuamos saindo, um encontro
levava a outro e, ao cabo de cinco meses, estávamos casados.
Steve fazia uma pergunta atrás de outra. Era como um menino que escuta um conto
de fadas e queira conhecer até o último detalhe. Consciente de que estava procurando
uma parte de si mesmo que se extraviou na escuridão de sua memória, Jay lhe falava
infatigavelmente de todos os lugares aos que tinham ido, das coisas que tinham feito e
das pessoas que tinham conhecido, tudo isso com a esperança de que algum detalhe
pudesse acender a faísca que necessitava para recuperar suas lembranças. Sua voz
começou a enrouquecer e ao final, Steve conseguiu sacudir ligeiramente a cabeça.
«Sinto muito».
Jay lhe pressionou o braço.
–Não o sinta –lhe disse brandamente. –Terminará recuperando a memória. Só é
questão de tempo.
Mas os dias passavam e as lembranças continuavam sem voltar. Steve não tinha
uma só lembrança de seu passado. Jay sentia como se concentrava em cada uma de
suas palavras, como se estivesse fazendo um enorme esforço por recordar. Seu
autodomínio continuava sendo algo extraordinário. Jamais se permitia deixar-se levar pela
frustração ou perder a paciência. Continuava tentando-o, mantendo seus sentimentos sob
controle, como se soubesse que qualquer transtorno emocional podia fazê-lo retroceder.
Seu objetivo era a recuperação total e se dirigia para ele com uma determinação que
jamais fraquejava.
Frank estava no hospital no dia que lhe tiraram o tubo da traquéia, esperando com
Jay no corredor. Tomou-lhe a mão. Ela o olhou com expressão interrogante, mas Frank
logo que moveu a cabeça. Minutos depois, um grito rouco procedente do quarto do Steve
a fez voltar-se bruscamente e Frank lhe estreitou a mão com força.
–Não pode entrar –lhe disse brandamente. –Também lhe vão tirar a sonda do
estômago.
O primeiro som que tinha saído dos lábios do Steve tinha sido um grito de dor. Jay
começou a tremer. Seu instinto a chamava a entrar no quarto, mas Frank reteve sua mão
com firmeza. Não voltou a ouvir-se nada mais no interior do quarto. Ao final, a porta se
abriu e saíram os médicos e as enfermeiras. O coronel Lunning foi o último em abandoná-
lo, e se deteve para falar com o Jay.
–Tudo saiu bem –lhe disse. Sorriu ligeiramente, tentando aliviar a tensão que via em
seu rosto. –Respira perfeitamente, e fala. Não lhe direi quais foram suas primeiras
palavras, mas quero lhe advertir que sua voz não será como você a recorda. A laringe
sofreu alguns danos e a partir de agora sua voz conservará para sempre uma ligeira
rouquidão. Melhorará com o tempo, mas nunca será como antes.
–Eu gostaria de falar com ele –disse Frank, baixando o olhar para Jay.
Esta compreendeu que havia coisas que queria lhe dizer ao Steve, embora ele não
recordasse o que tinha passado.
–Boa sorte –disse o coronel Lunning, dirigindo ao Frank um sorriso irônico. –Mas
temo que não tem vontades de ver-te; quer ver Jay, e nisso foi bastante explícito.
Ao Frank não surpreendeu. Era perfeitamente consciente de até que ponto podia
chegar a ser explícito. Mas mesmo assim, tinha que lhe fazer algumas pergunta, e se
aquele era seu dia de sorte, as perguntas poderiam ativar sua memória. Voltou a apertar
a mão de Jay, entrou no quarto e fechou com firmeza a porta atrás dele.
Menos de um minuto depois, abria-a e olhava a Jay com expressão frustrada e
divertida ao mesmo tempo.
–Quer que você entre, e não está disposto a colaborar até que o faça.
–De verdade acreditava que o faria? –ouviu-se uma voz rouca atrás dele. –Jay,
entra.
Ela começou a tremer ao ouvir aquela voz áspera e profunda, muito mais áspera e
profunda do que recordava. Era quase uma voz bronca, mas mesmo assim, resultava
maravilhosa. Tinha a sensação de que seus joelhos eram de borracha enquanto cruzava
a habitação, embora em realidade nem sequer era consciente de estar caminhando.
Simplesmente estava ali, obstinada ao corrimão da cama tentando manter-se em pé.
–Estou aqui –sussurrou.
Steve permaneceu em silêncio durante alguns segundos antes de dizer:
–Quero um copo de água.
Jay esteve a ponto de soltar uma gargalhada. Era um pedido tão normal que poderia
havê-la formulado a qualquer um. Mas então viu a tensão de sua mandíbula e de seus
lábios e compreendeu que, uma vez mais, Steve queria ser consciente de seu estado e
que ela estivesse a seu lado quando o fizesse. Voltou-se para um recipiente cheio de gelo
que normalmente utilizava para lhe umedecer os lábios. O gelo se derreteu o suficiente
para lhe permitir encher meio copo de água que lhe aproximou dos lábios.
Com muito cuidado, ele sorveu o líquido e o reteve um momento em sua boca, como
se queria deixar que umedecesse seu interior. Depois, tragou lentamente e ao cabo de
um minuto, relaxou-se.
–Graças a Deus –murmurou com voz rouca. –Ainda tenho a garganta torcida. Tinha
medo de não poder comer e te asseguro que não queria que voltassem a me pôr esse
maldito tubo.
Situado detrás de Jay, Frank dissimulou uma gargalhada convertendo-a em tosse.
–Algo mais? –perguntou Jay.
–Sim, me beije.
Capítulo 5
Quando à manhã seguinte Jay abriu a porta do quarto do Steve, este voltou a
cabeça no travesseiro e disse:
–Jay.
Sua voz soava rouca, quase gutural, e ela se perguntou se acabara de despertar.
Deteve-se com toda a atenção fixa nas ataduras que cobriam seus olhos.
–Como soubeste que era eu? –as enfermeiras estavam fora, não sabia como podia
havê-la reconhecido.
–Não sei –respondeu lentamente. –Possivelmente tenha sido seu aroma, ou a
atmosfera que cria ao entrar no quarto. Ou melhor reconheci pelo ritmo de seus passos.
–Por meu aroma? –perguntou Jay sem compreender. –Não uso perfume, assim, se
me cheiraste dessa distância, é que algo não vai bem.
Steve curvou os lábios em um sorriso.
–É um aroma fresco e ligeiramente doce. Eu gosto. Não vai me dar um beijo de bom
dia?
A Jay deu um tombo o coração, ao igual a tinha ocorrido no dia anterior, quando
Steve lhe tinha pedido que o beijasse. Lhe tinha dado um beijo tenro e fugaz, logo que
tinha roçado seus lábios, enquanto Frank, atrás dela, fingia ser invisível. Mas depois
daquele beijo, Jay tinha demorado pelo menos dez minutos em recuperar o pulso. Nesse
momento, enquanto sua mente lhe gritava que tomasse cuidado, cruzou a e se inclinou
para ele para lhe dar outro beijo fugaz, permitindo-se deter seus lábios sobre os do Steve
durante apenas um segundo. Mas quando começou a afastar-se, ele aumentou a
pressão, acoplou sua boca a dela e o coração de Jay começou a pulsar violentamente.
Uma quebra de onda de excitação percorreu todo seu corpo.
–Tem sabor de café –conseguiu dizer quando por fim se obrigou a endireitar-se para
romper aquele contato.
Steve tinha os lábios ligeiramente entreabertos, com uma perturbadora
sensualidade, mas ao ouvir as palavras de Jay, esboçaram um gesto de suficiência.
–Pretendiam que tomasse um chá ou um suco de maçã –empregava o mesmo tom
que tivesse utilizado para falar da cicuta, –mas os convenci que me dessem um café.
–Ah, sim? –perguntou Jay secamente. –E como? te negando a beber nada mais até
que lhe dessem esse café?
–Funcionou –respondeu Steve sem parecer absolutamente arrependido.
Jay podia imaginar-se perfeitamente o impotentes que se haviam sentido as
enfermeiras ante sua implacável vontade.
Apesar de que já não precisava comunicar-se com ele pelo método do alfabeto, para
Jay se converteu em um hábito manter a mão sobre seu braço. Estava tão acostumada a
aquele contato que apenas o notava.
–Como te encontra? –perguntou-lhe.
Imediatamente foi consciente do trilhado da pergunta, mas ainda estava alterada
como conseqüência do beijo.
–Fatal.
–Ah.
–Quanto tempo levo aqui?
Para surpresa dela, Jay teve que parar-se a contar os dias. Tinha chegado a estar
tão pendente do Steve que o tempo tinha deixado de ter importância para ela e lhe
resultava difícil recordar.
–Três semanas.
–Levo três semanas engessado?
–Acredito que sim.
–Muito bem –o disse como se estivesse dando permissão para essas três semanas,
mas não estivesse disposto a conceder nem um dia mais. Levantou o braço esquerdo. –
Hoje tenho um par de agulhas menos. Tiraram-me o soro faz uma hora.
–Nem sequer o tinha notado! –exclamou Jay, sorrindo ao perceber a nota de orgulho
que se refletia em sua voz. Perguntou-se se alguma vez chegaria a acostumar-se a sua
rouquidão.
–E também renunciei aos calmantes. Quero ter a cabeça limpa. Havia muitas
perguntas que queria te fazer, mas para isso necessitava muito tempo e esforço e tinha a
cabeça tão confusa por culpa da medicação que resultava muito problemático. Agora
quero saber tudo o que está passando. Onde estou? ouvi que chamava o médico
«coronel», assim suponho que estou em um hospital militar; a pergunta é por que?
–Está na Bethesda –respondeu Jay.
–No Hospital Naval? –o assombro enrouquecia sua voz ainda mais.
–Frank me disse que haviam lhe trazido para este hospital por questões de
segurança. Há dois guardas apostados na entrada desta asa do hospital.
–O coronel Lunning não pertence à Armada.
–Não.
Era surpreendente que tivesse perdido a maior parte das lembranças mais básicas e
mesmo assim fosse capaz de recordar que Bethesda era um hospital naval e que o de
coronel não era um grau da Armada.
–Isso significa que há alguém com muita influência que quer que fique aqui. Langley,
provavelmente.
–Quem?
–Estamos falando do quartel geral da RECUA. –Jay sentiu um terror glacial ao ouvi-
lo. –Possivelmente tenha intervindo diretamente da Casa Branca, embora eu apostaria a
que isto foi coisa do Langley. E o que me diz do Frank Payne?
–É do FBI; eu confio nele –respondeu Jay com firmeza.
–Droga, isto tem que ser algo sério –murmurou. –Não é normal que se coordenem
tantos departamentos e tantos corpos diferentes do exército. O que está acontecendo
aqui? me fale da explosão.
–Frank não te contou nada?
–Tampouco eu lhe pedi nenhuma informação. Não o conhecia.
Sim, isso era próprio do Steve. Sempre tinha sido um homem contido, gostava de
contemplar as situações prudentemente da distância, embora Jay se casou com ele antes
de começar a notar aquele traço de seu caráter. Steve utilizava seus encantos como uma
espécie de couraça, de modo que a maior parte das pessoas o definiriam como um
homem sociável e espontâneo, quando era justo o contrário. Steve mantinha às pessoas
a distância, não confiava em ninguém e não permitia que ninguém se aproximasse dele,
mas era tão bom ator que ninguém o notava. Naquele momento, Jay tinha a sensação de
que a couraça tinha desaparecido. As pessoas podiam aceitá-lo tal e como era ou
abandoná-lo; não lhe importava. Era uma atitude dura, mas Jay descobriu que gostava
muito mais que a anterior. Era real, sem falsidades nem subterfúgios. E, pela primeira
vez, Steve lhe estava permitindo estar perto dele. Necessitava-a, confiava nela.
Possivelmente fora só por aquelas exaustivas circunstâncias, mas o caso era que a
necessitava, e isso a assombrava.
–Jay? –urgiu-a.
–Não sei exatamente o que ocorreu –lhe explicou. –E tampouco sei por que estava
você ali. Eles tampouco sabem.
–Quais são eles?
–Frank, o FBI.
–E para quem quer que esteja trabalhando –acrescentou Steve secamente. –
Continua.
–Frank me disse que não estava fazendo nada ilegal, ao menos que eles
soubessem. Possivelmente fosse só um simples transeunte que passava por ali, mas tem
fama de cheirar o perigo e acreditam que poderia saber algo sobre o que aconteceu
naquela operação. Tinham um golpe preparado, ou como quer chamá-lo, mas alguém
tinha colocado uma bomba no lugar da reunião. -Você é o único sobrevivente.
–Que classe de operação?
–Não sei. O único que me disse Frank é que se tratava de um assunto relacionado
com a segurança nacional.
–E têm medo de que tenham desmascarado a seus homens, mas não sabem porque
os jogadores do outro bando também se desintegraram –disse para si. –Poderia ter
havido um duplo jogo e possivelmente a bomba estivesse destinada aos outros. Droga!
Não me surpreende que queiram que recupere a memória. Mas há algo que não termino
de compreender, por que está envolvida você em tudo isto?
–Trouxeram-me aqui para que te identificasse –respondeu Jay, lhe acariciando o
braço com ar ausente, como tinha feito durante tantas horas.
–Para me identificar? Não me reconheciam?
–Não estavam seguros. Encontraram parte de sua carteira de conduzir, mas mesmo
assim não estavam seguros de que fosse você... ou seu agente. Ao que parece, tanto
você como esse agente têm uma altura e um peso similares, e como tem as mãos
queimadas, não podiam tirar a impressões digitais para te identificar.
Interrompeu-se, tentando concentrar-se em um detalhe que não conseguia recordar.
Por um instante, esteve a ponto de aproximar-se, mas a pergunta do Steve interrompeu
sua concentração.
–E por que pediram a ti que o fizesse? Não havia ninguém mais que pudesse me
identificar? Ou é que estávamos muito unidos apesar de divorciados?
–Não, a verdade é que não. Era a primeira vez que te via desde fazia cinco anos.
Você sempre foi um solitário. Não foi o tipo de homem que faz facilmente amigos íntimos.
E tampouco tem família, assim só ficava eu.
Steve se moveu, inquieto, e sua boca se converteu em uma dura linha enquanto
proferia um breve mas contundente impropério.
–Estou tentando encontrar um sentido a tudo isto –disse com amargura. –Mas
sempre me encontro com esse condenado buraco negro. Parte do que diz me resulta
familiar e penso, «sim, esse sou eu». Mas há outra parte que me resulta estranho, é como
se estivesse falando de um desconhecido e me pergunto se eu era realmente assim.
Diabos, como posso sabê-lo? –concluiu com frustração.
Jay deslizou os dedos ao longo de seu braço, lhe oferecendo todo o consolo que
podia. Não queria desperdiçar nem tempo nem saliva tentando reconfortá-lo com tópicos
e lugares comuns porque sabia que quão único conseguiria seria pô-lo mais furioso. Em
qualquer caso, Steve parecia ter esgotado sua pequena reserva de energia com as
perguntas que lhe tinha feito e permaneceu em silêncio durante alguns minutos,
respirando agitadamente. Ao final, quando sua respiração recuperou o ritmo normal,
murmurou:
–Estou cansado.
–Forçaste-te muito. Só leva aqui três semanas.
–Jay.
–O que?
–Fica comigo.
–Ficarei, sabe que ficarei.
–É... curioso. Nem sequer sou capaz de recordar seu rosto, mas parte de mim te
conhece. Possivelmente o conhecimento dos corpos seja mais profundo que a própria
memória.
A rouquidão de sua voz conferia certa dureza a suas palavras, mas Jay sentiu que
uma descarga elétrica sacudia seu corpo e deixava um agradável comichão em sua pele.
Sua mente se encheu de imagens, mas nenhuma delas pertencia ao âmbito das
lembranças; sua imaginação estava criando outras novas... Imagens daquele homem com
a alma endurecida e a voz destroçada inclinando-se sobre ela, abraçando-a e movendo-
se entre suas pernas até possuí-la com uma plenitude que até então Jay nunca tinha
conhecido. Sua própria respiração pareceu entrecortar-se, seus seios se encheram
ofegantes e o interior de seu corpo pareceu liquidificar-se. Um novo estremecimento a
sobressaltou e a fez sentir-se como se estivesse ao bordo do êxtase... e para todo isso
tinham bastado as palavras do Steve, sua voz. A violência daquela resposta a impactou e
se afastou bruscamente da cama antes de poder dominar-se.
–Jay?
Steve parecia preocupado, e inclusive um pouco alarmado, como se houvesse
sentido seu desejo de distanciar-se dele.
–Dorme –conseguiu dizer Jay com um quase completo controle de sua voz. –
Precisa descansar. Estarei a seu lado quando despertar.
Steve levantou uma mão.
–Dê-me a mão?
–Não posso, faria-te mal.
–Assim se fundiria com o resto da dor –respondeu sonolento. Estava perdendo
rapidamente as forças. –Só me acaricie até que fique adormecido, de acordo?
Esse pedido chegou diretamente até o coração de Jay. O fato de que Steve pudesse
querer algo dela ainda a comovia, mas sua necessidade de acariciá-lo era mais do que
podia suportar. Voltou a aproximar-se da cama e posou a mão em seu braço. Assim que o
acariciou, sentiu que começava a relaxar-se. Dois minutos depois, estava completamente
adormecido.
Jay saiu do quarto. Sentia a necessidade de escapar, embora não sabia exatamente
do que, se do Steve ou de outra coisa, de algo que estava crescendo em seu interior e
era cada vez mais poderoso. Assustava-a. Não queria, mas se sentia incapaz de controlá-
lo. Jamais tinha respondido ao Steve como estava fazendo naqueles momentos. Nem
sequer durante os primeiros apaixonados dias de seu matrimônio. Era por culpa da
situação, dizia a si mesmo tentando encontrar algum consolo naquele pensamento. Era
sua tendência a entregar-se completamente, a concentrar-se em tudo o que lhe ocorria
com intensidade a que a fazia sentir-se assim. Mas o consolo a evitava e o desespero
invadia seu coração, porque não bastava analisando os sentimentos para trocá-los.
Durante a maior parte das três semanas anteriores, Steve tinha sido pouco mais que uma
múmia, incapaz de mover-se, de falar. Mas mesmo assim, havia se sentido arrastada
para ele, atada a ele; e apaixonar-se pelo Steve naquela situação era muito mais perigoso
que anos atrás. Agora era um homem diferente, mais forte, mais duro. Inclusive quando
estava inconsciente, tinha podido sentir sua força interior. A necessidade que Jay tinha de
saber o que lhe tinha acontecido para mudar até esse ponto era tão forte que quase lhe
doía.
Uma enfermeira, a primeira que tinha notado a melhoria do Steve ante a presença
do Jay, deteve-se seu lado.
–Como ele está? Esta manhã se negou a tomar os calmantes para a dor.
–Agora está dormindo. -Cansa-se muito rapidamente.
A enfermeira assentiu e olhou A Jay com os olhos brilhantes.
–Tem a constituição física mais incrível que vi em minha vida. Continua sofrendo
fortes dores, mas parece desentender-se deles. Normalmente, faria falta pelo menos
outra semana antes de que começássemos a reduzir os analgésicos –sua voz soava
carregada de admiração. –Lhe tem feito mal ao estômago o café?
Jay não pôde menos que tornar a rir.
–Não. E está muito orgulhoso de haver tomado.
–Estava completamente decidido a conseguir esse café. Possivelmente possamos
começar a lhe dar amanhã uma dieta suave para que possa ir recuperando as forças.
–Sabe quando sairá da UTI?
–A verdade é que não. O coronel Lunning é o que tem que tomar essa decisão –a
enfermeira lhe sorriu antes de partir.
Jay se dirigiu à sala de espera em busca de um refresco. Aproveitou que estava
vazia para desfrutar da intimidade que tanto necessitava. Sentia-se vagamente inquieta e
não conseguia compreender a razão. Ou as razões, pensou. Parte de sua inquietação se
devia ao Steve, é obvio, e à descontrolada resposta que sua proximidade despertava
nela. Não queria voltar a apaixonar-se por ele, não sabia como lutar contra aquele
sentimento, mas sabia que tinha que fazê-lo. Não podia voltar a apaixonar-se pelo Steve.
Era muito arriscado. Sabia e se repetia com ferocidade uma e outra vez que não permitiria
que isso ocorresse, embora no fundo temia que pudesse ser muito tarde.
O outro motivo de sua inquietação também estava relacionado com Steve, embora
não estava segura de por que. Aquilo agravava a sensação de estar esquecendo algo
importante, algo que deveria ter visto ou compreendido. A julgar pelas perguntas que lhe
tinha feito, possivelmente também Steve tivesse aquela sensação. Não parecia confiar no
Frank, embora Jay supunha que era de esperar, tendo em conta sua situação. Ela,
entretanto, poria tanto sua vida como a do Steve nas mãos do Frank. Mas então, a que se
devia essa sensação de que deveria saber algo mais do que sabia? Estaria Steve em
perigo por causa do que tinha visto?, estaria realmente envolto em todo aquele assunto?
Jay não era tão ingênua como para não haver-se dado conta de que lhe tinham oculto a
maior parte dos detalhes sobre o ocorrido, mas em nenhum momento tinha esperado que
Frank lhe contasse tudo o que sabia. Não, não era isso. Era outra coisa, algo que deveria
ter visto, algo que era óbvio e lhe tinha passado completamente desapercebido. Era um
detalhe que não terminava de encaixar, e até que não pudesse determinar exatamente o
que era, não poderia desfazer-se desse constante desconforto.
Steve saiu da unidade de cuidados intensivos dois dias depois e foi transferido a um
quarto individual. Os guardas também trocaram de localização. No novo quarto tinha
televisão, algo com o que não tinha podido contar na UTI, e insistia em ver todos os
programas que podia, como se estivesse procurando neles alguma pista que pudesse
ajudá-lo a localizar as peças perdidas que compunham sua personalidade. O problema
era que parecia estar interessado em todas as grandes questões mundiais e falava sobre
os políticos de outras nações com a mesma facilidade com a que opinava dos de seu
país. Aquilo também inquietava Jay. Steve nunca tinha sido um homem particularmente
aficionado à política e a profundidade de seus conhecimentos sobre o tema revelava que
tinha chegado a envolver-se seriamente naquele mundo. Assim era cada vez mais
provável que estivesse envolvido na operação que tinha estado a ponto de matá-lo, e
provavelmente o próprio Frank sabia. Ou possivelmente não soubesse. Frank tinha
mantido uma longa conversa privada com o Steve, mas este último permanecia em
guarda. Só com Jay parecia ter baixado a guarda.
Suas lesões o mantinham preso à cama durante muito mais tempo de que teria
querido, mas não foi capaz de negociar a obtenção de umas muletas por culpa das
queimaduras de suas mãos. A inatividade física o destroçava, erodia sua paciência e
esgotava seu bom humor. Muito em breve decidiu que tipo de programas televisivos
gostava, descartou os esportes e as telenovelas. Mas inclusive aos espaços que gostava
lhes faltava algo, posto que a maior parte da ação transcorria de forma visual. Frustrava-o
não poder vê-los, assim não demorou para renunciar a todos, salvo às notícias. Jay fazia
tudo que estivesse em sua mão para entretê-lo. Ao Steve gostava que lhe lesse o jornal,
mas, durante a maior parte do tempo, preferia que lhe falasse.
–Me diga que aspecto tem –lhe pediu uma manhã.
Aquele pedido a fez ruborizar-se. Resultava-lhe estranhamente embaraçoso ter que
descrever-se a si mesma.
–Bom, tenho o cabelo castanho claro –começou a dizer vacilante.
–Castanho avermelhado, dourado...?
–Castanho dourado, mas bem escuro. É uma cor parecida ao mel escuro.
–Leva-o muito comprido?
–Não, à altura dos ombros. E é muito liso.
–De que cor tem os olhos?
–Azuis.
–Vamos, segue – falou Steve depois de um minuto de silêncio. – Qual sua altura?
–Meço um e setenta mais ou menos.
–E eu como sou de alto? Fazíamos um bom casal?
Ao pensar nisso Jay sentiu que lhe fechava a garganta.
–Você mede um metro e oitenta e sim, fazíamos muito bom casal de dança.
Steve voltou sua cabeça enfaixada para ela.
–Não estava falando de dançar, mas que mais há? Assim que me tirem o gesso,
sairemos um dia para dançar. Ao melhor não esqueci como fazê-lo.
Jay não sabia se suportaria voltar a estar nos braços do Steve, tendo em conta as
milhares de reações que se desencadeavam em seu interior cada vez que ouvia sua voz.
Mas Steve estava esperando uma resposta, assim respondeu alegremente:
–Trato feito.
Ele elevou as mãos.
–Amanhã me tiram as ataduras. E na próxima semana me operarão os olhos. Dentro
de duas semanas, poderei me esquecer do gesso. Me dê um mês para recuperar as
forças. Para então, terão me tirado as ataduras dos olhos e poderemos ir à cidade.
–Só te dá um mês para te recuperar? Não te parece um pouco ambicioso?
–Já passei por isso outras vezes –respondeu ele, e ficou muito quieto. Jay conteve a
respiração enquanto o observava, mas depois de um minuto, Steve soltou uma maldição.
– Droga, sei de coisas, mas não posso me lembrar. Sei a comida que eu gosto, da
mesma forma que conheço o nome de todos os chefes de Estado que mencionam nas
notícias, e posso inclusive recordar seu aspecto, mas não recordo meu próprio rosto. Sei
quem ganhou a última liga de beisebol, mas não sei onde eu estava quando se jogava.
Conheço o aroma dos canais de Veneza, mas não posso recordar ter estado ali –se
interrompeu um momento e disse com voz baixa: – Às vezes me entram vontades de
destroçar este lugar com minhas próprias mãos.
–O coronel Lunning disse que teria que esperar –respondeu Jay, ainda comovida
pelo que Steve acabava de dizer. Até que ponto estaria Steve relacionado com aquele
mundo que Frank tinha insinuado? Muito se temia que tinha deixado de ser um
aventureiro para passar a jogar muito seriamente nesse terreno.
–Deixa de te compadecer. O coronel disse que iria recuperando a memória pouco a
pouco.
Um lento sorriso apareceu nos lábios do Steve, aprofundando as rugas que
rodeavam sua boca e arrastando a impotente e fascinado olhar de Jay. Seus lábios
pareciam mais firmes, mais cheios, como se ainda estivessem ligeiramente inchados. Ou
possivelmente fora devido a seu rosto que estava mais magro.
–Sinto muito –respondeu Steve, – terei que me vigiar.
Seu humor irônico, sobre tudo quando tinha boas razões para compadecer-se a si
mesmo, fez-lhe recordar a Jay a força interior daquele homem. E aquele foi um novo
golpe contra a fortaleza com a que pretendia proteger seu coração. Riu com Steve, da
mesma forma que ria anos atrás com ele, mas havia coisas que tinham mudado. Antes,
Steve utilizava o senso de humor como um muro atrás do que se ocultava; naquele
momento, o muro tinha desaparecido e Jay podia ver o homem real.
Estava com ele à manhã seguinte, quando foram tirar lhe as ataduras que cobriam
suas mãos. Jay também tinha estado presente quando lhe tinham trocado as ataduras e
tinha visto as palmas das mãos e os dedos quando tinham muito pior aspecto que o que
apresentavam naquele momento. As zonas de pele avermelhada eram visíveis até a
altura dos cotovelos, mas as mãos levaram a pior parte. Uma vez superado o perigo de
infecção, a pele se regeneraria mais rapidamente sem as ataduras, embora durante
algum tempo lhe resultaria muito doloroso utilizar as mãos.
Quando Jay comparava o aspecto do Steve com o que tinha a primeira vez que o
tinha visto, conectado a todas aquelas máquinas e monitores e com tantos tubos entrando
e saindo de seu corpo, parecia-lhe que sua recuperação era uma espécie de milagre. Só
tinham passado quatro semanas e um homem que então era virtualmente um vegetal, era
capaz de desdobrar toda a força de sua personalidade sobre qualquer um que entrasse
no quarto, médicos incluídos. Um mês atrás, seu rosto estava inchado e ferido; naquele
momento, o corte da mandíbula e o contorno preciso de seus lábios a fascinavam. Jay
sabia que um cirurgião plástico tinha reconstruído seu rosto e se perguntava pelas
mudanças que teria quando lhe tirassem as ataduras e pudesse vê-lo realmente pela
primeira vez. O queixo se encontrava ligeiramente diferente, mais quadrado, mas
supunha que era lógico tendo em conta o peso que tinha perdido. A barba parecia mais
escura, certamente devido à palidez de seu rosto. Jay estava mais que familiarizada com
aquele queixo e essa barba, posto que tinha que barbeá-lo toda manhã. As enfermeiras
tinha sido as encarregadas de fazê-lo até que Steve tinha recuperado a consciência e
tinha deixado claro que queria que fosse Jay que o barbeasse.
Já não tinha a atadura que antes cobria seu crânio. Em seu lugar, via-se uma
enorme cicatriz que cruzava da parte superior de sua cabeça até um ponto situado justo
em cima de sua orelha direita, e dali até a parte esquerda do crânio, mas o cabelo
começava a crescer e a cobrir a cicatriz. Saía-lhe um cabelo escuro, brilhante. Os olhos
continuavam cobertos pelas ataduras, igual à ponta do nariz e a curva de seus maçãs do
rosto. Aquelas ataduras eram toda uma tentação para Jay. Estava desejando ver seu
rosto, julgar por si mesmo o trabalho feito pelo cirurgião plástico. Queria aplicar a nova
personalidade do Steve a seu rosto, queria olhá-lo nos olhos e ver neles todas aquelas
coisas que tinha procurado durante seu matrimônio e não tinha sido capaz de encontrar.
–Agora mesmo suas mãos são muito sensíveis –disse o médico que se ocupou das
queimaduras do Steve quando lhe tirou a última atadura. – Tome cuidado com elas até
que se endureceu a pele. Notará-as um pouco rígidas, mas com o exercício irão
recuperando a elasticidade. Não tem nenhum tendão nem nenhum ligamento prejudicado,
de modo que, com o tempo, poderá voltar às utilizar sem problemas.
Steve flexionou os dedos lentamente com uma careta de dor. Esperou a que as
enfermeiras e o médico abandonassem o quarto para dizer:
–Jay?
–Estou aqui.
–Que aspecto têm?
–Estão vermelhas –respondeu Jay com sinceridade.
Steve voltou à abrir e fechar as mãos com muito cuidado, esfregou os dedos da mão
direita com a esquerda. Quando terminou, repetiu a operação trocando de mãos.
–Sinto-as estranhas –disse, sorrindo ligeiramente. – Estão muito mais sensíveis,
como há dito o médico, mas sinto a pele como o traseiro de um bebê. Não fica um só calo
– seu sorriso se desvaneceu de repente para ser substituída por um cenho franzido. –
Tinha as mãos calosas...
Voltou a examinar suas mãos, como se estivesse tentando encontrar algo que lhe
resultasse familiar em seu tato, esfregando uns dedos contra os outros.
Jay riu brandamente.
–Houve um verão no que jogou tanto beisebol na praia que ao final suas mãos
pareciam de couro. Saíram-lhe calos nos calos.
Steve continuou pensativo durante alguns segundos. De repente, mudou de humor e
disse:
–Sente-se comigo na cama.
Jay obedeceu com curiosidade, sem deixar de olhá-lo. Tinha levantado a cabeceira
da cama de maneira que Steve ficasse em posição erguida, assim estavam ao mesmo
nível. De repente, Jay foi consciente do muito que tinha que elevar a vista para olhá-lo
nos olhos. Seus ombros e seu peito nus, apesar do peso que tinha perdido, continuavam
lhe parecendo enormes e voltou a perguntar-se uma vez mais que classe de exercício
teria feito para desenvolver o torso até tal ponto.
Ele alargou a mão com gesto vacilante e acariciou seu cabelo. Ao compreender por
que queria que se sentasse na cama, Jay permaneceu muito quieta enquanto ele
deslizava a mão por sua cabeça. Steve não dizia nada. Levantou a outra mão e
emoldurou o rosto de Jay; deslizou os dedos brandamente por sua testa, desceu pela
ponta do nariz e seguiu pelos lábios e o queixo antes de acariciar seu pescoço.
Jay deixou de respirar sem dar-se conta disso. Lentamente, Steve lhe rodeou o
pescoço com os dedos, como se estivesse medindo-o, e continuou apalpando os ocos e
os ossos de seus ombros.
–Você também está muito magra –murmurou, posando as mãos em seus ombros. –
Não come o bastante?
–A verdade é que engordei um pouco –sussurrou Jay, que tinha começado a tremer
sob suas carícias.
Com deliberada lentidão, Steve desceu até seus seios e os moldou com ambas as
mãos. Jay tomou ar bruscamente e ele tentou acalmá-la.
–Calma, calma –sussurrou enquanto acariciava aqueles suaves montículos.
–Steve, não.
Mas já tinha fechado os olhos enquanto um quente prazer crescia em seu interior e
sentia palpitar lenta e poderosamente o sangue através de suas veias. Steve lhe acariciou
os mamilos com os polegares e Jay se estremeceu ao mesmo tempo que seus seios
começavam a esticar-se.
–É tão suave... –a voz do Steve era cada vez mais rouca. – Deus, quanto desejei te
tocar. Vem aqui, querida.
Sobrepondo-se à dor das mãos, estreitou-a contra ele e a envolveu com seus braços
como tantas vezes tinha sonhado fazer desde que a voz de Jay o tinha cativado
ajudando-o a abandonar a escuridão. Sentia sua magreza, sua suavidade, seu calor, e o
delicioso contato de seus seios pressionados contra a dureza de seu peito. Steve aspirou
o aroma doce que emanava de sua pele, sentiu o tato sedoso de seu cabelo e com um
amortecido gemido de desejo, procurou sua boca.
Já a conhecia. Não tinha passado um só dia que não lhe tivesse suplicado ou
enrolado para que lhe desse um beijo pelas manhãs e outro antes de ir-se pelas noites.
Sabia que tinha os lábios suaves, cheios. E que tremiam cada vez que a beijava. Naquele
momento, esfregou sua boca contra a dela e pressionou com dureza até lhe fazer
entreabrir os lábios e lhe oferecer a entrada que procurava. Podia senti-la tremer entre os
braços enquanto ele movia a língua no interior de sua boca, saboreando sua extrema
doçura. Droga, como tinha podido ser tão tolo para permanecer afastado daquela mulher
durante cinco anos? Irritava-o não recordar o que era fazer amor com ela, porque queria
saber do que gostava, o que sentia ao estar em seu interior, se realmente eram tão
compatíveis como sua intuição lhe dizia. Aquela mulher tinha que estar com ele; sabia,
sentia-o. Era como se estivessem atados um ao outro. Aprofundou o beijo, para obrigá-la
a responder como sabia que o faria, como queria que fizesse. Ao final, Jay se
estremeceu convulsivamente, entrelaçou a língua com a dele e fechou os braços ao redor
de seu pescoço.
Steve não deveria ser tão forte, pensou Jay, e menos depois de tudo o que tinha
passado. Mas seus braços eram musculosos e os fechava a seu redor com tanta
intensidade que começavam a lhe doer as costelas. Nunca tinha sido tão agressivo; é
obvio, não tinha sido um homem passivo, mas naquele momento a estava beijando com
uma demanda nua, forçando em sua relação uma intimidade que a assustava. Desejava-
a mais do que a tinha desejado durante seu matrimônio, mas certamente era porque,
naquelas circunstâncias, toda sua atenção estava concentrada nela.
–Não deveríamos fazer isto –conseguiu dizer Jay, voltando a cabeça para liberar sua
boca da faminta pressão da do Steve.
Afastou as mãos e o empurrou brandamente pelos ombros.
–Por que não? –murmurou Steve, e decidiu aproveitar-se da vulnerabilidade do
pescoço do Jay para cobri-lo de beijos.
Acariciou com a língua a parte do pescoço próxima à orelha e Jay esticou as mãos
em seus ombros enquanto uma quebra de onda de prazer esquentava toda sua pele. A
falta de visão não supunha nenhum obstáculo para o Steve. Sabia abrir-se caminho para
o corpo de uma mulher; a intuição era mais profunda que a memória.
A consciência e o sentido da sobrevivência fizeram que Jay voltasse a empurrá-lo
brandamente pelos ombros. E, naquela ocasião, Steve a soltou.
–Não podemos voltar a estar juntos –disse em voz baixa.
–Nós dois estamos solteiros –assinalou Steve.
–Não sabemos. É muito possível que durante estes cinco anos tenha conhecido uma
mulher a que queira de verdade. Uma mulher que talvez está te esperando em casa. Até
que não recupere a memória, não poderá estar seguro de que é solteiro, e... e acredito
que deveríamos ser prudentes e não nos lançar a manter uma relação sem saber algo
mais do que sabemos.
–Não há ninguém me esperando –respondeu Steve com absoluta certeza.
Jay se levantou bruscamente da cama e se aproximou da janela. O céu tinha um tom
plúmbeo e os flocos de neve voavam sem rumo arrastados pelo vento.
–Isso você não pode saber –insistiu, e se voltou para olhá-lo.
Embora não podia vê-la, Steve também havia tornado o rosto para ela. A dura linha
de sua boca indicava que estava zangado. O lençol o cobria até a cintura, deixando ao
descoberto seus ombros e seu peito; tinha desdenhado os pijamas do hospital, embora
ao final tinha mimado em que lhe pusessem umas calças curtas e abertas para poder
deslizados por cima dos gessos. Estava magro, pálido e débil por tudo o que tinha
passado, mas mesmo assim, a imagem que transmitia era de grande fortaleza. Se servia
de referência a força com a que acabava de abraçá-la, não podia dizer-se que estivesse
especialmente débil, o que indicava que, antes daquele acidente, devia ter uma força
extraordinária. O que tinha ocorrido naqueles cinco anos durante os quais não se viram,
resultava-lhe cada vez mais misterioso.
–Então ficou comigo durante todo este tempo porque tem complexo do Florence
Nightingale –comentou com aspereza.
Era a primeira vez que Jay lhe negava algo e não lhe tinha gostado absolutamente.
Se tivesse podido andar, teria se levantado atrás dela, estivesse débil ou não e, apesar
dos dores que suportava durante a maior parte do tempo. Nada o teria detido e, pela
primeira vez, Jay agradeceu que tivesse as pernas quebradas.
–Nunca te odiei –tentou lhe explicar, sabendo que lhe devia pelo menos aquele
esforço. – Não acredito que estivéssemos profundamente apaixonados ou, pelo menos,
não o suficiente como para que nosso casamento funcionasse. Frank me pediu que
ficasse porque pensava que me necessitaria, tendo em conta seu estado. E o coronel
Lunning dizia que te ajudaria ter perto alguém familiar, a uma pessoa a que tivesse
conhecido antes do acidente. Por isso fiquei.
–Deixa de dizer tolices. Não sou nenhum idiota –se impacientou ele.
Seu intento de explicar o tinha posto inclusive mais furioso. Aquele era um tipo de
aborrecimento que Jay nunca lhe tinha conhecido. Steve permanecia muito quieto, com
todos os sentimentos sob controle, e sua voz gutural era pouco mais que um suspiro. Ela
sentia calafrios ao perceber o fogo e o gelo do aborrecimento com o que arremetia contra
ela sem necessidade de mover-se da cama.
–Acha que porque não posso ver-te não sei quão excitada estava faz um momento?
Não me convenceste, querida.
Jay começava a zangar-se ante o tom exigente que havia na voz de Steve.
–De acordo, se quer saber a verdade, aí vai. Não confio em ti. Sempre foi muito
inquieto para sentar a cabeça e tentar construir uma vida em comum. Andava
constantemente atrás de aventura, procurando algo que eu não podia te dar. Pois bem,
não quero voltar a passar por nada parecido. Não quero voltar a manter uma relação
contigo. Agora me quer, e é possível que inclusive me necessite, mas o que acontecerá
quando estiver bem? Dará-me de novo um tapinha e um beijo na bochecha antes de
voltar a te perder? Obrigada, mas não. Agora tenho mais sentido comum de que tinha
então.
–E essa é a razão pela que treme cada vez que te toco? Quer que voltemos a estar
juntos, Jay, mas tem medo.
–Já disse que não confio em você, não disse que te tenha medo. Por que deveria
confiar em ti? Afinal, também estava procurando aventuras quando essa explosão esteve
a ponto de te matar.
De repente, deu-se conta de que estava gritando quando ele não tinha elevado
absolutamente a voz. Voltou-se, saiu do quarto e esteve apoiada contra a parede até que
cessaram tanto os tremores como a força de seu aborrecimento. Sentia-se doente, e não
por culpa da discussão, mas sim porque Steve tinha razão. Tinha medo. Estava
aterrorizada. E já era muito tarde para fazer algo a respeito, porque havia tornado a
apaixonar-se por ele apesar de todas suas advertências, apesar do muito que se
recriminou a si mesmo. Já não conhecia seu ex-marido. Tinha mudado; era mais duro,
mais forte... e muito mais perigoso. Continuava sendo um homem inquieto, e
provavelmente estava muito mais envolvido em todo o relacionado com a explosão do
que Frank queria dar a entender.
Mas nada disso importava. Apaixonou-se por ele anos atrás por cima de toda lógica
e havia tornado a apaixonar-se por ele apesar do sentido comum. Que o céu a ajudasse,
porque estava expondo-se de novo à dor e não podia fazer nada para evitá-lo.
Capítulo 6
Steve permanecia muito quieto, tentando limpar a neblina que a anestesia tinha
deixado em sua mente. Sua quietude era instintiva, como a de um animal na selva que
não queria mover-se até saber o que ia acontecer a seguir. Um homem podia chegar a
perder a vida por mover-se antes de saber onde estavam seus inimigos. Se estes o
acreditavam morto, ganhava a vantagem da surpresa ao permanecer imóvel, lhes
impedindo de saber que continuava vivo até estar suficientemente recuperado para dar o
seguinte passo. Tentou abrir os olhos, mas algo os cobria. Tinha-os enfaixados. Aquilo
não tinha sentido, por que tampar os olhos a uma pessoa que acreditavam morta?
Escutou com atenção, tentando localizar a seus captores. Não se ouvia nenhum dos
habituais sons da selva e, pouco a pouco, começou a dar-se conta de que fazia muito frio
para que estivesse na selva. O aroma também era muito estranho. Um aroma penetrante,
a desinfetante, possivelmente. Aquele lugar parecia um hospital.
Ao compreendê-lo, teve a sensação de que caía um véu e, de repente, deu-se conta
de onde estava e o que tinha passado. Todas as imagens da selva se esfumaram. A
operação da vista tinha terminado e estava na sala de recuperação.
–Jay!
Custou-lhe um esforço considerável chamá-la, e sua voz lhe soava estranha, mais
rouca que o normal. Tão rouca e profunda, de fato, como o grito de um animal.
–Jay!
–Tudo saiu bem, senhor Crossfield –o tranqüilizou uma voz sossegada. –Acabam de
operá-lo e está estupendamente. Permaneça convexo sem mover-se. Dentro de uns
minutos o levaremos ao seu quarto.
Não era a voz de Jay. Era uma voz agradável, mas não era a que ele queria escutar.
Tinha a garganta seca. Tragou saliva e fez uma careta de dor ao sentir a garganta em
carne viva. Claro, tinham tido que voltar para entubá-lo para a operação.
–Onde está Jay? –grasnou.
–Jay é sua ex-esposa, senhor Crossfield?
–Sim.
Sua ex-esposa ... queriam atender-se ao termo legal. Jay era sua mulher!
–Provavelmente estará esperando-o em seu quarto.
–Me leve para lá.
–Espere um pouco mais...
–Agora –foi uma só palavra e pronunciada de forma gutural, mas sem perder um
ápice de sua acerada força.
Steve não tentou dissimular sua ordem depois do véu da educação porque eram
poucas as palavras que podia pronunciar. Ainda estava meio sonolento, mas tinha fixado
seus pensamentos em Jay com uma absoluta determinação. Começou a procurar o
corrimão da cama.
–Senhor Crossfield, espere! vai tirar a agulha do soro!
–Melhor –murmurou.
–Tranqüilize-se, vamos levá-lo ao seu quarto. Mas permaneça deitado até que venha
um carregador de maca.
Um minuto depois, Steve notou que a cama começava a mover-se. Era uma
sensação relaxante e começou a ficar sonolento outra vez, mas se obrigou a permanecer
alerta. Não podia permitir o luxo de relaxar-se até que Jay voltasse a estar com ele. Sabia
muito pouco sobre quem era ele exatamente ou sobre o que ia acontecer no futuro, e Jay
era a única constante de sua vida, a única pessoa em que confiava. E tinha estado ali
desde o começo, ou ao menos desde que ele podia recordar.
–Já estamos aqui –lhe disse a enfermeira alegremente. – Não podia esperar para
voltar para o quarto, senhora Crossfield. Estava perguntando por você e armou um
autêntico alvoroço.
–Estou aqui, Steve.
Ele teve a sensação de que parecia nervosa. E advertiu também que não tinha
corrigido à enfermeira quando se dirigiu a ela como se fosse sua esposa, o que lhe
produziu uma feroz satisfação. Na realidade, esse título não significava muito para ele,
mas era um indicativo do que em outro tempo tinha compartilhado com Jay, dos vínculos
que os tinham unido.
Deixaram ao Steve em sua cama e este pôde sentir às enfermeiras revoando a seus
redor durante alguns minutos. Resultava-lhe muito difícil permanecer acordado.
–Jay!
–Estou aqui.
Steve alargou a mão para a voz e sentiu imediatamente os dedos longos e frios de
Jay.
–Os médicos disseram que tudo foi perfeitamente –disse ela. –Lhe tirarão as
ataduras dentro de umas duas semanas.
–E então irei embora daqui –murmurou Steve.
Esticou a mão ao redor da de Jay e voltou a entregar-se aos efeitos da anestesia.
Quando despertou, tinha desaparecido a confusão inicial, mas continuava sonolento.
A impaciência o obrigou a sair de sua letargia. Estava tão habituado a conviver com a dor
de seu destroçado corpo que nem sequer o notava. Em algum momento de sua vida, do
que não conseguia lembrar-se, tinha aprendido que o corpo humano podia ser forçado até
limites insuspeitados se a mente aprendia a sobrepor-se à dor. E era evidente que tinha
aprendido tão bem aquela lição que se converteu para ele em uma segunda natureza.
Uma vez acordado, não teve necessidade de chamar Jay para saber se estava ou
não no quarto. Ouvia-a respirar, e como passava as páginas de uma revista enquanto
permanecia ao lado da cama. Podia distinguir a doce fragrância de sua pele, uma
essência que a identificava imediatamente, cada vez que entrava no quarto. E havia além
outro tipo de percepções. Como aquela conscientização física que era como uma sorte de
descarga elétrica, uma descarga que lhe provocava um comichão de excitação e prazer
cada vez que Jay se aproximava, ou inclusive cada vez que pensava nela.
Não havia tornado a beijá-la desde que tinham discutido na semana anterior, mas
estava esperando que chegasse o momento de fazê-lo. Jay tinha se zangado e não
queria que isso voltasse a ocorrer, não queria pressioná-la. Possivelmente não se levou
muito bem com ela no passado, mas continuava sentindo algo por ele; caso contrário, não
estaria ali naquele momento. E quando chegasse o momento oportuno, Steve pretendia
capitalizar aqueles sentimentos. Jay era dele, sabia com uma certeza que invalidava todo
o resto.
Desejava-a. A força de seu próprio desejo o surpreendia, tendo em conta o estado
físico em que se encontrava. A tensão que experimentava seu sexo cada vez que Jay o
tocava era a prova evidente de que certos instintos eram mais fortes que a dor. A dor
diminuía dia a dia, e dia a dia aumentava a intensidade de seu desejo. Era algo básico.
Quando duas pessoas se atraíam, a urgência de fundir-se chegava a ser assustadora; era
a forma que tinha a natureza de perpetuar a espécie. O desejo físico servia com muita
freqüência para reforçar os vínculos entre duas pessoas. convertiam-se em casal porque
milhares de anos atrás, durante os primeiros tempos da espécie humana, eram
necessárias ao menos duas pessoas para lhe proporcionar aos recém-nascidos todos os
cuidados que necessitavam. Séculos depois, uma só pessoa podia criar perfeitamente a
uma criança e os adiantamentos da medicina permitiam que uma mulher não ficasse
grávida se não o desejava, mas o instinto continuava presente. Um homem precisava
fazer amor com sua mulher e ter a certeza de que ela seria dele. Steve compreendia os
fundamentos daquela necessidade biológica programada nos genes, mas compreendê-la
não implicava que fosse menos poderosa.
A amnésia era algo curioso. Quando a examinava com despreocupação, era capaz
de interessar-se por suas peculiaridades. Tinha perdido completamente a consciência do
que tinha passado antes de sair do coma, mas era evidente que grande parte das coisas
que sabia não se viram afetadas.
Podia recordar dados sobre a liga de beisebol, e rememorar o aspecto das cataratas
do Niágara. Não era nada importante. Interessante, mas não importante.
Igualmente interessantes, e muito mais importantes, eram as coisas que sabia sobre
os países do terceiro mundo e suas principais autoridades, embora não recordasse de
onde tinha tirado aqueles conhecimentos. Não podia recordar seu próprio rosto, mas, de
algum jeito, isso não impedia que soubesse outras muitas coisas. Conhecia o deserto,
aquele calor seco sob um sol abrasador. Também conhecia a selva, seu mormaço e sua
umidade, e os insetos e répteis, as sanguessugas e o aroma pestilento da vegetação
apodrecendo-se no chão.
Com os escassos dados que podia reconhecer sobre si mesmo, era capaz de
recompor parte do quebra-cabeças. O da selva lhe resultava fácil. Jay lhe havia dito que
tinha trinta e sete anos; a idade justa para ter estado no Vietnam durante os últimos anos
da década dos sessenta. Para o resto só havia uma explicação lógica; estava muito mais
envolto na operação em que tinha terminado ferido do que Jay lhe havia dito.
Perguntou-se se o Penthoal poderia ter algum resultado com os doentes de amnésia
ou se esta continuaria ocultando as lembranças inclusa às drogas mais poderosas. E se o
que possivelmente soubesse fosse suficientemente importante para merecer aqueles
cuidados, dignos de um rei, certamente teriam tentado lhe reativar a memória mediante
esse tipo de medicação. Não o tinham feito e isso indicava algo mais: Frank Payne sabia
que Steve tinha sido treinado para resistir à influência de qualquer produto químico que
penetrasse seu cérebro. Portanto, devia estar de serviço quando tinha acontecido a
explosão.
Jay não sabia. Ela pensava que, simplesmente, estava no lugar errado no momento
inoportuno. Havia-lhe dito que quando estavam casados, ele andava constantemente em
busca de aventura. De modo que, certamente, ele mesmo tinha decidido mantê-la na
ignorância e lhe deixar pensar que era um homem que não suportava os compromissos
para evitar que se preocupasse ao saber até que ponto era perigoso seu trabalho ou as
muitas possibilidades que tinha que não retornasse vivo de algum de suas viagens.
Steve tinha conseguido encaixar algumas peças daquele quebra-cabeças, mas
ainda havia muitas coisas que não tinham sentido para ele. Tinha notado, assim que lhe
tinham tirado as ataduras, que tinha as gemas dos dedos inusualmente suaves. E não era
a suavidade própria de uma cicatriz; tinha as mãos tão sensíveis que podia reconhecer
perfeitamente a diferença entre as zonas queimadas e as gemas de seus dedos. Estava
seguro de que não queimou os dedos; mesmo assim, suas digitais pareciam ter sido
alteradas ou apagadas, provavelmente o último. E tinha a sensação de que aquela
operação tinha sido realizada durante sua estadia no hospital. A pergunta era: por que?
Quem estava tentando ocultar sua identidade? Sabiam quem era, e era evidente que o
apreciavam, em caso contrário não teriam tomado tantas moléstias para tentar salvar-lhe
a vida. Jay também sabia quem era. Haveria alguém perseguindo-o? E se assim era,
correria Jay algum perigo pelo mero feito de estar a seu lado?
Eram muitas perguntas e não tinha resposta para nenhuma delas. Podia lhe
perguntar ao Payne, mas não estava seguro de poder lhe surrupiar nenhuma resposta
sincera. Payne ocultava algo. Steve não sabia o que era, mas percebia o sotaque de
culpa que tingia a voz daquele homem, sobre tudo quando falava com Jay. Por que teriam
envolvido Jay naquele assunto?
Ouviu que a porta do quarto se abria e permaneceu imóvel, tentando identificar a seu
visitante antes de que este soubesse que estava acordado. Descobriu-se tomando aquela
precaução em outras ocasiões; e essa atitude encaixava com tudo o que tinha deduzido
de si mesmo.
–Já está acordado?
Era a voz baixa do Frank Payne; e voltava a aparecer aquela nota, aquele sotaque
de culpa... e também de afeto. Sim, isso era. Payne gostava de Jay e estava preocupado
por ela, mas mesmo assim, continuava utilizando-a. Isso fazia sentir-se ao Steve muito
menos inclinado a colaborar. Enfurecia-o pensar que estavam pondo Jay em perigo.
–Dormiu assim que o deixaram na cama e não despertou depois. Falou com o
médico?
–Não, ainda não. Como foi a operação?
–Maravilhosamente. O médico disse que não haverá nenhum dano irreversível. Tem
que permanecer de repouso vários dias durante todo o tempo que possa, e assim que lhe
tirem as ataduras, seus olhos voltarão a acostumar-se à luz. Possivelmente nem sequer
necessite de óculos.
–Essa é uma boa notícia. Se tudo sair bem, poderá sair do hospital dentro de duas
semanas.
–Custa me imaginar sem vir aqui diariamente –refletiu Jay. – Não me parecerá
normal. O que ocorrerá quando Steve sair do hospital?
–Terei que falar com ele disso –respondeu Payne. – Mas ainda posso esperar uns
dias, até que esteja mais recuperado.
Steve advertia preocupação na voz de Jay e aquilo o intrigava. Estaria à par de
algo? por que então ia preocupar-se com o que pudesse lhe ocorrer quando saísse do
hospital? Mas tinha notícias para ela: fosse onde fosse, pretendia segui-la e Frank Payne
faria bem em tirar suas estúpidas idéias da cabeça.
Duas semanas mais de espera. Não sabia se poderia suportar. Era duro exercitar a
paciência que necessitava para permitir que seu corpo sanasse, e ainda ficavam várias
semanas de reabilitação até que recuperasse todas as suas forças. Teria que forçar-se
mais do que o forçariam os próprios fisioterapeutas, ele conhecia seus próprios limites e
sabia que eram muito mais elásticos do que os fisioterapeutas podiam pensar. E essa era
outra peça mais de seus quebra-cabeças.
Decidiu despertar e começou a mover-se, inquieto. Sentiu o puxão da agulha do soro
na mão.
–Jay? –chamou-a com voz sonolenta. Esclareceu garganta e voltou a tentar: – Jay?
Nunca se acostumaria a ouvir sua nova voz, dura, tensa e com uma textura
particularmente áspera. Outra pequena curiosidade. Não podia recordar sua voz, mas
sabia que não era aquela.
–Estou aqui –sentiu o tato de uns dedos no braço.
Quantas vezes teria ouvido aquelas duas palavras? E quantas vezes haveriam
consegui-lo lhe devolver a consciência? Pareciam estar gravadas em sua mente como se
fossem uma de suas lembranças. Diabos, provavelmente fossem. Alongou a mão para
procurar a mão livre de Jay.
–Tenho sede.
Ouviu o ruído da água ao cair no copo; depois, sentiu o roçar de um canudo nos
lábios e sugou agradecido o frio líquido que subiu até sua boca ressecada e desceu por
sua garganta. Depois de que tivesse bebido vários goles, Jay lhe tirou o canudo.
–Não beba tanto ao princípio –disse, com aquela voz tão serena–. A anestesia pode
te fazer vomitar.
Steve moveu a mão e sentiu o puxão da agulha.
–Diga à enfermeira que me tire esta maldita coisa.
–Necessita de glicose depois da operação –replicou Jay. – E provavelmente lhe
estejam subministrando antibiótico junto ao soro...
–Podem dar isso em cápsulas –respondeu. – Eu não gosto de me sentir limitado.
Já era suficientemente insuportável ter as pernas engessadas; já era bastante tendo
que passar deitado vinte e quatro horas ao dia.
Jay permaneceu em silêncio e Steve sentiu que lhe estava transmitindo sua
compreensão. Às vezes era como se não necessitassem das palavras, como se houvesse
um vínculo entre eles que transcendia a linguagem verbal. Jay sabia exatamente até que
ponto o frustrava ter que estar convexo na cama dia após dia; não só era aborrecido, mas
também ia contra tudo o que lhe ditava o instinto de sobrevivência.
–De acordo –disse por fim, deslizando os dedos por seu braço. – Vou chamar a uma
enfermeira.
Steve a ouviu abandonar o quarto e permaneceu muito quieto na cama, esperando
que Frank se identificasse. Era um jogo sutil, e nem sequer sabia por que estava
jogando. Mas Payne estava lhe ocultando algo e Steve não confiava nele. E faria tudo o
que estivesse em sua mão para colocar-se em uma situação de vantagem, embora fosse
um pouco tão corriqueiro como fingir que dormia quando estava ouvindo tudo o que
ocorria no quarto. Embora até então não lhe tinha servido de nada, salvo para saber que
Payne tinha alguns planos para ele.
–Sente alguma dor? –perguntou Frank.
Steve voltou prudentemente a cabeça.
–Frank?
Outra parte do jogo: fingir que não tinha reconhecido sua voz.
–Sim.
–Não, não me dói muito. Mas tenho sono.
Isso era verdade; a anestesia o tinha deixado débil e sonolento. Mas podia obrigar a
si mesmo a manter-se em estado de alerta, e essa era a parte mais importante. Preferia
suportar a dor a que o drogassem de tal maneira que não pudesse dar-se conta do que
estava ocorrendo a seu redor. O coma induzido pelos medicamentos tinha sido um
pesadelo que não queria voltar a experimentar, nem sequer de uma forma mais atenuada.
Inclusive a amnésia era preferível à falta de consciência total.
–Esta foi a última operação. Já não haverá nem mais operações nem mais tubos
nem mais agulhas. Assim que lhe tirarem o gesso, poderá recuperar a forma.
Frank mantinha a voz baixa e, freqüentemente, Steve percebia nela certo tom de
familiaridade, como se conhecessem muito bem um ao outro.
Essas palavras proporcionaram um novo dado ao Steve; não era um homem de
músculos volumosos, mas sim tinha uma compleição ágil e rápida e um coração de aço
que o mantinha em pé quando outros já se teriam derrubado.
–Jay está em perigo? –perguntou, deixando de lado toda precaução para averiguar o
que naquele momento era mais importante para ele.
–Por algo que você possa ter visto?
–Sim.
–Não prevemos nenhum perigo –respondeu Frank com prudência. – É importante
para nós por que sabe exatamente o que ocorreu e poderia nos proporcionar algumas
respostas.
Steve sorriu com ironia.
–Sim, eu sei. O suficientemente importante para ter merecido toda tipo de cuidados,
para que tenham coordenado três agências diferentes e para que tenham trazido até aqui
médicos de diferentes corpos do exército e inclusive algum ou outro particular. E se supõe
que passava casualmente por ali, não é verdade? É possível que Jay tenha engolido, mas
eu não acredito. Assim deixa de dizer alguma estupidez e me dê um sim ou um não como
resposta. Jay corre algum perigo?
–Não –respondeu Frank com firmeza.
Ao cabo de um segundo, Steve assentiu. Apesar do que Frank lhe estava ocultando,
sabia que apreciava Jay e queria protegê-la. Jay estava a salvo. Do resto já se ocuparia
ele mais adiante. O único naquele momento que lhe importava era Jay.
Depois de estarem envolvidas em gesso durante seis semanas, suas pernas tinham
emagrecido. Passou as mãos sobre elas, tentando acostumar-se a sua peculiar magreza.
Podia movê-las, mas seus movimentos eram bruscos e espasmódicos. Durante os dois
dias anteriores, tinha estado sentado em uma cadeira de rodas, deixando que seu corpo
se acostumasse ao movimento e às diferentes posturas. As mãos estavam
suficientemente recuperadas para poder utilizar umas moletas como suporte durante
vários minutos ao dia. Seu amontoado de conhecimentos ia incrementando-se
continuamente. Entre outras coisas, tinha aprendido que, inclusive quando estava
inclinado para frente com o fim de apoiar-se nas moletas, era vários centímetros mais alto
que Jay. Estava desejando abraçá-la e estreitá-la contra ele para sentir a suavidade de
seu corpo amoldando-se contra o seu e poder inclinar a cabeça para beijá-la. Até então
tinha estado controlando-se, tomando-as coisas com calma, mas estavam a ponto de
chegar ao final.
Jay o observou acariciar as coxas e as panturrilhas. Seus longos dedos amassavam
os músculos com movimentos precisos. Steve tinha uma sessão de fisioterapia essa
mesma tarde, mas não parecia disposto a esperar a que outro fizesse o trabalho por ele.
Era como uma mola a ponto de soltar-se desde que tinha saído da sala de cirurgia depois
da operação dos olhos. Tenso, espectador, mas sempre submetido a um férreo controle.
Tinha passado um mês e meio da explosão e possivelmente muitas outras pessoas em
suas circunstâncias estariam ainda na cama e tomando calmantes contra a dor, mas ele
tinha estado forçando a si mesmo desde o momento em que tinha recuperado a
consciência. Suas mãos deviam estar ainda muito sensíveis, mas as utilizava sem
queixar-se nenhuma só vez. Certamente lhe doíam as costelas e as pernas, mas não
deixava que isso o detivera. Nunca se tinha queixado de sofrer dores de cabeça, embora
o coronel Lunning havia dito a Jay que provavelmente as suportaria durante meses.
Jay olhou o relógio. Steve levava meia hora dando-se massagens nas pernas.
–Acredito que já é suficiente –lhe disse com firmeza. – Não quer voltar para a cama?
Steve se endireitou na cadeira de rodas e lhe dirigiu um sorriso resplandecente.
–Estou tão cansado de estar na cama que para conseguir que voltasse você teria
que te deitar comigo.
Tinha um aspecto tão perversamente masculino que Jay sentiu que se derretia por
dentro, apesar do acautelada que estava contra seus encantos. Nem sequer podia olhá-lo
sem sentir que lhe debilitavam os joelhos e às vezes, o que sentia para ele cobrava a
forma de uma maré de prazer e dor tão intensamente fundidos que devia conter-se para
não gemer.
Steve estava mais forte a cada dia; cada dia conquistava um novo território,
derrubava toda sua vontade, em outro aspecto de sua vida, era admirável e quase
aterrador observá-lo e ser consciente da força de vontade com que enfrentava a sua
situação. Mostrava-se tão ferozmente controlado e decidido que resultava quase
desumano, mas, ao mesmo tempo, permitia a Jay ver quão humano era. Dependia dela
muito mais do que teria acreditado possível, e a vulnerabilidade que mostrava resultava
muito mais devastadora porque era consciente do inabitual que era nele.
–Me aproxime as muletas –lhe ordenou naquele momento, voltando-se para ela
espectador, como se estivesse esperando um protesto.
Jay apertou os lábios, olhou-o, encolheu-se de ombros e colocou as muletas diante
dele. Se sofresse um retrocesso a culpa seria dele por negar-se a aceitar suas limitações.
–De acordo –disse com calma. – Vá em frente, caia, quebre as pernas outra vez, te
parta a cabeça e passa no hospital uns meses mais. Estou segura de que às enfermeiras
fará muita ilusão.
Steve pôs-se a rir ante seu sarcasmo, uma reação que se fazia mais freqüente à
medida que ia recuperando-se. Contemplava-o como uma amostra de sua própria
recuperação; enquanto estava doente e indefeso, ela tinha evitado lhe negar algo. E o
Steve gostava daquele novo aspecto de sua personalidade. As mulheres passivas não o
atraíam. Jay, em troca, atraía-o em todos os momentos e de todas as maneiras.
–Não cairei –assegurou enquanto se erguia.
Teve que apoiar a maior parte de seu peso nos braços, mas seus pés se moveram
quando lhes ordenou que o fizessem. Com estupidez, era verdade, mas obedeciam as
ordens de seu cérebro.
–E aqui chega cambaleante...! –gritou Jay, emulando uma retransmissão esportiva.
Sua irritação era evidente.
Steve soltou uma gargalhada e cambaleou, mas conseguiu manter-se em pé
agarrando-se as muletas.
–Supõe-se que deveria me guiar, não rir de mim.
–Nego-me te ajudar a que te castigue dessa forma. Se cair, a culpa será só tua.
Nos lábios de Steve apareceu um sorriso e o coração de Jay começou a pulsar a
toda velocidade.
–Ah, pequena –tentou enrolá-la, – não estou me castigando, prometo-lhe isso. Sei
até onde posso chegar. Vamos, me leve até o corredor.
–Não.
Dois minutos depois, Jay caminhava lentamente pelo corredor enquanto Steve
manobrava com as muletas. Ao final do corredor estava um dos vigilantes, Ciente de tudo
e de todos os que passavam por ali. Ocorria o mesmo cada vez que Steve saía de seu
quarto, embora até então não tinha sido consciente de que estava sendo vigiado tão de
perto. Jay sentiu um calafrio quando cruzou o olhar com a do vigilante e este assentiu
educadamente. Por mais tranqüilo que parecesse tudo, a presença daqueles guardas lhe
recordava que Steve estava envolvido em algo altamente perigoso. O estaria pondo sua
amnésia em uma situação de perigo maior? Ele nem sequer sabia que estava ameaçado.
Não era de surpreender que fossem necessários os guardas! Isso a aterrorizava. Fazia
parte da grande zona cinza que Frank não lhe tinha explicado.
–Já é suficiente –disse Steve, e se voltou lentamente.
Girou exatamente cento e oitenta graus e deu dois passos antes de deter-se e voltar
a cabeça para ela.
-Sinto muito -aproximou-se rapidamente a seu lado.
Como teria sabido até onde devia girar? Por que não mostrava mais insegurança em
seus movimentos? Caminhava lentamente, apoiando a maior parte de seu peso nos
braços e mãos, mas parecia completamente seguro. As feridas, não a frustração,
diminuíam o ritmo de seus passos. Não se permitiria renunciar; não parecia considerar
suas feridas como algo de que tivesse que recuperar-se, mas sim como algo que devia
ser conquistado. Estava disposto a dirigir as coisas a sua maneira e a ganhar, não ia se
conformar com menos.
Quando o gesso foi tirado, Jay continuou sendo testemunha de sua determinação
durante os dias que seguiram. Os fisioterapeutas tentavam contê-lo, mas Steve insistia
em seguir seu próprio ritmo. Caminhava durante horas e horas, guiado pela voz de Jay.
No terceiro dia da reabilitação, já tinha prescindido das muletas e as tinha substituído pela
Jay. Sorrindo enquanto lhe rodeava os ombros com o braço, explicou-lhe que pelo menos
ela seria uma superfície branda se caísse.
Tinha ganho peso desde que lhe tinham tirado o tubo da garganta e estava
recuperando forças à mesma velocidade. Jay tinha a sensação de vê-lo melhorar de um
dia para outro. Exceto pelas ataduras que cobriam seus olhos, parecia quase normal, mas
Jay não esquecia as cicatrizes que escondiam os moletons que Frank lhe tinha levado.
Ainda tinha a pele avermelhada das mãos por causa das queimaduras e sua voz não
parecia melhorar. Tampouco sua memória mostrava nenhum sintoma de recuperação.
Não havia chamas de cor nem espionagens de reconhecimento algum. Era como se
tivesse nascido no dia que se abriu caminho através da névoa de sua inconsciência para
responder a sua voz e não existisse um passado antes daquilo.
Às vezes, enquanto o via fazer exercício incansavelmente, tirava o chapéu a si
mesmo desejando que não recuperasse a memória, e então o sentimento de culpa a
devorava. Mas Steve dependia tanto dela naquele momento... E se começasse a
recordar, a intimidade que havia entre eles se desvaneceria. Apesar de que tentava
proteger a si mesmo daquela proximidade, Jay entesourava cada um daqueles momentos
e desejava mais. Estava apanhada em seu próprio dilema e não era capaz de decidir
como devia liberar-se. Podia proteger-se a si mesmo e afastar-se dali, ou podia agarrar-se
a tudo aquilo que pudesse conseguir. Mas não sabia qual das duas opções tomar. O
único que podia fazer era esperar.
O dia que se supunha que tinham que lhe tirar as ataduras dos olhos, Steve
despertou ao amanhecer e esteve percorrendo incansável o quarto. Jay se tinha
apresentado no hospital a primeira hora da manhã e, embora estava tão nervosa como
ele, obrigava-se a permanecer quieta. No final, Steve ligou a televisão e escutou as
notícias da manhã com o cenho franzido.
– Por que demônios não se dá pressa esse maldito médico? –murmurou.
Jay olhou o relógio.
–Ainda é cedo, nem sequer tomaste o café da manhã.
Steve soltou uma maldição e passou a mão pelo cabelo. Ainda o usava muito curto,
mas ao menos cobria a cicatriz que percorria seu crânio. Continuou caminhando, deteve-
se frente à janela e tamborilou com os dedos o batente.
–Faz um dia ensolarado, não é verdade?
Jay olhou para o céu azul.
–Sim, e não faz muito frio. Mas o prognóstico do tempo diz que se esperam nevadas
para o fim de semana.
–Que dia é hoje?
–Vinte e nove de janeiro.
Steve continuou tamborilando com os dedos.
–Aonde vamos?
–Como aonde vamos? –repetiu Jay sem compreender.
–Quando me soltarem. Aonde vamos?
Jay se sentiu como se lhe tivessem dado uma bofetada em pleno rosto ao
compreender que, se não tivesse nenhum problema de visão, Steve sairia do hospital ao
cabo de só umas horas. O apartamento que Frank tinha alugado era pequeno, só tinha
um quarto, mas não era isso o que a assustava. O que aconteceria se ao Frank lhe
ocorresse separá-lo dela? Em uma ocasião Frank tinha comentado que deveria ficar com
o Steve até que este tivesse recuperado a memória, mas não havia tornado a mencioná-
lo depois. Continuaria sendo esse seu plano? E se assim fosse, onde pretendia que
vivesse Steve?
–Não sei onde iremos –respondeu fracamente. –Talvez queiram te enviar a alguma
parte...
–Não acredito que lhes convenha.
Steve se separou da janela. Seus movimentos possuíam a elegância e o poder de
um predador. Jay observou sua silhueta recortada contra a luz da janela e sentiu que lhe
secava a garganta. Era muito mais duro que anos atrás, tanto que quase a assustava.
Mas, ao mesmo tempo, achava-o excitante. Amava-o tanto que lhe doía, e a situação
piorava dia a dia.
Entrou uma enfermeira com a bandeja do café da manhã e piscou os olhos um olho
a Jay.
–Vi que tinha chegado cedo, assim trouxe uma bandeja a mais –entrou com outra
bandeja e sorriu a Jay enquanto esta agradecia. – Hoje é o grande dia –acrescentou
alegremente, – então acho que isto pode ser uma espécie de banquete de celebração.
Steve sorriu.
–Estão desejando desfazer-se de mim?
–Digamos que se comportou como um autêntico anjo. Vamos sentir falta de seu
traseiro, mas enfim, as coisas vêm e se vão.
Um suave rubor cobriu as bochechas do Steve e a enfermeira soltou uma
gargalhada enquanto saía do quarto. Jay riu enquanto arrumava as bandejas.
–Traga até aqui seu maravilhoso traseiro e sente-se para tomar o café da manhã –
lhe ordenou, sem deixar de rir.
–Se você gostar, pode olhá-lo com prazer –a convidou. Voltou-se e levantou os
braços, lhe oferecendo uma excelente vista de suas costas. – Inclusive pode ser que te
deixe tocá-lo.
–Obrigada, mas prefiro comer. Você não tem fome?
–Estou faminto.
Investiram pouco tempo no café da manhã e, muito em breve, Steve estava de novo
caminhando pelo quarto que seu próprio nervosismo fazia parecer menor. Sua
impaciência era evidente. Tinha passado muitas semanas convexo, cego e
completamente imóvel. Já tinha recuperado a mobilidade e só faltavam uns minutos para
que recuperasse também a vista. Os médicos estavam seguros do êxito da operação,
mas até que não lhe tirassem as ataduras e pudesse ver realmente, ele não acreditaria.
Eram a espera e a insegurança que o devoravam. Queria ver. Queria saber que aspecto
tinha Jay; queria ser capaz de lhe pôr um rosto a sua voz. Embora nunca pudesse voltar a
ver, necessitava ao menos ver seu rosto. Cada uma das células de seu corpo a conhecia,
podia sentir sua presença. E embora Jay havia descrito a si mesmo, precisava ter seu
rosto gravado na mente.
Elevou a cabeça como um animal receoso quando ouviu que a porta se abria. O
próprio cirurgião lhe comentou rindo:
–Quase esperava que tivesse tirado você mesmo as ataduras.
–Não queria lhe roubar esse prazer –respondeu Steve.
Jay estava completamente quieta. A tensão cresceu em seu interior quando viu que
o coronel Lunning, Frank e uma das enfermeiras entravam no quarto. Frank levava uma
bolsa de plástico em que figurava o nome de umas lojas de departamentos. Deixou-a em
cima da cama. Sem necessidade de perguntar, Jay soube que continha roupa para Steve
e lhe agradeceu que tivesse pensado nisso.
–Sente-se aqui, de costas à janela –disse o cirurgião, conduzindo o Steve para uma
cadeira.
Quando este esteve sentado, o cirurgião tomou um par de tesouras e cortou a gaze.
–Incline um pouco a cabeça –lhe pediu.
Jay apertava as mãos com tanta força que as unhas lhe cravavam nas palmas.
Sentia uma forte dor no peito. Estava vendo pela primeira vez o rosto do Steve sem as
gazes que cobriam suas têmporas, suas sobrancelhas, parte de seus maçãs do rosto e a
ponte de seu nariz. Antes era um homem atraente, mas possivelmente já não o fosse.
Seu nariz não era de tudo reto e lhe tinham deixado a ponta ligeiramente mais
pronunciada que antes da explosão. Suas maçãs do rosto pareciam mais proeminentes.
De fato, todo seu rosto parecia mais anguloso que antes.
O cirurgião foi tirando as gazes lentamente e a seguir limpou os olhos do Steve.
–Fechem as cortinas –pediu suavemente.
A enfermeira se aproximou da janela e correu as cortinas para deixar o quarto às
escuras. Depois acendeu a luz da cabeceira da cama.
–Muito bem, agora já pode abrir os olhos. Lentamente, deixe que vão acostumando-
se à luz. Depois, pestaneje até que seja capaz de fixar o olhar.
Steve abriu os olhos e os fechou com força. Voltou a tentá-lo.
–Droga, que luz forte –disse.
E então, abriu os olhos por completo, pestanejou até esclarecer visão e se voltou
para Jay.
Esta ficou completamente gelada. Era como estar vendo os olhos de uma águia,
encontrando-se com o olhar feroz de um predador. Aqueles eram os olhos do homem que
amava com uma intensidade quase dolorosa. O terror lhe gelava o sangue. Ela recordava
uns olhos castanhos, com um brilho aveludado, mas aqueles eram uns olhos claros que
reluziam como o âmbar. Eram os olhos de uma águia.
Aquele era o homem que amava, mas era um homem que não conhecia.
Aquele homem não era Steve Crossfield.
Capítulo 7
Seu coração deixou de pulsar. Jay. O rosto se adequava perfeitamente a aquele
nome, a sua voz, à delicadeza de suas carícias e a sua fragrância esquiva. A descrição
que Jay tinha feito de si mesma era precisa, mas mesmo assim, estava longe da
realidade. A realidade era que tinha uma espessa cabeleira da cor do mel escuro, os
olhos de um azul profundo como o do mar e uma boca grande, suave e vulnerável. Deus,
que boca, era uma boca de lábios vermelhos e cheios, imensamente sedutora. Era a boca
mais apaixonada que tinha visto em sua vida e lhe bastava pensar em beijá-la ou em que
aqueles lábios acariciassem seu corpo para que lhe doessem as vísceras. Jay
permanecia imóvel, com o rosto completamente branco exceto pelos poços profundos de
seus olhos e sua exótica e maravilhosa boca. Olhava-o como se estivesse fascinada,
como se não pudesse afastar o olhar de seu rosto.
–O que vê? –perguntou-lhe o cirurgião. – Vê halos de luz, lhe esfuma a silhueta dos
objetos?
Sem responder, Steve se levantou com o olhar fixo em Jay. Jamais se cansaria de
olhá-la. Deu quatro passos para ela e Jay abriu os olhos como pratos em meio daquele
semblante cada vez mais pálido. Steve tentou ser delicado enquanto a tomava pelos
braços, convidando-a a levantar-se, mas a excitação era cada vez mais forte e sabia que
lhe estava cravando os dedos em sua delicada pele. Jay murmurou algo incoerente. Ele
cobriu sua boca. A erótica sensação de acariciar seus lábios cheios lhe fez gemer de
prazer. Queria ficar a sós com ela. Jay tremia entre seus braços e se agarrava a ele como
se tivesse medo de cair.
–Bom, parece que seu sentido da orientação não sofre nenhum problema –
comentou Frank com ironia.
Steve elevou a cabeça sem deixar de estreitar Jay contra ele. Ela continuava
tremendo violentamente.
–É que estão bastante claras suas prioridades –interveio o coronel Lunning.
Sorria e olhava a seu paciente com profunda satisfação. Semanas atrás, tinha sérias
dúvidas sobre a possível recuperação de Steve. E vê-lo ali naquele momento era quase
milagroso. Ainda não estava completamente recuperado, ainda tinha que recuperar todas
as suas forças e não havia nenhum sintoma que indicasse que fosse recuperar a
memória. Mas estava vivo e em caminho de conseguir uma saúde de ferro.
–Vejo tudo estupendamente –respondeu Steve com uma voz mais rouca que o
habitual enquanto percorria com o olhar o quarto que se converteu em seu lar durante
mais dias dos que gostava de recordar.
Mas inclusive gostava do aspecto do quarto. Durante sua convalescença, tinha
exercitado a disciplina de recrear tudo em sua mente para fazer uma idéia das relações
espaciais e poder saber em todo momento o lugar do quarto em que se encontrava. E sua
imagem mental tinha sido incrivelmente correta. Embora as cores o surpreendiam um
pouco; na realidade não tinha imaginada cores, só presencia físicas.
O cirurgião se esclareceu garganta.
–Poderia sentar um momento, senhor Crossfield?
Steve soltou Jay. Esta se sentou, trêmula, agarrando-se aos braços da cadeira com
tanta força que empalideceram seus nódulos. Equivocaram-se! Aquele homem não era
Steve Crossfield! ficou muda da impressão, mas enquanto observava o cirurgião
examinando o Steve, ou como fosse que se chamasse, recuperou o controle e abriu a
boca para explicar o terrível engano que tinham cometido.
Mas então Frank se moveu, e inclinou a cabeça para observar o cirurgião e aquele
movimento apanhou a atenção de Jay. O sangue lhe gelou nas veias enquanto surgia em
sua mente um só pensamento: se lhes dissessem que tinham cometido um engano, que
aquele homem não era seu ex-marido, deixariam de utilizá-la. Afastariam ao que ela
acreditava Steve de seu lado e não voltaria a vê-lo.
Começou a tremer convulsivamente. Ela amava aquele homem. Não sabia quem
era, mas o amava. E não podia renunciar a ele. Precisava pensar nisso, mas não podia
fazê-lo naquele momento. Precisava estar sozinha, longe daqueles olhos vigilantes, para
poder enfrentar-se ao impacto de saber que Steve... Ou, Deus, Steve estava morto! E
aquele homem era um desconhecido.
Levantou-se tão bruscamente que a cadeira se cambaleou. Cinco rostos
surpreendidos se voltaram para ela enquanto Jay se dirigia para a porta como se fosse
uma prisioneira tentando escapar.
–Eu... necessito de um café –conseguiu balbuciar com voz tensa.
Abriu a porta e saiu, sem fazer caso da chamada do Steve.
Não, não era Steve. Não era Steve. Aquele simples fato era devastador.
Correu para a sala de espera e se encolheu em um de seus incômodos assentos.
Sentia-se fria, com o cérebro intumescido e ligeiramente enjoada, como se estivesse a
ponto de vomitar.
Quem era aquele homem? Tomou ar várias vezes e tentou pensar com coerência.
Não era Steve, de modo que tinha que ser o agente pelo que Frank estava tão
preocupado. Isso significava que estava diretamente envolvido na operação, que era o
único homem que sabia exatamente o que tinha acontecido... ou o seria se recuperava a
memória. Correria perigo se alguém, possivelmente a pessoa ou as pessoas que tinham
provocado aquela explosão que tinha estado a ponto de matá-lo, se inteirasse de que
estava vivo? Até que não recuperasse a memória, não poderia reconhecer a seus
inimigos. Seu melhor amparo naquele momento era esconder-se sob a falsa identidade
que lhe tinham atribuído. Jay não podia pô-lo em um perigo maior. E tampouco podia
renunciar a ele.
Não era correto fingir que aquele homem era alguém que não era. Além disso,
guardando seu segredo estaria traindo o Frank, um homem o que apreciava. Mas, sobre
tudo, estaria traindo ao Steve... Droga! Odiava chamá-lo desse modo, mas de que outra
forma podia chamá-lo? Tinha que continuar pensando nele como Steve. Estava traindo-o
ao lhe atribuir uma vida que não era a sua, possivelmente inclusive estivesse impedindo
sua completa recuperação. E, se alguma vez recuperasse a memória, jamais a perdoaria.
Saberia que lhe tinha mentido, que o tinha obrigado a viver uma mentira colocando-o no
lugar de seu ex-marido. Mas não podia pô-lo em uma situação de risco. Simplesmente,
não podia. Amava-o muito. Por mais que lhe custasse, tinha que mentir para protegê-lo.
–Jay.
Era sua voz. Aquela voz grave e descarnada que a perseguia pelas noites em seus
sonhos mais doces. Voltou a cabeça para ele e o olhou. Ainda estava tão impactada que
não era capaz de dissimular sua impressão. Amava-o. E se amar o Steve sabendo que
não podia entregar-se a ele já tinha sido suficientemente ruim, como poderia amar a um
homem cuja vida consistia em enfrentar-se ao perigo? Tinha estado caminhando o beira
de um precipício emocional e naquele momento estava caindo no vazio sem poder fazer
nada para impedi-lo.
O suposto Steve enchia a porta da sala de espera. Depois de saber que não era seu
ex-marido, Jay percebia claramente suas diferenças. Era um pouco mais alto que Steve,
tinha os ombros mais largos e o peito mais musculoso. Seu queixo era mais quadrado,
seus lábios mais cheios. Deveria haver-se fixado antes em sua boca, que não tinha
estado submetida às mudanças da cirurgia plástica. Uma estranha dor a alagou ao
compreender que nunca saberia o aspecto que tinha antes aquele homem.
–O que aconteceu, querida? –perguntou ele em voz baixa; caminhou até ela e
procurou suas mãos.
Jay tragou saliva. Os tremores continuavam sacudindo seu corpo. Inclusive
agachado, era mais alto que ela. A sensação de poder, de perigo, era assustadora.
Quando tinha os olhos enfaixados, ficava amortecida de algum jeito, mas naquele
momento, com a determinação resplandecendo naqueles olhos de cor âmbar, Jay sentia
toda a força de sua personalidade.
–Estou bem –conseguiu dizer. – É só que... foi tudo muito repentino. Estava tão
preocupada...
Steve lhe soltou as mãos e começou a lhe acariciar os braços.
–Eu desejava tanto poder te ver que não tive tempo de me preocupar –murmurou
Steve. – Me disse que tinha os olhos azuis, mas não me havia dito nada de sua boca.
Tinha o olhar fixo em sua boca. A Jay começaram a tremer os lábios.
–O que tinha que te dizer de minha boca?
–Quão erótica é –sussurrou, e se inclinou sobre ela.
Daquela vez foi um beijo duro, exigente, que a obrigou a ceder ante o arremesso, a
abrir os lábios para permitir o acesso da língua ao interior de sua boca. Apesar de que
começaram a soar os timbres de alarme, Jay se estremeceu de prazer.
Enquanto estava se recuperando e necessitava de seu apoio, Steve tinha se
mostrado suplicante, era ele quem pedia seus beijos e a intimidade de seu contato. Mas
já não lhe estava pedindo nada e Jay era consciente de que se esteve contendo durante
muito tempo. Desejava-a e tinha ido procurá-la com intenção de conseguir o que queria.
Steve se levantou e a segurou para que o imitasse sem perder em nenhum momento
o contato de seus lábios. Beijava-a com a intimidade de um homem que pretendia fazer
amor, afrouxando as rédeas do controle, exigindo mais. Jay se agarrava a seus ombros;
seus sentidos enlouqueciam ante a dura pressão daquele corpo. Steve movia os quadris
procurando os de Jay e gemeu quando seu sexo cheio encontrou a quente vértice que
escondia o dela. Jay poderia ter gemido também se tivesse sido capaz de respirar. Um
calor selvagem corria por suas veias, tentando-a a esquecer-se de tudo, salvo da
urgência de satisfazer a ofegante excitação do Steve.
Entraram um homem e uma mulher na sala de espera. O homem passou por eles
limitando-se a olhar os de relance, mas a mulher se deteve e se ruborizou violentamente
antes de desviar o olhar e acelerar o passo. Steve elevou a cabeça e afrouxou a pressão
de suas mãos enquanto um sorriso aparecia em sua boca.
–Acredito que deveríamos ir para casa –disse.
O pânico voltou a assaltá-la. Casa? De verdade esperavam que o levasse a esse
diminuto apartamento que tinha estado utilizando durante os últimos dois meses? Ou o
separariam definitivamente dela para que terminasse o processo de recuperação em
qualquer outra parte?
Abandonaram a sala de espera e encontraram o Frank apoiado contra a parede do
quarto, esperando-os pacientemente. E endireitou-se e sorriu, mas olhava a Jay com
expressão compassiva.
–Encontra-se melhor?
Jay tomou ar.
–Não sei. Me diga o que vai acontecer agora e certamente poderei te dizer como me
sinto.
Steve lhe rodeou a cintura com o braço.
–Não se preocupe, querida. Não vão me enviar a nenhuma parte sem você, não é
verdade, Frank? –formulou a pergunta amavelmente, mas suas palavras escondiam uma
determinação de aço e olhava ao Frank com os olhos entrecerrados.
Frank o olhou com ironia.
–Jamais me teria ocorrido fazer algo assim. Voltemos para ao quarto e
conversaremos.
Uma vez no quarto, Frank se aproximou da janela, abriu as cortinas e pestanejou
ligeiramente ante a luz do sol.
–Em primeiro lugar, terá que deixar que o cirurgião termine de examinar a vista –lhe
disse, e olhou ao Steve. – Na semana que vem terão que te fazer uma revisão, mas isso
já o arrumaremos.
Steve fez um gesto de impaciência que Frank interpretou perfeitamente; elevou as
duas mãos.
–Já estou me ocupando disso. Nós gostaríamos de te manter a salvo, mas que, ao
mesmo tempo, pudéssemos acessar facilmente a ti. Se estiver de acordo, pensamos te
transferir a uma casa situada no Colorado.
A Jay dava voltas a cabeça. Sentou-se bruscamente. Colorado? Durante os dois
últimos meses, sua vida parecia haver se voltado do reverso, de modo que acreditava que
uma mudança tão drástica não a afetaria. Mas a afetava. Como ia viver no Colorado?
Então olhou ao Steve e soube que iria a qualquer parte com tal de poder estar a seu lado.
Era uma ironia. Quando tinha se casado, o mais importante para ela era contar com
algum tipo de estabilidade para poder construir sua relação com o Steve, mas seu
matrimônio não tinha sobrevivido. E naquele momento, quando tinha que fingir que
aquele homem era Steve, estava disposta a afastar-se de todos e tudo o que conhecia
com tal de estar com ele. Uma dolorosa tristeza alagou seu coração porque aquilo
indicava claramente que, embora tivesse querido fazê-lo, não tinha amado de verdade ao
autêntico Steve Crossfield. Steve tinha se afastado dela, tinha continuado solitário seu
caminho e tinha morrido sem que ninguém estivesse realmente perto dele.
–A Denver? –aventurou Steve.
–Não. A população mais próxima está a quarenta quilômetros da rodovia. É um lugar
tranqüilo, solitário, onde ninguém poderá te pressionar.
–São muito amáveis ao tomar tantas moléstias só para que possa lhes contar o que
sei quando recuperar a memória –respondeu Steve, observando ao Frank com um brilho
duro no olhar.
Este soltou uma gargalhada, pensando que algumas coisas nunca mudariam.
Inclusive sem ter recuperado a memória, aquele agente era suficientemente ardiloso para
ter encaixado as peças do difícil quebra-cabeças.
–Por que não vai ao apartamento e começa a fazer as malas? –sugeriu a Jay. – Se
quiser ir, claro.
–Ela virá comigo –respondeu Steve com rapidez, e cruzou os braços. – Se ela não
vier, eu não penso ir também.
Jay assentiu, desesperada como estava para ter uma oportunidade de ficar a sós
para pensar. Saiu do quarto sem olhar a nenhum dos dois homens, temendo que
pudessem ver o terror que refletiam seus olhos.
Steve olhou ao Frank em silêncio durante alguns segundos antes de murmurar mal-
humorado:
–Havia me dito que não estava em perigo. Por que preciso ir a um lugar seguro?
–Pelo que sabemos até agora, não está em uma situação de perigo...
–Deixa de estupidez –o interrompeu Steve. – Era um agente. Sei que tudo isto... –
assinalou o hospital com a mão – não o têm feito porque o governo tenha um grande
coração. Os guardas da porta não fazem parte da decoração, e não gastariam tanto
dinheiro me escondendo a não ser que alguém estivesse me ameaçando e além disso
necessitam desesperadamente da informação que possuo.
Frank o olhou com sincero interesse.
–Como sabia que havia alguém vigiando seu quarto?
–Ouvia-os –respondeu Steve secamente.
O que fazer a seguir? Frank olhou ao homem que tinha sido seu amigo durante uma
década perguntando-se o que podia lhe contar. Não muito, disso estava condenadamente
seguro. Até que o homem não derrotasse ao Piggot, aquela farsa teria que continuar
porque era o melhor amparo frente a qualquer ataque contra sua vida. Steve sabia muito
sobre eles para correr riscos quanto a sua segurança e, para que a farsa fosse completa,
teria que incluir nela a Jay. O Homem não corria nenhum risco nem com seus agentes
nem com seus amigos, e Steve era ambas as coisas.
–Tem razão –disse Frank. – É um agente. Um agente altamente preparado e
pensamos que a informação que conseguiu em sua última missão é crítica.
–Por que uma casa de segurança? –voltou a perguntar Steve sem renunciar a uma
resposta.
–Porque a pessoa que tentou te fazer saltar em pedacinhos desapareceu. E até que
não o encontremos, queremos estar seguros de que está a salvo.
A fúria acendeu os olhos do Steve como um relâmpago de luz.
–E colocou Jay nisto?
Frank o olhou com receio, consciente de quão rápido podia chegar a extrair uma
conclusão.
–Piggot não sabe que houve alguém que sobreviveu à explosão. E não queremos
correr nenhum risco contigo.
Os olhos de Steve voltaram a relampejar quando ouviu mencionar ao Piggot.
–Esse Piggot, como se chama?
–Geoffrey.
Voltou a aparecer aquele brilho em seu olhar e Frank o observou atentamente,
perguntando-se se a menção daquele nome poderia desencadear alguma lembrança.
Mas se assim fosse, Steve o guardou para si.
–Quero ver o relatório que têm sobre ele.
–Verei se posso conseguir uma autorização.
–E agora me diga, Frank, por que têm que colocar Jay nisto? Ela não sabe que sou
um agente, não é verdade?
–Não. A trouxemos aqui para que te identificasse. Assim de simples. E uma vez que
esteve aqui, você respondeu a sua voz de uma forma tão positiva que os médicos
decidiram que poderia te ajudar tê-la perto. Então ela ficou.
Isso era verdade, pelo menos em grande parte. Frank esperava que Steve não
fizesse muitas mais pergunta. Havia-lhe dito tudo o que podia sem contar com a
autorização de seu superior.
Steve se esfregou o queixo enquanto analisava o que Frank acabava de lhe contar.
Se houvesse sentido que sua presença estava pondo Jay em perigo, teria se afastado
dela imediatamente, mas tinha a sensação de que Frank era sincero. Pensava que
estariam seguros naquela casa de segurança. O fator decisivo foi a idéia de viver em um
lugar isolado com Jay, eles dois sozinhos. Dessa forma teria outra oportunidade. Poderia
voltar a aprender o que Jay gostava e o que a fazia se zangar. Seria como começar de
novo. E quando recuperasse todas as suas forças, permaneceriam durante as frias
manhãs de Avermelhado deitados na cama, fazendo amor até que seus corpos
estivessem ensopados de suor e Jay lhe tivesse entregue toda a fera paixão que podia
sentir dentro dela. Jay apresentava ao mundo uma fachada serena e controlada, mas,
possivelmente porque não tinha podido vê-la e tinha tido que confiar em outros sentidos,
Steve tinha chegado a perceber a profundidade dos sentimentos que se escondiam atrás
daquele autodomínio. Possivelmente teria sido suficientemente estúpido para permitir que
escapasse de seu lado em uma ocasião, mas não pensava permitir que voltasse a
afastar-se de novo.
–De acordo –disse, exalando lentamente. – Então iremos a essa casa. Com que
medidas de segurança contamos?
–Vidros a prova de balas e portas blindadas. A cabana está bastante isolada, no alto
de uma pradaria. Não há estradas que cheguem até ali, só se pode acessar em um
veículo quatro por quatro. A cabana conta com um gerador de eletricidade e uma antena
parabólica para a comunicação por rádio e computador.
Steve adotou uma expressão distante e concentrada enquanto considerava aquela
informação.
–Há algum sistema de segurança ativo, ou todos são de caráter preventivo?
–Só conta com medidas de caráter preventivo.
–Por que não há sensores que detectem o movimento ou as mudanças de
temperatura?
–Para começar, essa cabana é tão segura que nem sequer é necessário. E há tanta
vida silvestre naquela zona que estariam saltando constantemente os alarmes.
–Até que ponto é inacessível esse lugar?
–Só há um atalho que leva até a casa, e acredito que inclusive exagero ao chamá-lo
atalho. Sai da cabana, cruzamento a pradaria e desce pela montanha antes de dar a uma
pista. Depois terá que percorrer uns dez quilômetros por essa pista até chegar à primeira
estrada asfaltada.
–Nesse caso, a instalação de um laser no caminho poderia nos alertar da chegada
de visitas. E cobrindo só uma parte do caminho, eliminaríamos a possibilidade de que os
animais da zona estivessem ativando constantemente os alarmes.
Frank sorriu.
–Suponho que é consciente de que há muitas possibilidades de que qualquer coelho
atravesse o raio e ative o alarme, não? Mas de acordo, instalaremos um sistema de
alarme por laser. Prefere um alarme visual ou sonoro?
–Sonora, mas que não seja muito escandalosa. E também quero um bip para
quando tiver que abandonar a casa.
–Para alguém que tem amnésia, lembra-te de um montão de coisas –murmurou
Frank enquanto tirava uma caderneta do bolso interior de sua jaqueta e começava a
tomar notas.
–Lembro os nomes de todos os chefes de estado e de quase todos os países do
mundo também –respondeu Steve. – Tive muito tempo para pensar, para ir encaixando
as diferentes peças do quebra-cabeças e ir classificando tudo o que sei. Perdi quase toda
a informação pessoal, mas continuo sabendo muitas coisas relacionadas com meu
trabalho.
–Seu trabalho significava muito para ti. Quando se tem uma relação assim com o
trabalho, este ocupa tanto espaço que a vida pessoal virtualmente desaparece.
–É o que ocorre a você?
–Ocorria-me antes. Agora não.
–Como te viu envolvido em tudo isto? Você é agente do FBI e estou
condenadamente seguro de que esta operação não tem nada que ver com seu
departamento.
–Nisso tem razão. Terá que mover muitos fios, mas são muito poucas as pessoas
que têm o poder para dirigi-los.
–Muito poucas. Então sou um agente da RECUA?
Frank sorriu.
–Não –respondeu com calma. – Não exatamente.
–Que demônios significa isso? Ou sou da RECUA ou não sou da RECUA, não
acredito que haja muitas mais alternativas.
–É membro da Cia. Não posso te dizer nada mais, salvo que tudo o que faz é
completamente legal. Quando recuperar a memória compreenderá por que não posso te
dar mais informação.
–De acordo.
Steve encolheu de ombros, mostrando sua conformidade. Na realidade não
importava, até que não recuperasse a memória, aquela informação não lhe serviria de
nada.
Frank mostrou a bolsa que tinha levado com ele.
–Comprei um pouco de roupa para que possa te trocar, mas antes me deixe que
peça ao cirurgião que volte para terminar de te examinar; depois, acredito que lhe darão
alta.
–Precisarei comprar mais roupa antes de ir ao Colorado. Por certo, onde vivia antes?
–Tinha um apartamento em Maryland. Encarreguei que empacotassem sua roupa e
a levem ao avião, mas não te servirá até que não tenha ganho um pouco de peso. Até
então, terá que comprar roupa nova.
Steve sorriu de orelha a orelha, sentindo-se repentinamente animado.
Jay permanecia sentada na cama do apartamento que tinha estado utilizando
durante os últimos dois meses. O coração lhe pulsava com força e sentia calafrios lhe
percorrendo continuamente as costas. As implicações, as complicações de sua situação a
aterrorizavam.
De repente, tinha compreendido o que estava inquietando-a a dois meses, o que não
tinha sido capaz de precisar até então. Quando a tinham levado até ali e lhe tinham
pedido que identificasse ao homem que jazia na cama, não tinha sido capaz de afirmar
rotundamente que se tratava do Steve Crossfield. Então, Frank lhe havia dito que o ferido
tinha os olhos castanhos e ela tinha se apoiado naquele dado todo o processo de
identificação, porque Steve tinha os olhos castanhos com um brilho aveludado.
Os olhos da Chrissy. Provavelmente, para um homem, uns olhos castanhos eram
simplesmente uns olhos castanhos. Ao Frank nunca lhe teria ocorrido falar de uns olhos
escuros como o chocolate, ou uns olhos castanho claro, ou uns olhos de cor âmbar.
Jay levou as mãos às têmporas e fechou os olhos com força. Provavelmente, Frank
devia saber a cor de olhos de seu próprio agente e certamente também sabia que Steve
tinha os olhos castanhos, de maneira que tinha que ter sido consciente de que Jay não
podia apoiar sua identificação em uma simples cor de olhos. E, entretanto, aquele tinha
sido o dado que lhe tinha proporcionado. Naquele momento, deu-se conta da delicadeza
com que Frank a tinha manipulado para que terminasse declarando que aquele homem
devia ser Steve Crossfield. E ele tinha que saber perfeitamente que havia pelo menos
cinqüenta por cento de probabilidades de que não fosse Steve. Mas por que teria feito
algo assim?
A única resposta que lhe ocorria, e que além de tudo a aterrava, era que Frank tinha
sabido durante todo aquele tempo que o homem que estava hospitalizado era um agente
do governo, e não Steve. Tinham-lhe atribuído a identidade do Steve e, para dar mais
consistência àquela usurpação de identidade, fizeram com que sua ex esposa a
confirmasse e depois a tinham colocado em uma situação que teria confundido a qualquer
um.
De modo que Steve, o verdadeiro Steve, estava morto, e aquele agente tinha
assumido sua identidade... por uma questão de segurança?
Tudo encaixava. A cirurgia plástica para mudar seu rosto, as ataduras nas mãos
para evitar que tirassem as impressões digitais. Lhe teriam operado também as
impressões digitais? Era uma idéia terrível; teriam prejudicado deliberadamente sua
laringe para que lhe mudasse a voz? Não, certamente não. Não podia acreditar em uma
coisa assim. Todos os médicos tinham lutado duramente para lhe salvar a vida e Frank
estava muito preocupado por ele. Coisa que não lhe surpreendia. Certamente Frank era
amigo daquele homem!
Mas a amnésia era real? Ou era fingida para não ter que recordar nenhum detalhe
de sua suposta vida em comum? Sim, a amnésia podia ser uma desculpa muito
conveniente.
Mas ela tinha que acreditar que aquela amnésia era real se não queria terminar
voltando-se louca. Tinha que acreditar que Steve estava tão à margem de tudo o que
estava ocorrendo como ela, possivelmente inclusive mais. E Frank lhe tinha parecido
sinceramente aborrecido quando o coronel Lunning lhes tinha falado pela primeira vez da
amnésia.
De maneira que estava como no princípio. Se dissesse ao Frank que sabia que
Steve não era o verdadeiro Steve, o jogo terminaria e não poderiam seguir utilizando-a.
Ela era uma tela, a prova irrefutável de que o homem que tinha sobrevivido à explosão
era Steve Crossfield.
Tinha que seguir adiante com aquele engano e continuar fingindo que aquele era
Steve porque o amava. Apaixonou-se por ele inclusive antes de conhecer seu aspecto;
apaixonou-se por sua vontade irredutível, de sua determinação de não entregar-se à dor,
de sua contínua luta. Apaixonou-se por sua capacidade de superar aquele processo de
recuperação sem uma só queixa. Exceto pela frustração que lhe provocava a falta de cor,
jamais tinha se derrubado. Jay tinha se apaixonado por aquele homem em um momento
em que estava mostrando os traços mais irredutíveis de seu caráter, sem nenhuma das
capas que acrescentavam os processos de socialização.
Não podia renunciar a ele; mas tampouco podia considerá-lo algo dele. Estava
apanhada na teia de aranha conformada por aquelas estranhas circunstâncias, igual a
ele. Steve confiava nela, mas ela se via obrigada a lhe mentir sobre um ponto tão básico
como sua própria identidade. Conhecia aquele homem, sim, mas não sabia nada de sua
vida. Deus santo, e se fosse casado?
Não, não podia estar casado. Fosse qual fosse o jogo que estavam jogando, estava
segura de que não seriam capazes de dizer a uma mulher que tinha enviuvado para
poder lhe atribuir a seu marido uma nova identidade. Simplesmente, Jay não podia
acreditar que Frank fosse capaz de algo assim. Mas podia haver uma mulher na vida do
Steve, uma mulher a que ele amasse e que a sua vez o quisesse embora não estivessem
casados. Haveria alguma mulher esperando-o e sofrendo pelo tempo que estava durando
seu desaparecimento? Temendo possivelmente que não voltasse?
Jay se sentia doente: suas únicas opções eram igual de más, todas significariam
pura tortura.
Podia lhe dizer a verdade e perdê-lo, além de, muito possivelmente, expô-lo a um
grande perigo, ou podia lhe mentir para protegê-lo. Pela primeira vez em sua vida, amava
a alguém com toda a força de seu coração, sem contenção alguma, e seus sentimentos a
impulsionavam para a única opção que podia tomar. Precisamente porque o amava, o
único que podia fazer era protegê-lo, por mais que isso lhe custasse.
Ao final, levantou-se e colocou sua roupa desordenadamente na mala, sem
preocupar-se de que pudesse enrugar-se. Dois meses atrás, encontrava-se em um
labirinto de espelhos, sem saber se os reflexos que via eram uma versão precisa de si
mesmo ou uma ilusão cuidadosamente construída. Pensou em seu moderno apartamento
de Nova Iorque e no muito que tinha sofrido ante a perspectiva de perdê-lo quando ficou
sem trabalho; de repente, era incapaz de recordar por que era tão importante para ela.
Sua vida inteira estava desbaratada, tinha começado a girar ao redor de um novo eixo.
Steve era o centro de sua vida e tinham deixado de sê-lo seu apartamento, o trabalho ou
a certeza de que terei que lutar para ganhar. Depois de anos de duro trabalho, estava
atirando tudo pela amurada pela simples razão de que queria estar com ele, e não havia
arrependimento nem momentos de nostalgia daquela vida. Amava-o. Amava o Steve, que
na realidade não era Steve. Mas a quem quer que fosse, amava-o.
Procurou uma caixa e guardou nela alguns objetos pessoais, como os livros e as
fotografias que levou de Nova Iorque. Levou menos de uma hora em preparar-se para
partir para sempre.
Enquanto guardava as coisas no carro, olhou cuidadosamente a seu redor,
perguntando-se se alguma daquelas pessoas que na realidade pareciam estar pendentes
só de suas coisas estariam na realidade vigiando-a. Possivelmente estivesse voltando-se
paranóica, mas tinham acontecido muitas coisas para dar nada por certo, nem sequer a
aparência de normalidade. Essa mesma manhã, tinha cruzado o olhar com uns olhos
ferozes e dourados e se deu conta de que tudo o que tinha passado durante os dois
meses anteriores era uma áspera mentira. Tinham-lhe arrancado as ataduras dos olhos e
se converteu em uma mulher receosa.
De repente, sentiu a urgente necessidade de voltar a estar com ele. A insegurança a
fazia desejar desesperadamente sua companhia. Steve já não era um paciente que
necessitava de seus cuidados, a não ser um homem que, apesar de ter perdido a
memória, conhecia muito melhor que ela aquela realidade. A intuição e as reações de
Steve, que tanto a tinham intrigado, explicavam-se de repente por si mesmos, igual à
amplitude de seus conhecimentos sobre o mundo da política. Tinha perdido a memória,
mas continuava tendo a mesma preparação de sempre.
Frank e Steve estavam esperando-a pacientemente no quarto do hospital. Jay
conseguiu saudá-los com um sorriso; seus olhos voaram imediatamente para Steve. Este
se tinha posto uma calça cáqui e uma camisa branca arregaçada até os cotovelos.
Apesar do magro que estava, continuava transmitindo uma impressão de poder. E, uma
vez desaparecidas as ataduras de seus olhos, o último que parecia era uma pessoa
necessitada de cuidados.
Steve a percorreu com o olhar da cabeça aos pés, entrecerrando os olhos com uma
carga de sexualidade tão antiga como o mundo. Jay se sentiu como se estivesse
acariciando todo seu corpo, uma sensação que conseguiu assustá-la e excitá-la ao
mesmo tempo.
Steve se levantou lentamente, aproximou-se de seu lado e deslizou o braço por sua
cintura em um gesto indiscutivelmente possessivo.
–Chegou muito rápido. Não deve ter guardado muitas coisas na mala.
–A verdade é que não se pode dizer que tenha me esforçado muito fazendo as
malas, guardei tudo de qualquer jeito.
–Não tinha por que ter pressa. Não pensava ir a nenhuma parte sem você –
respondeu Steve, arrastando as palavras.
–Em todo caso, os dois terão que ir às compras –acrescentou Frank. – Eu não tinha
pensado nisso, mas Steve comentou que nenhum dos dois têm roupa apropriada para o
inverno do Colorado.
Jay olhou ao Frank, fixou o olhar em seus olhos claros e serenos, em seu amistoso
rosto. Durante aqueles dois meses, tinha sido uma rocha em que apoiar-se. Frank fazia
tudo o que estava em sua mão para que as coisas lhe resultassem mais fáceis, para que
se sentisse cômoda. E durante todo aquele tempo, tinha estado lhe mentindo. Inclusive
sabendo-o, não podia acreditar que tivesse outra razão para isso que tentar proteger o
Steve. E por isso o perdoava por completo. Ela estava disposta a fazer o mesmo, de
modo que o que podia argumentar contra ele?
–Não é necessário que vamos às compras aqui – disse Steve. – Nem sequer em
Denver. Se formos à cidade, terminaremos comprando o que qualquer vendedor de uma
loja de departamentos considere que é a moda para este inverno. Será melhor que
paremos em qualquer loja de alguma cidade média, embora procurando uma que não
esteja muito perto da cabana. Possivelmente em alguma cidade situada a uns cinqüenta
quilômetros dali.
Frank assentiu ante sua implacável lógica, e também ante o tom autoritário que
começava a adquirir a voz de Steve. Estava tomando as rédeas da situação apesar de
que ninguém esperava que o fizesse. A amnésia não tinha alterado os principais traços
de seu caráter e Steve era um perito em logística. Sabia perfeitamente o que teria que
conseguir e como teria que fazê-lo.
Jay não mostrou surpresa alguma ante aquele tipo de precauções. Seu olhar
permanecia sereno. Depois de ter tomado uma decisão, estava perfeitamente preparada
para algo que ocorresse.
–Necessitaremos de armas? –perguntou. – Afinal, vamos estar em um lugar muito
solitário.
Jay odiava as armas e a violência, mas ao imaginar-se vivendo em um lugar tão
isolado do mundo via as coisas de maneira diferente.
Steve baixou o olhar para ela e esticou o braço ao redor de sua cintura. Ele já falara
das armas com o Frank.
–Não seria uma má idéia contar com um rifle.
–Terá que me ensinar a atirar. Jamais agarrei uma pistola –comentou Jay.
Frank olhou a hora.
–Farei uma ligação e iremos. Para que quando chegarmos ao aeroporto, o avião já
estará preparado.
–De que aeroporto sairemos?
–Do nacional. Voaremos até o Colorado Springs e faremos o resto do trajeto de
carro.
Satisfeito com o desenvolvimento dos acontecimentos, Frank foi fazer aquela
ligação. Na realidade fez duas ligações. Uma ao aeroporto, e outra ao Homem para pô-lo
à par de todo o ocorrido.
Capítulo 8
Depois de uma série de pequenos atrasos, era já fim de tarde quando o avião
decolou do aeroporto de Washington; o sol começava a ocultar-se no pálido céu invernal.
Era impossível que chegassem à cabana aquela noite, de modo que Frank fazia os
acertos necessários para que pernoitassem em Colorado Springs. Jay ia sentada ao lado
da janela, com os músculos tensos e o olhar fixo naquele monocromático cenário que na
realidade não via. Tinha a sensação de estar saindo de uma vida para meter-se em outra
sem deixar nenhuma ponte que lhe permitisse voltar para a anterior. Nem sequer havia
dito a sua família aonde ia; embora não eram uma família particularmente unida, sempre
estavam a par de onde se encontrava cada um de seus membros. Jay não tinha visto
nenhum de seus parentes no Natal porque ficou no hospital com o Steve e naquele
momento se sentia como se seus vínculos com ele estivessem muito mais fortes.
Steve permanecia a seu lado, com as pernas estiradas, recostado em seu assento e
folheando uma revista. Ia completamente concentrado, como se estivesse faminto de
palavras escritas. De repente, suspirou e deixou a revista que estava lendo de lado.
–Tinha esquecido quão tendenciosa pode chegar a ser a informação –murmurou e
soltou uma gargalhada. – Igual a todo o resto.
A ironia de seu tom tirou Jay de seus pensamentos e a fez rir. Sorridente, Steve
voltou a cabeça para observá-la e esfregou os olhos para poder fixar a vista nela.
–A não ser que me estabilize a vista, vou ter que usar óculos para ler.
–Doem-lhe os olhos? –perguntou-lhe Jay, preocupada.
Steve tinha posto os óculos de sol ao sair do hospital, mas os tinha tirado quando
tinham subido ao avião.
–Tenho-os cansados e ainda há muita luz. Custa-me fixar o olhar, mas o cirurgião
me disse que isso poderia melhorar com o tempo.
–Poderia?
–Há cinqüenta por cento de probabilidades de que necessite de óculos –tomou a
mão e lhe esfregou a palma com o polegar. – Seguirá me querendo embora tenha que
usar óculos?
Jay conteve a respiração e desviou o olhar. O silêncio se fazia cada vez mais
espesso. Então Steve lhe estreitou a mão e sussurrou com voz rouca:
–De acordo, não te pressionarei. Ainda não. Já teremos tempo mais adiante.
De modo que pensava pressioná-la assim que estivessem sozinhos na cabana. Jay
se perguntava o que quereria exatamente dela: um compromisso sentimental ou só se
aproveitar de seu corpo? Afinal, levava dois meses sem ter relações sexuais. Nesse
momento, perguntou-se com que mulher teria se deitado pela última vez e o ciúmes a
abrasaram, fundindo-se com a dor. Teria significado algo aquela mulher para ele? Estaria
esperando-o, chorando pelas noites porque não telefonava?
Passaram a noite em um hotel de Colorado Springs. Ao chegar ao Colorado, Jay
tinha se surpreendido descobrir que havia só uma fina capa de neve no chão, em vez do
espesso manto que esperava, mas continuava caindo algum ou outro floco, que prometia
mais neve para a manhã seguinte. O frio penetrava através de seu casaco e teve que
levantar as lapelas para protegê-las orelhas. Estava desejando poder comprar roupa que
a protegesse realmente do frio.
Steve estava cansado, aquele era o primeiro dia que passava fora do hospital, mas
ela também estava esgotada. Tinha sido um dia muito duro para ambos. Jay ficou
descansando em seu quarto enquanto Frank ia comprar uns hambúrgueres para o jantar.
Comeram no quarto do Frank e, assim que terminaram, Jay se desculpou e se retirou a
seu quarto. O único que queria era relaxar e ordenar seus pensamentos. Com essa
finalidade, deu-se uma longa ducha, e deixou que a água aliviasse a tensão de seus
músculos, mas lhe resultava difícil pensar coerentemente. O risco que estava assumindo
a assustava, mesmo assim sabia que não podia retroceder. Não podia e não o faria.
Amarrou com força o cinto do robe abriu a porta do banheiro e ficou completamente
gelada. Steve estava deitado em sua cama, com os braços atrás da cabeça e o olhar fixo
na televisão, de que tinha tirado o volume. Jay o olhou e desviou o olhar para a porta do
quarto, arqueando as sobrancelhas com expressão confusa.
–Acreditava que tinha fechado com chave.
–E o fez. Mas eu a forcei.
Jay não se moveu.
–Recordaste a técnica?
Steve a olhou, girou as pernas na cama e se sentou.
–Não, não recordei; simplesmente, sabia como se fazia.
Deus santo, o que outros talentos teria? Naquele momento, Steve lhe parecia um
homem perigoso, com aquele rosto duro e os olhos resplandecentes. Provavelmente era
capaz de fazer coisas que lhe provocariam pesadelos, mas não lhe tinha medo. Amava-o
muito. Tinha-o amado desde o momento em que tinha posado a mão em seu braço e
havia sentido sua vontade de viver vibrando em seu interior. Os nervos lhe puseram de
ponta quando Steve se levantou e diminuiu com uns poucos passos a distância que os
separava. Estava tão perto dela que tinha que elevar o olhar para poder lhe ver a cara.
Podia sentir o calor que emanava seu corpo e perceber o aroma masculino, o almíscar,
de sua pele.
Steve lhe emoldurou o rosto com as mãos e acariciou com o polegar as sombras que
o cansaço tinha deixado sob seus olhos, e que os fazia parecer de um azul muito mais
profundo. Jay estava pálida e nervosa, seu corpo tremia. Tinha estado cuidando dele
durante meses, passando todo o dia ao lado de sua cama, desejando que vivesse, que
saísse da escuridão. Aquela mulher tinha enchido sua vida de tal maneira que inclusive o
impacto de sofrer amnésia empalidecia frente ao feito de tê-la perto dele. Jay o tinha
tirado do inferno, e naquele momento era ela que estava submetida a uma forte pressão e
ele era o elemento forte da relação. Podia sentir sua tensão vibrando como uma corda a
ponto de romper-se. Deslizou a mão por sua cintura e a estreitou contra ele. A outra mão
a afundou em seu cabelo e pressionou brandamente, só o suficiente para que apoiasse a
cabeça em seu ombro.
–Não acredito que isto seja uma boa idéia –sussurrou Jay. A camisa do Steve
amortecia o som de suas palavras.
–Me parece que é uma idéia estupenda –murmurou ele em resposta.
Todos seus músculos estavam em tensão e em suas vísceras crescia um ardente
desejo. Deus, desejava-a. Deslizou as mãos ao longo de seu corpo.
–Jay –sussurrou com aspereza, e se inclinou para ela.
A tórrida e ansiosa pressão de sua boca a fez enlouquecer. A carícia de sua língua
contra a dela provocou em seu interior um prazer tão penetrante que era quase
insuportável. Jay elevou as mãos ao longo das costas de Steve e se agarrou a ele com
todas suas forças. Logo que foi consciente do momento quando ele deu meia volta, com
ela ainda nos braços, e a fez voltar-se para trás enquanto deslizava o braço por debaixo
de seus joelhos.
Perdeu a sensação de equilíbrio, mas os braços de Steve a seguraram enquanto
caía para trás e sentia a seguir todo seu peso descendo sobre ela.
Tinha esquecido já o que era sentir a pressão de um homem sobre seu corpo e
inalou profundamente ao notar a rápida resposta que fluía por suas veias. Sentia a
pressão do peito do Steve sobre seus seios e a protuberância de seu sexo contra o
montículo de sua feminilidade. Steve a beijava uma e outra vez, detendo-se apenas para
deixá-la respirar antes de que sua boca voltasse a apoderar-se dela uma vez mais.
Estreitavam-se um contra outro enfebrecidos, desejando muito mais. Steve agarrou o
cinto do robe até afrouxar o nó e deixar que aparecesse o delicado tecido da camisola.
Emitiu um gemido de frustração ao encontrar-se com aquela barreira adicional, mas
nesse momento, estava muito impaciente para enfrentar-se a ela. Fechou a mão sobre
seu seio enquanto lhe acariciava o mamilo com o polegar.
Jay gemeu brandamente em sua boca.
–Não podemos –gritou. O desespero e o desejo a rasgavam.
–É um inferno –replicou Steve, pegando sua mão e aproximando-a da parte de seu
corpo que se esticava contra o tecido da calça.
Jay retrocedeu ante aquele contato. Uma careta de dor cruzou seu pálido rosto e
estendeu a mão involuntariamente, explorando as dimensões de sua excitação. Steve
conteve a respiração.
–Jay, querida, não pare agora.
Jay estava assombrada da rapidez com que a paixão tinha explodido entre eles; um
só beijo e já estavam deitados na cama. Os lábios lhe tremiam enquanto o olhava nos
olhos. Nem sequer sabia como se chamava! Os olhos se encheram de lágrimas e
pestanejou para afastá-las.
Steve gemeu ao ver as lágrimas que empanavam seu olhar e voltou a beijá-la com
tormentosa paixão.
–Não chore. Sei que estamos indo muito rápido, mas tudo vai sair bem. Nos
casaremos assim que possamos e faremos que nosso casamento funcione.
Jay tragou saliva compulsivamente e logo que conseguiu dizer:
–Nos casar? Está falando sério?
–Isto é tão sério como um ataque do coração, encanto –respondeu e esboçou um
sorriso.
As lágrimas voltaram aos olhos de Jay e de novo se obrigou a reprimi-las. Alagava-a
a tristeza. Não havia nada que desejasse mais que casar-se com ele, mas não podia.
Teria que casar-se com ele sob uma falsa identidade, fingindo que era alguém que não
era. Provavelmente, um casamento assim nem sequer seria legal.
–Não podemos –sussurrou, e uma lágrima se deslizou por seu rosto antes de que
pudesse detê-la.
Steve lhe secou a lágrima com o polegar.
–Por que não podemos? –perguntou-lhe com ternura. – Já fizemos em outra
ocasião. E desta vez, depois da experiência anterior, estou certo que saberemos resolver
tudo muito melhor.
–E se tiver tornado a te casar? –Jay se tragou um soluço enquanto procurava
freneticamente alguma desculpa. – Nem sequer sabe se há outra pessoa em sua vida. E
até que não recupere a memória, não poderemos estar seguros.
Steve ficou completamente paralisado e com um suspiro, deu meia volta e se deitou
de costas, com o olhar fixo no teto. Soltou uma maldição.
–De acordo –disse por fim. – Pediremos ao Frank que o averigúe. Diabos, Jay, estou
certo que já o investigaram! De fato, não é essa a razão pela que lhe pediram que você
fosse me identificar?
Jay viu a armadilha que ela mesma se estendeu quando já era muito tarde e
compreendeu também que Steve não ia renunciar. Com sua habitual e avassaladora
determinação, estava derrubando todos os obstáculos que se encontrava em seu
caminho.
–Poderia haver alguém... que te amasse. Alguém que estivesse te esperando.
–Não posso lhe prometer o contrário –respondeu Steve, voltando a cabeça para
olhá-la com aqueles olhos de predador. – Mas não há nenhum obstáculo legal. Não
deixarei que te separe de mim por culpa de uma mulher desconhecida que pode seguir
me amando em alguma parte.
–Mas até que recupere a memória você tampouco pode saber se esteve apaixonado
por outra mulher.
–Sei –respondeu Steve apoiando-se sobre um cotovelo e inclinando-se para ela. –
Pode utilizar qualquer desculpa, mas a verdadeira razão é que te dou medo, não é
verdade? por que? Droga, sei que está apaixonada por mim, então qual é o problema?
Steve estava tão arrogantemente seguro de sua devoção que Jay sentiu raiva.
Embora só por um instante. Era verdade. O tinha revelado de mil maneiras diferentes.
Admitiu com voz trêmula:
–Sim, amo-te! –Não lhe servia de nada negar e dizendo-o em voz alta atenuava sua
própria dor.
O semblante de Steve se suavizou. Posou a mão em seu seio e o sustentou sob a
palma com delicadeza.
–Então por que não podemos nos casar?
A Jay resultava difícil concentrasse com a mão de Steve fazendo arder seu seio sob
o tecido de algodão. Seu corpo voltou a despertar a essa carícia. Desejava o Steve tanto
como ele a ela e negar-se a fazer o amor com ele era o mais difícil que tinha feito em sua
vida, mas não tinha outra opção. Até que recuperasse a memória, ela estaria em uma
espécie de limbo. Não podia aproveitar-se dele e deixar que se casasse com ela
pensando que era sua ex-mulher.
–E então? –exigiu-lhe Steve com impaciência.
–Amo-te –repetiu Jay com lábios trêmulos. – Volta a me pedir que me case contigo
quando tiver recuperado a memória e te direi que sim. Até então, até que ambos
tenhamos a segurança de que isso é o que quer... eu, simplesmente, não posso.
Steve endureceu seu semblante.
–Droga, Jay. Sei perfeitamente o que quero.
–Foram as circunstâncias que nos obrigaram a estar juntos! Não nos conhecemos
em condições normais. Você não é o mesmo homem com que me casei –e não podia
saber até que ponto era certo! – e eu não sou a mesma mulher. Necessitamos de tempo!
Quando recuperar a memória...
–Não me garantiram que vá recuperá-la - interrompeu, frustrado. – O que ocorrerá
se não a recupero alguma dia? Se o dano cerebral for permanente? Então o que?
Continuará me dizendo que não só ano que vem? Ou dentro de cinco anos?
–Não acredito que tenha uma lesão permanente –respondeu Jay com voz trêmula. –
Recuperaste a fala e as funções motoras muito rapidamente.
–Isso não tem nada que ver com a amnésia!
Estava furioso. Antes de que Jay pudesse mover-se, Steve se colocou sobre ela e
lhe segurou as mãos. Estavam tão perto que Jay podia ver as bolinhas douradas de sua
íris, suas pestanas frisadas e uma cicatriz na sobrancelha esquerda em que até então
não se fixou. Steve tomou ar e o soltou lentamente, deixando que o aborrecimento se
dissolvesse enquanto se movia contra o corpo suave dela, lhe permitindo sentir a dureza
de sua excitação.
–Não penso passar toda a vida esperando –lhe disse brandamente. – Vou fazer
amor contigo; se não for agora, será mais adiante.
Deu meia volta e se levantou, movendo-se com aquela agilidade tão particular que
se feito mais evidente desde que lhe tinham tirado as ataduras dos olhos. Havia indícios
dela quando ainda não via, manifestava-se no absoluto controle que tinha sobre seus
movimentos, mas naquele momento era esmagadora. Steve não só se movia, era como
se fluísse, como se seus músculos tivessem uma sorte de qualidade líquida. Jay
permanecia deitada na cama, com o corpo ardendo de frustração e a lembrança do
contato de seus corpos, com o olhar fixo na porta que Steve acabava de fechar atrás
dele.
Quem era realmente Steve? O medo voltou a apoderar-se dela, mas era medo por
ele. Steve era uma agente, isso era óbvio, mas não qualquer agente. Era evidente que
tinha recebido um treinamento de alto nível. E valia o suficiente como para que o governo
estivesse disposto a gastar uma fortuna em protegê-lo e organizar aquela elaborada
farsa. Se não tivesse sido por seus olhos, Jay nunca teria suspeitado de nada. Mas se
para o governo era tão valioso, por lógica, devia sê-lo também para seus inimigos.
Quantas mais medidas tomassem seus amigos para protegê-lo, mais medidas tentariam
tomar seus inimigos para encontrá-lo e acabar com ele.
E à medida que foram revelando-se novos traços de sua personalidade, ia
compreendendo o muito que estava em jogo.
Sua forma de mover-se, por exemplo, era tão graciosa e controlada como a de um
bailarino. Mas os movimentos de um bailarino eram poéticos, enquanto que os do Steve
eram cautelosos. E sua mente. Não lhe escapava nenhum detalhe. Estava treinado para
fixar-se em tudo. E era evidente o respeito que Frank lhe professava, outro sinal de sua
importância.
E estava em perigo. Possivelmente não fora um perigo iminente, mas sabia que
estava ali, esperando-o.
Às duas da madrugada, soou o telefone da habitação do Frank. Este soltou um
impropério sonolento enquanto alongava a mão com estupidez para o telefone. Não
acendeu a luz, algo que poderia alertar a qualquer um que estivesse vigiando-o. E
tampouco teve que perguntar quem era, porque só uma pessoa sabia onde estavam.
–Sim? –respondeu em meio de um bocejo.
–Piggot tornou a aparecer –respondeu o Homem. – Em Berlim. Não pudemos
apanhá-lo a tempo, mas averiguamos que está à par de que há um homem que
sobreviveu à explosão e esteve fazendo averiguações.
–Funcionou nossa coberta?
–Se Piggot esteve fazendo perguntas, é porque deve ter alguma dúvida. Procura te
assegurar de que ninguém lhes segue o rastro. Não quero que ninguém saiba onde
estão. Como vão as coisas?
-Muito melhor do que me teriam ido se fosse meu primeiro dia fora de um hospital
em que tivesse estado ingressado durante dois meses. É muito mais forte do que
imaginava. E outra coisa; jamais o teria acreditado, mas acredito que se apaixonou por
ela. Não é só que dela dependa, acredito que é algo verdadeiramente sério.
–Ah! –respondeu surpreso seu interlocutor. Soltou uma gargalhada. – Enfim, isso
acontece com todos. Tenho o relatório médico definitivo. Se tiver alguma lesão cerebral, é
mínima. O fato de que tenha voltado a caminhar tão rapidamente é quase um milagre.
Com o tempo recuperará a memória, mas fará falta algo que a desencadeie. Poderíamos
levá-lo a ver sua família, ou fazê-lo voltar para casa, mas não podemos nos arriscar até
que tenhamos encontrado o Piggot. Até então, tem que continuar escondido.
–O dia que agarremos ao Piggot o diremos. Mas Jay... O que vai acontecer com ela?
Seu interlocutor suspirou. Parecia cansado.
–Esperemos que tenha recuperado a memória para então. Droga, precisamos saber
o que ocorreu e tudo o que averiguou. Mas, com memória ou sem ela, tem que ficar onde
está até que apanhemos o Piggot. De momento, terá que seguir sendo Steve Crossfield.
Steve despertou cedo e continuou deitado na cama, sentindo a fadiga que
continuava castigando seu corpo, ao igual à frustração sexual que o assolava desde fazia
várias semanas. Tinha-o tentado, mas nem sequer o regime de rigoroso exercício a que
tinha estado submetido tinha conseguido lhe devolver as forças até o ponto que lhe teria
gostado. No dia anterior o tinha deixado esgotado. Esboçou um amargo sorriso,
pensando que provavelmente tinha sido melhor que Jay o rechaçasse, porque havia
muitas possibilidades de que tivesse terminado derrubando-se em cima dela enquanto
faziam amor. Maldita fora.
Não pretendia ceder tão rapidamente ante suas negativas, mas a falta de força era
outra coisa. Tinha que voltar a estar em forma. E não era só porque o desgostassem sua
falta de força e suas limitações físicas; que tinha a sensação de que devia estar em plena
forma no caso de... No caso do que? Não sabia o que podia esperar que acontecesse,
mas tinha uma sensação incômoda. Sabia que se surgia algo, tinha que estar em forma
para proteger Jay e poder dirigir qualquer situação.
Depois de levantar-se da cama, tomou a pistola que lhe tinham deixado na mesinha
de cabeceira e a colocou no chão, para tê-la à mão. Continuando, tombou-se ele no chão
e começou a fazer flexões de braços, contando em silêncio. Trinta era o limite. Ofegando,
deu meia volta e apoiou os pés na cama, colocou as mãos atrás da cabeça e iniciou uma
série de abdominais. As novas cicatrizes de seu abdômen lhe pulsavam cada vez que se
estirava e o suor empapava sua testa. Quando chegou a número dezessete, teve que
levantar-se. Amaldiçoando, baixou o olhar para seu corpo. Estava em uma forma física
penosa. Antes era capaz de fazer mais de cem flexões e abdominais sem que lhe
alterasse sequer a respiração.
Ficou muito quieto, à espera de que aquela brumosa lembrança se fizesse nítido, de
que se abrisse a porta da memória, mas não ocorreu nada. Por um instante, tinha podido
vislumbrar apenas o que tinha sido sua vida anterior, mas a porta do passado havia
tornado a fechar-se. Os médicos lhe haviam dito que não tentasse forçar a memória, mas
aquela porta fechada era como uma provocação. Havia algo que precisava saber e a
cólera crescia em seu interior porque não podia forçar seu caminho para o passado.
De repente, ouviu passos no exterior da habitação e rodou no chão, tomando a
pistola enquanto o fazia. Estirado no tapete, apontou para a porta. Os passos se
detiveram e uma voz disse:
–June, vamos. Precisamos começar cedo e já perdeste muito tempo.
Steve deixou escapar uma baforada de ar e se levantou. A pistola encaixava em sua
mão como se sempre tivesse estado ali. Era uma Browning automática de alto calibre.
Frank a tinha entregue no hospital, enquanto esperavam que Jay voltasse, e lhe havia
dito que ficasse só por precaução. Quando Steve a tinha tomado, havia-se sentido como
se, de algum jeito, houvesse tornado a ser o que era antes. Não tinha sido consciente do
pouco habitual que era para ele não ir armado até que se viu com aquela pistola entre as
mãos.
Aquelas reações explicavam muito do tipo de vida que fazia até então; para ele,
devia ser algo habitual ter uma pistola à mão inclusive quando fazia exercício, ao igual ao
considerar uns passos que se aproximavam como um possível perigo. Possivelmente Jay
tinha atuado de maneira inteligente ao divorciar-se dele na primeira vez. E possivelmente
não lhe estivesse fazendo nenhum favor ao obrigá-la a voltar para sua vida, tendo em
conta os muitos perigos que implicava.
A pistola que tinha na mão era uma peça obtida, mas aquela sensação não era
comparável a de sentir o corpo de Jay entre seus braços. Se tivesse que escolher entre
Jay e seu trabalho, perderia seu trabalho. A primeira vez tinha sido um maldito estúpido,
mas não ia deixar escapar uma segunda oportunidade. Seu chefe, quem quer que fosse,
teria que lhe trocar de missão, a não ser que quisesse que os abandonasse para sempre.
Já não queria mais reuniões clandestinas, nem mais assassinos atrás dele. Diabos, já era
hora de que descansasse e deixasse que outros mais jovens tivessem uma oportunidade.
Tinha trinta e sete anos, tinha transbordado com acréscimo a idade em que a maioria dos
homens se casavam com suas mulheres e fundavam uma família.
Compraram botas, meias de lã e roupa íntima isolante em Colorado Springs; jeans e
camisas de flanela em outra cidade, e os gorros e as jaquetas em uma terceira. Jay
comprou também um jaquetão com capuz e duas camisolas longas de flanela. Os dois
veículos que Frank tinha conseguido eram dois jipes com tração nas quatro rodas e
pneus especiais para a neve, de modo que, apesar de que as nevadas foram fazendo-se
mais intensas à medida que avançavam, fizeram o percurso em um tempo aceitável.
Frank conduzia um dos carros, seguido por Steve e Jay. Esta última nunca tinha
conduzido um carro com marchas, então tinha deixado o volante ao Steve. No princípio
estava um pouco preocupada com suas pernas, mas ele não parecia ter nenhuma
dificuldade com os pedais, de maneira que, ao cabo de uns minutos, tinha deixado de
preocupar-se e tinha prestado atenção a magnífica paisagem que atravessavam. O céu,
que no início do dia estava espaçoso, ia adquirindo gradualmente uma cor plúmbea e de
vez em quando deixava cair algum ou outro floco de neve. O tempo não piorou muito
mais e continuaram fazendo uma boa viagem até que saíram da auto-estrada e tomaram
uma estrada secundária com muito menos tráfico e muita mais neve que os obrigou a
diminuir a velocidade. Continuando, Frank tomou uma péssima estrada pela que
atravessaram a montanhas durante o que a Jay pareceram horas e, ao final, voltou a
girar. Ela não era capaz de discernir estrada alguma, nem sequer um atalho.
Simplesmente, estavam conduzindo através das montanhas pela rota que parecia menos
difícil.
–Pergunto-me se saberá aonde vamos –comentou, agarrando-se a seu assento
enquanto o jipe dava um pulo.
–Sabe. Frank é um bom agente –respondeu Steve com ar ausente enquanto trocava
de marcha para subir uma colina.
Quando chegaram ao final, detiveram-se ante uma enorme pradaria que se estendia
vários quilômetros ante eles. Conduziram junto a uma linha de árvores até que a pradaria
se interrompeu bruscamente e dali desceram ao outro lado das montanhas. Depois
subiram uma nova montanha em que o caminho era um atalho apenas suficientemente
largo para que coubesse o jipe. A um lado tinham a fachada rochosa da montanha e do
outro, nada, salvo uma distância cada vez maior até o fundo do precipício. Percorreram
depois a cúpula de uma montanha e chegaram até outra pradaria. Enquanto o sol ficava
atrás das cúpulas do oeste, Steve olhou com os olhos entrecerrados a linha de árvores
que tinham à esquerda.
–Ali deve estar a cabana.
–Onde? –perguntou Jay, erguendo-se em seu assento, e desejando poder sair do
carro para esticar as pernas.
–Nesse grupo de pinheiros, justo à esquerda.
Jay viu então a cabana e suspirou aliviada. Era uma cabana como outra qualquer,
mas sua visão lhe resultou tão grata como a do mais luxuoso dos hotéis. Estava
escondida sob as árvores e como tinha sido construída de costa, a fachada principal era
mais alta que a traseira; seis degraus de madeira conduziam a um alpendre que rodeava
a casa. Encostado a ela, havia um coberto para deixar os carros e uma pradaria que
conduzia até um abrigo.
Estacionaram os carros e saíram rapidamente, estirando as costas e os músculos
doloridos. O ar era tão frio que quase fazia dano respirar, mas o pôr-do-sol tingia os picos
nevados das montanhas de uma gama de tons vermelhos, dourados e violetas que
deixou Jay absorta na entrada, até que Steve lhe deu uma cotovelada para que ficasse
em movimento.
Tiveram que fazer três viagens para levar tudo ao interior. Depois, Frank conduziu
Steve ao abrigo para lhe ensinar como funcionava o gerador. Evidentemente, alguém o
tinha ligado, porque havia luz na casa e se ouvia seu zumbido ininterrupto. Jay revisou o
conteúdo da despensa e a geladeira, que encontrou cheias de latas e comida congelada.
Decidiu dar uma volta pela casa. Do lado da cozinha, havia um pequeno tanque com
uma máquina de lavar roupa e uma secadora. Não havia sala de jantar, a não ser uma
mesa de madeira redonda com quatro cadeiras colocada em um canto da cozinha. A sala
estava acolhedoramente mobiliada em estilo rústico, com os sofás estofados em veludo
cotelê. Um enorme tapete de tons azuis e marrons cobria o chão de madeira e uma das
paredes estava completamente ocupada por uma chaminé de pedra. Havia dois quartos
de igual tamanho, conectados através do único banheiro da cabana. Jay ficou olhando de
marco em marco um dos quartos. O coração lhe acelerou ao pensar que teria que
compartilhar o banheiro com Steve. Conhecia a intimidade das toalhas úmidas
pendurando lado a lado, dos artigos de penteadeira que terminavam mesclando-se, e
sabia o que significava compartilhar a pasta de dente. Aqueles pequenos detalhes da
convivência podiam ser tão sedutores como a intimidade física e terminariam fundindo
suas vidas em cada momento do dia.
Ouviu que se fechava a porta traseira. Steve a chamou imediatamente.
–Onde está? –por causa do frio, sua voz soava mais rouca do habitual.
–Explorando a casa –respondeu, saindo do banheiro e cruzando a porta do quarto. –
Se importa que fique com o quarto que dá à fachada principal? Tem a melhor vista.
A lenha já estava colocada na chaminé. Steve se inclinou, acendeu um fósforo com
o que prendeu um papel que colocou debaixo dos troncos e não respondeu até que se
endireitou.
–Me deixe vê-los primeiro.
Vagamente surpreendida, Jay se afastou para lhe deixar entrar. Steve estudou a
localização das janelas e as fechaduras. Abriu o armário, olhou-o e a seguir se dirigiu ao
banheiro.
–O banheiro conecta os quartos –assinalou Jay.
Steve grunhiu algo e abriu à porta do segundo quarto. As janelas estavam situadas
em uma das paredes laterais, mas devido à inclinação da pradaria, era mais fácil acessar
às janelas do quarto traseiro de fora.
–Muito bem –respondeu depois de revisar as fechaduras. – Mas quero que fique
muito claro que se ouvir algo durante a noite tem que despertar, de acordo?
–Sim –respondeu Jay com um nó na garganta.
Aquela cautela era como uma segunda natureza nele. Steve devia opinar que,
apesar de todas as precauções que Frank tinha tomado, continuavam correndo algum
perigo. Jay queria pensar que naquele lugar estavam a salvo, mas possivelmente não o
estivessem. o melhor que podia fazer era não discutir com ele.
Steve a olhou e suavizou ligeiramente sua expressão dura.
–Sinto muito, suponho que estou exagerando ante uma situação estranha. Não
queria te assustar.
Como a tensão continuava sem desaparecer dos olhos de Jay, aproximou-se dela,
emoldurou seu rosto com as mãos e a beijou. Jay abriu seus suntuosos lábios e Steve
deslizou a língua no interior de sua boca. Ela posou as mãos em seus ombros e desfrutou
ao sentir o corpo de Steve. Na cabana não fazia frio, mas certamente tampouco calor.
Steve a sustentou contra ele durante uns segundos e a soltou com inapetência.
–Vejamos se há algo comestível neste lugar. Se não comer algo logo, vou desmaiar.
Não estava exagerando, compreendeu Jay. Podia sentir o débil tremor de seus
músculos, um sinal da tensão a que tinha submetido seu corpo durante todo o dia.
Jay lhe rodeou a cintura com o braço enquanto se dirigiam a sala.
–Já revisei a despensa. Temos tudo o que possamos desejar, sempre se nos
conformarmos com uma comida simples. Se quiser lagosta ou trufas, má sorte.
–Conformarei-me com uma lata de sopa –disse cansado, e gemeu enquanto se
sentava em uma das cômodas cadeiras da sala. Esticou as pernas e esfregou as coxas.
–Podemos comer algo melhor –disse Frank ao ouvir aquele comentário. – Acredito,
reconheço que não sou muito bom cozinheiro –olhou Jay com expressão esperançada e
esta soltou uma gargalhada.
–Verei o que posso fazer. A verdade é que sou um ás com o microondas, mas não vi
que aqui tenhamos um, assim ando um pouco perdida.
Estava muito cansada para tomar-se muitas moléstias, mas não lhe custou nenhum
esforço abrir duas latas de carne guisada e as esquentar, nem tampouco descongelar uns
pãezinhos no forno.
Comeram quase em completo silêncio. Quando terminaram, Frank recolheu a mesa
e esfregou os pratos e tomaram banho por turnos. Às oito, Jay e Steve estavam em seus
respectivos quartos e Frank se envolveu em uma manta no sofá.
Levantaram-se cedo à manhã seguinte e depois de um apetitoso café da manhã,
Frank e Steve foram dar um passeio pela neve. A cozinha e o aquecedor funcionavam
com gás e o depósito estava cheio. Não teriam que voltar a preenchê-lo até a primavera.
O tanque de gasolina do gerador teria que preenchê-lo, mas o único que podia fazer
Steve era chamar Frank e lhes levariam o combustível de helicóptero. Não queriam que
se aproximasse ninguém à cabana e, em qualquer caso, o caminho era muito abrupto
para que pudesse acessar até ali uma caminhonete normal. Era um localização
complicada, mas isso significava também que era um lugar extraordinariamente seguro.
Mesmo assim, e embora contavam com todo o necessário para uma estadia prolongada,
Frank não podia evitar desejar que Steve recuperasse logo a memória para poder pôr fim
a tudo aquilo, ou que Piggot fosse detido o quanto antes.
–A população mais próxima é Black Bull, que está a uns cinqüenta quilômetros –
disse Frank. – Tem que ir pela pista e girar à direita. Ali há uma loja onde poderão
encontrar comida e algumas coisas básicas. Se quiser algo especial, terão que ir algo
mais longe, mas procura não te deixar ver muito. Deixei-lhes dinheiro suficiente para dois
meses, mas se necessitar de algo, faça-me saber.
Steve olhou para a pradaria nevada. O ar era claro e o sol da manhã brilhava com
tanta força em um céu sem nuvens que lhe doíam os olhos. O ar gelado abrasava seus
pulmões. Aquele lugar era tão grande e estava tão vazio que lhe transmitia uma sensação
inquietante, mas, ao mesmo tempo, sentia-se quase satisfeito. Estava impaciente para
que Frank se fosse para poder ficar por fim sozinho, completamente sozinho, com Jay.
–Aqui está a salvo –acrescentou Frank. – O Homem o utiliza de vez em quando –
olhou para a cabana. – Não teria trazido Jay até aqui se não fosse um lugar seguro. Ela é
uma civil, assim cuide dela.
Steve experimentou uma espécie de nova consciência quando Frank mencionou o
Homem. Não era uma sensação de perigo, mas sim mais de emoção. A lembrança estava
ali, mas os efeitos da explosão continuavam impedindo que fosse consciente dele. E o
Homem era outra peça daquele quebra-cabeças.
Estreitou a mão de Frank e se olharam nos olhos com a camaradagem de dois
homens que tinham deslocado muitos perigos juntos.
–Provavelmente não voltará a ver-me até que tudo isto tenha terminado, mas
estaremos em contato –lhe disse Frank. – Será melhor que vá. Supõe-se que esta tarde
vai voltar a nevar.
Retornaram ao interior da cabana, Frank reuniu suas coisas e se despediu de Jay.
Esta o abraçou com os olhos brilhantes. Frank tinha sido um sólido apoio durante esses
dois meses e sentiria falta dele. E também tinha sido uma espécie de barreira entre ela e
Steve; quando se fosse, ficariam completamente sozinhos.
Olhou o Steve e o descobriu observando-a intensamente. Seus olhos resplandeciam
como os de um predador que acabara de distinguir a sua presa.
Capítulo 9
Jay virtualmente esperava que Steve se equilibrasse sobre ela, mas, para imenso
alívio dele, parecia ter outras coisas em mente. Durante a semana seguinte, passou-se o
dia percorrendo a cabana e o abrigo e explorando a pradaria com a mesma tensão de um
gato em um lugar desconhecido. As horas que passava caminhando pela neve o
esgotavam e era freqüente que se fosse dormir pouco depois de jantar. Jay estava
preocupada, até que compreendeu que aquilo fazia parte do processo de recuperação. A
reabilitação a que tinha estado submetido no hospital tinha sido um começo, mas ainda
faltava um longo caminho até que recuperasse suas forças e aquelas caminhadas
serviam a dois propósitos: ajudavam-no a familiarizar-se com um território novo e a
restabelecer sua capacidade de resistência. No final da semana, Steve começou a
relaxar, mas mesmo assim, saía cada dia para percorrer os arredores da cabana e a
comprovar se tinha chegado algum intruso.
Estavam tão isolados que Jay não podia entender tantas precauções, mas supunha
que era algo muito enraizado nele. E observá-lo a ajudava a conhecer melhor o homem
que era. Parecia saber muito bem o que fazia! Era incrível, ele fazia tudo por instinto, sem
necessidade de recorrer à memória.
Quando esteve mais forte, começou a cortar madeira com o fim de ter um bom
fornecimento de lenha para a chaminé. Utilizavam-na como principal fonte de calor, para
economizar combustível. A cabana estava construída com bons isolantes e bastava
acendendo a chaminé para mantê-la a uma temperatura agradável. No princípio, Steve
terminava com bolhas nas mãos, apesar das luvas, mas pouco a pouco foi endurecendo a
pele. Ao cabo de um tempo, somou o esporte a suas atividades. Saía para correr todos os
dias, mas não o fazia pela pradaria, mas sim pelo bosque. Subia e descia colinas
escolhendo deliberadamente a parte mais abrupta do caminho e cada dia notava as
pernas mais fortes e a respiração menos alterada, de modo que continuava forçando-se.
Jay adorou aqueles primeiros dias na cabana, em meio daquela vasta e silenciosa
pradaria. Às vezes, o único que se ouvia era o assobio do vento entre as árvores. Tendo
passado a vida inteira imersa no bulício da cidade, aquele espaço e aquele silêncio a
faziam sentir-se como se acabasse de renascer a um novo mundo. Os últimos vestígios
de tensão de sua antiga vida foram desvanecendo-se. Estava sozinha no meio das
montanhas com o homem a quem amava. E estavam a salvo.
Steve começou a lhe ensinar a conduzir um carro com marchas. Para Jay era
divertido ir ricocheteando com o jipe pela pradaria. Para o Steve, era uma medida
precaução, se por acaso lhe ocorria algo e Jay tinha que ver-se obrigada a conduzir.
Chegado o momento, aquilo poderia lhe salvar a vida.
Quando levavam três semanas ali, caiu uma forte nevada. Jay despertou cedo em
um mundo de que parecia ter desaparecido qualquer som. Levantou-se e apareceu à
janela para contemplar o manto pela neve e voltou para a cama, onde ficou
imediatamente adormecida. Quando despertou pela segunda vez, eram quase as dez e
se sentiu maravilhosamente descansada, além de faminta.
Vestiu-se rapidamente e escovou o cabelo, perguntando-se por que estaria tão
silenciosa a cabana. Onde estaria Steve? Foi buscá-lo em seu dormitório, mas o
encontrou vazio. Havia uma cafeteira preparada na cozinha. Jay tomou uma xícara de
café olhando pela janela, procurando entre as árvores alguma sinal do Steve. Mas não viu
nada.
Cada vez mais intrigada, terminou o café e voltou para o quarto para calçar as botas;
depois vestiu a jaqueta e um gorro de lã. Não era normal que Steve saísse sem lhe dizer
aonde ia nem quanto tempo pensava estar fora. Perguntou-se o que estaria fazendo e por
que não a tinha despertado. Teria sofrido algum acidente?
Angustiada, saiu pela porta traseira.
–Steve? –chamou-o baixinho, temendo elevar a voz.
A pradaria continuava em silêncio e, pela primeira vez desde que tinha chegado, a
solidão lhe resultou ameaçadora. Haveria alguém lá fora?
Os rastros de Steve eram visíveis na neve. Era evidente que tinha feito algumas
viagens até o montão de lenha para repor a que faltava na casa, porque depois das
marcas de seus passos se distinguia o rastro deixado pelos troncos; depois tinha subido a
colina para entrar no bosque. Jay tirou as luvas do bolso do casaco e os pôs, e logo
desejou ter posto também um cachecol para proteger o nariz e a boca. Fazia tão frio que
o ar parecia quebrar-se. Subiu a gola da jaqueta e começou a seguir o rastro do Steve,
procurando posar o pé em seus rastros, porque dessa forma era mais fácil abrir-se
caminho entre a neve.
A neve não era tão profunda entre as árvores, de modo que o mais simples teria sido
caminhar por ali, mas não queria perder os rastros do Steve. Os ramos das árvores se
dobravam sob o peso da neve. Jay logo que podia ouvir sua própria respiração, seu som
sucumbia afogado no ranger de suas botas sobre a neve. Queria voltar a chamar o Steve,
mas não se atrevia. Parecia-lhe um sacrilégio quebrar aquele silêncio.
Se acaso, procurava inclusive ser mais silenciosa, caminhava camuflada entre as
árvores, tentando converter-se em parte do bosque. De repente, perdeu o rastro do
Steve. Ficou quieta sob os ramos de um abeto e olhou a seu redor, mas não havia mais
por onde seguir. Era impossível caminhar pela neve sem deixar rastro! Mas não havia um
só rastro sob as árvores. Olhou para cima, perguntando-se se Steve se teria subido em
uma árvore e estaria burlando-se dela. Mas nada.
O senso comum lhe dizia que aquilo era uma espécie de truque, mas os rastros de
Steve deveriam ter aparecido por alguma parte. Pensou um momento e começou a
caminhar lentamente, ampliando o círculo de seus passos. Em algum momento teria que
cruzar-se com seu caminho.
Quinze minutos depois estava furiosa. Maldito fosse! Estava jogando com ela, e
aquele era um jogo injusto, tendo em conta sua preparação. Estava ficando gelada, e
além disso tinha fome. Deixaria que ele jogasse com Daniel Boone; ela pensava retornar
imediatamente à cabana e preparar o café da manhã... para ela sozinha!
Já só por malícia, retrocedeu com o mesmo sigilo com o que tinha chegado até ali;
possivelmente conseguisse deixá-lo no bosque, escondendo-se em meio da neve
enquanto ela estava já de volta na cabana, cômoda e aquecida e desfrutando de um bom
café da manhã. Estava convencida de que Steve voltaria minutos depois, todo inocência,
e poderia preparar-se condenadamente bem seu próprio café da manhã!
Empreendeu o caminho de volta à cabana, escondida entre os troncos das árvores e
detendo-se de vez em quando para escutar algum som que traísse o Steve antes de
correr até a seguinte árvore e dali olhar em todas as direções. Sua indignação crescia e
começou a pensar em possíveis vinganças, mas quase tudo o que lhe ocorria lhe parecia
infantil e estúpido. O que de verdade gostaria de fazer era lhe bater. Forte. E mais de uma
vez.
Acabava de começar a rodear uma árvore quando lhe puseram os cabelos de ponta
e ficou completamente paralisada. O coração lhe deu um tombo no peito, como se
quisesse lhe advertir do perigo. Não podia ouvir nem ver nada, mas podia sentir algo ou
alguém perto dela. Haveria lobos naquelas montanhas? Ursos? Sem mover nada, exceto
os olhos, olhou a seu redor procurando algo que pudesse utilizar como arma e ao final
distinguiu o perfil de um tronco enterrado na neve. Agachando-se centímetro a
centímetro, alcançou o pau. Tinha todos os sentidos alerta.
E de repente, algo duro e pesado a golpeou no meio das costas e sentiu um golpe
no braço. Em menos de um segundo, encontrou-se deitada na neve, com os pulmões
lutando para tomar ar e o braço completamente inutilizado. Nem sequer podia gritar.
Estava deitada de costas e viu uma chama de reluzente metal contra seu pescoço.
Atônita, assustada e incapaz de respirar, elevou o olhar para uns olhos
entrecerrados e da mesma cor que os de uma águia.
Os olhos se abriram como pratos ao reconhecê-la e voltaram a fechar-se outra vez.
Steve guardou a faca em sua capa e levantou o joelho do peito de Jay.
–Droga, poderia ter te matado! –rugiu com uma voz metálica. – Que demônios está
fazendo?
Jay ofegava e se contorcia no chão enquanto se perguntava se poderia morrer pela
falta de ar. O peito lhe ardia e não conseguia fixar a vista.
Steve a sentou bruscamente e lhe golpeou com força nas costas. Doía-lhe, mas pelo
menos conseguiu que o ar retornasse a seus pulmões. Esteve a ponto de asfixiar-se
quando seus pulmões voltaram a expandir-se e os olhos lhe encheram de lágrimas.
Ofegou, tossiu e Steve continuou lhe batendo as costas enquanto lhe dizia com dureza:
–Ficará bem. Em todo caso, é menos do que merece. E imensamente menos do que
poderia ter acontecido.
Jay não o tinha planejado. Viu o pau pela extremidade do olho, que pretendia agarrar
quando Steve a tinha golpeado, e o seguinte que soube foi que o tinha na mão. O sangue
lhe nublava a visão enquanto se girava para o Steve com toda a força que lhe dava sua
raiva. Este esquivou o primeiro golpe com uma maldição e retrocedeu para escapar do
segundo. Jay se moveu para a esquerda, tentando encurralá-lo contra uma árvore para
que não pudesse escapar tão facilmente e voltou a girar. Steve tentou lhe tirar o pau, mas
ela o agarrou pela mão e tentou lhe dar um novo golpe. Amaldiçoando outra vez, Steve
escapou e ela o golpeou nas costas com o pau justo no momento em que a investia com
suficiente força para deitá-la outra vez.
–Droga! –gritou, ajoelhando-se a seu lado e segurando-a pelas braços. – Fique
calma. Droga, Jay. Que demônios te passa?
Jay se retorcia sob suas mãos, tentando liberar-se. Steve esticou os joelhos a ambos
os lados de seu corpo enquanto continuava agarrando-a pelos braços. No final, ela deixou
de resistir e, em meio de sua impotência, fulminou-o com o olhar. Seus olhos pareciam de
fogo azul.
–Me solte!
–Para que possa me bater com esse pau? Nem em sonho.
Jay tomou ar e tentou dizer com voz relativamente serena:
–Não te baterei.
–É obvio que não –grunhiu Steve.
Soltou-a, agarrou o pau e o lançou a vários metros.
Com a mão livre, Jay se limpou a neve da cara e lentamente, Steve foi diminuindo a
pressão sobre seu peito. Ela se sentou e tirou o gorro para lhe sacudir a neve.
Ajoelhado a seu lado, Steve lhe esfregava as costas.
–Agora me explicará o que se supõe que estava fazendo –lhe espetou.
Com a fúria bulindo ainda em seu interior, Jay se voltou para ele. Steve afastou a
cabeça bem a tempo para escapar de seu punho, mas o gorro empapado que Jay tinha
entre as mãos golpeou seu rosto com força suficiente para que lhe ardesse. E Jay
terminou de novo de costas no chão.
–Se me bater uma vez mais –lhe advertiu Steve entre dentes, – e não poderá te
sentar em todo um mês.
Jay o fulminou com o olhar.
–Tenta! Quando despertei e não te vi, pensei que podia te haver ocorrido algo e vim
te buscar. Depois começaste a te esconder na neve com seus truques de Super Espião,
para que não te encontrasse até que me cansei e decidi retornar à cabana. E depois me
atira ao chão, põe-me uma faca no pescoço e grita comigo! Merecia-te que tentasse te
bater com um pau.
Steve a olhou reparando então em seu cabelo revolto, na fúria de seus olhos azuis e
na determinação que refletiam aqueles suculentos lábios. Soltou uma maldição, afundou
os dedos na espessa juba e procurou sua boca. Foi um beijo entre furioso e faminto.
Apossou-se dele a necessidade selvagem de sentir seus lábios, de deslizar a língua no
interior de sua boca, de saboreá-la. Jay lhe deu uma patada e ele se moveu rapidamente.
Colocou o joelho entre suas pernas e se instalou entre elas, capturando-a contra a neve.
Jay gemeu e Steve deslizou a língua em sua boca.
De repente, Jay se sentiu arder. Sua fúria se transformou em algo diferente, em uma
paixão candente. Afundou as mãos em seu cabelo e lhe segurou pela nuca enquanto lhe
devolvia o beijo com um ardor idêntico ao dele. Steve movia os quadris contra ela com um
ritmo primário, investindo como se dessa forma negasse as capas de tecido que os
separavam, e Jay sentia que seu sangue se acendia como a lava de um vulcão.
Com gestos bruscos, Steve lhe desabotoou a jaqueta e procurou seus seios, mas a
camisa e o sutiã continuavam separando o de sua pele. Aquele contato não era
suficiente. Desabotoou-lhe a camisa com precipitação, fazendo saltar três botões, e
também a abriu. O ar gélido acariciou sua pele e Jay gritou, mas Steve amorteceu seu
grito com um beijo. O sutiã era de fechamento frontal; Steve o desabotoou com facilidade
e afastou as taças de seus seios cheios. Os mamilos de Jay se endureceram ao contato
com o frio e Steve os sentiu cravar-se contra as palmas de suas mãos quando quis
acariciá-la.
Elevou a cabeça.
–Me deixe entrar em ti –lhe pediu. – Agora.
Posou a boca sobre um dos mamilos e sugou com força ao tempo que o rodeava
com a língua e escutava os sons de prazer que escapavam da garganta de Jay.
Esta acreditou que ia morrer de desejo, apesar do muito que Steve a tinha
assustado; apesar de que a tinha feito se zangar como não recordava que o tivesse feito
nenhum outro ser humano. Mas Steve tinha desatado também uma paixão que tinha
formado sempre parte de sua natureza e que naquele momento estava escapando de seu
controle. As mãos lhe tremiam, o corpo inteiro lhe tremia. E queria mais.
Steve afastou a boca de seu seio e Jay gemeu ao receber o impacto do ar gélido
sobre sua pele nua. Seus olhos se encontraram; os de Jay aturdidos e transbordantes
daquela repentina paixão. Os do Steve entrecerrados e ardentes. E Jay soube o que ele
desejava; sabia que estava lhe pedindo em silencio permissão. E sabia que ao menor
gesto de concordância, Steve faria amor com ela sobre a neve. E todo seu corpo vibrava
lhe pedindo que lhe desse permissão. Jay começou a sussurrar seu nome; e o terror a
banhou como um jarro de água gelada enquanto elevava o olhar para seu duro rosto
enquanto ele esperava uma resposta.
Não sabia como se chamava! Podia chamá-lo Steve, mas sabia que não era Steve.
Seu rosto não era o do Steve. Sabia que o amava, mas era um desconhecido.
Steve encontrou a resposta na repentina rigidez do corpo do Jay. Soltou um
juramento enquanto se levantava e se esfregava o pescoço com a mão, como se assim
pudesse aliviar a tensão. Jay tentava abotoar a camisa, mas lhe faltavam três botões e as
mãos lhe tremiam fazendo que resultasse impossível a tarefa, assim ao final se limitou a
abotoar a jaqueta e se levantou. Minutos antes estava ardendo, mas naquele momento,
sentia-se completamente gelada. Estava coberta de neve. Sacudiu a neve do cabelo, das
calças e da jaqueta o melhor que pôde e voltou a por o gorro de lã, mas estava
empapado, assim era preferível não levar nada na cabeça. Sem dizer uma só palavra e
sentindo-se incapaz de olhá-lo, começou a caminhar para a cabana.
Steve a agarrou com força pelo ombro e a fez dar meia volta.
–Me diga por que, droga!
Jay tragou saliva. Não pretendia detê-lo e na realidade não tinha forma de explicar o
medo com o que vivia cada momento do dia.
–Já lhe disse isso em outra ocasião –conseguiu dizer por fim. – Tenho boas razões –
uma solitária lágrima se deslizou por seu rosto. Fazia tão frio que terminou convertida em
neve de sal antes de chegar a seu queixo.
O rosto de Steve mudou. Parte do aborrecimento e a frustração desapareceu
enquanto secava a lágrima de Jay com sua mão enluvada.
–De verdade? Essas boas razões não têm nenhum sentido para mim. É normal que
nos desejemos um ao outro. Durante quanto tempo acha que poderei viver como um
monge? E durante quanto tempo poderá viver como uma monja? Essa não é minha
vocação querida, e droga, afinal, esta não vai ser a primeira vez que faremos amor.
Jay pensou que ia começar a gritar de um momento a outro. Queria chorar e queria
rir, mas nenhuma das duas coisas tinha sentido. Queria lhe dizer a verdade, mas seu
maior medo era perdê-lo. Assim ao final lhe disse a verdade, ou pelo menos parte dela.
–Será a primeira vez –gemeu com a voz estrangulada. – E tenho medo.
Voltou a dar meia volta e Steve a deixou partir.
Quando chegou à cabana, Jay estava tremendo de frio. deu-se uma longa ducha de
água quente e vestiu roupa seca. Da cozinha, chegava até ela o aroma de café recém
feito. Deixando-se guiar pelo olfato, foi até ali e encontrou o Steve fritando bacon e
batendo ovos em uma tigela. Ele também trocou de roupa e Jay se sentiu vacilar pelo
impacto que lhe produziu o encontro e por algo do que de repente era consciente. Steve
era um homem alto e musculoso, ágil como um puma; os ombros e o peitilho da camisa
se esticavam sob seus fortes músculos. Durante as semanas que tinham passado ali,
tinha ganho peso e musculatura. O cabelo tinha crescido. Tinha um aspecto tão
selvagem, perigoso e acusadamente viril que Jay tremeu. Steve já não era um paciente.
Tinha recuperado sua saúde e sua força. Jay o tinha seguido até ali porque estava
preocupada com ele, porque, no fundo, para ela continuava sendo um guerreiro ferido.
Mas já não o era. Seu subconsciente o tinha reconhecido minutos antes, quando tinha
brigado com ele. Algo que não lhe teria ocorrido fazer uns dias antes.
Steve a olhou com expressão calculadora.
–Acabo de fazer café. Tome uma xícara. Ainda está um pouco trêmula. Tanto te
assusta a idéia de fazer amor comigo?
–É você que me assusta –não foi capaz de conter-se. – Quem é, o que é.
Steve ficou paralisado ao dar-se conta do que acabava de sugerir Jay.
–Antes me disse que estava empregando truques do Super Espião.
–Sim –sussurrou Jay, e decidiu que necessitava uma xícara de café.
Se serviu e fixou o olhar no vapor que se elevava do café antes de dar o primeiro
gole. Por que haveria dito isso? Não pretendia fazê-lo. Vivia angustiada, temendo dizer
algo que pudesse ativar sua memória e que Steve a deixasse, e temendo ao mesmo
tempo que jamais recuperasse a memória. Estava apanhada porque não poderia querer o
Steve até que este recuperasse a memória e realmente a escolhesse. Se é que o faria.
Por que possivelmente decidisse partir para voltar para sua vida real.
–Eu acreditava que não sabia –respondeu Steve rotundamente.
Jay elevou a cabeça bruscamente.
–O que quer dizer?
–Tinha que haver algo mais que a possibilidade de que tivesse visto algo antes da
explosão. O governo não funciona dessa maneira. Me imaginava isso e Frank me
confirmou.
–O que ele te disse? –perguntou-lhe Jay com um fio de voz.
Steve respondeu com um sorriso desumano.
–Esse é o problema. Não pode me dizer nada mais devido às circunstâncias. Como
você imaginou isso?
–Da mesma maneira. Sabia que tinha que haver algo mais em tudo isto.
–Essa é a verdadeira razão para me recusar?
–Não –sussurrou ela.
O desejo e a dor se refletiam em seu olhar enquanto o olhava. Como podia doer
tanto amar a um homem? Mas doía, sobre tudo quando o homem era esse.
Todo o corpo de Steve estava tenso. Sua boca se converteu em uma dura linha.
–Deixa de me olhar assim –lhe disse com voz dura. – Senão não conseguirei
dominar a vontade de te tirar a calça e terminar fazendo amor contigo na mesa, e não
quero que as coisas sejam assim entre nós. Desta vez não. Assim deixa de me olhar
como se fosses derreter no caso de que te tocasse.
Jay desviou o olhar. Tinha-lhe provocado calafrios pensar no ato que Steve acabava
de descrever. Seria um ato nu, apaixonado, puramente sexual. Sabia que bastaria com
que ele a tocasse para que os dois ardessem de desejo.
Steve passou fora a maior parte do dia, mas a tensão que havia entre eles não
cedeu. Permanecia ali, tão espessa como a névoa. Quando a escuridão o obrigou a
retornar ao interior da cabana, os olhos pareciam lhe arder cada vez que a olhava.
Instintos que Jay nem sequer sabia que possuía, impulsionavam-na para ele, apesar de
que a razão se inclinava por não deixar que sua relação progredisse.
Aquela noite estava sozinha, na cama, com tanta vontade de ir buscá-lo e passar
aquela longa e escura noite entre seus braços que lhe doía. Steve tinha razão, o que
importavam suas razões? Já era muito tarde. Para bem ou para mau, apaixonou-se por
ele. Esse era o verdadeiro perigo, e fazia muito tempo que o estava correndo. Manter-se
afastada dele não faria que fosse menos doloroso o momento de perdê-lo.
Mas não podia ir a seu lado. Habitualmente, à luz do dia as coisas se viam de forma
muito distinta de quando se estava sozinha de noite na cama. Entretanto, a prudência não
era a única razão que a retinha. As circunstâncias nas que se encontravam já eram
suficientemente difíceis. Tinha que chamar a aquele homem por um nome que não era o
seu e fingir que era outra pessoa, mas ela queria poder olhá-lo nos olhos quando
fizessem amor. E desejava, mais que nenhuma outra coisa, saber seu verdadeiro nome,
ser capaz de pronunciá-lo de coração.
Durante aquela noite, soprou um vento quente que afastou as nuvens que os havia
cobertos de neve. A Mãe Natureza devia estar rindo de si mesmo porque com aquela
repentina ascensão das temperaturas começou a derreter a neve, oferecendo um avanço
da primavera para a que ainda faltava mais de um mês. A neve fundida gotejava das
árvores e fazia um ruído similar ao da chuva. Ouviam-se rangidos em meio da escuridão
da noite e os ramos deixavam cair sua carga branca ao chão.
Aquela repentina mudança de temperatura aumentou a inquietação de Jay, que
aquele dia se levantou ao amanhecer. Mal podia acreditar no que via quando apareceu à
janela. O vento quente tinha transformado a paisagem invernal em uma úmida pradaria
salpicada por emplastros de neve. A neve derretida continuava gotejando do telhado e o
calor lhe produzia a sensação de que a pele lhe ia explodir. Como podia ter ocorrido tão
rápido?
–Isto é um chinook, uma repentina quebra de onda de ventos quentes –explicou
Steve atrás dela.
Jay se voltou com o coração palpitante. Não lhe tinha ouvido aproximar-se; aquele
homem se movia com o sigilo de um gato. Parecia tão mal-humorado que Jay quase
retrocedeu. Seus olhos eram duros, gélidos, e uma sombra de barba cobria sua
mandíbula. Steve desviou o olhar para a janela.
–Aproveita-o enquanto possa. Será como uma primavera enquanto durem os ventos,
mas assim que se vão, retornará a neve.
Tomaram o café da manhã em silêncio e Steve abandonou a cabana imediatamente
depois. Mais tarde, Jay ouviu o golpe sólido da tocha sobre a lenha e apareceu à janela
da cozinha. Steve tinha tirado a jaqueta e estava trabalhando de camisa, deixando os
antebraços ao descoberto. Por incrível que parecesse, o suor tinha deixado marcas
escuras sob seus braços e nas costas. De verdade fazia tanto calor?
Jay saiu ao alpendre e elevou o rosto para o céu para desfrutar daquele quente e
doce vento. Era incrível! A temperatura parecia ter subido mais de dez graus e o sol
brilhava com força em um céu sem nuvens. De repente, os jeans e a camisa de flanela
lhe pareceram muito calorosos e em sua pele começou a brilhar uma pátina de umidade.
Como uma menina atordoada pela chegada da primavera, correu ao interior de seu
quarto e começou a desfazer-se daquelas roupas tão quentes. Não podia agüentar nem
um minuto mais. Queria sentir o ar nos braços nus; queria sentir-se fresca e livre como o
vento. Que importância tinha que o inverno fosse retornar em muito pouco tempo? Nesse
momento estavam na primavera!
Tirou do armário seu vestido favorito e o colocou pela cabeça. Era de algodão
branco, sem mangas, com o pescoço redondo e muito leve para aquela temperatura que
provavelmente não chegava nem a quinze graus, mas era o vestido que melhor se
adequava a seu humor. Algumas coisas se faziam com o único propósito de celebrar e
essa era uma delas.
Jay estava cantarolando enquanto começava a preparar o almoço; foi então quando
reparou em que Steve já não estava cortando lenha. Se tinha decidido partir justo na hora
de comer, comeria sozinha. Ainda não lhe tinha perdoado o ocorrido do dia anterior.
Ao ouvir ruído na parte dianteira da casa afastou a sopa do fogo e saiu. Steve tinha
aproximado o jipe até ali e o estava lavando. Era uma cena tão doméstica que Jay se
sentiu impulsionada a sair ao alpendre e sentar-se no último degrau para vê-lo trabalhar.
Steve elevou o olhar para ela. Seus olhos resplandeceram ao ver o vestido.
–Um pouco forçado, não acha?
–Estou cômoda –respondeu Jay, e era verdade.
O ar era ao mesmo tempo frio e quente e o sol brilhava com força, lhe provocando
uma sensação deliciosa. Steve também se tinha entregue a aquela agradável mudança
da temperatura desabotoando a camisa e tirando-a da cintura da calça.
Jay o observava enquanto ensaboava e enxaguava o carro alternativamente,
agachando-se em cada ocasião para tomar a mangueira. Ao final, abandonou o degrau e
se aproximou até ele.
–Você ensaboa, eu me encarrego da água.
Steve grunhiu:
–Espera por acaso que cheguemos a um pacto similar para lavar os pratos?
–Seria o mais justo. Afinal, eu estou me encarregando de cozinhar.
–Sim, claro. E eu tenho que comer o que prepara.
Jay o olhou com fingido horror.
–Pobrezinho. Tentarei fazer algo para te tirar essa horrível carga dos ombros.
–Todas as mulheres são iguais. Assim que um ri um pouco de vocês, voltam-lhes
desagradáveis. Há gente que não sabe agüentar uma brincadeira.
Jay apontou com a mangueira para a parte do jipe que Steve acabava de ensaboar.
Ele não teve tempo de retroceder e a água ensopou seu rosto e sua roupa. Retrocedeu
entre maldições.
–Droga, Jay, olhe o que faz!
–Há gente que não sabe agüentar uma brincadeira –disse Jay com doçura, e girou a
mangueira para ele.
Steve soltou um grito ao sentir o impacto da água gelada e correu para ela cobrindo
o rosto com as mãos para esquivar o jorro de água. Jay ria e corria ao redor do jipe e
voltou a apanhar o Steve.
Este se jogou o cabelo empapado para trás; seus olhos tinham adquirido um brilho
perigoso.
–Agora verá –disse, começando a sorrir.
De um só salto, subiu no capô do jipe. Jay soltou um grito e começou a correr para a
parte de trás, mas a mangueira ficou presa entre as rodas do carro. E estava atirando
freneticamente dela quando Steve saltou ao chão e soltou uma gargalhada que fez que
Jay gritasse, soltasse a mangueira e saísse correndo em busca de refúgio.
Steve se apoderou da mangueira e rodeou o jipe para tirá-la das rodas. E
virtualmente se chocou com Jay.
–Espera –disse ela, rindo e suplicando ao mesmo tempo enquanto elevava a mão. –
É a hora de comer, vim te dizer que a sopa já está pronta... –um jorro de água empapou
seu rosto.
A água estava insuportavelmente fria. Jay soltou um grito e tentou fugir em busca de
um esconderijo, mas cada vez que se voltava, Steve estava atrás dela. Terminou
ensopada da cabeça aos pés.
Ao final, compreendeu que a melhor defesa era o ataque e saiu correndo atrás dele.
Steve ria como um louco, um som que cessou bruscamente quando Jay conseguiu elevar
a mangueira de maneira que a água caísse diretamente sobre sua boca. Os dois se
retorciam tentando recuperar o controle da mangueira, e os dois riam e gritavam enquanto
a água gelada caía sobre eles.
–Trégua, trégua! –gritou Jay, retrocedendo.
Ela não podia estar mais molhada, mas tampouco Steve.
–Rende-se? –perguntou Steve.
–O que é isso de render-me? –gritou Jay. –Nós dois estamos ensopados.
Steve considerou sua resposta e assentiu. Continuando, aproximou-se da torneira da
água para fechá-la e começou a recolher a mangueira.
–Sabe brigar sujo. É uma qualidade que aprecio nas mulheres.
–Sim, claro, agora tenta me adular para te assegurar de que não deixe de cozinhar
para ti.
–A situação é a que é: aceitarei de você tudo o que possa conseguir.
De repente, desapareceu toda diversão de seu rosto. Steve deixou cair a mangueira
e se endireitou, olhando-a com expressão dura.
Jay sentiu que ficava sem respiração. Jamais lhe tinha parecido tão atraente como
naquele momento, completamente ensopado, com o cabelo grudado à cabeça e um brilho
intensamente viril no olhar.
Lentamente, ele deslizou o olhar pelo rosto de Jay e foi descendo ao longo de seu
corpo, tomando-se todo o tempo do mundo em desenhar sua silhueta com o olhar.
Então Jay se deu conta de que Steve estava vendo muito mais que sua silhueta. O
vestido de algodão branco parecia quase transparente e se colava a seu corpo como uma
segunda pele. Baixou o olhar. Tinha os mamilos endurecidos e erguidos, plenamente
visíveis sob o tecido de algodão que moldava também sua cintura e suas coxas. Com o
sol brilhando através do tecido, o amparo que lhe proporcionava o vestido era o mesmo
que se tivesse estado nua.
Jay elevou os olhos para ele e ficou gelada ao olhar o Steve no rosto. Este estava
olhando-a com uma expressão tão selvagem que o coração lhe deu um tombo e o sangue
começou a correr a toda velocidade por suas veias. As pernas lhe tremiam enquanto se
sentia cada vez mais úmida e quente. Tomou ar.
Steve elevou bruscamente a cabeça. Permaneceu imóvel um instante. Jay
entreabriu ligeiramente os lábios sem deixar de tremer. Os olhos pareciam lhe pesar.
Seus mamilos se converteram em pequenos círculos plenamente visíveis através do
tecido do vestido. Seus braços caíam flácidos a ambos os lados de seu corpo enquanto
permitia que Steve a olhasse.
Steve se estremeceu. E desapareceu sua capacidade de controle.
Jay não podia mover-se. Steve avançava para ela sem afastar o olhar de seu corpo,
sem ver nem ouvir nenhuma outra coisa, como se fosse um animal no cio.
A respiração do Steve era forte, profunda, suas narinas se abriam. A água gotejava
por seu corpo enquanto ele se movia. Jay esperava, tremendo de medo e de desejo,
porque Steve estava fora de controle e ela sabia. Era um terror excitante o que sentia,
paralisava-a e ao mesmo tempo a enchia de uma sensação de antecipação tão aguda
que resultava quase dolorosa.
Então Steve posou suas mãos sobre ela e Jay gemeu em voz alta, liberando
repentinamente toda a tensão.
Ela esperava que Steve a levantasse nos braços e a levasse a cama, mas ele não
estava para sutilezas. Naquele momento não lhe importava nada, salvo fazer amor nesse
mesmo instante. De modo que a deixou sobre a fria e úmida terra que, apesar dos ventos
quentes, conservava ainda o frio do longo inverno. Jay gritou ao sentir o frio glacial nas
costas. Arqueou-se involuntariamente, tentando evitá-la. Mas Steve pressionou,
convidando-a de novo a deitar-se enquanto se colocava sobre ela e lhe subia a saia até a
cintura.
—Abre as pernas –lhe pediu.
A excitação se estendia a uma velocidade vertiginosa por todo o corpo de Jay.
–Sim –sussurrou, lhe cravando as mãos nos ombros.
Desejava-o tanto que não lhe importava o lugar em que estivessem nem quão
urgente fosse o desejo de Steve. Mais adiante, já teriam tempo para a sedução. E para
preocupar-se com o ocorrido. Naquele momento, o único que importava era aquela rápida
e primitiva união.
Não houve estimulação erótica, nem carícias, nem beijos. Os quatro meses que
tinham passado negando-se aquela intimidade tinham sido mais que suficientes. E por fim
se derrubaram as barreiras. Steve se desfez da calcinha de Jay pelo simples
procedimento de rasgá-la. Continuando, desabotoou-lhe a calça e a baixou só o
necessário. Insistiu a Jay a separar um pouco mais as pernas e se afundou nela.
Jay soltou um pequeno grito de dor quando Steve tentou penetrá-la sem consegui-lo.
Ele mudou imediatamente de postura e pressionou outra vez; naquela ocasião, afundou-
se plenamente nela. O impacto reverberou no corpo inteiro do Jay, e naquela ocasião,
gemeu.
Ele se apoiava sobre os cotovelos e Jay elevava seu olhar deslumbrado para ele. Os
olhos de Steve brilhavam com ferocidade, seu rosto era duro e intenso.
Jay arqueou as costas para aceitá-lo em seu interior com o coração a ponto de lhe
explodir de amor. Aquilo era o que queria, ver seu rosto, ver aqueles olhos de águia,
gravar aquela imagem em sua mente e em seu coração enquanto Steve imprimia rastro
em seu corpo. Com a terra gelada nas costas e o céu azul sobre suas cabeças, com o sol
resplandecente iluminando seu rosto, eram tão puros e primitivos como a paisagem que
os rodeava. Não importava como se chamasse, nem tampouco o que fizesse: aquele era
seu verdadeiro amor, seu homem.
E ela queria entregar-se a ele. Elevava os quadris para receber a força das
investidas de Steve e sentia como tremiam suas vísceras.
Steve gemeu algo ininteligível e deslizou os braços sob Jay para elevá-la um pouco
mais, como se quisesse que seus corpos se unissem até fundir-se, e se esvaziou nela.
Jay o abraçou com força, com as pernas ao redor de sua cintura e os braços em
seus ombros enquanto Steve se derrubava trêmulo sobre ela.
–Amo-te –lhe disse uma e outra vez.
Mas se limitava a mover os lábios e o único som que os rodeava era o do vento. Jay
fechou os olhos, sentindo o vento quente no rosto e o peso de Steve sobre ela, e soube
que, passasse o que passasse quando aquele homem recuperasse a memória, com
aquele rápido e apaixonado ato a tinha feito sua de uma forma que nada poderia alterar.
Capítulo 10
Permaneceram juntos, muito quietos. O único que se movia a seu redor era o vento
que removia o ar. O único som era o das folhas das árvores. Jay ainda estava aturdida
pelo que acabava de ocorrer, com os sentidos tão afetados como se acabassem de
suportar uma tormenta. Era completamente incapaz de mover-se.
Steve, apoiando-se sobre suas mãos, incorporou-se e baixou o olhar para ela com
expressão tão feroz que Jay quase se encolheu sem saber muito bem por que. Ele soltou
uma maldição, com voz grave e profunda, enquanto separava seus corpos e se colocava
de joelhos a seu lado. A insegurança a paralisava enquanto quebrava a cabeça tentando
encontrar as razões de seu aborrecimento.
Steve subiu as calças, mas não se incomodou em abotoar, levantou Jay nos braços
e se incorporou com uma agilidade que deixava aparecer suas recuperadas forças. Subiu
os degraus do alpendre e entrou em grandes pernadas na casa sem dizer uma só
palavra. Uma vez ali, dirigiu-se ao banheiro. Depois de deixá-la na porta, inclinou-se para
abrir a torneira de água quente, endireitou-se e se colocou atrás dela.
O vestido estava desabotoado. Com muita delicadeza, o tirou pela cabeça,
deixando-a nua e tremendo tanto pelo frio como pelo ocorrido. Jay permanecia muito
quieta, com os braços caídos de ambos os lados de seu corpo, os olhos abertos como
pratos, aturdida e um pouco assustada enquanto o olhava. O que tinha feito de errado?
Steve a despiu rapidamente, meteu-a na banheira, meteu-se com ela e fechou o
biombo da ducha. Jay retrocedeu desconcertada pela quantidade de espaço que Steve
ocupava, e observou os tensos músculos de suas costas enquanto ajustava a
temperatura da água. A água quente começou a cair sobre suas cabeças, enchendo
aquele pequeno cubículo de vapor. Steve a colocou sob a água e ali a manteve apesar de
seus protestos.
–Tem que entrar em calor –lhe disse com voz dura enquanto lhe esfregava os
braços e os ombros. – Dá a volta e me deixe te lavar o cabelo.
Jay obedeceu, compreendendo que devia estar coberta de barro. Steve lhe
ensaboou e lhe enxaguou o cabelo com delicadeza. A combinação da água quente com
as carícias do Steve foi ajudando a Jay a entrar em calor. Primeiro Steve deslizou as
mãos por seus seios e seu abdômen, depois por suas pernas e seu traseiro e, ao final,
deslizou-a entre suas pernas.
A respiração de Jay se acelerava enquanto bulia em seu interior um intenso calor.
Steve diminuiu o ritmo de suas carícias e de repente, uma espécie de espasmo
esticou seus músculos faciais. Jay conteve a respiração enquanto ele acessava
tentativamente ao interior de seu corpo; apenas a roçava com as gemas dos dedos e
deslizou um só dedo em seu interior. Jay se agarrou a seus ombros, cravando as unhas
na pele úmida e sedosa de Steve. Sentia os seios cheios e ofegantes enquanto o
abraçava com agônica espera, esperando aquela pequena invasão e desejando muito
mais. Sentiu como se endurecia o sexo de Steve contra sua coxa e um repentino
estremecimento de prazer sacudiu seu corpo.
Steve murmurou algo, mas o som foi tão brusco que Jay não foi capaz de
compreendê-lo, de repente, sentiu sua boca devorando a dela. Cedendo completamente
ao desejo, deslizou as mãos por suas costas e seu pescoço.
Seus corpos ensopados se fundiam, o pêlo hirsuto do peito do Steve roçava os
mamilos de Jay; os músculos do estômago se ondulavam contra a suavidade de seu
ventre.
–Sim, sim –gemeu Jay.
–Sinto muito, querida –respondeu Steve com frenética urgência. Deslizou a boca por
seu pescoço, mordiscando aquela sensível pele e lambeu brandamente o canto que se
fazia visível o palpitar de seu pulso. – Não queria ser tão brusco.
Então essa era a razão pela que estava zangado. Na realidade não estava furioso
com ela, a não ser consigo mesmo. Mas nem sequer isso tinha sido suficiente para evitar
que desejasse fazer amor outra vez.
Jay podia sentir o desejo naquele enorme e poderoso corpo. E uma vez mais, aquela
perda de controle a emocionou e excitou de uma maneira quase primitiva. Jay tinha
estado casada, mas Steve nunca tinha perdido certa frieza, como se quisesse manter
sempre uma parte de si mesmo fora de seu alcance. E a faceta mais apaixonada de Jay
se ressentia, porque ela necessitava mais. Entretanto, o desejo parecia ter convertido em
um selvagem o homem que naquele momento tinha entre seus braços, o desejo lhe tinha
feito perder completamente o controle e a ferocidade de sua paixão estava à altura da
natureza apaixonada de Jay. Durante toda sua vida, tinha necessitado reações intensas
para encontrar certo equilíbrio; mas ao não poder contar com elas, tinha tido que refugiar-
se atrás de uma máscara de rígido controle da que só naquele momento estava
começando a liberar-se.
Agarrava-se a Steve como se fosse um marisco, todo seu corpo se ondulava contra
o dele.
–Amo-te –gemeu.
Era o único que podia dizer; a única verdade naquele labirinto de mentiras e
subterfúgios.
Steve afastou a boca de seu pescoço. Seu rosto estava tão perto do de Jay que o
único que podia ver ela era seu ardente olhar.
–Tenho-te feito mal ... –grunhiu.
Jay não podia negá-lo.
–Sim –respondeu, e procurou seus lábios para deslizar a língua no interior de sua
boca.
Steve a abraçou com tanta força que mal podia respirar. Mas nem sequer respirar
importava naquele momento. Quão único importava era beijá-la. Amá-la.
No final, Steve conseguiu resgatar os últimos vestígios de controle que ficavam. Os
suficientes para fechar a água e tirá-la da banheira.
Jay não deixou de agarrar-se a seu pescoço nem um só instante enquanto ele a
levava até a cama. Estavam ensopados, mas não lhe importava. O único que lhe
importava era sentir a boca ardente de Steve sobre seus seios, a carícia dos dedos sobre
sua pele sedosa e, por fim, a poderosa invasão de seu corpo.
E quando Steve se afundou nela, foi tal o impacto para todos seus sentidos que
gritou enquanto, instintivamente fechava as coxas, afundando-o ainda mais com aquele
movimento.
Steve apertava os dentes, tentando obrigar-se a permanecer quieto quando todos
seus instintos o impulsionavam a mover-se. O desejo era tão urgente que apagava todo o
resto. O mundo ficava reduzido à mulher que sustentava entre seus braços, a aquela
mulher que rodeava seu corpo de tal maneira que o estava levando a beira da loucura.
Mas pelo bem de Jay, tentou dominar-se até que estivesse mais cômoda com ele em seu
interior. Apoiando-se sobre os cotovelos para não deixar cair nela todo seu peso, baixou o
olhar para seu rosto e se estremeceu ao descobrir a intensa e arrebatada expressão de
Jay enquanto elevava tentativamente os quadris.
Escapou de seu peito um rouco gemido. Sabia que a vez anterior tinha sido muito
rude e rápido para permitir que ela desfrutasse, mas aquela vez, estava compartilhando
seu prazer.
Entreabria os lábios em um sorriso tão feminino que Steve conteve a respiração.
–O que está esperando? –sussurrou Jay, devorando-o com o olhar.
–A ti –respondeu Steve.
E inclusive enquanto se perdia no arrebatado êxtase de fazer amor com ela, aquela
verdade seguiu ressonando no ar. Tinha-a estado esperando sempre.
Steve era um homem de sono leve. Até tal ponto que, inclusive quando ficou
adormecido depois de fazer amor, notava a umidade dos lençóis, um desconforto em que
até então nenhum deles tinha reparado. Jay permanecia entre seus braços, exausta e
profundamente adormecida; Steve não queria incomodá-la, mas tampouco queria que
ficassem gelados por culpa da umidade dos lençóis. De modo que se levantou da cama,
agarrou Jay nos braços e a levou ao outro quarto para que pudesse dormir entre lençóis
secos. Ela gemeu enquanto a deixava na cama, mas voltou a relaxar-se assim que Steve
começou a lhe acariciar as costas. Ele se reuniu com ela na cama e Jay se enroscou
entre seu forte e possessivo abraço.
O que Steve sentia por ela era tão intenso que podia resultar quase doloroso.
Inclusive sem ter recuperado a memória, sabia que nenhuma outra mulher lhe tinha feito
perder o controle desse modo. Jamais tinha desejado a uma mulher tão intensamente e
jamais teria esperado tanto tempo como tinha esperado por ela. Jay eclipsava o resto de
suas preocupações. Graças a ela, não se tinha deixado afundar pela perda de cor e os
efeitos da amnésia se reduziram a uma peculiar irritação e a certo interesse e curiosidade
pelo que tinha esquecido. Sua vida passada não lhe importava porque Jay fazia parte de
seu presente. E estavam unidos de uma forma que ia muito além da memória.
Franziu ligeiramente o cenho enquanto a abraçava e deslizava a mão da curva de
sua cintura até o montículo de seu seio.
De todos os conhecimentos que ainda conservava, por que nenhum teria nada que
ver com Jay? Aquelas eram as lembranças que mais lhe doía esquecer. Queria recordar
todos e cada um dos minutos que tinha passado com ela, e queria recordar por que tinha
permitido que escapasse de seu lado. Queria lembrar do dia de seu casamento, da
primeira vez que tinha feito amor com ela. E a carência de toda lembrança relacionada
com Jay o devorava. Ela era o centro de sua vida, por que não havia nada que lhe
resultasse familiar? por que não havia sentido nenhuma classe de familiaridade ao
acariciar a textura sedosa de sua pele ou as curvas arredondadas de seus seios? por que
não tinha experimentado nenhuma sensação de familiaridade ao afundar-se no interior de
seu corpo? Havia se sentido como se tudo fosse completamente novo.
Jay se moveu ligeiramente contra ele e Steve deixou de acariciá-la para limitar-se a
olhá-la. Casariam-se assim que pudesse convencê-la. E depois do que tinham
compartilhado, tinha uma poderosa arma ao seu dispor.
De repente apareceu uma imagem em sua mente. Havia uma noiva rindo e um noivo
que parecia emocionado, orgulhoso, nervoso e impaciente ao mesmo tempo. O noivo
sacudia a cabeça, com um sorriso resplandecente, e a noiva o abraçava com força.
«Tem-no feito!», gritava exultante, «sabia que o faria».
Uma mulher mais velha e um homem da mesma idade o abraçavam com força.
«Me alegro de que tenha retornado, filho», dizia o homem e a mulher deixava cair
algumas lágrimas apesar de seu sorriso, um sorriso cheio de amor.
Depois aparecia outro grupo de gente que lhe estreitava a mão e lhe batiam as
costas e a cena se dissolvia em uma confusão de vozes.
Steve permanecia completamente quieto, apertando a mandíbula pelo esforço que
estava fazendo para não levantar-se imediatamente da cama. De onde diabos tinha saído
aquela lembrança? O homem lhe tinha chamado «filho», mas aquela expressão podia ser
uma amostra de afeto mais que a evidência de um tipo de relação. Ele não tinha família,
de modo que todos aqueles deviam ser amigos íntimos, mas Jay lhe tinha contado que
sempre tinha sido um solitário. Quais seriam aquelas pessoas? Estariam preocupadas
com ele? Saberia Jay algo sobre elas?
Diabos, aquela lembrança formaria parte de algo que realmente tinha passado, ou
seria uma cena procedente de alguma filme?
Um filme. Bastou-lhe pensar naquela palavra para que se desencadeasse uma nova
lembrança. Naquela ocasião com títulos de crédito incluídos. Era um programa especial
sobre o Afeganistão. Depois apreciou outro filme, protagonizada por um aclamado ator.
Era um bom filme. Mas de repente, a cena começava a transcorrer a câmara lenta. Steve
se viu a si mesmo em um telhado, com o mesmo ator, quando este estava manipulando
uma 45 automática e lhe apontando com ela. 45 era um assunto sério. Mas o homem
estava muito perto e muito nervoso. Steve viu a si mesmo equilibrando-se contra seus pés
e fazendo que saísse voando a pistola. O ator retrocedia cambaleando-se, tropeçava e
caía gritando até o chão de um edifício de cinco andares.
Steve fixou o olhar no teto da habitação, sentindo o corpo ensopado em suor. Aquilo
era outro filme? Quão único era capaz de recordar eram séries de televisão ou filmes? E
por que eram tão realistas? Tinha que perguntar ao médico a respeito, mas pelo menos
aquilo era um sinal de que estava recuperando a memória, justo como lhe haviam dito
que com muita probabilidade ocorreria. Em todo caso, precisava fazer uma viagem para
que lhe revisassem a vista. Custava-lhe muito ler e essa dificuldade não estava
diminuindo com o tempo. Necessitava de óculos. Óculos...
Um homem mais velho lhe sorria bondosamente, tirava-se uns óculos e os deixava
sobre uma escrivaninha.
«Felicidades, senhor Stone», dizia-lhe.
Steve dominou um juramento quando aquela cena desapareceu de seu cérebro.
Aquilo sim que era um mistério. Por que aquele homem ia chamá-lo de senhor Stone? A
não ser que estivesse utilizando um nome fictício. Sim, aquilo fazia sentido, a não ser que
fosse a cena de outro filme. Possivelmente fosse algo que tinha presenciado, e não algo
que tivesse ocorrido a ele mesmo.
Jay se estirou entre seus braços e despertou bruscamente. Elevou o olhar para ele e
perguntou alarmada:
–O que aconteceu?
Tinha percebido sua tensão, como a tinha sentido do primeiro momento. Steve
conseguiu esboçar um sorriso e lhe acariciar a face com o dorso da mão. Um tipo de
tensão muito diferente se apoderou de seus músculos.
–Nada –lhe assegurou.
Jay parecia tão sonolenta e sensual... Tinha as pálpebras semi-cerradas e a
sedutora boca cheia pelo contato de seus lábios. Olhou a seu redor.
–Estamos em meu quarto –disse perplexa.
–Mmm. Os lençóis de minha cama estavam úmidos, assim decidi te trazer aqui.
Um intenso rubor tingiu as bochechas de Jay quando pensou no motivo pelo que
estavam molhadas os lençóis, mas esboçou um sorriso de satisfação. Levantou a mão
para acariciar o rosto de Steve da mesma forma que ele tinha acariciado o dela: com
ofegante ternura, examinando cada linha de seu rosto e alimentando o desejo de seu
coração. Ela não era consciente de sua expressão, mas Steve a viu e seu coração se
contraiu. Teria querido lhe dizer que não o amasse daquela maneira, mas não o fez
porque era essencial para ele que Jay o amasse como a amava.
Esclareceu-se garganta.
–Temos que tomar uma decisão.
–Ah, sim? E sobre o que?
–Podemos nos levantar e comer o que preparou... –interrompeu-se para elevar a
cabeça e olhar o relógio – faz três horas, ou podemos tentar revirar também esta cama.
Jay considerou ambas as opções.
–Acredito que será melhor que comamos; senão, não terei energias para te ajudar a
revirar esta cama.
–Boa idéia.
Steve a abraçou, sem vontade de levantar-se apesar de sua própria fome, e deslizou
as mãos pela cintura de Jay. Depois, interrompeu-se um instante e posou as mãos em
seu ventre.
–A menos que queira que nos casemos este fim de semana, deveríamos fazer algo
para evitar uma gravidez.
Jay se sentia como se o coração lhe tivesse crescido de tal maneira que enchia todo
seu peito. Durante umas horas gloriosas, esqueceu-se de até que ponto estava
constrangida sua relação por aquele tortuoso labirinto de mentiras. Nada lhe teria gostado
mais que poder dizer que sim, que queria casar-se com ele, mas não se atrevia. Não
podia fazê-lo até que tanto ele como ela soubessem quem era realmente Steve. De modo
que se limitou a responder à parte referida aos anticoncepcionais.
–Não temos que nos preocupar por isso. Estou tomando a pílula. O médico me
receitou faz sete meses porque estava tendo muitos desajustes com a menstruação.
Steve a olhou com os olhos entrecerrados e posou a mão em seu ventre.
–Ocorre-te algo mau?
–Não, era um dos efeitos do estresse que me causava o trabalho. Provavelmente
agora poderia prescindir dela –sorriu e voltou o rosto para ele, – se não fosse pelo
repentino rumo que tomaram os acontecimentos.
–Repentino... é um inferno! –grunhiu Steve. – Tive que esperar dois intermináveis
meses. Mesmo assim, poderíamos nos casar este fim de semana.
Jay se liberou de seu abraço e se levantou. Seu rosto refletia preocupação enquanto
vestia roupa íntima limpa e tirava um pulôver do armário.
Steve a observava da cama.
–Quero uma resposta –lhe pediu.
Jay se meteu o pulôver pela cabeça e afastou precipitadamente o cabelo da cara.
–Steve... –interrompeu-se. Quase lhe doía ver-se obrigada a utilizar aquele nome.
Mais que nunca queria... precisava saber qual era o verdadeiro nome de seu amante. –
Não posso me casar contigo até que tenha recuperado a memória.
Steve afastou os lençóis e se levantou em toda sua magnífica nudez. A Jay lhe
acelerou o pulso ao vê-lo. Todos os quilômetros que tinha percorrido e toda a madeira
que tinha cortado tinham servido para cobrir seu corpo de músculos. Salvo pelas
cicatrizes, Steve não tinha o aspecto de um homem que acabasse de sofrer um grave
acidente. O coração de Jay pulsava a um ritmo lento, pesado. Ela tinha acariciado seu
sexo, tinha desfrutado de sua palpitante invasão e tinha avivado o fogo com seu próprio
fogo. Ao igual a sentia a lassidão de diferentes parte de seu corpo, podia sentir como
crescia seu calor quando o olhava.
–Que importância pode ter que tenha recuperado ou não a memória? –espetou-lhe
Steve.
Jay elevou o olhar bruscamente ao compreender que ele estava zangado.
–Nenhuma outra mulher veio me procurar e sabe disso, assim não volte a utilizar
essa estupidez como desculpa. Por que vamos ter que esperar?
–Quero estar segura –respondeu Jay com voz nervosa.
–Droga, eu estou seguro!
–E como pode estar quando não sabe o que ocorreu? Não quero que te arrependa
de haver casado comigo quando recuperar a memória –tentou sorrir, mas mal que
conseguiu mover os lábios. – Estamos juntos e temos muito tempo pela frente. E por
enquanto, teremos que nos conformar com isso.
Steve se obrigou a conformar-se com isso. E em muitos aspectos, «isso» era muito
mais que suficiente.
Viveram juntos no pleno sentido da palavra, como casal, como amigos e como
amantes. As neves demoraram uma semana para voltar a aparecer e eles aproveitaram
aqueles dias para explorar até o último canto da pradaria. Steve lhe mostrou o sensor que
tinham instalado no caminho e lhe ensinou a utilizar o rádio e o computador. Era um alívio
não ter que lhe ocultar completamente até que ponto estava envolvido no mundo da
espionagem, embora Jay se zangou um pouco com ele porque até então não lhe tinha
falado do computador que havia no abrigo.
Steve gostava de lhe fazer perder a paciência. Era emocionante ver como estreitava
aqueles olhos azuis como se fosse um gato. Aquele era o sinal de que estava disposta a
atacar. O dia que Steve a tinha confundido com um intruso e a tinha atirado ao chão, a
raiva que tinha visto em seus olhos o tinha surpreendido, mas ao mesmo tempo lhe tinha
parecido excitante. A maioria das pessoas que conheciam Jay jamais a acreditariam
capaz dessa classe de aborrecimento, e muito menos de bater em alguém. Aquela reação
lhe havia dito muitas coisas sobre ela. Tinha-lhe revelado um aspecto apaixonado e
imprevisível de sua personalidade. Provavelmente eram muito poucas as pessoas
capazes de fazê-la zangar, mas ele podia fazê-lo porque Jay o amava. E depois de
zangá-la, Steve adorava brigar com ela e terminar fazendo amor.
Fisicamente, aquela mulher o adorava. Continuava estando muito magra, apesar de
que comia bem, mas ao Steve adorava ver seus esbeltos quadris e seu traseiro
embutidos em uns jeans estreitos, de modo que jamais se queixava. Sua pele era suave
como a seda; seus peitos, erguidos; sua boca, cheia e mimosa. Dava-lhe igual como
fosse ou deixasse de ir vestida, porque conhecia o que escondia sob a roupa. E também
sabia que o único que tinha que fazer era lhe estender a mão para que Jay fosse para os
seus braços cálida e disposta. Aquele tipo de resposta ele adorava; havia algo novo nela,
era como se até então não tivesse conhecido nada parecido.
Uma manhã, descobriram ao levantar-se que tinha estado nevando durante a noite.
Continuou nevando com o passar do dia, embora não com força, sim com a suficiente
intensidade como para que os flocos formassem um manto branco que cobria toda a
pradaria. Exceto por algumas viagens para ir procurar mais madeira, Jay e Steve
passaram o dia no interior da cabana, vendo filmes antigos. Essa era outra das vantagens
de contar com uma antena parabólica; sempre podiam encontrar algo interessante que
ver no caso de que gostasse. Algo perfeito para um dia como aquele no que não tinham
nada melhor que fazer que sentar-se a ver a televisão enquanto caía a neve.
Justo antes do anoitecer, Steve saiu para revisar a área como sempre fazia.
Enquanto estava fora, Jay ficou a cozinhar. Cantarolava enquanto o fazia, porque estava
contente. Aquilo era o paraíso. Sabia que não duraria; quando Steve recuperasse a
memória, inclusive no caso de que continuasse querendo casar-se com ela, suas vidas
mudariam. Partiriam dali, teriam que encontrar outra casa. E ela deveria procurar um
trabalho. E seriam outras as coisas que ocupariam seu tempo. Aquele era um tempo que
estava fora do mundo real, mas Jay pretendia aproveitar de cada minuto. Durante um
instante, assaltou-a uma idéia sombria. Talvez isso fosse tudo o que tivessem. E se assim
fosse, aqueles dias eram ainda mais preciosos.
Steve entrou pela porta traseira, sacudindo-a neve dos ombros e do cabelo antes de
tirar o casaco.
–Não vi nada a não ser rastro de coelho –a olhou pensativo. – Você gosta do
coelho?
Jay se voltou bruscamente para ele, esquecendo do queijo que estava gratinando
para o espaguete.
–Nem pense em disparar em um só coelho... –começou a dizer em tom ameaçador.
–Só era uma pergunta –replicou Steve, agarrou-a para lhe dar um beijo e esfregou
sua fria bochecha contra a dela. – Cheira muito bem. A cebola, alho e molho de tomate.
Na realidade cheirava a ela mesma, a essa fragrância doce, cálida e feminina que
Steve associava com a Jay e com ninguém mais. Enterrou o nariz frio em seu pescoço e
inalou com força. Imediatamente, sentiu uma tensão familiar que crescia em suas
vísceras.
–Não vai ganhar nenhum ponto me dizendo que cheiro a alho e cebola –respondeu
Jay, retornando a suas tarefas, embora Steve continuava retendo-a pela cintura.
–Embora te diga que me deixam louco as cebolas e os alhos?
–Todos os homens são iguais. Quando têm fome são capazes de dizer qualquer
coisa.
Rindo, Steve a soltou, sentou-se à mesa e começou a passar manteiga nos
pãezinhos.
–Você gostaria de fazer uma viagem?
–Eu adoraria ir ao Havaí.
–Estava pensando em algo assim como Colorado Springs. Ou possivelmente
Denver.
–Eu já estive em Colorado Springs –respondeu, e o olhou com curiosidade por cima
do ombro. – Por que temos que ir ao Colorado Springs?
–Estou dando por certo que Frank não quer que retornemos a Washington a curto
prazo e logo terei que ir ao médico para que me revise a vista. Isso significa que,
logicamente, teremos que decidir entre Colorado Springs e Denver, e eu prefiro o
Colorado. E também estou certo que Frank não quer que o médico saiba onde está a
cabana, e isso significa que teremos que nos deslocar .
Jay já sabia que tinham que voltar a lhe revisar a vista, mas falar daquele tema era
como introduzir o mundo real em seu paraíso particular. Resultar-lhe-ia estranho ver
outras pessoas, e ainda mais falar com elas. Mas Steve ainda tinha que forçar muito a
vista para ler e já tinha passado tempo suficiente para dar-se conta de que sua visão não
ia melhorar. Pensou no aspecto que teria Steve com óculos e um agradável calor se
estendeu por seu ventre. Atraente, ficaria muito atraente. Dirigiu-lhe um sorriso.
–Sim, acredito que eu gostaria de fazer uma viagem. Levo muito tempo comendo o
que eu mesmo cozinho.
–Por-me-ei em contato com o Frank depois de jantar.
Poderia havê-lo feito naquele momento, mas encher o estômago era mais
importante. Jay tinha preparado uma massa magnífica e fazer contato com o Frank lhe
levaria tempo. O primeiro era o primeiro.
Depois de jantar e ter lavado os pratos, Steve foi ao abrigo para fazer contato com o
Frank, e Jay se deitou no tapete frente à chaminé. Pela primeira vez, esteve pensando no
pequeno e moderno apartamento de cujos gastos se estava ocupando Frank. Não tinha
nada que ver com aquela rústica cabana, mas Jay preferia muito a cabana. Odiaria ter
que partir. Aquele lugar devia ser maravilhoso no verão, mas se perguntava se até lá
continuariam ali. Certamente Steve já teria recuperado a memória a essas alturas, e
embora não fosse assim, quanto tempo podia passar Frank sem lhe dizer a verdade? Não
podiam permitir que vivesse eternamente a vida de outro homem. Ou sim? Seria esse o
plano? saberiam possivelmente que nenhuma vez recuperaria a memória?
Os espelhos de seu particular labirinto continuavam lhe oferecendo todo tipo de
respostas, diferentes peças para o quebra-cabeças, diferentes soluções. E nenhuma
delas parecia se encaixar.
–Está dormindo? –perguntou Steve brandamente.
Jay se sobressaltou. Deu meia volta no chão com o coração em um punho.
–Não te ouvi entrar. Não fez nenhum ruído.
Steve sempre se movia sigilosamente, como um gato, mas em outras condições, Jay
teria ouvido abrir a porta de trás. Estava tão profundamente absorta em seus
pensamentos que não tinha ouvido nada.
–Para poder me aproximar mais de ti, querida –respondeu Steve com sua melhor
imitação da voz de um lobo feroz.
Reuniu-se com ela no tapete, afundou as mãos em seu cabelo e procurou seus
lábios. Beijou-a lenta, profundamente, tomando-se todo o tempo do mundo e utilizando a
língua para acariciar o interior de sua boca. Jay tinha problemas para respirar e os olhos
se fechavam. O desejo era como um calor intenso que ia expandindo-se em seu interior
até enchê-la.
Não tinham nenhuma pressa. E era maravilhoso estar ali deitados, ao calor do fogo e
saboreando seus beijos. Mas ao cabo de um tempo, o calor começou a resultar
excessivo. Jay gemia enquanto Steve lhe desabotoava os botões da camisa de flanela e
a abria para pressionar os lábios contra as curvas de seus seios. Colocou-se em cima
dela, controlando com suas pernas as de Jay, enquanto ela as movia inquieta. Queria
mais. Voltou a gemer, com a voz transbordante de desejo, e girou no chão até que seu
mamilo roçou os lábios de Steve. Este deslizou lentamente a língua sobre o mamilo,
cobriu-o com a boca e sugou com força, lhe dando o que necessitava.
A luz do fogo arrancava brilhos dourados do cabelo de Jay e tingia sua pele de um
resplendor rosado enquanto Steve lhe desabotoava as calças para tirá-la. Sua boca
estava vermelha, úmida, brilhante pela umidade dos beijos. De repente, Steve já não foi
capaz de agüentar nem um segundo mais e se despiu rapidamente. Jay ainda tinha a
camisa de flanela pendurando dos ombros, Steve a tirou, ajoelhou-se entre suas pernas e
se inclinou para entrar nela, para fundir seus corpos da mesma maneira que tinham
fundido suas vidas.
Permaneceram juntos muito tempo depois, muito satisfeitos para mover-se. Steve
jogou outra lenha ao fogo, vestiu as calças e cobriu Jay com sua própria camisa para
protegê-la do frio. Ela permaneceu sentada no círculo de seus braços, apoiando a cabeça
em seu ombro e desejando que não ocorresse nunca nada que pudesse alterar sua
felicidade.
Steve fixava o olhar nas chamas enquanto esfregava o queixo uma e outra vez
contra o cabelo de Jay.
–Quer ter filhos? –perguntou-lhe em tom ausente.
Aquela pergunta a sobressaltou o suficiente para afastar a cabeça de seu ombro.
–Eu... acredito que sim –respondeu. – A verdade é que nunca pensei nisso porque
não me parecia uma possibilidade, mas agora... –lhe quebrou a voz.
–Antes não pudemos desfrutar de um verdadeiro casamento. Mas quero que desta
vez seja diferente. Quero chegar em casa cada noite, viver uma vida normal –esticou os
braços a seu redor. – Gostaria de ter uns dois filhos, mas isso tem que ser uma decisão
dos dois. E não sei o que pensa a respeito.
–Eu gosto de crianças –disse Jay brandamente, mas a culpa a assaltava. Eles não
tinham estado casados! Steve estava se sentindo culpado da conduta de outro homem.
–Sim, eu também gosto –sorriu, sem deixar de olhar o fogo. – fico encantado vendo
a Amy...
Jay se afastou bruscamente dele, com os olhos transbordantes de pânico.
–Quem é Amy?
O rosto do Steve se endureceu. Sua boca era uma fria careta.
–Não sei –murmurou. – Me sinto como se acabasse de me chocar contra um muro.
Surge uma palavra e depois, plas! Choco-me contra o muro e não encontro nada.
Jay se sentia morrer por dentro, teria se equivocado ao pensar que Frank não teria
sido capaz de fazer algo assim se Steve fosse um homem casado?, seria Steve pai, além
de marido?
Steve a observava com atenção e pareceu adivinhar o rumo que estavam tomando
seus pensamentos.
–Não, não estou casado e não tenho filhos –disse bruscamente, e a fez voltar-se
para ele. – Provavelmente seja a filha de algum amigo –a estreitou de novo contra ele. –
Conhece alguém que tenha uma filha chamada Amy?
Jay negou com a cabeça sem atrever-se a olhá-lo. O medo havia retornado, sentia-o
crescer dentro dela. Estaria Steve recuperando a memória? E quando o fizesse, iria
embora? O paraíso não podia durar para sempre.
Steve ficou acordado muito depois de que foram à cama naquela noite. Jay dormia
entre seus braços como tinha feito cada noite desde que tinham chegado os ventos
quentes. Seu cabelo se estendia sobre o ombro esquerdo de Steve, que sentia também o
calor de seu fôlego no pescoço. Pressionava seu corpo sedoso e nu com o de Steve e
deslizava o braço ao redor do peito deste, que recordou o pânico que por um instante se
refletiu em seus olhos quando ele tinha mencionado a Amy, fosse quem fosse aquela
menina. Abraçou-a com força, tentando mitigar seus medos, embora estivesse
adormecida.
Provavelmente teriam que passar muitos momentos como aquele, nos que uma
palavra casual ativava antigas lembranças. Esperava que não a assustassem muito.
Realmente tinha tanto medo de que não a quisesse quando recuperasse a memória?
Deus, acaso não se dava conta do muito que a amava? Seus sentimentos foram muito
além de sua memória. Estavam gravados em seus ossos, enterrados nas profundidades
de sua existência.
Amy. Amy.
Aquele nome atravessou sua mente como um raio e de repente viu uma menina
pequena, de cabelo escuro e brilhante, rindo enquanto se mordiscava a mão.
O coração lhe pulsou com força. Sua memória acabava de lhe subministrar um rosto
àquele nome. Não sabia quem era aquela menina, mas conhecia seu nome e seu rosto. A
imagem mental desapareceu, mas Steve se concentrou e compreendeu que podia
recuperá-la como se fosse uma lembrança real. Tal como havia dito a Jay, devia ser a
filha de uma amiga, uma menina a que certamente tinha conhecido depois de seu
divórcio.
Relaxou-se agradado com aquela lembrança que tinha conseguido materializar. A
satisfação do sexo fazia que sentisse o corpo relaxado e sua respiração foi fazendo-se
mais profunda e regular, adaptando-se ao ritmo do sono.
«Tio Luke! Tio Luke!»
Ressonavam em sua mente umas vozes infantis e o filme começou a desenvolver-
se. Dois meninos, cruzando pela grama, saltando e chamando-o tio Luke com toda a
força de seus pulmões. Outra cena. Irlanda do Norte. Belfast. Reconheceu aquele lugar
enquanto um calafrio de terror percorria suas costas. Dois meninos pequenos jogavam na
rua. De repente, levantavam-se vacilantes e punham-se a correr.
Uma imagem. O primeiro dos dois meninos elevava o olhar para ele com lábios
trementes e lágrimas nos olhos e dizia: «por favor, tio Duncan».
Outra imagem. Dan Rather amontoava jornais na redação enquanto passavam os
títulos de crédito.
Uma nova imagem. Um enorme letreiro em uma estação que dizia Preferiria estar na
Disney World.
Mickey Mouse dançando... Um camundongo rebuscando entre os cubos de lixo de
um beco... Uma granada movendo-se lentamente no ar e caindo sobre o cubo de lixo com
um ruído surdo; um ruído maior e o cubo saía disparado... Outra imagem: um navio de
vela branco aproximando-se da borda e um jovem moreno elevando a mão...
As cenas foram abrindo-se caminho em sua consciência, eram como chamas que se
passavam um após o outro, como se alguém estivesse folheando a toda velocidade as
páginas de um livro ante seus olhos.
Estava suando outra vez. Maldição. Aquela livre associação de lembranças era um
inferno. O que significavam aquelas lembranças? Teriam ocorrido de verdade? Não o
inquietariam tanto se pudesse discernir quais eram reais e quais se referiam a coisas que
tinha visto na televisão ou no cinema, ou que possivelmente tinha imaginado a partir da
leitura de um livro. De acordo, algumas eram óbvias, como aquela em que aparecia Dan
Rather com os títulos de crédito no rosto. Mas desde que lhe tinham tirado as ataduras
dos olhos havia visto muitos informativos, de modo que aquele podia ser uma lembrança
recente.
Mas quando se referiam a ele como «tio Luke» ou «tio Dan»... Havia algo nesses
meninos, nesses nomes, que lhe parecia muito real. Da mesma forma que parecia a Amy.
Levantou-se da cama, com muito cuidado para não despertar Jay, e se dirigiu para
o salão, onde permaneceu durante um longo momento frente à chaminé, observando os
rescaldos. Estava a ponto de recuperar plenamente a memória e sabia. Sentia-se como
se o único que tivesse que fazer fosse dobrar uma esquina para que tudo aparecesse de
novo ante ele. Mas dobrar aquela esquina mental não era tão fácil como parecia. Steve se
tinha convertido em um homem diferente da explosão. Estava tentando conectar a duas
pessoas separadas para as fundir em uma.
Tinha estado esfregando-os dedos com o polegar. Quando o advertiu, ergueu a mão
e a olhou. Tinha recuperado os calos graças aos constantes cortes de lenha, mas as
impressões digitais continuavam apagadas. Quanto de si mesmo teria deixado, ou quanto
de sua identidade teriam apagado da mesma maneira que tinham feito desaparecer suas
digitais? Quando se olhava no espelho, até que ponto seguia sendo Steve Crossfield, em
vez do produto de uma reconstrução facial? Seu rosto tinha mudado, sua voz tinha
mudado e suas impressões digitais tinham desaparecido.
Era um homem novo. Tinha renascido da escuridão, tinha sido devolvido à vida pela
voz de Jay que o chamava para a luz.
Mas pudesse ou não recordar, ainda tinha Jay. Jay era uma parte dele que a cirurgia
não podia mudar.
A habitação foi ficando fria à medida que o fogo se apagava e Steve sentiu por fim o
frio em seu próprio corpo. Voltou para o quarto, deslizou-se sob os lençóis e sentiu o
quente corpo de Jay enroscando-se contra ele. Ela murmurou algo, estreitou-se contra ele
e procurou sua postura habitual.
Imediatamente, atravessou-o um desejo tão intenso como se não tivessem feito o
amor uma hora antes.
–Jay –sussurrou com voz rouca, e a colocou debaixo ele.
Jay despertou, alongou os braços para ele, rodeou-lhe com eles o pescoço e se
amaram um ao outro no meio da escuridão até que Steve não foi capaz de conservar
outras lembranças que os que tinham construído em comum.
Capítulo 11
À manhã seguinte, abandonaram cedo a cabana para poder encontrar-se com o
Frank em Colorado Springs essa mesma tarde. A Jay a rasgava ter que abandonar a
cabana; aquele tinha sido seu mundo durante tanto tempo que, ao afastar-se dele, sentia-
se exposta. Só saber que retornariam no dia seguinte lhe dava a coragem que
necessitava para abandoná-la. Sabia que algum dia teriam que deixá-la para sempre,
mas ainda não estava preparada para enfrentar-se a esse momento. Queria passar mais
tempo com o homem que amava.
Pretendia perguntar ao Frank o nome do agente que supostamente tinha morrido no
dia da explosão. Frank provavelmente não queria dizer-lhe mas tinha que perguntar.
Porque embora não pudesse pronunciá-lo em voz alta, precisava sabê-lo, tinha que pôr
um nome ao homem que amava. Olhou-o enquanto Steve conduzia o jipe com mãos
peritas e sentiu que seu coração se enchia. Era um homem alto, de aspecto rude,
absolutamente atrativo com aquelas feições operadas, mas bastava olhá-lo nos olhos
para embriagar-se de puro prazer. Como podiam ter imaginado que lhes seria possível
fazer passar a aquele homem pelo Steve Crossfield?
Aquele subterfúgio fazia água por toda parte, mas Jay não se deu conta até que
tinha estado muito apaixonada pelo Steve para que pudesse lhe importar. Aproveitaram-
se do impacto da notícia para evitar que Jay fizesse perguntas para as que não tinham
resposta. Perguntas tais como a razão pela que não utilizavam seu tipo sangüíneo ou
alguma marca dental para determinar a identidade de seu paciente. Do primeiro
momento, Jay tinha sabido que Frank estava lhe ocultando algo, mas estava muito
preocupada com o Steve para pensar que era algo mais que os detalhe de uma missão
secreta. A verdade era que se deixou enganar tão facilmente porque no fundo preferia
que a enganassem; depois de ver o Steve convexo na cama no hospital, tão ferido
gravemente e, ao mesmo tempo, lutando com uma determinação tão férrea apesar de sua
inconsciência, não tinha desejado outra coisa que estar a seu lado e ajudá-lo a lutar.
Não podiam alojar-se no mesmo hotel em que ficaram da primeira vez porque Frank
não queria arriscar-se a que o recepcionista os reconhecesse. Inclusive utilizaram nomes
diferente. Quando chegaram, Frank já estava ali e tinha feito as reservas com os nomes
do Michael Carter e Faye Wheeler. Quartos separados. Steve se mostrou abertamente
aborrecido, mas acompanhou Jay ao quarto desta sem fazer nenhum comentário e se
dirigiu depois ao seu. O oftalmologista examinou ao olhos de Steve imediatamente. Logo
o levaram a óptica para que lhe fizesse uns óculos que estariam prontos na manhã
seguinte. Jay permanecia em todo momento em um segundo plano, perguntando-se que
molas teria tido que mover Frank, e quantos braços que retorcer, para que tudo se fizesse
tão rápido.
Retornaram ao hotel pouco depois do anoitecer e Steve se dirigiu imediatamente ao
quarto de Jay.
–Olá, querida –lhe disse.
Entrou no quarto e fechou a porta atrás dele. Antes de que Jay pudesse responder,
estava agarrando-a com força pelos braços e devorando seus lábios.
Estremecida de prazer, Jay se estreitou contra ele e afundou os dedos em seu
cabelo. Steve cheirava a vento e a neve, sua pele estava gelada, mas sua língua era
cálida e atrevida. No final, elevou a cabeça com um olhar de masculina satisfação
estampada no rosto. Deslizou o polegar pelos lábios de Jay, avermelhados pelo beijo.
–Querida, é possível que me gele o traseiro ao vir ao seu quarto esta noite, mas não
penso dormir sozinho.
–Tenho uma sugestão para te fazer –ronronou Jay.
–Diga.
–Não te dispa até que tenha chegado ao meu quarto.
Steve soltou uma gargalhada e voltou a beijá-la. A boca de Jay o estava voltando
louco; tinha o mais erótico dos efeitos sobre ele. Beijá-la era muito mais excitante que
fazer amor com outras mulheres. E, só durante um instante, antes de que se
desvanecessem por completo, algumas dessas mulheres apareceram em sua mente.
–O médico já está de retorno a Washington. Frank ficará aqui até amanhã, de modo
que estamos os três juntos outra vez. Tem fome? O estômago de Frank continua ajustado
aos horários de Washington.
–A verdade é que estou faminta. E eu não gostaria que nos deitássemos tarde, já
sabe.
Steve olhou para a cama.
–Sim, já sei.
Jay esperava ter alguma oportunidade para perguntar ao Frank pelo nome do
agente. Não queria arriscar-se a perguntar aquilo na presença do Steve porque ouvir seu
próprio nome poderia lhe ativar a memória e ela ainda não podia enfrentar-se a aquela
possibilidade. Queria que Steve recordasse, mas queria que o fizesse quando estivessem
sozinhos na pradaria. Se não surgisse nenhuma oportunidade de falar com o Frank,
chamaria-o quando se retirassem cada um a seus quartos, sempre e quando Steve não
fosse diretamente ao dela. Mas provavelmente, este tomaria banho antes em seu próprio
quarto e trocaria de roupa. Suspirou cansada de ter que antecipar-se a tudo. Ela não
estava preparada para aquele mundo.
Steve advertiu aquele suspiro e também o desespero que refletiam seus olhos. Jay
não havia dito nada, mas essa expressão estava ali desde que tinha tido sua primeira
lembrança no dia anterior. Aquilo o intrigava. Não lhe ocorria nenhuma razão pela que Jay
pudesse lamentar que recuperasse a memória. E precisamente porque não o entendia e
porque não havia nenhuma razão lógica, não podia esquecê-lo. Quando algo lhe
preocupava, pensava nisso até lhe encontrar o sentido. Jamais renunciava, nunca o
deixava passar. Sua irmã muitas vezes lhe dizia que devia ter alma de bulldog...
“Sua irmã”?
Steve ficou muito calado enquanto jantavam os três em um restaurante italiano.
Parte dele estava desfrutando daquela saborosa comida e outra parte estava ativamente
envolta na conversação, mas uma terceira estava examinando aquela recordação de
todos os ângulos possíveis. Se tinha uma irmã, por que lhe havia dito Jay que não tinha
família? E por que Frank não lhe tinha falado de nenhum parente? Aquilo era do mais
disparatado. Steve podia aceitar que Jay tivesse uma versão diferente de sua vida porque
não sabia em que circunstâncias se separaram, mas era impossível que Frank não
soubesse quem eram seus amigos e familiares. Isso caso as coisas que estava
recordando fossem reais.
Uma irmã. A lógica lhe dizia que era impossível. E suas vísceras lhe diziam que a
lógica podia enganá-lo.
Uma irmã. Amy. «Tio Luke! Tio Luke!». As vozes dos meninos reverberavam em sua
mente enquanto ria por algo que Frank acabava de dizer. «Tio Dan. Tio Luke. Tio, Luke,
Luke, Luke...».
–Você está bem? –perguntou-lhe Jay.
A preocupação escurecia o olhar deste quando ela posou a mão em seu braço.
Podia sentir a tensão que emanava de Steve e a surpreendia que Frank não parecesse
notar que estava passando algo anormal.
No momento em que Steve se voltou para Jay e sorriu, deixou de lhe palpitar a
cabeça. Sabia-se disposto a dar seu passado por perdido sempre e quando pudesse ter a
Jay. O cordão umbilical que os unia era tão sensível como as cordas de um violino.
–Dói-me um pouco a cabeça –respondeu. – Suponho que me cansou a vista ao
conduzir.
Ambas as coisas eram verdades, embora a segunda não era a causa da primeira.
Além disso, não tinha tido que forçar a vista para conduzir. O único problema que tinha
era para ler de perto; sua visão a longa distância continuava sendo tão precisa como
sempre. Nesse aspecto, tinha a vista de um piloto de aviação.
Jay voltou a concentrar-se na conversação, mas era tão consciente de que Steve
começava a relaxar como o tinha sido de sua crescente tensão. Teria ocorrido algo
aquela tarde que não lhe tinha contado? A sensação de medo era quase assustadora e
desejava com todas suas forças que voltassem para a cabana.
Quando retornaram ao hotel, advertiu aliviada que Steve se dirigia a sua própria
habitação em vez de ficar falando com o Frank ou de seguir com ela diretamente à sua.
Assim que esteve em seu quarto, Jay se equilibrou sobre o telefone e marcou o número
do quarto do Frank.
–É Jay –se identificou a si mesmo.
–Ocorre algo? –Frank ficou imediatamente em alerta.
–Não, tudo vai bem. É só que há algo que me inquieta, mas não lhe queria perguntar
isso diante do Steve.
Frank se esticou em sua habitação. Teria cometido alguma sentença?
–É sobre o Steve?
–Bom, não, na realidade não. O agente que morreu... Como se chamava?
Ultimamente penso muito nisso, em que morreu e nem sequer sei seu nome.
–Não tem por que sabê-lo. Nunca o conheceu,
–Eu sei –respondeu brandamente. – Só queria saber algo sobre ele. Steve poderia
ter estado em seu lugar. Além disso, agora que está morto, não há nenhum motivo para
manter oculta sua identidade, não é verdade?
Frank pensou nisso. Podia lhe dar um nome fictício, mas decidiu lhe dizer pelo
menos algo certo. Com o tempo, Jay conheceria aquele nome e poderia ajudar que
acreditasse que na realidade todo tinha sido um simples engano.
–chamava-se Lucas Stone.
–Lucas Stone –Jay repetiu aquele nome com voz suave. – Estava casado? Tinha
família?
–Não, não era casado –respondeu Frank, evitando intencionalmente a segunda
pergunta.
–Obrigado por me dizer isso. Incomodava-me não sabê-lo.
E Frank nunca saberia até que ponto, pensou enquanto pendurava lentamente o
telefone. Lucas Stone. Repetiu o nome uma e outra vez, associando-o ao rosto do Steve
e sentindo que seu coração voltava a pulsar de novo. Lucas Stone. Sim.
Só então se deu conta do engano que acabava de cometer. Se até então lhe tinha
resultado difícil referir-se a ele como Steve, a partir desse momento lhe resultaria quase
impossível. Steve era um nome roubado, mas Jay se acostumou a ele porque não havia
alternativa. O que ocorreria se em algum momento lhe escapava o nome Lucas?
Permaneceu sentada na cama durante um longo momento, debatendo-se em meio
daquele labirinto de espelhos que a apanhavam com seus falsos reflexos. As coisas que
não sabia a paralisavam tanto como as que sabia, até o ponto de que temia confiar em
sua própria intuição. Não era um pessoa feita para a mentira; era uma mulher franca.
Precisamente, essa era uma das razões pelas que não tinha encaixado no mundo dos
bancos.
No final, cansada de aparecer a tantas portas sem saída, meteu-se na ducha e se
preparou para deitar-se. Quando saiu do banho, Lucas... Steve!, recordou-se, frenética,
estava deitado na cama, parcialmente nu.
Jay olhou para a porta.
–Não temos feito isto mesmo em outra ocasião?
Lucas se levantou e a estreitou contra ele.
–Com uma diferença. Uma grande diferença.
Lucas cheirava a sabonete, a loção de barba e ao aroma almiscarado dos homens.
Jay se agarrou a ele, pressionou o rosto contra seu pescoço e inalou aquela fragrância. O
que faria se a deixasse? Seria como viver em um mundo de que tinha desaparecido a cor,
sentiria-se incompleta eternamente. Lentamente, deslizou as mãos por seu peito,
enredando os dedos no pêlo encaracolado e sentindo o calor de sua pele e os músculos
de ferro que escondia. Tinha uns músculos tão forte que mal cediam sob a pressão de
seus dedos. Desconcertada, Jay pressionou experimentalmente o braço esquerdo do
Steve e observou como empalidecia sua própria unha pela pressão, mas ele continuava
sem notar nada.
–O que está fazendo? –perguntou-lhe Lucas com curiosidade.
–Ver o duro que está.
–Querida, esse não é o lugar indicado.
Jay soltou uma gargalhada e elevou rapidamente o olhar para ele.
–Acredito que em outras partes de seu corpo já sei quão duro está.
–Ah, sim? Há partes e partes do corpo. E algumas necessitam muitas mais cuidados
que outras.
Enquanto falava, começou a deslocá-la para a cama. Estava excitado. Jay, sentindo
a pressão de sua excitação contra ela, deslizou a mão para a protuberância de seu jeans.
–Essa é uma das partes de seu corpo que necessita de atenção?
–Muita atenção –lhe assegurou ele enquanto se deitava junto a ela na cama.
Sentiu que Jay movia as pernas e elevava os quadris para amoldar-se a ele e toda a
diversão desapareceu de seu rosto para ceder o passo a uma expressão feroz e intensa.
Era um olhar que fazia estremecer Jay de deliciosa antecipação.
Elevou o olhar para ele. O rosto de Steve também perdeu toda a tensão enquanto
Jay deslizava as mãos delicadamente ao longo de seu corpo.
–Amo-te –lhe disse. E seu coração acrescentou: «Lucas».
A manhã seguinte era diferente. Era como se o mundo tivesse mudado durante a
noite, mas Steve não era capaz de assinalar qual era a diferença. Era uma sensação
estranha, como se estivesse mais a gosto consigo mesmo. Tinha Jay entre os braços, sua
juba sedosa roçava seu ombro. Se estivessem na cabana, teria se levantado para
acender o fogo e teria voltado para a cama disposto a fazer amor com ela. Mas não
estavam na cabana e tinha que retornar a seu quarto para barbear-se e vestir-se. Esse
maldito Frank... Tinha reservado quartos separados sabendo que só necessitavam de um.
Mas Jay não era como as demais mulheres; Jay era especial. E possivelmente aquele
tivesse sido seu tributo a esse ser tão especial.
Outras mulheres. A idéia continuava aguilhoando-o quando deixou Jay e retornou a
seu quarto. Estava recuperando a memória, não de uma forma melodramática, como se
de repente se fizesse a luz, mas sim como se fossem apareceram uma série de peças
desconectadas entre si. Surgiam nomes, rostos. Entretanto, em vez de sentir-se eufórico,
ia experimentando uma crescente sensação de receio. Não havia dito ao Frank que tinha
recuperado a memória, esperaria até que a tivesse recuperado plenamente e tivesse tido
tempo de considerar sua situação. A cautela era quase uma segunda natureza nele, ao
igual à rápida revisão que fez em seu quarto para assegurar-se de que ninguém tinha
entrado em sua ausência.
Tomou banho e se barbeou, mas enquanto tomava banho, tirou o chapéu a si
mesmo olhando-se fixamente no espelho, tentando averiguar seu passado naquele
reflexo. Mas como podia reconhecer a si mesmo quando seu rosto tinha mudado? Que
aspecto teria anteriormente? perguntava-se se Jay teria alguma fotografia dele; se a tinha
conservado, seria uma fotografia antiga. As mulheres tendiam a conservar as lembranças
e seu divórcio não tinha sido muito dilacerador, de modo que possivelmente Jay não
tivesse rasgado nenhuma de suas fotografias. E talvez vê-la podia lhe proporcionar algum
vínculo com o passado.
Diabos, realmente serviria para algo? olhou-se aborrecido. Não tinha reconhecido
nem Jay nem o Frank, por que então ia reconhecer seu velho rosto? O único rosto que
conhecia era o que podia ver naquele momento e, realmente, não era grande coisa. Dava
a sensação de que tinha jogado muitas vezes ao rugby sem casco.
Mesmo assim, continuava experimentando a sensação de estar a beira de algo...
Estava ali, mas além de seu alcance.
Era uma sensação que o assaltava em muitos momentos, como quando se pôs com
extraordinária facilidade o porta pistola no ombro, ou ao perceber a familiaridade com que
tinha agarrado a pistola. Aquela facilidade, aquela familiaridade, tinham estado antes ali,
mas naquele momento eram algo diferente, como se o vínculo entre o passado e o
presente estivesse voltando. Logo. Aconteceria logo.
O dia transcorreu sem incidentes, mas a sensação de antecipação não o
abandonava. Reuniram-se os três durante o café da manhã; Frank e ele se aproximaram
depois à ótica para ir procurar os óculos. Durante o trajeto de volta, Steve perguntou:
–Encontraram já esse tal Piggot?
–Não, ainda não. Soube-se algo dele faz um mês, mas desapareceu de novo antes
de que pudéssemos apanhá-lo.
–É bom?
Frank vacilou um instante.
–Condenadamente bom. Um dos melhores. Seu perfil psicológico diz que é um
psicopata, mas muito controlado, muito profissional. Para ele, seus trabalhos são motivo
de orgulho. Essa é a razão pela que quer te apanhar. Você lhe apertou as porcas como
ninguém. Danificaste-lhe vários trabalhos, matou seus homens e conseguiste lhe dar um
golpe tão forte que se viu obrigado a desaparecer do mapa durante uns meses para
recuperar-se.
–É possível que lhe tenha dado duro, mas não o suficiente –disse Steve com ar
ausente. – Tem alguma fotografia dele?
–Aqui não. Só há uma. Tiramos com um objetivo telescópico e está bastante
imprecisa. É um homem loiro, de quarenta e dois anos, falta-lhe o lóbulo da orelha
esquerda, também por tua culpa. Esse foi um duro golpe para sua reputação.
–Sim, bom, há dias nos que não estou de muito bom humor.
Uma resposta própria de Lucas Stone. Frank sentiu o impacto como se fosse uma
bofetada, mas manteve as mãos firmemente obstinadas ao volante.
–Está recuperando a memória?
–Ainda não –mentiu Steve.
Estava vendo já ao Geoffrey Piggot, um rosto magro, maligno e frio. Um novo rosto
associado a um nome.
Steve esteve muito calado durante o caminho de volta à cabana. Jay o olhava de
esguelha, mas os óculos de sol lhe ocultavam os olhos e não podia ver sua expressão.
Ainda sentia a tensão que o embargava, da mesma maneira que a havia sentido a noite
anterior durante o jantar.
–Voltou a ter dor de cabeça? –perguntou-lhe por fim.
–Não –respondeu Steve, e suavizou a brutalidade de sua resposta alongando a mão
para lhe acariciar o queixo. – Me encontro bem.
–Frank te disse algo que tenha te incomodado?
Steve considerou as desvantagens de deixar que alguém chegasse a estar tão unido
a ele que pudesse interpretar perfeitamente suas mudanças de humor, mas depois
compreendeu que no caso de Jay, aquela batalha estava perdida, porque sempre queria
que estivesse mais perto dele. E além disso, não tinha permitido que se aproximasse
dele, simplesmente, tinha ocorrido.
–Não. Só me contou algumas coisas sobre o homem que tentou me converter em
um pedaço de carne assada.
–Aff, que bruto é! –respondeu Jay, lhe apertando a mão.
Steve soltou uma gargalhada.
Ao cabo de uns minutos, Jay se encostou no assento, com a cabeça apoiada no
respaldo.
–Tenho vontades de voltar para casa.
Steve estava completamente de acordo com ela.
Levavam tanto tempo sós que aquela viagem tinha significado virtualmente um
choque cultural. As luzes de néon e o tráfego tinham suposto um autêntico sobressalto
para seus sentidos, acostumados aos abetos chapeados, a neve e um profundo silêncio.
Embora não lhe importaria nada retornar à civilização se fosse para que Jay e ele se
fizessem análise de sangue e conseguissem a licença de casamento.
Análise de sangue.
De repente, sentiu-se alerta, como se havia sentido milhares de vezes quando sua
vida estava pendente de um fio. A adrenalina chispava por suas veias e o coração lhe
pulsava a toda velocidade, embora não ia tão rápido como seu cérebro. Uma análise de
sangue. Maldita fora, aquilo não encaixava. Por que tinha tido Jay que identificá-lo
quando eles tinham todos os meios para fazê-lo? Era seu agente. É obvio, suas
impressões digitais tinham desaparecido, estava inconsciente e sem voz, mas mesmo
assim, teriam seu tipo sangüíneo, poderiam ter feito exame em sua arcada dentária. Para
eles devia ser relativamente simples estabelecer sua identidade. Portanto, não
necessitavam de Jay absolutamente, mas era evidente que tinham querido contar com ela
por alguma razão.
Steve repassou mentalmente o que Jay lhe havia dito. Queriam que o identificasse
porque não tinham nenhum documento e precisavam saber se era seu ex-marido o que
tinha sobrevivido porque ele e um de seus agentes se viram apanhados em uma explosão
e um deles estava morto. Isso significava que devia haver dois agentes no lugar, mas isso
não mudava o fato de que Frank tivesse todos os métodos para identificar a ambos.
Supostamente, ele e o outro agente se pareciam fisicamente, deviam pesar e medir o
mesmo, além de ter a mesma cor de cabelo e de olhos. Mas mesmo assim, isso não teria
que ter suposto nenhum problema para identificá-los, inclusive no caso de que tivessem
coincidido seus tipos sangüíneos. Porque ainda podiam ir à informação das arcadas
dentárias.
Maldito fosse, sentia-se como um estúpido. Por que não se tinha dado conta com
antecedência? Tinham metido Jay naquele assunto por alguma razão, mas certamente,
não era porque teria que identificá-lo. Que demônios estava tramando Frank?
Pensar. Tinha que pensar. Sentia-se como se estivesse tentando recompor um
quebra-cabeças ao que lhe faltavam todas as peças, de modo que, por mais que as
movesse, não terminavam de encaixar. Se ao menos pudesse recordar, maldição!
Por que Frank teria mentido a Jay? por que inventar essa história de que ele e o
outro agente se pareciam extraordinariamente um ao outro? por que tinham insistido em
que necessitavam da Jay?
E por que podiam necessitar da Jay?
As vozes retumbavam em seu interior.
«Felicidades senhor Stone... Me alegro de que tenha tornado, filho... Tio Luke!...
Stone... filho... Tio Luke... Filho... Luke... Stone».
Luke Stone.
Agarrou-se com força ao volante. Sentia-se como se acabassem de lhe dar um golpe
no peito. Luke Stone. Lucas Stone. Que se fosse ao inferno o maldito Frank Payne!
chamava-se Lucas Stone!
Assim que atravessou mentalmente essa soleira, todas as lembranças fluíram de
forma confusa, lhe criando tanto ruído mental que mal podia conduzir. Não se atrevia a
parar. Não se atrevia a deixar que Jay soubesse o que estava sentindo. Sentia... Deus,
não sabia como se sentia. Doía-lhe a cabeça, mas ao mesmo tempo experimentava uma
enorme sensação de alívio. Tinha recuperado sua identidade, a sensação de ser ele
mesmo. Por fim se conhecia.
Era Lucas Stone. Tinha família e amigos, um passado.
Mas não era o ex-marido de Jay. Não era Steve Crossfield. Não era o homem por
quem Jay se apaixonou.
Então esse era o motivo pelo que a tinham envolvido naquele enredo. Havia um só
agente na explosão, e era ele. Steve Crossfield devia estar ali por qualquer outra razão e
tinha morrido. Lucas tentou recordar os momentos anteriores à explosão, mas apareciam
imprecisos, fragmentados. Provavelmente nunca os recordaria. Mas sim recordava ter
visto um homem alto e magro caminhando pela rua; a luz das luzes desenhava sua
silhueta no pavimento ensopado. Esse podia ser Steve Crossfield. Não recordava nada
do que tinha ocorrido depois, embora naquele momento se lembrava de ter feito um
contato para consertar um encontro com o Minyard. E também recordava a si mesmo indo
no lugar da reunião. Tinha elevado o olhar, tinha visto esse homem... e depois nada. Todo
o resto era o vazio, até que a voz de Jay o tinha tirado da escuridão.
Evidentemente, sua coberta tinha falhado. Piggot andava atrás dele; essa era a
razão de toda aquela farsa. Forçar Jay para que acreditasse que ele era seu ex-marido e
fazer que ele assumisse a identidade do Steve Crossfield era a melhor forma que tinha
encontrado o Homem de ocultá-lo até que pudessem neutralizar ao Piggot. O Homem
jamais subestimava a seus inimigos e Piggot era, como o próprio Frank havia dito, muito
bom. E a extensão daquele engano também indicava a Lucas que o Homem suspeitava
que havia alguém infiltrado entre seus homens e não confiava nos canais tradicionais.
Assim tinha decidido enterrá-lo e Lucas tinha despertado convertido em outro
homem, com outro rosto, com outra vida, inclusive com uma mulher.
Não, maldita fora! A fúria o alagava e seus nódulos empalideciam enquanto
esquivava como um autômato a neve gelada da estrada. Possivelmente ele não fosse
Steve Crossfield, mas Jay era dele. Dele. Era a mulher de Lucas Stone.
Em silêncio, xingou o Homem e o Frank com os piores insultos que foram a sua
mente, que aplicou a várias gerações de seus antepassados. Frank foi o pior, mas Lucas
podia ver a fina mão do Homem em tudo aquilo. Ninguém tinha uma mente tão intrincada
como Kell Sabin; esse era o motivo que havia lhe valido o apelido do Homem.
Provavelmente, não, com toda segurança, tinham-lhe salvado a vida se havia alguém
infiltrado que estava passando informação ao Piggot, mas não eram eles os que teriam
que dizer a Jay que não era seu ex-marido. Não eram eles os que teriam que dizer que o
homem a que amava estava morto e ela tinha estado deitando-se com um desconhecido.
O que diria Jay? E mais importante ainda, o que faria?
Não podia perdê-la. Não poderia suportar. Esperava, e provavelmente saberia como
dirigi-lo, surpresa, aborrecimento, medo inclusive, mas não poderia suportar que aqueles
olhos azuis o olhassem com ódio. E não podia permitir que Jay se afastasse dele.
Imediatamente, começou a analisar a situação de todos os ângulos possíveis, procurando
uma solução. Mas inclusive enquanto pensava, sabia que não havia nenhuma. Não podia
casar-se com Jay utilizando o nome de Steve Crossfield porque nesse caso o casamento
não seria legal. Além disso, não estava disposto a permitir que sua mulher levasse o
sobrenome de outro homem.
Teria que dizer-lhe. Provavelmente, sua família acreditava que estava morto, e não
havia maneira de desmenti-lo sem pô-los em perigo. Poria a sua família em situação de
risco se alguma vez Piggot chegava a inteirar-se de que na realidade estava vivo. Em
qualquer caso, tal e como foram as coisas, ia ter que empregar muito tempo em
convencer a sua família de qual era sua identidade; já não tinha nem o aspecto nem a voz
que eles tinham conhecido. Tinha as mãos atadas até que Piggot caísse. Depois,
supunha que Sabin faria os acertos necessários para notificar a sua família que tinham
cometido um engano na identificação e que devido a uma série de circunstâncias pouco
habituais, etc..., etc..., só então tinham podido corrigir o engano. Provavelmente, o
Homem já teria até pensado o telegrama. Sua família assumiria todo o ocorrido; se
alegrariam por voltar a vê-lo, embora tenha mudado sua aparência ou o fato que teve a
voz arruinada.
Jay era a vítima. Tinham-na utilizado como última coberta. Como demônios ia poder
perdoá-lo?
Jay ficou dormindo e não despertou até que Lucas girou para tomar o caminho que
levava a pradaria.
–Já estamos em casa –murmurou ela, jogando o cabelo para trás. Voltou-se e dirigiu
ao Lucas um sorriso. Lucas voltava a estar tenso outra vez, fiscalizava cada detalhe do
caminho. Havia tornado a cair a neve, os rastros que tinham deixado os pneus no dia
anterior, assim como qualquer outro rastro que tivesse podido deixar alguém depois de
que eles se foram, apagaram-se. Estava pondo em jogo todos seus anos de preparação e
Lucas Stone não era um homem que gostasse de correr riscos. Riscos desnecessários, é
obvio. Em mais de uma ocasião, encontrou-se em situações nas que sua vida pendia de
um fio, mas só porque não tinha outra opção. Entretanto, correr riscos com a vida de Jay
era outra coisa.
Como sempre, ela advertiu a tensão de seu rosto e ficou em silêncio, com um cenho
de preocupação escurecendo sua testa.
A neve que rodeava a cabana estava imaculada, mas depois de estacionar o carro,
Lucas posou a mão no braço de Jay para impedir que saísse.
–Fique aqui até que tenha revisado a cabana –lhe disse com voz dura.
Tirou a pistola de debaixo da jaqueta e se afastou sem olhá-la sequer. Seus olhos
não se detinham nem um segundo. Deslizavam-se de janela em janela, examinavam cada
milímetro de terra, procuravam atrás do traiçoeiro movimento de uma cortina.
Jay ficou paralisada. Aquele homem que avançava como um gato sigiloso para a
porta traseira de sua casa era o homem ao que amava, um predador, um caçador. Um
homem inatamente cauteloso, tão ágil como o vento enquanto, pego à parede da casa,
alongava a mão esquerda para o trinco da porta traseira com a pistola preparada na mão
direita. Sem fazer um só ruído, abriu a porta e desapareceu no interior da cabana. Dois
minutos depois, aparecia de novo na porta, muito mais relaxado.
–Venha –lhe disse, e se aproximou até o jipe para procurar as malas.
A Jay a irritou que a tivesse assustado daquela maneira por nada; fez-lhe lembrar-se
da manhã em que tinha estado lhe seguindo o rastro na neve.
–Não me faça isso –lhe espetou.
Abriu a porta do carro e saiu. A neve rangeu sob suas botas.
–Te fazer o que?
–Me assustar dessa maneira.
–Te assustar é imensamente melhor que te colocar em uma emboscada –respondeu
Lucas com veemência.
–Como alguém poderia saber que estamos aqui? E por que deveria lhe importar a
alguém?
–Se Frank não pensasse que há alguém a quem lhe importa, e muito, não se teria
tomado tantas moléstias em nos esconder.
Jay subiu os degraus da entrada e sacudiu a neve das botas antes de entrar na
cabana. Fazia frio, mas não muito, porque tinham deixado acesa a calefação. Tirou do
Lucas uma das bolsas, levou-a ao quarto e começou a desfazê-la enquanto ele acendia o
fogo.
Lucas observava as chamas que lambiam os troncos que tinha colocado na chaminé
e foram devorando pouco a pouco a madeira. Não podia dizer-lhe ainda nada. Aquela
poderia ser a última oportunidade que teria para estar com ela, um período de graça
indefinido que terminaria no dia que os homens do Sabin apanhassem Piggot. Ele
utilizaria esse período para unir Jay tão intensamente a ele que, quando descobrisse seu
verdadeiro nome, quando soubesse que Steven Crossfield estava morto, continuaria
querendo-o. Jay lhe havia dito que o amava, mas era ao Steve Crossfield a quem foram
dirigidas aquelas palavras. E, curiosamente, era Steve Crossfield o que as estava
ouvindo. Ele era Lucas Stone, e queria Jay para ele.
Seu desejo era intenso, urgente, como se de repente se acendeu uma fogueira em
seu ventre. Caminhou até o quarto e observou Jay um instante enquanto esta se inclinava
para tirar as botas e as meias. Jay era uma mulher magra, esbelta como um junco, com a
pele suave como a seda.
Lucas se aproximou até ela, rodeou-lhe a cintura com o braço e a deitou na cama.
Jay pôs-se a rir. Tinha desaparecido a irritação de seus olhos.
–Este ano devem estar na moda estas aproximações mais próprias do homem das
cavernas –brincou.
Lucas não pôde lhe devolver o sorriso. Desejava-a terrivelmente e necessitava que
dissesse essas palavras a ele, não a um fantasma. Seus olhos resplandeciam enquanto a
despia e percorria com o olhar sua nudez. Os mamilos de Jay se ergueram ao contato
com o frio da noite, seus seios se mantinham firmes, cheios. Lucas os rodeou com as
duas mãos e elevou os mamilos para sua boca para sugá-los alternadamente.
Jay ofegou e arqueou as costas. Aquela receptividade fazia pedacinhos toda a
capacidade de controle de Lucas, o fazia desejá-la com a mesma impaciência que um
adolescente. Mal suportava afastar as mãos dela durante os segundos que necessitava
para desprender-se de sua própria roupa.
–Diga que me ama –lhe pediu enquanto lhe colocava as pernas ao redor de seus
quadris e começava a afundar-se nela.
Jay se retorcia voluptuosamente, esfregando seus seios contra o pêlo hirsuto de seu
peito.
–Amo-te –afundou as mãos em suas costas e sentiu a tensão de seus músculos. –
Te amo.
Lucas empurrou brandamente e ela o aceitou sentindo como crescia o prazer em
seu interior até converter-se em um desejo extremo. Seu corpo estava tão em sintonia
com o dele que quando Lucas começou os rítmicos movimentos do amor, a tensão
sensual de Jay alcançou rapidamente seu ponto máximo. Lucas a abraçou com força até
que deixou de tremer e começou de novo a mover-se.
–Outra vez –sussurrou Jay.
Queria gritar seu nome, mas não podia. Não podia chamá-lo Steve e não se atrevia
a chamá-lo Lucas. Tinha que morder os lábios para não dizer seu nome. Um gemido se
elevava em sua garganta. Lucas a controlava, seus movimentos lentos e estudados a
elevavam somente até determinada altura, negando-se a permitir que chegasse mais alto.
Jay estava acesa, todas suas terminações nervosas pareciam a ponto de explodir de
prazer.
–Diga que me quer –disse Lucas com voz grave.
A tensão se evidenciava em seu rosto enquanto continuava movendo-se com lhe
exasperem lentidão.
–Quero-te.
–Outra vez.
–Quero-te.
Lucas queria ouvir seu nome, mas aquela possibilidade lhe estava negada. E se
prometeu que, alguma vez, no futuro, quando tudo aquilo tivesse terminado, voltaria a
estar com Jay na mesma situação, e ela gritaria seu nome. No momento, tinha que
conformar-se ele com a forma em que Jay cravava o olhar em seus olhos enquanto
sussurrava essas palavras uma e outra vez, até que ele perdeu o controle e uma doce
loucura os arrastou aos dois.
Nunca teria bastante de Jay, e saber que podia perdê-la resultava insuportável. Os
vínculos físicos eram os mais básicos e, instintivamente, estava os utilizando para
fortalecer os laços que os uniam. Estava decidido a converter-se em parte de Jay de tal
maneira que chegaria um momento em que os nomes deixariam de importar.
Duas noites depois, Frank acabava de meter-se na cama quando soou o telefone.
Com um suspiro, alongou a mão até o telefone.
–Payne –respondeu.
–Piggot está no México D.F. –disse o Homem.
Esquecendo-se imediatamente da tranqüila noite de sono que tinha estado
prometendo-se, Frank se sentou em sua cama completamente alerta.
–Tem a alguém atrás dele?
–Não, ainda não. Mas a estas alturas já parece claro quem está nos traindo. Eu me
ocuparei desse pequeno detalhe, mas você te encarregue de tirar o Luke dali. Já
averiguaram a localização da cabana.
–O que quer que conte exatamente ao Luke?
–Tudo. Agora já não importa. Por-me-ei em contato contigo ao longo das próximas
vinte e quatro horas. Você te encarregue de pôr o Luke e a Jay a salvo.
Imediatamente depois, Kell Sabin pendurou o telefone perguntando-se se não teria
posto em perigo a um amigo, além da uma mulher inocente.
Capítulo 12
Assim que ouviu o primeiro assobio do bip que toda noite deixava na mesinha, Lucas
se levantou e foi procurar as calças. O tom lhe indicava que era o bip e não o alarme que
ativava o laser, mas o mero feito de que Frank estivesse entrando em contato com ele no
meio da noite já era suficientemente alarmante. Jay se incorporou na cama e alongou a
mão para o abajur, mas Lucas a deteve.
–Nada de luzes.
–O que está acontecendo? –perguntou Jay, ficando muito quieta.
–Vou ao abrigo. Está soando o bip. Frank está tentando entrar em contato conosco.
–Então por que não quer que acenda a luz?
–Frank não entraria em contato conosco na metade da noite a menos que tivesse
surgido uma emergência. Poderia ser muito tarde. E se Piggot andar perto daqui, uma luz
poderia alertá-lo.
–Piggot?
–O homem que tentou me matar, recorda?
–Vou contigo.
Jay se levantou da cama à velocidade do raio e começou a procurar sua roupa no
meio da escuridão. Lucas foi detê-la, não queria que Jay abandonasse a segurança da
cabana, mas se Piggot os tinha encontrado, a cabana tampouco seria um lugar seguro.
Bastariam uma granada e um lança-foguetes nas mãos de um perito, como era Piggot,
para que, em questão de segundos, a cabana se convertesse em um inferno.
Lucas calçou as botas e tirou a pistola que sempre tinha à mão. Enquanto saía da
habitação, desprendeu a jaqueta do cabideiro da porta e a pôs enquanto corria através da
cabana às escuras até chegar à porta de trás. Jay ia atrás dele depois de ter conseguido
vestir os jeans, uma camisa de flanela de Lucas e as botas, sem preocupar-se das meias.
Caminharam por cima da neve até o abrigo, procurando manter-se entre as sombras
todo o tempo possível. Aquele maltratado abrigo era toda uma revelação. Jay tinha ficado
atônita a primeira vez que Lucas lhe tinha mostrado o que se escondia sob seu teto. Este
afastou uma bola de feno para lhe mostrar uma portinha com a largura suficiente para lhe
permitir colocar os ombros. Dali pressionou o botão que abria a fechadura eletrônica. A
porta se abriu lentamente e revelou em seu interior uma escada que descia para um
porão, iluminado unicamente pelas luzes vermelhas colocadas ao lado de cada degrau.
Lucas a mandou se abaixar, seguiu-a, fechou a portinha atrás dele e não acendeu as
luzes até que chegaram à sala de comunicações.
A sala era pequena e estava repleta de aparelhos. Havia um computador com sua
correspondente tela, uma antena para as conexões por via satélite e uma impressora
apoiada em uma das paredes; frente a ela, via-se um complexo sistema de rádio. Mal
ficava espaço na habitação para mover-se, e parte dele estava ocupado por uma cadeira.
Lucas tomou a cadeira e ligou o rádio.
–Estou no ar.
–Façam as malas. Viram Piggot no México capital e nos comunicaram que a
localização da cabana já não é segura.
A voz do Frank ressonava misteriosamente na habitação, sem aqueles pequenos
rangidos que normalmente acompanhavam as transmissões radiofônica, o que dava fé da
qualidade da equipe.
–Quanto tempo temos?
–O Homem estimou que umas quatro horas; menos se Piggot tiver cúmplices pela
área.
–O que faz normalmente é colocar a seus homens na área, mas mantêm os a
distância até que ele chegue. Gosta de orquestrar as coisas por si mesmo –a voz do
Lucas soava distante e sua mente corria a toda velocidade.
Fez-se um silêncio absoluto na sala, até que Frank perguntou tranqüilamente:
–Luke?
–Sim –respondeu Lucas.
Foi consciente do repentino movimento de Jay, ao que seguiu uma imobilidade
quase total. Ele não pretendia dizer daquela maneira, mas as coisas estavam
acontecendo condenadamente depressa. Quatro horas não eram muito tempo e,
ocorresse o que ocorresse, queria que Jay soubesse seu nome. Durante quatro horas ao
menos, saberia de quem era a mulher.
–Quando o soubeste? –perguntou Frank.
–Faz uns dois dias. Há alguma possibilidade de interceptar Piggot antes de que
chegue até aqui? Isso seria o melhor.
–Poucas. O mais provável é que o agarremos ali. Não sabemos onde está, mas sim
para onde se dirige.
–Não gosta de trabalhar por encargo, e isso significa que provavelmente a estas
alturas estará vindo para aqui em um avião de pequeno porte e pretende aterrissar em
qualquer pista privada desta área. Tem um mapa das pistas da área?
–Agora mesmo o estamos tirando o computador. Poremos agentes em todas elas.
–Há algum lugar seguro em que possa deixar a Jay?
Frank respondeu em tom urgente.
–Luke, você não está de serviço. Não fique como isca. Suba no jipe, saia daí com a
Jay e me chame dentro de cinco horas.
– O desastre de Piggot foi minha coisa. Eu o arrumarei – respondeu Lucas em tom
frio e distante. – Se tivesse conseguido apanhá-lo o ano passado, agora não estaríamos
suportando tudo isto.
–E o que me diz de Jay?
–Tirá-la-ei daqui. Mas depois voltarei para pegar Piggot.
Consciente da inutilidade de discutir com ele a quilômetros de distância, Frank
respondeu:
–De acordo. Ponha em contato com o Veasey nesta freqüência, e te ponha em
marcha – recitou os números da freqüência só uma vez.
– Roger –disse Lucas, e apagou o interruptor para cortar a comunicação entre eles.
Continuando, deu meia volta na cadeira, levantou-se e se voltou para Jay.
Esta sentia todo seu corpo intumescido enquanto o olhava. Lucas sabia. Tinha
recuperado a memória. Seu tempo de graça se esgotou, os espelhos tinham quebrado
em pedacinhos: a farsa tinha terminado. A violência que tinha levado o Lucas a sua vida
estava a ponto de arrebatar-lhe outra vez.
Depois de ter recuperado a memória, voltava a ser Lucas Stone. Estava em seus
olhos, no agressivo resplendor que brilhava em seu olhar. Seu rosto se endureceu.
–Não sou Steve Crossfield –disse bruscamente. – Me chamo Lucas Stone. Seu ex-
marido está morto.
Jay se tinha ficado branca e estava completamente gelada.
–Eu sei –sussurrou.
Lucas esperava ouvir todo tipo de coisas, mas jamais se imaginou que aquela seria
a resposta de Jay. Deixou-o atônito, confuso, e irracionalmente furioso. Tinha passado
uma autêntica agonia durante esses dias, pensando no momento de dizer-lhe E ela já
sabia...
– Desde quando sabe? – perguntou secamente.
Jay sentia intumescidos até os lábios.
– Faz tempo que sei – respondeu.
Lucas a agarrou com força do braço.
– Quanto tempo faz que sabe?
Jay tentou pensar. Levava tanto tempo apanhada naquela teia de mentiras que lhe
resultava difícil recordá-lo.
– Você... ainda estava no hospital.
Pela mente do Lucas passavam toda classe de possibilidades. Tinham-no treinado
para pensar sempre o pior, para não deixar de amassar-se até que as coisas tivessem
sentido. E não gostava de nada as possibilidades que apareciam em sua mente. Do
primeiro momento, ele tinha assumido que Jay era completamente inocente, que ignorava
tudo, e tinha sido utilizada pelo Sabin e pelo Frank Payne para protegê-lo, mas era mais
provável que a tivessem contratado para fazer aquele trabalho. Uma fúria incontrolável
começou a crescer em seu interior e teve que dominar seu gênio.
– Por que não me disse antes?
Deus, por um momento, tinha estado a ponto de voltar-se louco com todas aquelas
lembranças que iam a sua mente sem que nenhum concordasse com as coisas que Jay
lhe tinha contado sobre ele. Teria recuperado a memória muito antes se tivesse tido
algum dado sólido no que apoiar-se, em vez do conto de fadas que Jay tinha inventado
para ele.
Estava-lhe fazendo mal, certamente seus dedos terminariam lhe deixando marcas
nos braços. Jay tentou liberar-se inutilmente e ofegou quando Lucas incrementou a
pressão de sua mão.
– Tinha medo!
– Medo do que?
– Pensava que Frank me diria para que fosse embora se se inteirava de que tinha
descoberto que não era Steve. Lucas, por favor, está me machucando!
Pelo menos podia pronunciar seu nome. Inclusive no meio da dor, gostava de
saborear aquele som.
Lucas diminuiu a pressão, mas a agarrou também pelo outro braço e a sustentou
com firmeza.
– Então Frank te contratou para que dissesse que eu era Steve Crossfield?
– Não, não – gaguejou. – No princípio eu também pensava que era Steve.
– E o que te fez mudar de opinião?
– Seus olhos. Quando vi seus olhos eu soube.
A lembrança daquele momento era claro como o cristal. Quando os médicos lhe
tinham tirado as ataduras dos olhos e tinha olhado Jay pela primeira vez, tinha-a visto tão
pálida como estava naquele momento. Era estranho, porque sabia que Sabin jamais teria
descuidado um detalhe tão básico como a cor de seus olhos.
– Seu marido não tinha os olhos castanhos?
– Meu ex-marido –sussurrou Jay. – Sim, mas escuros. Os teus são virtualmente
amarelos.
De modo que seus olhos eram diferentes dos de seu ex-marido. Quase caía na
risada de que Sabin, que tão cuidadosamente tinha preparado todo aquele trambique,
tivesse falhado em algo como isso. Mas mesmo assim, Jay não havia dito a ninguém que
se equivocou de homem, o qual teria sido o mais razoável. Nem sequer o havia dito a ele,
nem então nem durante as semanas que tinham compartilhado na cabana. O
aborrecimento e a frustração endureciam sua voz.
– por que não me disse isso? Não te ocorreu pensar que podia estar interessado em
saber quem era?
– Não podia me arriscar. Tinha medo... – começou a dizer, suplicando compreensão.
– Sim, é verdade, tinha medo de que se terminasse a moleza. Frank estava te
pagando para que ficasse comigo, assim não podia renunciar a este trabalho.
– Não! Não é isso...
– Então como é? Tem tanto dinheiro que não precisa trabalhar?
– Lucas, por favor. Não sou uma mulher rica.
– E como pudeste sobreviver durante os meses que estive no hospital?
– Frank tem feita acusação de todos meus gastos –respondeu frustrada. – Mas por
favor, quer me escutar?
– Estou-te escutando, querida. E acaba de me dizer que Frank te pagou para que
ficasse comigo.
– Fez o possível para que ficasse contigo! Acabava de perder meu trabalho... –
quando já era muito tarde, ouviu suas próprias palavras e soube como Lucas receberia
isso.
A raiva transformou os olhos e a boca do Lucas em uma dura linha.
– Então não desperdiçou a possibilidade de conseguir um trabalho especialmente
cômodo. O único que tinha que fazer era te sentar cada dia ao lado de minha cama para
obter tudo o que gostasse, porque Frank estava disposto a pagar todas as suas contas.
Isso explica os motivos pelos que não queria te casar comigo, não é verdade? Estava
encantada de aceitar seu salário, mas te casar com um desconhecido era algo um pouco
mais sério. Para não mencionar o fato de que nosso casamento não teria sido legal. Sim,
economizaste-te muitos problemas tirando a tona todas essas desculpas.
– Não eram desculpas. Tínhamos muito pouca informação sobre ti, podia haver
alguém a quem lhe importasse.
– E havia! –gritou Lucas. – Minha família! Agora acreditam que estou morto.
Jay tentava não perder o controle e manter a voz firme.
– Não podia me casar contigo até que não tivesse recuperado a memória e tivesse a
certeza de que de verdade queria te casar comigo. Não podia me aproveitar de ti em uma
situação como esta.
– Um escrúpulo muito conveniente. Realmente te enobrece, não é verdade? É uma
pena. Mas se queria conservar esta moleza de trabalho, deveria te haver casado comigo
quando ainda tinha oportunidade de fingir que eu era Crossfield. Depois, quando
recuperasse a memória, poderia te haver feito passar por uma pobre vítima e
possivelmente teria conseguido que ficasse contigo sem me sentir culpado.
Jay se afastou bruscamente dele. De algum jeito, durante os longos meses que tinha
passado a seu lado, tinha chegado a acreditar que Lucas a amava, embora nunca o
houvesse dito com aquelas palavras. Mostrava-se tão possessivo, tão tenro e
apaixonado... Mas Lucas tinha recuperado a memória e não podia ter deixado mais claro
que seu amor tinha terminado. Já não a necessitava e era óbvio que não ia voltar a lhe
pedir em casamento. Tudo tinha terminado e não iriam separar se como amigos. Tinha
passado o pior: Jay lhe tinha mentido, tinha-lhe oculto sua verdadeira identidade e ele
nunca a perdoaria. Lucas pensava que o tinha feito porque o governo estava disposto a
lhe pagar até que tivesse terminado aquela farsa.
Lucas a soltou bruscamente, como se não pudesse suportar que continuasse
tocando-a e Jay se cambaleou. Quando recuperou o equilíbrio, voltou-se para a escada.
– Abre a porta –lhe pediu.
Lucas apertou os punhos. Ainda não estava preparado para pôr fim à discussão.
Não tinha todas as respostas que queria. Mas o gesto de Jay lhe recordou a necessidade
de sair rapidamente dali. Tinham que sair da cabana antes de que Piggot os encontrasse.
O último que queria era que Jay se visse apanhada no meio de um tiroteio.
– Eu irei primeiro –lhe disse, e passou na frente dela.
Assinalou a porta aberta e subiu a escada de pistola em mão. Assim que tirou a
cabeça da portinhola, olhou com receio em todas direções, saiu ao andar de cima e se
ajoelhou para ajudar a Jay a subir.
– Está tudo como deve ser. Vamos.
Jay não o olhou enquanto subia. E tampouco o fez enquanto aceitava a mão que lhe
estendia. Lucas fechou a porta e voltou a colocar a bola de feno sobre ela. Jay começou a
caminhar para a porta do abrigo, mas ele a agarrou e lhe fez retroceder.
– Cuidado! –disse-lhe com um sussurro furioso. – Voltaremos pelo mesmo caminho
pelo que chegamos até aqui. Procura te manter entre as sombras.
Lucas foi abrindo caminho e Jay o seguia sem dizer uma só palavra.
Continuava negando-se a acender a luz da cabana, de modo que Jay teve que ir as
escuras para o seu quarto enquanto procurava um pouco de roupa no meio da escuridão.
Quando estava tirando a camisa de Lucas para vestir sua própria roupa, ele entrou no
quarto. Depois de um momento de certo embaraço, Jay se voltou com estupidez para
vestir o sutiã. Sentia as mãos torpes e na escuridão não conseguia encontrar as alças.
Desesperada, terminou deixando o sutiã sobre a cama e vestindo diretamente o pulôver.
Lucas a observava com atenção. A pele pálida de seus seios resplandecia sob a
tênue luz que entrava pela janela e, apesar de seu aborrecimento, da sensação de traição
e a necessidade de odiá-la, desejou aproximar-se dela e estreitá-la contra ele. Só umas
horas antes tinha tido aqueles seios entre suas mãos, tinha-os acariciado avidamente
com sua boca. Fazia amor com o Jay até a agonia. Jay lhe havia dito que o amava. E,
entretanto, naquele momento se voltava como se quisesse esconder o corpo de seu
olhar.
Aquilo lhe doeu, sacudiu-o por dentro. Doeu-lhe muito mais que o que Jay acabava
de lhe dizer, muito mais que os motivos mercenários que lhe tinha jogado na cara.
Precisava saber por que, mas não tinha tempo. Maldita fosse. Se ao menos Jay não se
mostrasse tão doída e distante. Lucas tinha que lutar contra a urgência de estreitá-la em
seus braços e beijá-la para que mudasse de expressão. Diabos, o que podia lhe importar,
por que o tinha feito? Possivelmente no princípio teria atuado motivada pelo dinheiro,
mas, maldita fosse, tinha a condenada certeza de que naquele momento não era essa a
razão, ou pelo menos não o era de tudo. Mas embora assim tivesse sido, pensou sem
piedade, não permitiria que partisse. Tentaria arrumar as coisas entre eles assim que
tivessem apanhado ao Piggot, mas até então, o mais importante era assegurar-se de que
Jay estivesse a salvo.
–Seja rápida –lhe disse bruscamente.
Jay se sentou no beira da cama, tirou-se as botas, calçou rapidamente umas meias
e voltou a calçar as botas. A toda velocidade, agarrou a bolsa e a jaqueta e disse:
–Já estou pronta.
Lucas não via a necessidade de que se levasse nada mais. Teriam oportunidade de
retornar à cabana quando se feito acusação do Piggot e gostou que Jay não perdesse
nem um segundo mais. Jay era uma boa companheira inclusive quando não estava em
seu melhor momento.
Lucas tinha que encontrar um lugar seguro para deixá-la. Duvidava de que no Black
Bull, a população mais próxima, houvesse um hotel, mas não podiam ir mais longe.
Conduziu o jipe a uma velocidade de vertigem através da pradaria. Era um trajeto
perigoso, especialmente se se tinha em conta que não queria arriscar-se a acender as
luzes do carro. Mas temendo encontrar-se em algum momento naquela tessitura, durante
sua estadia na cabana, Lucas tinha percorrido a pradaria uma e outra vez, desenhando
mentalmente a rota que tomaria, estimando a máxima velocidade que podia resultar
segura e tomando nota de todas as pedras e buracos do caminho. Conduzia tão perto da
linha das árvores que os ramos roçavam o lateral do jipe.
–Não vejo nada –disse Jay com voz tensa.
–Eu sim.
Não via muito, mas sim o suficiente para conduzir. Tinha boa visão noturna.
Jay se agarrou à porta quando o veículo saltou ao atravessar um montículo de
pedras. Lucas teria que acender as luzes para descer a montanha, pensou; o caminho só
tinha largura suficiente para um veículo e a um dos lados havia uma queda
completamente vertical. Inclusive à luz do dia, Jay apenas se atrevia a respirar até que
tinham superado aquele lance. Mas quando chegaram até ali, Lucas continuou
conduzindo sem luzes. A escuridão que tinham diante deles era absoluta.
Jay fechou os olhos. O coração lhe pulsava com tanta força que não podia ouvir
outra coisa. Não podia fazer nada. Lucas tinha decidido não acender as luzes, arriscar-se
a conduzir na escuridão, e ela não podia fazer nada para fazê-lo mudar de opinião. Sua
arrogante confiança em sua habilidade era tão admirável como aterradora. Jay preferiria
ter descido a montanha com dez metros de neve no caminho que fazê-lo a aquela
velocidade horripilante, mas Lucas tinha decidido que era assim que teria que fazê-lo e
não havia mais que falar.
Era incapaz de calcular o tempo que demoraram para percorrer aquele caminho. Lhe
pareceram horas. Ao final, os nervos não foram capazes de suportar tanta tensão e
terminaram adormecidos. Jay incluso abriu os olhos. Já nada importava. Se terminavam
caindo pelo precipício, morreriam juntos, tanto se tinha os olhos fechados como abertos.
Mas então chegaram à segunda pradaria. De repente, Steve pisou nos freios e
soltou um impropério. Jay viu quão mesmo acabava de ver ele: um feixe de luzes frente a
eles, no outro extremo da pradaria. Felizmente, ainda estavam fora do alcance das luzes,
mas Jay sabia tão bem como Lucas o que significavam. Os homens de Piggot estavam se
aproximando, preparando o terreno para a chegada de seu chefe.
Lucas deu meia volta para retornar por onde tinham chegado, mantendo o carro
sempre perto da linha de árvores. Quando chegaram ao final da pradaria, girou para o
norte e saiu do caminho. As rodas do jipe se afundavam quase por completo na neve.
–Agora vamos atravessar o campo?
–Não, é impossível. A neve é muito espessa –deixou o jipe escondido entre as
árvores e saiu. - Fique aqui –lhe ordenou, e desapareceu.
Jay girou nervosa em seu assento e forçou a vista tentando ver o que Lucas estava
fazendo. Mal distinguia sua silhueta na neve. Um instante depois, Lucas tinha
desaparecido.
Aos dois minutos retornou. Montou-se de novo no jipe, fechou a porta e baixou o
vidro.
–Escuta.
–O que tem feito?
–Apaguei o rastro de nosso carro. Só havia um carro. Se passar por nós, ainda
estamos a tempo de voltar para caminho e alcançar a auto-estrada.
Escutaram com atenção. O som do motor de um carro chegava nitidamente até eles
através do ar da noite. O carro se movia lentamente enquanto se abria caminho naquele
trajeto para ele desconhecido. As luzes penetravam na escuridão da noite e pareciam a
ponto de alcançá-los.
–Não se preocupe –sussurrou Lucas. – Não podem nos ver dali. Se não notarem
nada no lugar no que giramos e continuam avançando, tudo sairá bem.
Duas condições. Jay apertava os punhos com tanta força que as unhas lhe
cravavam nas palmas. As luzes estavam tão perto deles que iluminavam o interior do jipe.
Jay advertiu então que Lucas se pôs a jaqueta, mas não a camisa. Aquele estranho
detalhe a afetou de tal maneira que se perguntou se não estaria a beira da histeria.
–Continua –sussurrava Lucas para si, – continua.
Por um momento, pareceu que o outro carro estava a ponto de deter-se. O feixe de
luz se elevou ligeiramente para eles. Mas o carro de repente girou e ouviram como se ia
afastando o ruído do motor.
Jay soltou o ar que estava contendo. Lucas pôs o motor em marcha, sabendo que
não se ouviria por cima do outro motor e girou, rezando para que estivessem
suficientemente escondidos e as luzes de freio não revelassem sua situação. Pelo menos
levavam a outro carro atrás deles. No caso de que tivessem que fazê-lo, poderiam fugir
pela estrada. E tendo em conta o abrupto do caminho, as possibilidades de que
acertassem a dispará-los em uma perseguição eram poucas.
O jipe se cambaleou entre a neve e voltaram de novo para caminho. Nenhuma outra
luz quebrava a escuridão e, de vez em quando, através das árvores, viam as luzes do
outro carro, que continuava avançando lentamente por aquelas traiçoeiras montanhas.
Jay permanecia em silêncio, e continuou calada quando chegaram à estrada e Lucas
acendeu as luzes. Sentia-se como se a tivessem anestesiado.
Chegaram ao Black Bull às duas da madrugada. Todos os habitantes daquela cidade
de cento e trinta e três habitantes estava na cama. Nem sequer havia uma loja que
abrisse a noite e, segundo o letreiro que pendurava do posto de gasolina, esta fechava às
dez da noite. O carro do xerife estava estacionado a um lado do posto de gasolina.
Lucas deteve o jipe.
–Acha que pode conduzir suficientemente bem para sair daqui? –perguntou-lhe
bruscamente.
Jay baixou o olhar para a alavanca de marchas, mas não olhou o Lucas.
–Sim.
–Então dirija até a próxima cidade em que possa encontrar um hotel. Dali chama o
Frank. Ele arrumará tudo para que vão te buscar. Tem seu número de telefone?
Assim tinha chegado o momento. Tudo tinha terminado.
–Me dê uma caneta. Escrever-lhe-ei isso.
Jay procurou com estupidez na bolsa e tirou uma caneta, mas não tinha nenhum
pedaço de papel no que apontar o número. Ao final, Lucas lhe agarrou a mão, deu-lhe
meia volta e lhe escreveu o número na palma.
–Aonde vai? –perguntou-lhe Jay com voz tensa.
–Vou abrir esse carro do xerife para chamar o Veasey. Depois irei procurar o Piggot
e terminarei com isto de uma vez por todas.
Jay fixou o olhar no pára-brisa. Apertava a mão com força, como se quisesse evitar
que o número que Lucas lhe tinha escrito na mão se apagasse.
–Tome cuidado –conseguiu dizer.
Era uma frase debulhada, mas a estava dizendo de todo coração. perguntava-se se
Frank alguma vez lhe contaria o ocorrido. Se chegaria a inteirar-se do que lhe tinha
acontecido ao Lucas.
–Já conseguiu me armar uma emboscada em uma ocasião. Não voltará a ocorrer.
Lucas saiu do jipe e se dirigiu a grandes pernadas até o carro do xerife. Estava
fechado, mas isso não foi nenhum impedimento. Abriu a porta em menos de dez
segundos. Olhou para o jipe e ficou observando Jay através do vidro. Tinha o rosto
branco como o de um fantasma. Naquele momento, não havia nada que Lucas desejasse
mais que estreitá-la entre seus braços e beijá-la com tanta força que ambos pudessem
esquecer aquele desastre, mas se a beijasse, não seria capaz de deter-se e o mais
importante era ocupar-se do Piggot. Entretanto, queria-a tão profundamente que teria
estado disposto a utilizar o vínculo do sexo para assegurar-se de que Jay soubesse que
era dele. Uma sensação de vazio ia lhe devorando as vísceras. Não tinham sido capazes
de resolver a difícil situação com a que se encontraram, mas isso teria que esperar.
Possivelmente fosse melhor dessa maneira. Ao cabo de umas poucas horas, já não teria
que voltar a preocupar-se com o Piggot e teria podido controlar sua impaciência. Seria
capaz de pensar com claridade, de deixar de comportar-se como se Jay o tivesse traído.
Ainda não compreendia as razões pelas que ela o tinha enganado, mas, apesar de tudo,
sabia que o amava.
Em vez de passar a ocupar o assento do condutor, Jay abriu a porta, saiu e olhou a
seu redor. Deteve-se diante do jipe. Sua esbelta silhueta se recortava contra as luzes.
–Era a única forma que me ocorria de lhe proteger –lhe disse, depois, voltou-se a
montar-se no jipe e pôs o motor em marcha.
Lucas observou as luzes que se afastavam rumo à auto-estrada. Estava estupefato.
Para protegê-lo?
Ele estava acostumado a tomar sozinho suas decisões, a idéia de que alguém
pudesse protegê-lo sem seu conhecimento lhe resultava completamente estranha. O que
acreditava Jay que podia fazer para protegê-lo?
Dela tinha dependido manter essa farsa. Jay tinha razão; Frank a teria tirado do meio
assim que lhe houvesse dito que tinha cometido um engano, que ele, Lucas, não era seu
ex-marido. Jay não tinha nem as armas nem o treinamento necessário, mas isso não lhe
tinha impedido de assumir, literalmente, o papel de guarda-costas. Toda aquela farsa
dependia dela, de modo que tinha decidido guardar silêncio e continuar protegendo-o com
sua presença.
Porque o amava. Lucas soltou um impropério. Sua respiração pareceu cristalizar-se
no ar gélido da noite. Sua maldita preparação como agente lhe tinha jogado uma má
passada, lhe fazendo ver uma traição aonde não havia nenhuma, lhe fazendo questionar
os motivos da atitude de Jay e assumindo o pior. Bastava olhar-se a si mesmo para
compreender por que Jay não lhe havia dito nada. Acaso não tinha permanecido ele em
silêncio durante os dois dias anteriores porque temia perdê-la no caso de que lhe
dissesse a verdade? Amava-a muito para aceitar sequer a possibilidade de perdê-la, até
que Piggot tinha forçado a situação.
Soltou um novo juramento, meteu-se no carro e o pôs em marcha.
O amanhecer lançava seus primeiros raios rosados sobre a neve, uma imagem da
que Lucas tinha desfrutado de muitas vezes nas montanhas. Mas aquela manhã em
particular, a cena não era tão bucólica. A pradaria estava cheia de homens e veículos. A
antiga neve tinha sido pisoteada. De vez em quando aparecia alguma mancha
avermelhada. À esquerda da cabana havia um helicóptero cujas hélices removiam
lentamente o ar da manhã.
Dez homens armados avançaram para ele quando apareceu de entre as árvores,
mas elevaram suas armas assim que o reconheceram. Lucas caminhou com passo firme
para eles, sustentando sua própria pistola com a mão manchada de sangue. O fedor do
explosivo composto principalmente por pólvora e nitroglicerina, irritava-lhe o nariz e uma
nuvem de fumaça cinza descansava sobre a pradaria, como se estivesse resistindo os
esforços da brisa por dissipá-la.
Havia um homem alto, de cabelo escuro, perto do helicóptero, fiscalizando a cena
com os olhos entrecerrados.
Lucas se aproximou dele.
–Correste um grande risco ao nos alojar em sua própria cabana –lhe espetou.
Kell Sabin olhou a seu redor.
–Era um risco calculado. Tinha que encontrar o infiltrado. Assim que se soube o
lugar no que estava localizada a cabana, soube quem era, porque o acesso à informação
era muito restringido –se encolheu de ombros. – Já encontrarei outro lugar para passar as
férias.
–Esse infiltrado descobriu minha coberta?
–Sim. Até então, eu não tinha nem idéia de quem era –a voz do Sabin era gélida e
seus olhos pareciam dois tições.
–Então que sentido tinha seguir com a farsa? E por que colocar A Jay em toda esta
confusão?
–Para que Piggot continuasse tentando averiguar se estava vivo. Seu álibi já não nos
servia. Conhecia sua família e podia tentar chegar até eles. Estava tentando ganhar
tempo para manter a todo mundo a salvo até que Piggot saísse de novo à superfície e
pudéssemos apanhá-lo –Sabin olhou para as árvores. – Suponho que não voltará a nos
incomodar.
–Nem a nós nem a ninguém.
–Este foi seu último trabalho. Já está fora...
–Certamente que sim –se mostrou de acordo Lucas. – Tenho coisas melhores que
fazer, como me casar e formar uma família.
De repente Sabin sorriu e a frieza desapareceu de seu olhar. Muito poucas pessoas
tinham visto o Sabin assim, as únicas às que realmente podia chamar amigos.
–Quanto mais grandes som... –burlou-se, mas não terminou a frase. – Já o há dito a
ela?
–Ela já sabia. Averiguou-o quando ainda estava no hospital.
Sabin franziu o cenho.
–O que? Mas não disse nada... Como é possível que soubesse?
–Por meus olhos. Meus olhos não são da mesma cor que os do Crossfield.
–Diabos. Um detalhe tão pequeno... E mesmo assim seguiu adiante?
–Acredito que averiguou que toda esta farsa era para me proteger.
–Mulheres –murmurou Sabin brandamente.
Pensou em sua própria esposa, que tinha lutado como uma tigresa para lhe salvar a
vida quando nem sequer o conhecia. Não lhe surpreendia que Jay Granger se pôs em
perigo para proteger ao Lucas.
Este se esfregou o queixo.
–Nem sequer lhe importa ver-me com esta cara tão feia.
–Os cirurgiões fizeram o que puderam. Tinha a cara destroçada –Sabin voltou a
sorrir. – De todas formas, era muito bonito.
Os dois homens continuaram observando todo o processo de limpeza e seus
semblantes voltaram a escurecer-se ante tantas vidas perdidas. Tinham morrido três
homens, entre eles Piggot, e quatro mais tinham sido detidos.
–Notificarei a sua família que está vivo –disse Sabin por fim. – Sinto que tenham tido
que passar por tudo isto, mas com o Piggot solto, era o mais seguro para ti e para todos
eles, sempre e quando a farsa funcionasse. Agora tudo terminou. Vá procurar a Jay em
qualquer lugar que a tenha escondido e saiam os dois daqui.
Lucas o olhou. A cor abandonou lentamente seu rosto.
–Ainda não chamou ao Frank? –perguntou com voz rouca.
Sabin permaneceu em silêncio durante alguns segundos.
–Não, onde está?
–Supunha-se que tinha que conduzir até a cidade mais próxima, procurar um hotel e
chamar o Frank. Droga!
Deu meia volta e saiu correndo para o abrigo seguido pelo Sabin. de repente, ficou-
se gelado. Era possível que Piggot tivesse localizado Jay antes de chegar até ali, e existia
também a ligeiramente menos terrível possibilidade de que Jay tivesse tido um acidente.
Deus santo, onde estava Jay?
Depois de deixar o Lucas, Jay continuou conduzindo como uma autômato, seguindo
as diferentes indicações da estrada. Ao cabo de vários quilômetros, tomou a auto-estrada
que os tinha levado até Colorado Springs, mas em direção contrária. Não prestava
nenhuma atenção à hora; simplesmente, limitava-se a conduzir. A auto-estrada a
conduziu até o Leadville e, de ali, através de outra estrada, dirigiu-se para Denver.
O sol começava a elevar-se no céu, lhe dificultando a visão, e virtualmente não tinha
muita gasolina. Sairia na seguinte saída da auto-estrada e encheria o depósito.
De momento, isso seria tudo.
Estava esgotada, mas não podia deter-se. Se parasse, teria que pensar, e naquele
momento não podia suportá-lo. Revisou sua carteira, não tinha muito dinheiro, uns
sessenta dólares, mas conservava os cartões de crédito. Com eles poderia retornar a
Nova Iorque, o único lar que ficava, seu único refúgio.
Essa mesma estrada a levou até o aeroporto internacional do Stapleton, em Denver.
Jay estacionou o jipe e depois de anotar mentalmente o lugar no que tinha estacionado
para dizer-lhe ao Frank, entrou no terminal. O primeiro que fez foi comprar o bilhete e teve
a sorte de encontrar lugar em um avião que saía em uma hora. Depois foi procurar um
telefone para chamar o Frank.
Ele respondeu ao primeiro toque.
–Frank, é Jay –se identificou a si mesmo. – Já terminou tudo?
–Onde diabos está? –gritou Frank.
–Em Denver.
–Em Denver! E o que está fazendo ali? supunha-se que tinha que me haver
chamado faz horas. Luke está a ponto de voltar-se louco e temos a toda a polícia de
Colorado te procurando.
Jay sentiu que se tirava um peso enorme do coração.
–Ele está bem, Frank? Não está ferido?
–Sim, está bem. Fez-se um arranhão no braço, mas nada que não possa curar um
curativo. Olhe, onde está exatamente? Irei te buscar...
–Tudo terminou? –insistiu Jay. – De verdade que terminou tudo?
–Refere ao Piggot? Sim, tudo terminou. Luke acabou com ele. me diga onde está e...
–Me alegro –as pernas pareciam incapazes de seguir agüentando seu peso durante
muito mais tempo. – Cuida dele.
–Meu Deus, não desligue! –gritou Frank. – Onde está?
–Não se preocupe –conseguiu dizer Jay. – Posso voltar para casa sozinha.
E, esquecendo-se completamente do jipe, pendurou o telefone. Continuando, dirigiu-
se ao banheiro e lavou a cara com água fria. Enquanto se escovava o cabelo, advertiu a
palidez de suas bochechas e as olheiras que escureciam seus olhos.
–Certamente, esta gente sabe como fazer desfrutar a uma mulher –murmurou a seu
reflexo.
O Yogi Berra havia dito «nada termina até que realmente termina», mas,
definitivamente, aquilo tinha terminado. Apesar de seu esgotamento, Jay não pôde dormir
durante o vôo. Tampouco foi capaz de comer, embora tinha o estômago vazio. Conseguiu
tomar um refresco, mas nada mais.
Depois da solidão da pradaria, o aeroporto de Nova Iorque lhe pareceu um autêntico
manicômio. Entravam-lhe vontades de encolher-se contra uma parede e dizer a toda
aquela gente que se fosse. Mas em vez de gritar, meteu-se em um ônibus e uma hora e
meia mais tarde, entrava em seu apartamento.
Não o tinha pisado desde fazia meses; e tinha deixado de ser para ela um lar.
Tinham-no cuidado em sua ausência, tal e como Frank lhe tinha prometido, mas estava
tão vazio como ela. Nem sequer tinha ali sua roupa. Riu com tristeza; a roupa era a menor
de suas preocupações. Frank se asseguraria de que a enviassem.
Mas havia lençóis e toalhas no banheiro. De modo que se meteu na ducha e depois
até foi capaz de reunir forças para fazer a cama. O sol da tarde começava a se pôr
enquanto se deitava nua entre os lençóis limpos. Como uma autômato, deu meia volta,
procurando o calor do Lucas, mas ele não estava ali. Tudo tinha terminado e Lucas já não
a queria. As lágrimas afloraram a seus olhos enquanto fechava as pálpebras, mas quase
imediatamente ficou adormecida.
–Janet Jean. Janet Jean, acorda.
A voz abria caminho até sua consciência, tentando arrancá-la do sono. Jay não
queria despertar. Enquanto continuasse dormindo, não teria que enfrentar-se a uma vida
sem Lucas. Mas aquela parecia sua voz. Franziu o cenho.
–Janet Jean, acordada, querida – uma mão forte lhe sacudiu o ombro nu.
Jay abriu os olhos lentamente. Era Lucas que estava sentado a beira da cama,
olhando-a com o cenho franzido. Seus olhos amarelos pareciam quase criminais, embora
seu tom tinha sido tudo quão delicado sua voz rouca lhe permitia. Tinha um aspecto
infernal; necessitava urgentemente se barbear, estava despenteado e uma atadura
ensopada de sangue cobria seu antebraço esquerdo. Mas pelo menos levava uma
camisa, e sua roupa parecia limpa.
–Sei que fechei com chave –o sono ainda lhe impedia de pensar com claridade. Em
Nova Iorque a ninguém lhe ocorria deixar a porta sem fechar.
Lucas se encolheu de ombros.
–Vamos, querida, vá ao banheiro e te lave a cara com água fria. Eu prepararei o
café.
O que estava fazendo ali? A Jay não lhe ocorria nenhuma razão, e embora parte
dela se regozijava ao vê-lo, não importava por que, outra parte sofria ao saber que teria
que voltar a despedir-se dele. Possivelmente naquela ocasião não fora capaz de suportá-
lo.
–Que horas são?
–Quase as nove.
–Impossível, ainda é de dia.
–As nove da manhã –lhe explicou Lucas com paciência. – Vamos, te levante.
Segurou-lhes nas mãos para sentá-la na cama e os lençóis caíram até sua cintura,
expondo seu corpo nu. Jay agarrou rapidamente o lençóis para ocultar seus seios; não se
atrevia a olhá-lo nos olhos enquanto sentia o rubor que cobria suas bochechas.
Com um semblante completamente inexpressivo, Lucas ficou de pé e se desabotoou
a camisa.
–Toma, ponha isto. Trouxe-te sua roupa, mas está toda revirada nas malas.
Jay olhou a camisa e a pôs. Sem dizer uma só palavra, levantou-se, meteu-se no
banheiro e fechou com firmeza a porta atrás dela. Começou a fechar o trinco, mas decidiu
não perder o tempo. Os trincos não serviam de nada com o Lucas.
Cinco minutos depois, estava muito mais acordada depois de ter seguido seu
conselho e haver-se lavado a cara. Depois de ter passado tanto tempo sem beber, estava
também sedenta, e bebeu vários copos de água. Haveria se sentido muito mais segura se
tivesse levado em cima algo mais que essa camisa. O tecido estava impregnado do
aroma de Lucas. A levou até o rosto, inalou profundamente e decidiu retornar à
segurança de seu dormitório.
Lucas estava deitado na cama. Jay ficou paralisada ao vê-lo.
–Acreditava que foste fazer café.
–Não tem café.
Levantou-se, posou as mãos em seus ombros e a sacudiu.
–Droga – disse com voz trêmula. – Passei por um autêntico inferno quando me
inteirei que não tinha chamado ao Frank. Por que fugiu? O que te tem feito voltar aqui?
Jay inclinou a cabeça; o cabelo lhe caía sobre a cara.
–Não tinha onde ir –disse, com a voz baixa.
Ele a estreitou entre seus braços.
–De verdade acreditava que ia deixar que te afastasse de mim tão facilmente?
–O que é o que tenho feito tão mal? – perguntou suplicante. – Não sabia outra
maneira de te proteger! Quando te vi os olhos, soube que tinha que ser o agente que
supostamente tinha morrido, e compreendi também que se tomaram muitíssimas
moléstias para te esconder, o que queria dizer que estava em perigo. Tinha amnésia, nem
sequer sabia quem andava atrás de ti! Pensei que mentir era a única forma que tinha de
te manter a salvo.
Os olhos do Lucas resplandeceram.
–E por que te importava o que pudesse me acontecer?
–Porque estava apaixonada por ti! Ou acha que também isso é mentira?
Lucas a acariciou com delicadeza.
–Não –lhe disse com voz baixa, – acredito que sempre soube que me amava, quase
desde o começo.
As lágrimas apareciam pelos olhos de Jay.
–A primeira vez que te toquei –sussurrou, – senti o calor de sua pele, e também a
força com a que estava lutando para conservar a vida. Comecei a te amar naquele
momento.
–Então por que partiu?
Mostrava-se implacável, mas aquele era um traço muito próprio dele.
–Porque tudo tinha terminado. Você não me queria. Me aterrorizava o que pudesse
fazer quando recuperasse a memória. Tinha medo de que me afastasse de seu lado,
como o fez. Assim decidi partir.
–Eu só queria te afastar do perigo, droga! Não pretendia que partisse a mais de mil
quilômetros –a levantou em seus braços, deixou-a na cama e se deitou a seu lado. – Esta
vez não quero desculpas. Esta vez vamos nos casar assim que possamos fazê-lo
legalmente.
Jay o olhou tão surpreendida como a primeira vez que Lucas tinha falado de
casamento.
–O que... o que? –balbuciou.
–Disse-me que voltasse a lhe perguntar isso quando tivesse recuperado a memória.
Bom, pois já a recuperei. Já podemos nos casar.
Quão único pôde dizer Jay foi:
–Isso não é uma pergunta, é quase uma ordem. E se acha que me deve...
Lucas, que tinha começado a lhe desabotoar a camisa, elevou bruscamente o olhar
para ela.
–Amo-te tanto que me tem feito perder a cabeça...
Jay estava completamente estupefata.
–Nunca me disse isso. Eu pensava que... Mas logo você me disse que me partisse.
–Acreditava que não podia te deixar mais claro o que sentia –grunhiu Lucas.
–Te faz falta que lhe diga isso? –perguntou-lhe Jay.
–Claro que me faz falta.
–Pois a mim também.
Lucas inclinou a cabeça e a beijou enquanto acariciava seu corpo nu. Aproximou de
Jay suas musculosas pernas e esta sentiu a dureza de seu sexo contra a coxa.
–Amo-te, Lucas Stone.
Pelo menos, já podia pronunciar seu nome com todo seu amor.
Epílogo
–De verdade morreu Piggot?
Lucas observou o rosto de Jay atentamente através da mesa. Tinha baixado para
comprar o necessário para o café da manhã e ambos estavam comendo como se
estivessem mortos de fome, que era exatamente como estavam. Lucas tampouco tinha
comido algo desde o dia anterior. Encontrar Jay e conseguir que voltasse com ele tinha
sido muito mais importante que a comida.
–Sim. Fui eu o que lhe pôs fim à missão – a verdade era dura, mas Jay tinha direito
de saber o tipo de homem com o que estava a ponto de casar-se.
Jay bebeu um sorvo de café e elevou seus incríveis olhos azuis para ele.
–Me alegro de que esteja morto – disse com ferocidade. – Tentou te matar.
–E esteve a ponto de consegui-lo.
Jay se estremeceu, pensando nos dias em que a vida de Lucas pendia de um fio e
ele alongou a mão para ela.
– Não, querida, tudo terminou. Essa parte de nossas vidas já se acabou. E esta... –
estreitou-lhe a mão – não tem feito mais que começar, se estiver segura de que suportará
ver todos os dias esta cara à hora do café da manhã.
Jay esboçou um sorriso que iluminou seu rosto como a luz do sol.
– Bom não é especialmente bonito, mas te asseguro que é um homem muito sexy.
Lucas grunhiu, puxou-a brandamente e a sentou em seu colo. Jay lhe rodeou o
pescoço com os braços enquanto ele inclinava a cabeça para lhe dar um beijo.
– Por certo, já não sou agente.
Jay o olhou sobressaltada.
– O que?
– Disse que já não sou agente. Estou oficialmente retirado desde ontem. Sabin me
tirou disso. Uma vez descoberta minha identidade, não podia voltar para a agência sem
pôr em perigo a minha família. Na realidade estava fora desde a explosão, mas Sabin não
o tem feito oficial até que acabamos com o Piggot.
– Então suponho que nós dois teremos que procurar trabalho.
Aposentou-se! A Jay entravam vontades de ficar a cantar aleluias. Já não teria que
preocupar-se cada vez que Lucas saísse de casa de não voltar a vê-lo outra vez.
Ele lhe acariciou o lábio com o polegar.
– Já tenho um trabalho, querida. Sou um homem de negócios, sou sócio na firma de
engenheiros de meu irmão. Trabalhei por todo mundo, era uma boa coberta para as
missões que me encarregavam. A estas alturas, Sabin já teria falado com minha família e
lhes terá contado que houve um engano na identificação das vítimas da explosão e que
estou vivo. A impressão vai ser tremenda para todos, especialmente para meus pais. E
tendo em conta como mudou meu rosto e minha voz, custar-lhes-á acostumar-se,
– E além disso vais levar a uma mulher desconhecida a sua família –disse Jay, com
a preocupação obscurecendo seu olhar.
– Ah, isso. Não se preocupe por isso. Minha mãe leva anos me dizendo que tenho
que sentar cabeça. Antes não era sequer uma possibilidade, mas isso mudou – lhe dirigiu
um sorriso travesso. – Em todo caso, já decidi me retirar, assim poderei dedicar todo meu
tempo a te satisfazer.
E certamente o fazia. Jay posou a cabeça em seu ombro, absorvendo seu calor e
sua proximidade. Lucas esticou os braços.
–Amo-te – lhe disse com voz firme.
–Eu também te amo, Lucas Stone – jamais se cansaria de dizê-lo, e ele nunca se
cansaria de ouvi-lo.
Lucas se levantou e a abraçou.
– Vamos fazer uma chamada de telefone. Quero que meus pais saibam que têm
uma nora.
Fez essa chamada de telefone, mas não diretamente. Antes a beijou e quando
elevou a cabeça, a expressão de seus olhos se intensificou. Levou-a ao quarto; ali, o
espelho refletiu a imagem de duas pessoas entrelaçadas enquanto se amavam.
FIM