Eduardo Lopes Piris
A CONSTRUÇÃO DO ETHOS NUMA
POLÊMICA PARLAMENTAR
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Eduardo Lopes Piris
A CONSTRUÇÃO DO ETHOS NUMA
POLÊMICA PARLAMENTAR
Análise dos pronunciamentos dos parlamentares
que protagonizaram a sessão deliberativa
de 12 de dezembro de 1968
São Paulo 2005
3
Crédito da imagem da capa: Imagem: sessão no plenário Ulysses Guimarães da Câmara Federal em Brasília. Fonte: http://www2.camara.gov.br/internet/bancoimagem. Fotógrafo: Gustavo Bezerra.
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BANCA EXAMINADORA
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____________________________________________
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As coisas. Que tristes são as coisas,
consideradas sem ênfase.
Carlos Drummond de Andrade
6
Dedico este trabalho a todos que não só
acreditam como também lutam para que a
democracia sobreviva à tirania e à demagogia.
7
E, particularmente,
aos meus pais, meus primeiros professores,
ao Mateus, que já cria o mundo por meio da escrita,
ao Guilherme, que começa a descobrir a fala.
8
Agradeço a todos que contribuíram para a realização deste trabalho:
Emílio Carlos Lopez Rodriguez, amigo e historiador, pelas primeiras dicas;
André Nogueira Xavier, amigo lingüista, pelo apoio na reta final;
Cristina de Matos Martins, amiga e colega de orientação, pelo diálogo;
Maria Adélia Ferreira Mauro, Helena Hatsue Nagamine Brandão,
Norma Discini de Campos, Sheila Vieira de Carvalho Grilo,
Lineide do Lago Salvador Mosca e José Luiz Fiorin, amigos e professores,
pelas lições ministradas nos cursos da pós-graduação;
Cecília Pérez de Souza-e-Silva e José Luiz Fiorin, pelas contribuições no
exame de qualificação;
Maria Adélia Ferreira Mauro, pela confiança em mim depositada desde o
início, pelo respeito, pela amizade e, enfim, pela inestimável orientação.
Agradeço também ao Departamento de Lingüística da USP pelo apoio;
e ao CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico,
pela bolsa concedida.
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Agradeço a Deus pelos momentos de paciência, perseverança e sabedoria que,
se não foram suficientes para um trabalho genial, o foram para que eu me
enveredasse por esse sertão, que “é onde o pensamento da gente se forma mais
forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...”
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RESUMO
A sessão da Câmara dos Deputados Federais de 12 de dezembro de 1968 marcou a
política brasileira, pois entrou para a história como o pretexto que faltava para o regime
ditatorial promulgar o Ato Institucional nº 5.
Esta pesquisa visa à análise dos procedimentos discursivos e dos mecanismos
lingüísticos da construção do ethos dos pronunciamentos feitos pelos deputados Geraldo
Freire (ARENA), Márcio Moreira Alves e Mário Covas Júnior (MDB), protagonistas dessa
histórica sessão parlamentar que se constitui como um episódio exemplar de uma já
estabelecida polêmica entre situação e oposição.
Em consonância com Dominique Maingueneau, compreendemos a noção de ethos
como a manifestação de uma subjetividade discursiva que se deixa perceber como uma “voz”
e um “corpo enunciante” historicamente situado que, ao mesmo tempo em que valida o que é
dito, legitima sua maneira de dizer em sua enunciação, extrapolando a noção retórica de ethos
que abrange somente a questão da adesão do auditório.
A análise do ethos que propomos neste trabalho não se embasa, porém, somente no
modelo proposto por Maingueneau, pois, além de levar em conta as categorias discursivas
como a cenografia, o gênero do discurso, a memória discursiva, etc., considera fortemente as
categorias lingüísticas, tais como a dêixis lingüística, as modalidades epistêmicas e as formas
do discurso citado. Por fim, nos preocupamos em relacionar a qualidade dos ethé que
emergem desses pronunciamentos com a respectiva formação discursiva em que esses
discursos se inscrevem.
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ABSTRACT
The House of Representatives session which was held on December 12th, 1968 has left
a mark upon the Brazilian politics for this session has entered history as a lacking excuse for
the dictatorial regimen to promulgate the Institutional Act # 5.
Our research aims at the analysis of the discoursive procedures and the linguistic
mechanisms of the ethos construction on the pronouncements made by the representatives
Geraldo Freire (ARENA), Márcio Moreira Alves and Mário Covas Júnior (MDB),
protagonists of this historical parliamentary session which represents an exemplary episode of
the established controversial issue between situation and opposition.
The ethos may be understood, according to Dominique Maingueneau, as the
manifestation of a discourse subjectivity realized as a "voice" and a historically established
"enunciating body" which, at the same time, validates what is said, and legitimates the manner
of speaking in the enunciation, surpassing the rhetorical notion of ethos which encloses only
the question of the adherence of the listener.
However, the ethos analysis proposed in this work is not based only on
Maingueneau’s paradigm for this analysis also considers discourse categories such as
scenography, discourse genre, discourse memory, etc., along with linguistic characteristics
such as linguistic deixis, epistemological modalities and reported speech. Finally, we are also
concerned with the relation between the quality of the ethé that emerge from these
pronouncements and the discourse formation in which they are inserted.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................15
CAPÍTULO I SOBRE A NOÇÃO DE ETHOS ..............................................................................................26
1. O ethos retórico ................................................................................................................................. 26
2. O ethos discursivo ............................................................................................................................. 30
2.1. A apropriação do ethos pela Análise do Discurso ............................................................... 30
2.1.1. Ethos: tom, caráter e corporalidade ........................................................................ 30
2.1.2. A noção de incorporação ........................................................................................ 32
2.1.3. O anti-ethos ............................................................................................................ 34
2.2. Outras questões associadas ao ethos .................................................................................... 34
2.2.1. A imagem pré-discursiva do enunciador ................................................................ 36
2.2.2. Efeitos visados e efeitos produzidos: a eficácia do ethos ....................................... 38
2.2.3. Além da figura antropomórfica: o ethos institucional ............................................ 40
3. Elementos lingüísticos e discursivos para a análise do ethos............................................................ 42
3.1. As projeções da enunciação no enunciado........................................................................... 43
3.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem............................ 43
3.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ..................................... 48
3.2. A heterogeneidade enunciativa ............................................................................................ 52
3.2.1. O discurso citado .................................................................................................... 53
3.3. A argumentação ................................................................................................................... 54
3.3.1. Os objetos de acordo com o auditório .................................................................... 55
3.4. A noção de cenografia ......................................................................................................... 58
3.4.1. A cenografia como uma das três cenas de enunciação ........................................... 58
3.4.2. A cenografia como recurso de captação ou de subversão de papéis sociais........... 59
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CAPÍTULO II OS PRONUNCIAMENTOS DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968 E O SEU CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO .........................................................................62
4. Sobre o gênero pronunciamento parlamentar.................................................................................... 62
4.1. A noção de gênero do discurso ............................................................................................ 62
4.2. Origem e estabilização do gênero pronunciamento parlamentar ......................................... 66
4.3. Caracterização do gênero pronunciamento parlamentar ...................................................... 68
4.3.1. A construção composicional do pronunciamento parlamentar ............................... 72
4.3.2. Estilo de linguagem do gênero pronunciamento parlamentar................................. 78
5. O cenário político que antecedeu a sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968........................ 79
5.1. A conjuntura política internacional e nacional pré-64 ......................................................... 79
5.2. A conjuntura política nacional pós-64 ................................................................................. 83
5.3. Acerca do pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves.................................... 84
6. A sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968............................................................................ 88
6.1. Transcrição do pronunciamento de Márcio Moreira Alves (MDB/GB) .............................. 89
6.1.1. Primeira parte: o exórdio ........................................................................................ 89
6.1.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio ............................................. 89
6.1.3. Última parte: o epílogo ........................................................................................... 94
6.2. Transcrição do pronunciamento de Mário Covas (MDB/SP) .............................................. 95
6.2.1. Primeira parte, o exórdio ........................................................................................ 95
6.2.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio ............................................. 96
6.2.3. Última parte: o epílogo ......................................................................................... 100
6.3. Transcrição do pronunciamento de Geraldo Freire (ARENA/MG)................................... 102
6.3.1. Primeira parte, o exórdio ...................................................................................... 102
6.3.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio ........................................... 102
6.3.3. Última parte: o epílogo ......................................................................................... 106
14
CAPÍTULO III ANÁLISE DOS PRONUNCIAMENTOS .............................................................................108
7. Análise do ethos construído no pronunciamento de Márcio Moreira Alves (MDB/GB)................ 111
7.1. As projeções da enunciação no enunciado......................................................................... 111
7.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem.......................... 111
7.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ................................... 116
7.2. A heterogeneidade enunciativa .......................................................................................... 128
7.2.1. O discurso citado .................................................................................................. 128
7.3. A cenografia....................................................................................................................... 135
7.4. Caracterização do ethos de Márcio Moreira Alves .......................................................... 140
8. Análise do ethos construído no pronunciamento de Mário Covas Júnior (MDB/SP)..................... 144
8.1. As projeções da enunciação no enunciado......................................................................... 144
8.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem.......................... 144
8.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ................................... 147
8.2. A heterogeneidade enunciativa .......................................................................................... 149
8.2.1. O discurso citado .................................................................................................. 149
8.3. A cenografia....................................................................................................................... 160
8.4. Caracterização do ethos de Mário Covas ........................................................................... 162
9. Análise do ethos construído no pronunciamento de Geraldo Freire (ARENA/MG) ...................... 165
9.1. As projeções da enunciação no enunciado......................................................................... 165
9.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem.......................... 165
9.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização ................................... 167
9.2. A heterogeneidade enunciativa .......................................................................................... 169
9.2.1. O discurso citado .................................................................................................. 169
9.3. A cenografia....................................................................................................................... 172
9.4. Caracterização do ethos de Geraldo Freire ........................................................................ 174
CONCLUSÕES FINAIS ........................................................................................................176
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................179
ANEXOS................................................................................................................................185
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INTRODUÇÃO
Eles se jogam numa cadeira, fixando
enfadonhamente os sapatos e anunciam
bruscamente, a si mesmos ou aos outros, nunca
se sabe: “Fulano e beltrano mostraram... que a
fêmea do rato branco responde negativamente
ao choque elétrico...”. Muito bem, meu senhor,
digo-lhes, e daí? Diga-me primeiro por que devo
incomodar-me com isso, então ouvirei.
K.F. Bruner
apud Perelman & Olbrechts-Tyteca
Se fosse possível registrar a data de nascimento de uma pesquisa, diríamos que esta
teve início no primeiro semestre de 2002 durante o curso de pós-graduação ministrado pela
Profª Drª Maria Adélia Ferreira Mauro na Faculdade de Filosofia da USP.
Nesse mesmo semestre, a TV Cultura exibiu o documentário AI-5 – o dia que não
acabou, produzido pelo jornalista Paulo Markun. Esse documentário apresenta uma
reconstituição da sessão da Câmara dos Deputados Federais, realizada em 12 de dezembro de
1968, e uma série de depoimentos de ex-parlamentares que vivenciaram esse episódio
histórico que serviu de pretexto para a promulgação do AI-5.
As questões enunciativas relacionadas ao discurso e à argumentação que foram
tratadas no curso nos despertaram a atenção quando vislumbramos que elas poderiam nos
fornecer fortes subsídios para a análise dos discursos políticos editados nesse documentário.
Para nós, a principal questão era compreender a dimensão subjetiva do discurso e a
problemática do ethos. Tal interesse resultou na monografia de conclusão desse primeiro
curso na pós-graduação, o qual deu origem a esta pesquisa intitulada A construção do ethos
numa polêmica parlamentar: análise dos pronunciamentos dos parlamentares que
protagonizaram a sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968.
16
Entretanto, é importante destacar que o documentário produzido por Paulo Markun,
embora tenha nos inspirado num primeiro momento, não serviu como fonte para nossa
pesquisa. O documentário enquanto gênero discursivo edita os pronunciamentos, ou seja,
seleciona alguns discursos para compor o documentário, suprime partes desses discursos,
colhe e insere depoimentos dos ex-parlamentares cujos discursos integram o documentário. A
edição revela o ponto de vista do documentarista, que conduz o seu espectador às conclusões
favoráveis ao seu posicionamento ideológico, por mais imparcial que ele pretenda parecer.
Não foi isso o que nos chamou a atenção desde o início, mas sim o debate político entre
governo e oposição que se desenrolou nessa sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968.
Sendo assim, nos pareceu mais ajustado recorrer a uma fonte como o Diário Oficial da
Câmara dos Deputados, pois os pronunciamentos aí publicados e chancelados, embora não
apresentem elementos como a gesticulação, o vestuário e as expressões faciais dos oradores,
primam pela integridade e fidelidade aos textos dos pronunciamentos proferidos e
taquigrafados.
Dessa maneira, os pronunciamentos proferidos na sessão deliberativa de 12 de
dezembro de 1968 e publicados no Diário Oficial da Câmara dos Deputados, suplemento do
número 098, de 1º de junho de 20001, representam o primeiro momento da constituição do
corpus desta pesquisa. A manipulação dessa primeira amostra nos permitiu anotar, como dado
de partida, que trinta e dois deputados subiram à tribuna para proferir seu pronunciamento.
Passamos, então, à delimitação desse corpus, adotando, em um segundo momento, o
critério do tema, em seu sentido mais largo, ou seja, do que falam os deputados. Assim, com
base no tema “pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves”,
doravante “pedido de licença”, começamos a delimitar o corpus separando os
pronunciamentos entre os que não trataram e os que trataram do referido tema, conforme o
quadro esboçado a seguir:
1 Esses pronunciamentos foram publicados bem tardiamente, porque as notas taquigráficas referentes àquela sessão de 12 de dezembro de 1968 ficaram perdidas por mais de trinta anos e somente retornaram ao poder da Câmara Federal em 2000, quando foi determinada a sua publicação no Diário Oficial, que está disponível em http://www2.camara.gov.br/internet/publicacoes/index.html#.
17
Deputados que usaram a tribuna na sessão de 12 de dezembro de 1968
não trataram do tema “pedido de licença” trataram do tema “pedido de licença”
ARENA ARENA
Cid Rocha, ARENA/PR Garcia Neto, ARENA/MT Antonio Ueno, ARENA/PR Feu Rosa, ARENA/ES
Joaquim Cordeiro, ARENA/GO Pedro Gondim, ARENA/PB Cunha Bueno, ARENA/SP Teófilo Pires, ARENA/MG
Edwaldo Flores, ARENA/BA Geraldo Freire, ARENA/MG Romano Massignan, ARENA/SC
MDB MDB
Antonio Bresolin, MDB/RS Sadi Bogado, MDB/RJ Antonio Magalhães, MDB/GO Nísia Carone, MDB/MG
Celestino Filho, MDB/GO Afonso Celso, MDB/RJ Amaury Kruel, MDB/GB Joel Ferreira, MDB/AM
Adolfo de Oliveira, MDB/RJ Mário Gurgel, MDB/ES Mário Maia, MDB/AC Dias Menezes, MDB/SP Unírio Machado, MDB/RS Otávio Caruso da Rocha, MDB/RS Doin Vieira, MDB/SC
Milton Reis, MDB/MG observação: as identidades de dois Jamil Amiden, MDB/GB
deputados que não trataram do pedido de Márcio Moreira Alves, MDB/GB Licença não são fornecidas pela fonte. Mário Covas Júnior, MDB/SP
Assim, obtém-se daí o seguinte dado: trinta e dois parlamentares usaram a tribuna
naquela sessão de 12 de dezembro de 1968, sendo que doze deputados versaram sobre temas
alheios ao pedido de licença, ao passo que os outros vinte trataram do pedido de licença para
processar o deputado Márcio Moreira Alves.
Então, com base no critério do tema (no sentido amplo da palavra), pré-selecionamos
os pronunciamentos desses vinte deputados e passamos a um terceiro momento da
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delimitação do corpus da pesquisa, observando que, desses vinte pronunciamentos, apenas
um manifestou posição favorável ao pedido de licença para processar o referido deputado: o
discurso do líder da bancada governista Geraldo Freire.
De fato, nesses casos em que um deputado é submetido ao julgamento de seus pares,
já está previsto pela praxe ou pelo rito de uma sessão parlamentar que, além do
pronunciamento de autodefesa proferido pelo próprio deputado acusado, os deputados que
ocupam a liderança das bancadas da maioria e da minoria representem-nas, expressando seu
posicionamento por meio de um pronunciamento de defesa ou de acusação, de forma
antagônica e não necessariamente nessa ordem.
O que chama a atenção é o fato de os outros dezenove deputados se manifestarem
contrários ao pedido de licença, independentemente de sua filiação partidária (ARENA ou
MDB). Poderíamos até dizer que isso não chega a revelar um consenso entre essas duas
agremiações essencialmente antagônicas, pois são apenas quatro arenistas ao lado dos quinze
emedebistas que se mostraram contrários ao pedido de licença, ou seja, poder-se-ia apelar
para a falta de representatividade, no entanto isso já serve para apontar, pelo menos, a
existência de um grupo dissidente no interior da agremiação que representa o governo.
Todavia, nosso centro de interesse não converge para a dissidência arenista, pois nossa
preocupação aqui é com a polêmica entre governo e oposição. Assim, tivemos de selecionar
os pronunciamentos que pudessem revelar o dissenso não entre os membros de uma mesma
agremiação partidária, mas sim entre as formações discursivas ARENA e MDB, para
investigar como a disputa entre governo e oposição foi discursivizada nessa sessão
deliberativa de 12 de dezembro de 1968.
Dessa forma, estabelecemos o pronunciamento de Geraldo Freire como o primeiro
discurso selecionado para compor o corpus desta pesquisa, já que esse foi o único parlamentar
a acolher, na tribuna, o pedido de licença encaminhado pelo Executivo ao Legislativo.
Finalmente, em um quarto momento, adotamos o critério da protagonização para
selecionar os pronunciamentos realizados pelos deputados Márcio Moreira Alves
(considerado o pivô da crise) e Mário Covas Júnior (líder da oposição) e, assim, concluir a
composição de nosso corpus. É preciso ainda ressalvar que, se houvesse mais
pronunciamentos favoráveis ao pedido de licença proferidos nessa mesma sessão de 12 de
dezembro, mais discursos poderiam ter constituído o corpus desta pesquisa.
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É com esse corpus que esta pesquisa pretende demonstrar como certos mecanismos
lingüísticos e discursivos servem à construção do ethos do enunciador, que é o objeto central
deste trabalho, pois importa pouco saber se determinado político é um bom homem ou não;
interessa sim investigar como ele se mostra para os seus por meio de seu discurso. Esse será o
foco das análises dos discursos proferidos nessa sessão parlamentar.
Com relação ao ethos, sua noção tem origem na Retórica de Aristóteles e vem sendo
trabalhada por lingüistas de diversas tendências teóricas. Segundo Maingueneau (2002a,
p.60), “o que era uma disciplina única, a retórica, está hoje estilhaçada em diversas disciplinas
teóricas e práticas que têm interesses distintos e captam o ethos sob facetas diferentes”2.
Maingueneau (2002a, p.60) diz que a multiplicidade do atual emprego do termo ethos
torna difícil uma estabilização dessa noção, mas que, sem prejulgar a maneira como essa
noção será explorada, ainda é possível manter acordo sobre três pontos, a saber:
• o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma “imagem” do locutor exterior à fala;
• o ethos está funcionalmente ligado a um processo interativo de influência sobre o outro;
• é uma noção híbrida (sócio/discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma em uma conjuntura sócio-histórica determinada (2002a, p.60).3
Amossy (2005, p.9-28) apresenta de forma sucinta algumas correntes da Análise do
Discurso, da Pragmática, da Teoria da Argumentação, da Narratologia, entre outras, e a
maneira como cada qual compreende a questão do ethos. No entanto, pedimos licença para
nos eximirmos da tarefa de reconstruir tal percurso, já que pretendemos nos dedicar à noção
de ethos tal como ela é proposta por Maingueneau e aí incorporar, como faz o próprio autor,
2 “ce qui était une discipline unique, la rhétorique, est aujourd’hui éclaté en diverses disciplines théoriques et pratiques qui ont des intérêts distincts et captent l’ethos sous des facettes diverses” (2002a, p.60). 3 - l’ethos est une notion discursive, il se construit à travers le discours, ce n’est pas une « image » du locuteur extérieure à la parole ; - l’ethos est funcièrement lié à un processus interactif d’influence d’autrui ;
20
algumas contribuições oferecidas por lingüistas, iniciadores e seguidores, interessados pelos
problemas da enunciação tais como Bakhtin, Benveniste, Ducrot, Kerbrat-Orecchioni, entre
outros.
Antes, é preciso meditar um pouco sobre esses três pontos de acordo sobre a noção de
ethos apontados por Maingueneau. Em primeiro lugar, a preocupação com uma noção como a
de ethos vem ao encontro da necessidade de perceber e apreender o sujeito responsável pela
enunciação de seu discurso, não o sujeito empírico, do qual se procuram a data do
nascimento, do casamento e do óbito, suas idas e vindas pelo mundo, etc., mas sim o
simulacro que ele oferece de si a outrem, pois, segundo Fiorin (2004, p.120), “a análise do
ethos do enunciador nada tem do psicologismo que, muitas vezes, pretende infiltrar-se nos
estudos discursivos. Trata-se de apreender um sujeito construído pelo discurso e não uma
subjetividade que seria a fonte de onde emanaria o enunciado, de um psiquismo responsável
pelo discurso”.
E, para fechar essa questão em torno do sujeito construído pelo discurso, vale lembrar
que Brandão (1998, p.43) mostra que “segundo Authier-Revuz, existe uma negociação entre a
heterogeneidade mostrada na linguagem e a heterogeneidade constitutiva da linguagem em
que o sujeito, movido pela ilusão do centro, pela ilusão de ser a fonte do discurso, por um
processo de denegação, localiza o outro e delimita o seu lugar para circunscrever seu próprio
território”. Em outras palavras, pode-se dizer que o sujeito é um efeito de sentido gerado por
meio de mecanismos discursivos que visam a construir uma unidade discursiva que se assume
como “eu” e que tende a harmonizar as diversas vozes que atravessam seu discurso. Parece
que é dessa maneira que se deve entender o ethos como noção discursiva, ou seja,
depreendendo a imagem desse “eu”, sujeito enunciador, construída no discurso.
No entanto, a inquietação com respeito ao ethos vai mais além. A interação que se dá
entre esse “eu” e o seu outro por meio da linguagem não se estabelece sob a ordem da razão
nem se presta à mera troca de informações, pois a essa interação subjazem os efeitos que se
quer criar sobre o outro, a persuasão, por meio da argumentação. Em outras palavras, a
interação entre os sujeitos pressupõe mais a dimensão pragmática do discurso, o fazer crer e o
fazer fazer, do que sua dimensão cognitiva, o fazer saber. Daí pode-se falar da linguagem
- c’est une notion hybride (socio / discursive), un comportement socialement évalué, qui ne peut être appréhendé hors d’une situation de communication précise, intégrée elle-même dans une conjoncture socio-historique déterminée.
21
como atividade, como ação sobre o outro. Conforme Mosca (1997, p.27), isso se deve ao fato
de que “a linguagem é assim instrumento não só de informação, mas basicamente de
argumentação e esta, por sua vez, se dá na comunicação e pela comunicação, razão pela
qual a argumentação é sempre situada, dando-se basicamente num processo de diálogo, isto é,
num contacto entre sujeitos”.
Já, em uma perspectiva lingüística, Ducrot exemplifica que a argumentação não
repousa sobre o caráter racional, dizendo que:
X e Y devem ir juntos a um certo lugar E. Eles sabem exatamente a que distância estão de E. X propõe a Y de ir a pé até E. Se Y estiver de acordo, pode responder “sim, é perto”. Se, ao contrário, ele quiser recusar, há a possibilidade de dizer “não, é longe”. O que muda entre a qualificação “perto” e a qualificação “longe”? Não é a distância, que X e Y bem conhecem. É somente a exploração argumentativa dessa distância4 (p.6-7).
Deve-se entender aí que não é o componente racional que justificará a recusa ou o
aceite de Y ir ao lugar E em companhia de X, mas sim o componente argumentativo. Dessa
maneira, também tem razão Koch (2001, p.29) ao afirmar que “o uso da linguagem é
essencialmente argumentativo”. Assim, quando Maingueneau (2002a, p.60) diz que “o ethos
está funcionalmente ligado a um processo interativo de influência sobre o outro”, ele quer
dizer que a noção de ethos, já em sua origem, aparece associada ao processo de persuasão, ou
seja, o ethos é construído discursivamente para dar sustentação àquilo que é dito e, assim,
levar o ouvinte a crer em algo e a fazer algo em uma determinada direção.
Além desses dois pontos de acordo sobre o ethos, esboçados de maneira introdutória,
encaminhar um estudo preocupado com a construção do ethos (sobretudo do ethos de sujeitos
que se constroem como políticos) se justifica, também, pelo compromisso de desvelar os
mecanismos de construção e de manutenção de imagens ou de máscaras públicas, que são
reconhecidas pela sociedade que com elas interagem.
4 X et Y doivent se rendre ensemble à un certain endroit E. Ils savent exactement l’un et l’autre à quelle distance ils sont de E. X propose à Y d’aller à pied à E. Y, s’il est d’accord, peut répondre « oui, c’est près ». Si au contraire il veut refuser, il a la possibilité de dire « non, c’est loin ». Qu’est-ce qui change entre la qualification « près » e la qualification « loin » ? Ce n’est pas la distance, que X et Y connaissent l’un comme l’autre. C’est seulement l’exploitation argumentative de cette distance.
22
Assim é preciso ponderar e entender o que Maingueneau diz sobre o hibridismo da
noção de ethos. O ethos remete não só a fatores de ordem discursiva, como também de ordem
sócio-histórica, pois, ao mesmo tempo em que o ethos é engendrado no e pelo discurso, sua
construção se apóia em comportamentos socialmente axiologizados, ou seja, modos de dizer,
de ser, enfim, de se comportar, que têm o reconhecimento ou a reprovação de um determinado
grupo social. Em outras palavras, a construção do ethos no discurso reflete e refrata o que o
sociólogo Norbert Elias chama de habitus, o que, em linhas gerais, pode ser entendido como
modo de ser de um indivíduo em sua relação intrínseca com o grupo social ao qual ele
pertence. Para Elias (1994, p.150), o habitus equivale à “composição social dos indivíduos”,
ou seja, “cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as demais, tem uma
composição específica que compartilha com outros membros de sua sociedade”.
Em relação à noção de habitus, é preciso lembrar que o também sociólogo Pierre
Bourdieu atribui a essa noção uma dimensão lingüística a qual ele chama de habitus
lingüístico; trata-se aí de uma interessante distinção no interior de sua teoria que, no entanto,
fica um pouco distante dos encaminhamentos deste trabalho, pois, se, para Bourdieu (1983,
p.104), “a noção de habitus engloba a noção de ethos”, entender-se-á aqui, juntamente com
Eggs (2005), que a noção de ethos possui uma dimensão moral (epieíkeia) e uma dimensão
social (héxis = habitus)5, que são solidárias.
Agora, uma vez discutidas essas três características gerais da noção de ethos, interessa
fixar a forte relação entre ethos e enunciação, já que se trata de uma noção relacionada ao
sujeito responsável pela enunciação de seu discurso, como atesta Amossy (2005, p.10) ao
lembrar que “a construção de uma imagem de si, peça principal da máquina retórica, está
fortemente ligada à enunciação, colocada no centro da análise lingüística pelos trabalhos de
Émile Benveniste”. Passemos a um breve sobrevôo sobre a noção de enunciação.
Em seu artigo intitulado O aparelho formal da enunciação, Benveniste define a
enunciação como “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de
utilização” (1989, p.82), alertando que “é preciso ter cuidado com a condição específica da
enunciação: [pois] é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que
é nosso objeto” (Ibidem).
5 Isso será mais explorado neste trabalho na subseção 1.1- O ethos retórico.
23
No que toca à enunciação, o que importa sublinhar desde já é o entendimento que se
tem sobre o papel dos sujeitos da enunciação. Benveniste mostra que esse “ato individual pelo
qual se utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições
necessárias da enunciação” (Ibidem, p.83), ao passo que esse locutor “enuncia sua posição de
locutor”, “ele implanta o outro diante de si” (Ibidem, p.84), ou seja, a enunciação é um
processo no qual é possível reconhecer as suas instâncias tanto de produção quanto de
interpretação da enunciação. Mais adiante, Benveniste confirma que “a enunciação coloca
duas figuras igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do
diálogo” (Ibidem, p.87). É o que Benveniste denomina de “quadro figurativo da enunciação”
(Ibidem).
Já Anscombre & Ducrot (1988, p.36) definem a enunciação como “a atividade
linguageira exercida por aquele que fala no momento em que ele fala. Logo, ela é por
essência histórica, eventual, e, como tal, não se reproduz nunca duas vezes idêntica a si
mesma”6. Os autores acentuam em sua definição o aspecto da historicidade, do acontecimento
da enunciação, porém deixam de frisar, como bem mostra Kerbrat-Orecchioni (1980, p.28),
que a enunciação é também a atividade exercida “por aquele que escuta no momento em que
ele escuta”7. De todo modo, a enunciação, entendida como ato singular, não pode ser descrita
em si mesma, já que ela escapa incessantemente a todo o momento que se enuncia. Por isso é
que Kerbrat-Orecchioni (1980, p.30) diz que “na impossibilidade de estudar diretamente o ato
de produção, buscaremos identificar e descrever os traços do ato no produto, ou seja, os
lugares de inscrição, na trama enunciva, de diferentes constituintes do quadro enunciativo”.
Em outras palavras, o trabalho do lingüista consiste aí em buscar no enunciado as marcas de
sua enunciação. Marcas lingüísticas que são expressas pela dêixis, pela modalização, pelo
conjunto de termos avaliativos, etc., e que foram bem examinadas por Kerbrat-Orecchioni
(1980), como lembra Amossy (2005, p.11).
É preciso também levar em conta o aspecto dialógico da enunciação, ou seja, deve-se
considerar que a enunciação não é um processo gerado espontaneamente a partir do nada, pois
a atividade de enunciar um discurso pressupõe, no mínimo, uma resposta a outras enunciações
6 “l’activité langagière exercée par celui qui parle au moment où il parle. Elle est donc par essence historique, événementielle, et, comme telle, ne se reproduit jamais deux fois identique à elle même” (1988, p.36). 7 “[mais aussi, par celui qui écoute au momento où il écoute]” (1980, p.28).
24
de outros discursos. Bakhtin (2002, p.98) entende que “toda enunciação, mesmo na forma
imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de
um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava
uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as”.
Dentro do quadro da Semiótica, Greimas & Courtés (1983, p.145-6) propõem tratar da
enunciação como “uma instância lingüística, logicamente pressuposta pela própria existência
do enunciado (que dela contém traços e marcas)” e “sendo o enunciado considerado como o
resultado alcançado pela enunciação, esta aparece como a instância de mediação, que
assegura a colocação em enunciado-discurso das virtualidades da língua”.
De um modo geral, pode-se ver que todas essas explicações abarcam o mesmo
fenômeno lingüístico, todavia cada explicação enfatiza uma preocupação diferente, o que é
salutar para que se desenhe um quadro teórico mais completo do fenômeno da enunciação.
Sendo assim, podemos resumir que a enunciação é este ato de colocar a língua em
funcionamento, de converter as virtualidades do sistema lingüístico e de qualquer outro
sistema semiótico em discurso, no qual as instâncias enunciativas “eu” e “tu” interagem entre
si, representando os acordos e desacordos do “mundo real”, e dialogam com os discursos
antecessores, materializando tal acontecimento, que é único e histórico, na forma de um
enunciado, produto pelo qual se apreende os rastros da enunciação e as grades culturais de um
dado contexto sócio-histórico a que ela remete.
Após essa breve passagem pela noção de enunciação, é oportuno voltar a dizer que
para depreender o ethos é necessário levar em conta as noções lingüísticas e discursivas
relativas à enunciação, correlacionando os fenômenos enunciativos aos efeitos de sentido que
eles podem criar, a fim de apreender um modo de dizer, um tom e, daí, conferir um ethos ao
enunciador.
E, feitas essas considerações iniciais, passemos à exposição do plano de texto deste
trabalho. O primeiro capítulo se destina à discussão sobre a noção de ethos. Nele, trataremos,
em primeiro lugar, de situar o ethos retórico como uma das três provas de persuasão,
especificando sua natureza discursiva. Depois, nos estenderemos sobre a apropriação do ethos
pela Análise do Discurso, abrangendo noções associadas ao ethos como a incorporação e o
anti-ethos e firmando posições sobre algumas questões que geram polêmica como, por
exemplo, o emprego de termos como ethos discursivo e ethos pré-discursivo, ethos visado e
25
ethos produzido, ethos institucional. E, ao final do primeiro capítulo, abordaremos as noções
lingüísticas e discursivas que servirão às análises.
Depois de situar a noção de ethos com qual iremos trabalhar, apresentaremos no
segundo capítulo o contexto sócio-histórico que envolve os pronunciamentos sob análise.
Trata-se de um capítulo de preparação para a análise, um momento em que a preocupação
com a fundamentação teórica cede algum espaço para oferecer uma contextualização histórica
dos discursos que serão analisados no terceiro capítulo.
Desse modo, o segundo capítulo abriga três seções. Na primeira, trataremos do gênero
parlamentar, expondo a noção de gênero com a qual nos afinamos, abarcando as origens desse
gênero, bem como a estabilização de suas principais características. Na segunda seção,
tentaremos traçar o cenário político que antecedeu a sessão deliberativa de 12 de dezembro de
1968, especialmente a conjuntura política internacional e nacional pré-68 e a sessão ordinária
de 4 de setembro de 1968, que abrigou o início de um debate sobre o episódio da invasão da
Universidade de Brasília pela polícia militar. Por fim, na terceira seção, apresentaremos a
transcrição que fizemos dos três pronunciamentos sob análise, já que a legibilidade dos fac-
símiles8 fica prejudicada em muitas passagens.
Finalmente, no terceiro capítulo, nos dedicaremos ao estudo dos pronunciamentos dos
parlamentares que protagonizam essa sessão deliberativa que antecedeu o AI-5, seguindo a
ordem em que foram proferidos e focalizando a construção dos ethé, que serão depreendidos
com base em uma série de categorias de análise como a dêixis lingüística, as modalidades
epistêmicas, o discurso citado e a cenografia, em que o resultado geral é sempre discutido no
final das análises à guisa de conclusão.
8 Juntados nos anexos IV, V e VI.
26
CAPÍTULO I
SOBRE A NOÇÃO DE ETHOS
As elegias de Tirteu estão impregnadas de um
ethos educacional de estilo grandioso. O alto
nível das exigências propostas ao sentido
comunitário e à abnegação dos cidadãos era,
sem dúvida, justificado pelas circunstâncias em
que o poeta as formulou: o grande perigo que
Esparta corria nas guerras messênicas.
Werner Jaeger
1. O ETHOS RETÓRICO
Aristóteles entende a retórica como “a capacidade de descobrir o que é adequado a
cada caso com o fim persuadir” (1998, p.48), ou seja, “a retórica tem, por assim dizer, a
faculdade de descobrir os meios de persuasão sobre qualquer questão dada” (Ibidem, p.49).
Nesse sentido, Armando Plebe (1978, p.39) explica que a retórica deve levar a uma
demonstração construída por meio de silogismos convincentes – o que Aristóteles chama de
silogismos retóricos ou entimemas – e não a uma demonstração irrefutável que se efetua por
meio dos silogismos próprios da lógica. No entanto, é na retórica que, segundo Armando
Plebe e Pietro Emanuele (1992, p.31-32), uma determinada tese se contrapõe às outras para
vencê-las e afirmar a sua superioridade.
Dessa forma, Aristóteles diz que “a demonstração retórica é o entimema e que este é,
geralmente falando, a mais decisiva de todas as provas por persuasão” (1998, p.46) e ressalta,
ainda, que a função da retórica “não é persuadir mas discernir os meios de persuasão mais
pertinentes a cada caso” (Ibidem, p.47).
Isso posto, Aristóteles (Ibidem, p.49) distingue dois tipos de provas de persuasão,
sendo que um deles não é próprio da retórica, enquanto o outro sim. O primeiro tipo consiste
27
nas provas não técnicas ou inartísticas, isto é, naquelas obtidas por meio de testemunhos,
confissões sob tortura ou quaisquer outros métodos coercitivos, etc. Já o segundo corresponde
às provas técnicas ou artísticas, ou seja, em todas aquelas produzidas pelo orador por meio do
método retórico. Em suma, a diferença é que as provas do primeiro tipo são utilizadas e as do
segundo, inventadas.
Aristóteles define, então, três espécies de provas artísticas de persuasão fornecidas
pelo discurso, dizendo que “umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo como
se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece
demonstrar” (Ibidem).
Aristóteles expõe claramente essa primeira prova ao afirmar que “persuade-se pelo
carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser
digno de fé” e que “é, porém, necessário que esta confiança seja resultado do discurso e não
de uma opinião prévia sobre o carácter do orador” (Ibidem). A segunda prova consiste na
disposição dos ouvintes, ou seja, nas emoções que o discurso os leva a experimentar. Já a
terceira deriva do que é construído por meio do próprio raciocínio. A essas três espécies de
provas técnicas ou artísticas de persuasão correspondem, mais especificamente, os termos
ethos, pathos e logos, respectivamente.
Armando Plebe (1978, p.42) observa que ethos e pathos podem ser traduzidos por
“caráter” e “paixão” apenas de forma aproximada. Segundo o autor, a razão disso diz respeito
ao fato de que o termo ethos pode expressar também a idéia de atitude, costume e moralidade,
enquanto o termo pathos “não é ‘paixão’ no puro sentido de uma inflamada emoção, mas é o
mundo todo da irracionalidade emocional”.
Nesse sentido, Ekkehard Eggs (2005, p.30) mostra que há “dois campos semânticos
opostos ligados ao termo ethos: um, de sentido moral [...], engloba atitudes e virtudes como
honestidade, benevolência ou eqüidade; outro, de sentido neutro ou ‘objetivo’ da héxis, reúne
termos como hábitos, modos e costumes ou caráter”. O que Eggs quer dizer aí é que o ethos
não compreende apenas uma dimensão moral, mas também social. Assim, o autor ilustra sua
observação com a seguinte passagem do terceiro livro da Retórica de Aristóteles: “um homem
28
rude não poderia dizer as mesmas coisas nem dizê-las da mesma maneira que um homem
culto”9 (2005, p.29).
Outro ponto a ser discutido corresponde à natureza do ethos. Ruth Amossy (2005,
p.17) suscita a polêmica, questionando se “o ethos é [...] a imagem de si construída no
discurso ou [...] um dado preexistente que se apóia na autoridade individual e institucional do
orador”. A autora conduz sua exposição à seguinte resposta: “Le Guern conclui de seu
percurso pelos manuais clássicos que a eficácia do discurso deriva claramente dos caracteres
oratórios e não dos caracteres reais” (2005, p.19).
Roland Barthes (1975, p.203) corrobora a noção aristotélica de ethos, dizendo que os
ethé “são os traços de caráter que o tribuno deve mostrar ao auditório (pouco importa sua
sinceridade) para causar boa impressão: são suas aparências”.
Gilles Declercq (1992, p.47), também em sintonia com Aristóteles, diz que “o ethos
deve ser compreendido como uma condição técnica e intrínseca do processo de persuasão, e
não como uma qualidade moral e extrínseca que resulta da natureza do orador”10. E mais, “é o
discurso que produz a confiança: correlativamente a uma representação do mundo, o orador
constrói por meio de sua enunciação uma representação oratória de sua pessoa que modela a
situação e argumentação”11. Em outras palavras, não é necessariamente a própria honestidade
do orador que lhe garantirá o sucesso persuasivo, mas sim a impressão que o seu discurso
causar.
Os lingüistas e os analistas do discurso também partilham desse princípio e, antes de
adaptar a noção de ethos aos seus quadros teóricos, alinham suas considerações às desses dois
comentadores da Retórica. Falemos, pois, de Ducrot (1987), Fiorin (2004) e Maingueneau
(2005).
Ducrot (1987, p.187-188), ao distinguir o sujeito falante (elemento da experiência, ser
empírico) do locutor (ficção discursiva, ser do discurso), propõe outra distinção no interior da
9 Manuel Alexandre Júnior et al. traduzem a passagem como “Na verdade, o rústico e o instruído não falam do mesmo modo” (1998, p.190) 10 “L´ethos doit donc se comprendre comme une condition technique et intrinsèque du processus de persuasion, et non comme une qualité morale et extrinsèque issue de la nature de l´orateur.” (Declercq, 1992, p.47). 11 “C´est le discours qui produit la confiance: corrélativement à une représentation du monde, l´orateur construit par son énonciation une représentation oratoire de sa personne qui façonne la situation d´argumentation.” (Ibidem).
29
noção de locutor, a saber: locutor L (responsável pela enunciação) e locutor λ (a origem do
enunciado).
A argumentação de Ducrot em favor dessa distinção se sustenta no fato de que, para
ele, enunciados como “Ai de mim!” ou “Ah!” diferenciam-se de enunciados como “eu estou
muito triste” ou “eu estou muito alegre”, justamente porque enquanto aqueles revelam
tristeza ou alegria por meio da enunciação, estes descrevem esses estados no próprio
enunciado. Mais especificamente, nos primeiros enunciados, é ao locutor L que os
sentimentos são atribuídos, ao contrário dos últimos, nos quais a tristeza e a alegria são
estados referentes ao locutor λ, ou seja, àquele que diz “eu”.
No bojo de sua teoria, Ducrot (1987, p.189) diz que ethos está ligado ao locutor L e
que “é enquanto fonte da enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres que, por
contraponto, torna esta enunciação aceitável ou desagradável” e o que “o orador poderia dizer
de si [...] diz a respeito de λ”.
Fiorin (2004, p.120) ressalta que “o éthos não se explicita no enunciado, mas na
enunciação [...], ou seja, nas marcas da enunciação deixadas no enunciado”, concordando com
a idéia aristotélica de que o ethos é uma construção do discurso, um efeito de sentido, e não
algo dado a priori.
Por sua vez, Maingueneau (2005, p.70) afirma que “a questão essencial é que o ethos
[...] está ligado à enunciação, não a um saber extradiscursivo sobre o enunciador”. Além
disso, também critica a tradução do termo ethos por caráter.
Em consonância com esses autores, podemos concluir que a primeira prova técnica ou
artística de persuasão – o ethos – está associada à construção da imagem do orador no e pelo
discurso e não corresponde a qualquer opinião prévia que se tenha sobre sua pessoa, ou seja,
“o ethos se mostra, ele não é dito” (Maingueneau, 2005, p.71). É preciso sublinhar que estar
associado não significa ser equivalente, pois, a rigor, a noção de ethos não se restringe a
recobrir somente a imagem do enunciador. O ethos extrapola isso, pois remete à idéia do
fiador do discurso, aquele que garante o que é dito, que legitima seu discurso pelo seu modo
de dizer.
30
2. O ETHOS DISCURSIVO
2.1. A apropriação do ethos pela Análise do Discurso
2.1.1. Ethos: tom, caráter e corporalidade
Conforme vimos na seção anterior, a noção de ethos vem sendo trabalhada por
lingüistas de diversas tendências teóricas. Porém, é com os trabalhos de Maingueneau que
uma teorização sobre o ethos discursivo parece ganhar consistência. É o que percebe
Ekkehard Eggs ao comentar que “o ethos está – com exceção dos trabalhos de Dominique
Maingueneau – praticamente ausente da pesquisa atual em lingüística, em pragmática e em
teoria da argumentação” (2005, p.30). Além disso, como atesta Maingueneau, ethos não é
uma noção que goza de estabilidade no “vocabulário crítico” (2001, p.138).
Parece possível inferir que uma noção surgida na Antigüidade não seria adaptada a
uma disciplina contemporânea senão com os devidos ajustes. Dessa maneira, Maingueneau
(1997, p.45), integra o ethos retórico à disciplina em que se situa, a Análise do Discurso (AD),
propondo dois deslocamentos. O primeiro diz respeito aos efeitos que o enunciador pretende
causar sobre seu auditório por meio de sua imagem são impostos pela formação discursiva e
não pelo sujeito em si. O segundo é que “a AD deve recorrer a uma concepção do ethos que
seja transversal à oposição entre o oral e o escrito”, pois “embora o texto seja escrito, ele é
sustentado por uma voz específica” (1997, p.46) e “qualquer gênero de discurso escrito deve
gerir sua relação com uma vocalidade fundamental” (2001, p.139). Em suma, pode-se dizer
que mesmo os textos escritos são dotados de uma voz, ou melhor, de um tom.
No entanto, só o tom ainda é muito pouco para recobrir a noção de ethos, por isso
Maingueneau afirma que “o tom está necessariamente associado a um caráter e a uma
corporalidade” (1997, p.46-47). Dessa maneira, o autor (2001, p.139; 2005, p.72) sustenta
que o caráter12 corresponde a um feixe de traços psicológicos, enquanto a corporalidade se
associa a uma compleição corporal, isto é, a um modo de se movimentar num espaço social.
É interessante notar como essa proposta de Maingueneau – de pensar o tom, o caráter
e a corporalidade como integrantes do ethos – vai ao encontro das observações feitas por
Armando Plebe (1978) e Ekkehard Eggs (2005) sobre a tradução do termo ethos, uma vez que
ambos percebem que operar com o ethos não é só tratar da dimensão moral apresentada por
12 Nesse caso, caráter não deve ser tomado como aquela tradução mais usual de ethos.
31
aquele que enuncia um discurso, mas também de sua dimensão social. Dessa forma, é preciso
detalhar um pouco mais essas dimensões do ethos.
Aristóteles já dizia que “acreditamos mais e bem mais depressa em pessoas honestas”
(1998, p.49). Em termos atuais, isso quer dizer que a persuasão não se realiza somente por
meio do raciocínio demonstrado no discurso por meio do dito, pois muito dela depende do
modo de dizer e, portanto, do modo de ser e de se movimentar do enunciador. É aí que o tom
aparece como a vocalidade que implica o corpo do enunciador, não o corpo do ser empírico,
ontológico, mas aquele que emerge do discurso como “uma instância subjetiva encarnada que
exerce o papel de fiador” do que é dito, como mostra Maingueneau (2005, p.72).
Dessa maneira, a autoridade do que é dito pelo enunciador é garantida por meio desse
fiador, pois é ele quem leva o co-enunciador a se identificar com o seu corpo, mais
especificamente com o seu jeito de dizer, de ser, de se movimentar, enfim, de se comportar.
Eis que a autoridade do enunciador não está necessariamente ligada à sua ascendência social,
mas sim à legitimidade da enunciação de seu discurso.
Quando se diz que ao tom se associam um caráter e uma corporalidade, quer se dizer
que esse fiador do discurso aparece investido dessas outras duas dimensões do ethos, as quais
se apóiam sobre representações sociais, estereótipos culturais axiologizados, isto é,
valorizados positiva ou negativamente. E, como mostra Maingueneau (2005, p.72), “esses
estereótipos culturais circulam nos registros mais diversos da produção semiótica de uma
coletividade: livros de moral, teatro, pintura, escultura, cinema, publicidade...”, o que não
trata de outra coisa senão da discursividade, aliás da interdiscursividade.
Bem entendidas as dimensões vocal, psíquica e física do ethos, é preciso fazer duas
observações. A produção de uma qualidade de ethos deve ainda ser compatível com o mundo
que é construído no discurso por meio da cenografia, pois quando se fala em “um modo de
ser e de se movimentar no mundo”, está se tratando de um mundo que é produzido no e pelo
discurso por meio de uma topografia e de uma cronografia, nos termos de Maingueneau.
É nesse sentido que Maingueneau (2005, p.75) afirma que o ethos “é parte constitutiva
da cena de enunciação”, noção que será retomada mais adiante, no final deste primeiro
capítulo. E, por fim, tudo isso que compreende a noção de ethos integra a identidade de uma
dada formação discursiva na qual um discurso se inscreve.
32
2.1.2. A noção de incorporação
Maingueneau propõe a noção de incorporação para dar conta da relação entre ethos e
co-enunciador (2005, p.72) ou, ainda, “para designar a ação do ethos sobre o co-enunciador”
(2002, p.99), porque o entendimento do processo de persuasão pelo ethos não se exaure na
sua descrição em si. É preciso compreender também que a enunciação, ao dar corpo ao fiador,
possibilita que o co-enunciador incorpore, assimile o modo de se comportar desse corpo
enunciante, tendo a ilusão de que ele faz parte de um corpo, um grupo social e ideológico.
Assim, para Maingueneau, o processo de incorporação está concluído quando o co-enunciador
se vê como membro de “uma comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso”
(2005, p.73).
A relação intersubjetiva entre o enunciador e o seu co-enunciador implica persuasão e
adesão, ou seja, um leva o outro a crer e a fazer; no entanto, quando se fala em incorporação,
está-se determinando o papel que a imagem do corpo do enunciador cumpre nesse processo
persuasivo, mas não o corpo restrito a uma compleição física, e sim um corpo dotado de
caráter e de reconhecimento sócio-cultural.
No processo de persuasão, a incorporação cumpre a função específica de levar o co-
enunciador a aderir a um discurso, fazendo-o assimilar uma maneira de ser e um modo de
fazer. Aliás, esse processo de assimilação pode ser encarado, como propõe Landowski (2002)
ao tratar do Outro e sua presença, dentro de um contínuo que compreende a assimilação, a
admissão, a segregação e a exclusão, que é disposto no quadrado semiótico da seguinte forma:
CONJUNÇÃO DISJUNÇÃO “Assimilação” “Exclusão” “Admissão” “Segregação” NÃO-DISJUNÇÃO NÃO-CONJUNÇÃO
(Landowski, 2002, p.15).
33
Dessa maneira, Landowski explica que a assimilação opera “uma perfeita conjunção
das identidades”, enquanto a exclusão, “sua completa disjunção” (Ibidem, p.16),
diferentemente da segregação e da admissão que não marcam posições absolutas e se nutrem
de reminiscências.
A segregação, ao mesmo tempo que depende da não-conjunção, supõe a reminiscência
de uma relação conjuntiva; assim, um discurso de segregação faz pressupor que “os dois
elementos da relação se encontravam conjuntos” e manifesta que “é precisamente esta
conjunção que está se desfazendo” (Ibidem, p.18) de modo a evitar a exclusão. A admissão,
por sua vez, “dependerá da não-disjunção e só poderá ser viável como regime de relações
intersubjetivas entre indivíduos ou entre comunidades com base na reminiscência contrária”
(Ibidem, p.20). Além disso, a admissão favorece a aproximação entre identidades distintas e
oferece resistência ao seu próprio efeito final, que é o da eliminação das diferenças, a
assimilação.
Essa passagem pelo texto de Landowski tem a intenção de mostrar que a incorporação
do ethos está longe de ser um processo absoluto, o que conduz à idéia de assimilação do corpo
do enunciador, pois a incorporação pode ocorrer também como admissão. Assim, recuperando
o que diz Maingueneau (2005, p.73), o processo de incorporação se conclui quando o co-
enunciador se sente, ou melhor, quando é construído para se sentir assimilado ou admitido
(aceito) em “uma comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso”.
Por exemplo, nos discursos que antecederam o AI-5, os membros do MDB assimilam,
ou seja, incorporam amplamente o ethos construído nos discursos do líder da bancada,
deputado Mário Covas; alguns deputados da ARENA admitem, ou seja, aceitam incorporar
parcialmente esse ethos; o regime militar segrega, ou seja, não incorpora o ethos produzido
pelos discursos oposicionistas, mas convive com a produção discursiva de um partido de
oposição oficialmente legalizado, tratando-o como minoria; e, finalmente, o mesmo regime,
por meio do AI-5, exclui o Outro do que ele entende como seu ambiente, logo não há aí a
mínima chance de incorporação e isso já remete à questão do anti-ethos, ou seja, à imagem do
anti-sujeito.
34
2.1.3. O anti-ethos
Como se vê, é possível relacionar os discursos de segregação e de exclusão ao anti-
ethos. O enunciador por meio de seu modo de dizer mostra um determinado comportamento
em vez de outro e, assim, tal oposição pode ser localizada conforme as grades culturais que se
impõem à produção de seu discurso. Por exemplo, o discurso que reivindica o
restabelecimento da ordem sobre o caos é reconhecido na grade cultural pós-64 como o
discurso do regime que se instalou no governo após o golpe militar de 1964.
A exemplo do ethos, o anti-ethos deve ser entendido como uma figura discursiva
mostrada na enunciação, o que não deve ser confundido com as descrições que se fazem do
anti-sujeito no enunciado, porque isso equivale ao equívoco de se acreditar que o ethos é dado
a priori no enunciado, em que o enunciador diz “sou honesto” e se aceita que o seja. Enfim,
não basta ao enunciador de um discurso político, por exemplo, dizer que seu adversário é
desonesto ou corrupto, é preciso, antes, que seu discurso construa o ethos de um político
honesto para, simultaneamente, ir construindo o anti-ethos do político desonesto.
2.2. Outras questões associadas ao ethos
Neste momento, pretendemos avançar sobre outras questões que envolvem o ethos,
bem como justificar as posições que assumiremos neste trabalho no que toca ao emprego de
certos termos que dizem respeito ao ethos.
Antes, é preciso estabelecer que, embora adotemos aqui uma noção de ethos apoiada
no quadro teórico formulado por Maingueneau, procuramos manter fidelidade a uma das
características que marcam a concepção aristotélica de ethos: a de relacionar o ethos à
imagem que o orador constrói de si no e pelo seu próprio discurso.
De fato, isso traz conseqüências. Fundamentalmente, a mais importante delas é
sustentar que o ethos não corresponde à imagem de outra instância subjetiva que não a do
enunciador. Ora, um estudo que se proponha a analisar a construção da imagem de um certo
político em uma determinada revista não estará tratando do ethos desse tal político, porque
sua imagem foi construída por um terceiro e não por ele mesmo.
As revistas e os políticos podem se constituir como atores discursivos, no entanto a
questão é reconhecer quem é o responsável pela enunciação. Nas eleições de 2002, Revistas
35
como Veja, Primeira Leitura e Caros Amigos publicaram matérias sobre os candidatos Lula,
Serra, Garotinho e Ciro Gomes. Certamente, há aí ocorrências de discurso citado, o que revela
que os políticos enunciam, mas enunciam na condição de enunciadores do discurso citado,
pois o enunciador é, em última instância, a revista. É em torno do nome da revista e não do
nome dos políticos que se busca criar a ilusão do centro, a ilusão de ser a fonte do discurso. A
imagem do político é aí então recoberta por outro fenômeno discursivo diferente do ethos.
Outro exemplo. Se, ao tomar uma obra literária como corpus, o analista quiser dar
conta da construção da imagem de uma instância subjetiva que não seja a do enunciador, mas
sim a do narrador13 ou a do interlocutor14, ele também não estará tratando do ethos, porque as
imagens do narrador e do interlocutor são construções discursivas que não coincidem com a
figura do enunciador. Nessa perspectiva, não seria adequado dizer que se está estudando o
ethos de Macunaíma (interlocutor, personagem que diz “eu”), o que não impede que se estude
a construção da imagem de Macunaíma. Para nós, o interesse pelo estudo do ethos construído
nessa obra literária recairia, então, sobre o autor, enquanto princípio semiótico e não ser
ontológico. Importaria para tal análise questionar essa obra enquanto discurso literário para
saber como a obra se inscreve discursivamente, que tipo de ethos garante a inscrição da obra,
com qual formação discursiva o ethos aí construído cria identidade, com o ethos de qual
formação discursiva o ethos do autor Mário de Andrade polemiza, de que modo e quais as
razões para a polêmica.
Enfim, é importante frisar que o ethos está associado à imagem do enunciador e que
isso nos levará a discutir algumas noções que, normalmente, recebem o rótulo de ethos. Essa é
a preocupação que norteará as considerações que teceremos a seguir.
13 Instância subjetiva instalada no enunciado e delegada pelo enunciador. 14 Instância subjetiva também instalada no enunciado, mas delegada pelo narrador por meio do discurso direto, por exemplo.
36
2.2.1. A imagem pré-discursiva do enunciador
Maingueneau (2002a, p.58; 2005, p.71) justifica a distinção entre ethos discursivo e
ethos pré-discursivo, considerando que “se o ethos está crucialmente ligado ao ato de
enunciação, não se pode ignorar, entretanto, que o público constrói representações do ethos do
enunciador antes mesmo que ele fale”.
Com efeito, uma discussão sobre essa distinção não é suscitada assim tão
gratuitamente. Amossy (2005, p.18) lembra que Quintiliano e Cícero consideravam que o
caráter do orador, seu exemplo de vida, suas ações cotidianas, etc., tinham sua devida
relevância no momento em que proferiam seus discursos.
Haddad (2005) trata da relação entre o que ele chama de ethos prévio e ethos
discursivo, analisando um artigo de cunho pacifista, publicado na França em 1914, no início
da I Guerra Mundial, por um escritor, Romain Rolland, acusado de ser simpatizante da
Alemanha. O objetivo de sua análise é verificar como o autor constrói uma imagem favorável
de si, apagando os traços desfavoráveis que lhe são previamente atribuídos. Antes de
endereçarmos nossa crítica, vejamos o que Haddad entende por ethos prévio.
Para Haddad (2005, p.147-8), o ethos prévio consiste na representação estereotipada
construída pela opinião pública, em que “o ethos prévio ou pré-discursivo condiciona a
construção do ethos discursivo e demanda a reelaboração dos estereótipos desfavoráveis que
podem diminuir a eficácia do argumento” (Ibidem, p.148).
De certa forma, Haddad junge duas visões distintas sobre o ethos: uma, postulada pela
retórica aristotélica, em que o ethos é efeito de construção do discurso; outra, oriunda da
retórica latina, em que a moral do orador em si pesa mais do que seus argumentos. O autor
estabelece entre as duas visões de ethos uma relação em que a imagem antecipadamente
construída do autor pelo seu público afeta e condiciona a imagem que o próprio enunciador
constrói de si em seu discurso. Essa é a maneira com que Haddad procura trabalhar com as
duas noções de ethos: uma estritamente discursiva e a outra sociológica. Seu objetivo não é o
de sustentar uma dicotomia, mas uma integração, por isso Haddad (Ibidem, p.163) afirma que
“longe de constituir um elemento exterior ao discurso, [...] o ethos prévio está estreitamente
ligado ao ethos discursivo”.
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Embora o autor defina a noção de ethos prévio de maneira difusa, talvez devido aos
limites impostos pelo livro, certamente, ele toca em um problema do ethos que deve ser aqui
discutido para possamos integrá-lo a este trabalho sem prejuízos.
Em primeiro lugar, não é bastante repetir que, conforme Maingueneau, os
“estereótipos culturais circulam nos registros mais diversos da produção semiótica de uma
coletividade” (2005, p.72); assim, o que se chama de ethos prévio ou pré-discursivo é o
resultado de um conjunto de produções discursivas situadas em um antes e que constroem
uma representação estereotipada de um determinado ator discursivo, seja ele individual ou
coletivo, o que significa que a constituição de um ethos prévio não se configura senão por
meio da construção discursiva, por meio da linguagem.
Em segundo lugar, embora se considerem as noções de estereótipo e de imagem prévia
como pertencentes à ordem do pré-discursivo, este parece ser o momento de distingui-las. A
priori, parece justo dizer que o estereótipo está ligado às representações coletivas, enquanto o
ethos prévio, à representação individual de um certo enunciador. Por exemplo, pode-se falar
do estereótipo do político, do professor, do engenheiro, desse ou daquele lugar social; pode-se
até especificá-lo, suscitando o estereótipo do político de direita, de esquerda, etc.; no entanto,
se se quer analisar os discursos de um ou de outro ator discursivo como, por exemplo, os do
atual presidente do Brasil ou do atual governador de São Paulo, parece mais apropriado falar
não em estereótipo do Lula ou do Alckmin, mas sim do ethos prévio de cada ator discursivo.
Em terceiro lugar, alimentamos até aqui o emprego do termo ethos prévio, mas isso
também precisa ser reconsiderado. Como vimos, a noção de ethos prévio ou pré-discursivo
está associada à imagem que o público constrói de um ator discursivo ou do enunciador
mesmo antes que ele enuncie seu discurso, assim como a noção de ethos está associada à
imagem que o enunciador constrói de si por meio da enunciação de seu próprio discurso. A
rigor, parece pouco adequado empregar aí o termo ethos, mesmo que com o qualificador
“prévio”, porque o que se pretende recobrir por meio desse termo é uma imagem construída
(i) antes da enunciação do discurso (ii) por outro ator que não o próprio enunciador. Portanto,
preferimos denominar esse fenômeno como imagem prévia ou imagem pré-discursiva e,
assim, resguardar o termo ethos para nos referirmos, exclusivamente, ao fenômeno que
estamos cercando neste trabalho.
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2.2.2. Efeitos visados e efeitos produzidos: a eficácia do ethos
Maingueneau diz que “a noção de ethos remete a coisas muito diferentes se se
considera o ponto de vista do locutor ou o do destinatário: o ethos visado não é
necessariamente o ethos produzido”15 (2002a, p.59). Tome-se um político que quer dar de si
uma imagem de intelectual, mas acaba se passando por pedante ou, ainda, que quer se mostrar
democrático, mas se revela demagogo. Esses e mais outros inúmeros exemplos mostram que
Maingueneau tem razão, quando afirma que “os fracassos em matéria de ethos são muito
freqüentes”16 (Ibidem, p.59).
Esse problema parece facilmente levar à questão da eficácia do discurso, no sentido de
se inquirir, efetivamente, se um determinado ator convenceu ou não o seu público por meio de
seu discurso. Vale reiterar que nossa preocupação não é a de apontar qual discurso foi mais ou
menos eficiente nem de especular suas prováveis razões. Ora, o resultado de uma votação
numa casa legislativa, por exemplo, pode ser determinado por um acordo entre grupos
partidários. Os discursos proferidos pelos seus representantes na tribuna não teriam outro
papel senão o da manifestação dos vários pontos de vista que conflitam na casa, da mise en
scène ou, ainda, de uma última tentativa de conquistar corações e mentes.
Então, se a questão da eficiência em si remete à recepção do discurso, que só poderia
ser avaliada por meio de uma teoria da recepção do discurso, o que demandaria outro
trabalho, como devemos acolher a idéia de fracasso do ethos à qual Maingueneau se refere?
Em primeiro lugar, entendemos que o fracasso e o sucesso só existem no discurso
enquanto efeitos de sentido. Além disso, a questão não é assim tão simples, pois o que pode
ser entendido como fracasso em um tipo de discurso, como o político, o religioso e o
pedagógico, por exemplo, pode ser recebido como ironia em outro tipo de discurso, como o
humorístico, o publicitário e o literário, por exemplo.
De qualquer maneira, esses efeitos – sucesso e fracasso – permeiam a relação entre
enunciador e co-enunciador. Mais especificamente, Maingueneau (2002a, p.59) aponta que o
fracasso em matéria de ethos tem a ver com “o ponto de vista do locutor ou o do destinatário”.
15 “la notion d’ethos renvoie à des choses très différentes selon qu’on considère le point de vue du locuteur ou celui du destinataire: l’ethos visé n’est pas nécessairement l’ethos produit.” (Maingueneau, 2002a, p.59). 16 “Les échecs en matière d’ethos sont monnaie courante.” (Ibidem).
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Sem nos afastarmos muito dessa perspectiva, compreendemos que o fracasso do ethos,
enquanto efeito de sentido, pode derivar da construção de um ethos que não representa a justa
medida entre os pontos de vista, as crenças do enunciador e do co-enunciador. Sobre esse
assunto, é importante recuperar e comentar o que diz Aristóteles sobre o sucesso do orador na
construção do ethos:
Três são as causas que tornam persuasivos os oradores e a sua importância é tal que por elas nos persuadimos, sem necessidade de demonstrações. São elas a prudência, a virtude e a benevolência17 (1998, p.106).
Considerando que a prudência (phrónesis), a virtude (areté) e a benevolência (eúnoia)
são qualidades que estão, respectivamente, mais associadas ao discurso, ao próprio
enunciador e à solidariedade do enunciador com o co-enunciador, podemos dizer que haverá
fracasso do ethos se o enunciador negligenciar qualquer uma dessas qualidades.
Se o enunciador não exibir argumentos arrazoados, não construirá um discurso
sustentável, logo fracassará na primeira qualidade. Agora, se ele não considerar o ponto de
vista do outro e o seu próprio ponto de vista na justa medida, poderá construir um discurso
tendencioso ou bajulador. Quando a virtude (areté) é privilegiada, a benevolência (eúnoia) é
preterida e vice-versa. Assim, se meu discurso se vale apenas de minhas crenças, não
considero as do outro, logo pareço tendencioso; por outro lado, se meu discurso apenas
considera as crenças do outro, não faz ponderar as minhas, então pareço, no mínimo,
bajulador.
Dessa forma, Eggs (2005, p.42) tem razão, quando afirma que “só o orador que
consegue mostrar em seu discurso os mais elevados graus dessas três dimensões do ethos –
phrónesis, areté, eúnoia – convencerá realmente”.
17 Os termos prudência, virtude e benevolência são a tradução dos termos gregos phrónesis, areté e eúnoia, respectivamente.
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2.2.3. Além da figura antropomórfica: o ethos institucional
Ethos institucional já é um termo existente na literatura específica. Entretanto,
pretendemos nesta subseção dirigir uma crítica ao emprego desse termo e propor seu
deslocamento, considerando a concepção aristotélica de ethos.
Ruth Amossy (2005, p.136) propõe uma noção de ethos que seja articulada entre o que
a autora chama de ethos discursivo e ethos institucional. Para a autora (Ibidem, p.122), o ethos
discursivo é construído na interação verbal e é puramente interno ao discurso, enquanto o
ethos institucional é regrado “por mecanismos sociais e por posições institucionais
exteriores”, correspondendo a uma “posição institucional do locutor” (Ibidem, p.136).
Sua proposta é operar com uma noção de ethos, articulando uma perspectiva
lingüística de ethos apoiada em Oswald Ducrot a uma perspectiva sociológica de ethos
fundada em Pierre Bourdieu. Todavia, a noção de ethos apresenta uma ambivalência já na
obra aristotélica. Maingueneau (2002a, p.57) adverte que Aristóteles emprega o termo ethos,
na Política e na Ética a Nicômacos, como características estáveis de um indivíduo ou de um
grupo, ao passo que, na Retórica, passa a compreendê-lo também como construção do
discurso.
No entanto, a proposta de Amossy nos traz algum desconforto, pois, embora tenhamos
dito aqui que o “ethos remete não só a fatores de ordem discursiva, como também de ordem
sócio-histórica” (p.20) e que “o ethos não compreende apenas uma dimensão moral, mas
também social” (p.25), não propusemos dissociar um ethos discursivo de um ethos
sociológico ou institucional para, depois, articulá-los em uma só noção, mas sim conceber o
ethos como uma noção discursiva na qual se reconheçam também suas dimensões ética, social
e histórica, que são veiculadas somente por meio do discurso. Por isso que é desconfortável
aceitar, de um lado, um ethos puramente discursivo e, de outro, um ethos exterior ao
discurso. Parece-nos que entender o ethos como uma noção discursiva, interativa e sócio-
discursiva já recobre essas ramificações do ethos, além de circunscrevê-lo aos domínios do
discurso.
Se essa crítica for aceita sem muitos problemas, gostaríamos de propor agora que o
termo ethos institucional servisse para recobrir o ethos construído em discursos cujos
enunciadores não assumem uma figura antropomórfica. Para apresentar tal formulação nos
apoiamos no que diz Aristóteles em sua Retórica:
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O maior e mais eficaz de todos os meios para se poder persuadir e aconselhar bem é compreender as distintas formas de governo, e distinguir os seus caracteres, instituições e interesses particulares (1998, p.73).
Ora como as provas por persuasão não só procedem do discurso epidíctico
mas também do ético (pois depositamos confiança no orador na medida em que ele exibe certas qualidades, isto é, nos parece que é bom, bem disposto ou ambas as coisas), será necessário que dominemos os caracteres de cada forma de governo; pois o carácter de cada uma dessas formas é necessariamente o elemento mais persuasivo em cada uma delas (1998, p.74).
Lembrando que os termos “caráter” e “caracteres” são as traduções encontradas para
os termos ethos e ethé, podemos entender melhor a relação entre ethos e instituição sugerida
aí por Aristóteles. Nesse trecho, Aristóteles trata do ethos não no sentido da imagem que o
orador constrói de si em seu discurso, mas no sentido das características próprias de uma
instituição.
Longe de qualquer contradição, entendemos tais características como o produto do
conjunto de discursos proferidos em nome da instituição, que cumpre o papel de enunciador.
Da mesma maneira que o orador em seu discurso deve construir de si um ethos que inspire
confiança em seu auditório, as instituições constroem incessantemente seu próprio ethos, o
qual somente é perceptível aos seus co-enunciadores como algo dado a priori.
E é nessa perspectiva que entendemos o ethos do enunciador não antropomorfizado,
do ethos de um enunciador que se inscreve discursivamente não com um nome de pessoa, mas
com nomes como Governo Federal, Banco do Brasil, Volkswagen, Dolly, São Paulo Futebol
Clube, Correio Braziliense, Extra Hipermercados, AACD, PT, SBT, USP, etc.
Esse rol de nomes refere-se ao que Maingueneau (2002, p.207) chama de nomes de
marca. Para o autor (Ibidem), “com essas marcas, nosso mundo se povoa de entidades que
não são nem seres humanos, nem animais, nem objetos [...] e que possuem ainda a
particularidade de ser apresentados como responsáveis pelos enunciados publicitários”.
Se a responsabilidade pela enunciação de um discurso pode ser assumida por uma
instituição, parece justo falar de ethos institucional, nesse sentido.
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3. ELEMENTOS LINGÜÍSTICOS E DISCURSIVOS PARA A ANÁLISE
DO ETHOS
Não é demais lembrar que falar de ethos é falar de um tom, uma vocalidade que
remete a uma corporalidade e a um caráter que conferem à imagem do enunciador o estatuto
de fiador daquilo que é dito por ele em seu discurso.
Maingueneau atrela a noção de ethos à cena enunciativa, mais especificamente à
cenografia, no entanto também é possível depreender o ethos com base em noções lingüísticas
e discursivas que remetem a três grandes fenômenos enunciativos, a saber:
• A projeção da enunciação no enunciado;
• A heterogeneidade enunciativa;
• A argumentação.
Desse modo, acolhemos neste trabalho contribuições de teorias desenvolvidas não só
pela Análise do Discurso, o que nos propicia examinar o ethos como constitutivo da cena
enunciativa e da cenografia, como também estudá-lo orientando-nos por esses três grandes
fenômenos enunciativos, os quais abrigam outros fenômenos, hierarquicamente articulados
em dois níveis, sendo um local e o outro global, como mostra Maingueneau (Charaudeau &
Maingueneau, 2004, p.195):
Mais precisamente, as problemáticas ligadas à enunciação são mobilizadas em dois níveis que interagem constantemente:
O nível local das marcações de discurso citado, de reformulações, de modalidades, etc., que permite confrontar diversos posicionamentos ou caracterizar gêneros de discurso.
O nível global, em que se define o contexto no interior do qual se desenvolve o discurso. Nesse nível, pensa-se em termos de cena de enunciação, de situação de comunicação, de gênero de discurso...
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3.1. As projeções da enunciação no enunciado
A projeção da enunciação no enunciado pode ser vista por meio da explicitação ou da
implicitação das marcas da enunciação no enunciado, ou seja, pelo emprego das formas
dêiticas. Além disso, também é possível observar que a enunciação se projeta no enunciado
por meio das marcas das modalidades, revelando a atitude que o enunciador tem perante seu
enunciado e seu co-enunciador. Assim como as modalidades podem ser explicitadas
lingüisticamente no enunciado por meio da categoria dos operadores modais, elas também
podem ser implicitadas.
A participação desse grande fenômeno na construção do ethos deve ser considerada na
análise discursiva que passa, então, a contar com o suporte das teorias lingüísticas da
enunciação.
3.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem
Cervoni (1989 p.23) explica que “os dêiticos, cuja série mais representativa é eu, tu,
aqui, agora, são as palavras que designam, dentro do enunciado, os elementos constitutivos
de toda enunciação, que são o locutor, o alocutário, o lugar e o tempo da enunciação”. Os
dêiticos, esses elementos lingüísticos que manifestam a dêixis, podem ser expressos pelos
pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, pelas desinências número-pessoais das
formas verbais e pelos advérbios ou pelas locuções adverbiais de tempo e de lugar. A
característica essencial dos dêiticos, aponta Cervoni (Ibidem), é que “é impossível atribuir um
referente preciso a essas palavras se não conhecermos [...] os actantes e o quadro espácio-
temporal da enunciação”.
Em suma, os dêiticos são signos cuja referência está ancorada na situação de
enunciação. Isso fica bastante evidente quando se toma um enunciado como “Amanhã te vejo
lá!”, o qual não se deixa interpretar sem que se conheça a sua situação de enunciação.
Convém detalhar os componentes da dêixis lingüística, tratando, primeiramente, da
categoria de pessoa e, depois, das categorias de tempo e de espaço. Para tanto, buscar-se-á
apoio nos trabalhos do pioneiro Benveniste (1976) e do contemporâneo Fiorin (2002).
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Benveniste (1976, p.250) diz que “uma teoria lingüística da pessoa verbal só pode
constituir-se sobre a base das oposições que diferenciam as pessoas” e apresenta, então, um
sistema de oposições seguindo o exemplo dos gramáticos árabes, para os quais “a primeira
pessoa é “aquela que fala”, a segunda pessoa é “aquela a quem nos dirigimos”; mas a terceira
pessoa é “aquela que está ausente””.
A partir disso, o autor estabelece outras oposições. Primeiramente, ele faz uma
distinção entre pessoa e não-pessoa (“eu-tu” versus “ele”), argumentando que “a forma dita
de terceira pessoa comporta realmente uma indicação de enunciado sobre alguém ou alguma
coisa, mas não se refere a uma “pessoa” específica” - o que lembra “o “ausente” dos
gramáticos árabes” (Ibidem, p.250). Nesse sentido, formula que “a “terceira pessoa” não é
uma “pessoa”, e toma como evidência disso o fato de que essa é a forma que os verbos
assumem para expressar a impessoalidade (Ibidem, p.251).
Benveniste (Ibidem, p.254) extrapola as formulações teóricas e fornece de antemão
subsídios para a compreensão dos efeitos de sentido que podem ser gerados a partir das
projeções da enunciação no enunciado. Assim, o autor mostra que o emprego da terceira
pessoa pode servir, no mínimo, a dois propósitos: (a) “à maneira de reverência”, “que eleva o
interlocutor acima da condição de pessoa e da relação de homem a homem”; (b) “em
testemunho de menosprezo, para rebaixar aquele que não merece nem mesmo que alguém se
dirija “pessoalmente” a ele”. Estabelece-se aí uma correlação entre as pessoas, a qual
Benveniste denomina “correlação de personalidade” (Ibidem, p.254) ou de pessoa.
Uma outra oposição estabelecida por Benveniste contrapôs “eu” a “tu”, ou seja, a
“pessoa-eu” à “pessoa não-eu”. De acordo com o autor, à primeira também se opõem as
formas de “não-pessoa”. Com isso, tem-se agora uma correlação entre “eu” e “tu”, a qual
Benveniste (Ibidem, p.255) denomina de correlação de subjetividade.
Ainda na categoria da pessoa, o autor estabeleceu uma terceira oposição: singular
versus plural. Para Benveniste (Ibidem, p.256), “a unicidade e a subjetividade inerentes a
“eu” contradizem a possibilidade de uma pluralização. Se não pode haver vários “eu”
concebidos pelo próprio “eu” que fala, é porque “nós” não é uma multiplicação de objetos
idênticos mas uma junção entre o “eu” e o “não-eu””, logo “a presença do “eu” é constitutiva
de “nós”” (Ibidem, p.256). E, com base nas duas correlações supracitadas, Benveniste
(Ibidem, p.257) distingue duas formas de “nós”:
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O plural exclusivo (“eu + eles”) consiste em uma junção das duas formas que se opõem como pessoal e não pessoal em virtude da “correlação de pessoa”.
Ao contrário, a forma inclusiva (“eu + vós”) efetua a junção das pessoas
entre as quais existe a “correlação de subjetividade”.
Há línguas que lexicalizam uma forma lingüística para cada tipo de “nós”,
diferentemente do português e de outras línguas neo-românicas que dispõem de apenas uma
expressão para compreender essas duas idéias distintas. Entretanto, isso não passa
despercebido a Benveniste, uma vez que ele ressalva que “o “nós” indiferenciado [...] deve ser
encarado numa perspectiva diferente” (Ibidem, p.257), mostrando que esse ““nós” não é um
“eu” quantificado ou multiplicado, é “um “eu” dilatado além da pessoa estrita, ao mesmo
tempo acrescido e de contornos vagos” (Ibidem, p.258).
E, novamente, Benveniste (Ibidem, p.258) antecipa os efeitos de sentido derivados do
emprego desse “nós” indiferenciado:
De um lado, o “eu” se amplifica por meio de “nós” numa pessoa mais maciça, mais solene e menos definida; é o “nós” de majestade. De outro lado, o emprego de “nós” atenua a afirmação muito marcada de “eu” numa expressão mais ampla e difusa: é o “nós” de autor ou de orador.
Enfim, ao que parece, trata-se aí de um estudo fundador e proveitoso para novos
trabalhos que se voltam para a categoria da pessoa sob a perspectiva da enunciação. Agora,
quanto à categoria do tempo, as contribuições de Benveniste, embora profícuas, já foram
bem reformuladas e contam aí com outros aportes. Mesmo assim, é justo suscitar sua clássica
distinção entre enunciação histórica e enunciação de discurso, em que, para o autor, “os
tempos de um verbo francês não se empregam como os membros de um sistema único;
distribuem-se em dois sistemas distintos e complementares” (Ibidem, p.261). Benveniste diz
que “esses dois sistemas manifestam dois planos de enunciação diferentes” e os denomina
como “o da história e o do discurso” (Ibidem, p.262).
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Assim, Benveniste (Ibidem, p.262) define a enunciação histórica como “o modo de
enunciação que exclui toda forma lingüística “autobiográfica””, pois aí não se diz “jamais eu
nem tu nem aqui nem agora”; nesse plano, “os acontecimentos parecem narrar-se a si
mesmos”. Já a enunciação de discurso “emprega livremente todas as formas pessoais do
verbo, tanto eu/tu como ele” (Ibidem, p.268). No entanto, vale destacar duas ressalvas feitas
pelo autor: (a) “explícita ou não, a relação de pessoa está presente em toda parte”; (b)
“conseqüentemente, a “terceira pessoa” não tem o mesmo valor que na narrativa histórica”
(Ibidem, p.268).
Essa distinção entre plano de enunciação da história e plano da enunciação do discurso
apresentada por Benveniste foi, depois, reformulada por Maingueneau (2002, p.113-123)
como plano de enunciação embreado e plano de enunciação não embreado, e também por
Greimas & Courtés (1983, p.147-148) e por Fiorin (2002, p.35-40) como enunciação
enunciada e enunciado enunciado, em que o primeiro simula o fazer enunciativo por meio de
elementos que remetem à instância da enunciação, ao passo que o segundo permite construir
textos enuncivos por meio da ocultação das marcas da enunciação.
Por fim, Benveniste (1976, p.279) relaciona à categoria da pessoa as categorias de
tempo e espaço, dizendo que “aqui e agora delimitam a instância espacial e temporal
coextensiva e contemporânea da presente instância de discurso que contém eu”, mas adverte
que “não adianta definir esses termos e os demonstrativos em geral pela dêixis, como se
costuma fazer, se não se acrescenta que a dêixis é contemporânea da instância de discurso que
contém o indicador de pessoa”, pois “essencial é a relação entre o indicador (de pessoa, de
tempo, de lugar, de objeto mostrado, etc.) e a presente instância de discurso” (Ibidem, p.280).
Benveniste (Ibidem, p.281) considera que “a linguagem previne esse perigo
instituindo um signo único, mas móvel, eu, que pode ser assumido por todo locutor, com a
condição de que ele, cada vez, só remeta à instância do seu próprio discurso. Esse signo está,
pois, ligado ao exercício da linguagem e declara o locutor como tal”, pois “quando o
indivíduo se apropria dela, a linguagem se torna em instâncias de discurso, caracterizadas por
esse sistema de referências internas cuja chave é eu”.
Embora tenhamos destacado aqui a relevância dos escritos de Benveniste, as
reformulações pelas quais já passaram seus postulados ocorrem também no sentido de que as
atuais teorias do discurso se afastam de uma concepção de sujeito que possa se apropriar da
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língua e colocá-la em funcionamento, fundando, assim, o ato enunciativo, pois entendem o
sujeito como um efeito de sentido produzido pelo próprio discurso.
Assim, na esteira de Benveniste e com base na Semiótica, Fiorin (2002) realiza um
estudo completo sobre as categorias da pessoa, do tempo e do espaço da enunciação,
detalhando dois procedimentos de projeção da enunciação no enunciado, a saber: a debreagem
e a embreagem.
Fiorin (2002, p.41-58) mostra que a debreagem enunciativa projeta no enunciado a
instância da enunciação pressuposta, ou seja, o eu, o aqui e o agora da enunciação,
estabelecendo aí um contrato subjetivante. Ao contrário, a debreagem enunciva estabelece um
contrato objetivante ao projetar a instância do enunciado no enunciado, ou seja, um não eu
(ele), um não aqui (alhures) e um não agora (então). Por exemplo, dizer “Eu penso que todos
os homens são iguais perante a Justiça” estabelece a opinião subjetiva do “eu”,
diferentemente de dizer “Todos os homens são iguais perante a Justiça”, que dá a impressão
de se enunciar uma verdade compartilhada por todos.
Quanto ao segundo procedimento, Fiorin (2002, p.48) explica que “ao contrário da
debreagem, que expulsa da instância de enunciação a pessoa, o espaço e o tempo do
enunciado, a embreagem é “o efeito de retorno à enunciação”, produzido pela neutralização
das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim como pela denegação da instância do
enunciado”. Em outras palavras, a embreagem consiste no retorno à instância da enunciação,
caracterizando-se pela troca de uma pessoa pela outra, de um espaço por outro e/ou de um
tempo por outro.
Fiorin (2002, p.51) distingue, ainda, dois tipos de embreagem: a enunciativa e a
enunciva. Para o autor (Ibidem), “a embreagem é enunciativa porque é um elemento o sistema
enunciativo que resta no enunciado”, ao passo que a embreagem enunciva é observada
“quando [...] temos um ele (termo enuncivo) a ocupar o lugar do tu”.
Podemos dizer, assim, que ocorre embreagem enunciativa quando a primeira pessoa
toma o lugar da terceira, como no seguinte exemplo oferecido por Fiorin (2002, p.91):
– Se eu [= alguém] preciso do serviço público de saúde, quero ser bem atendido, pois para isso eu pago.
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A forma indeterminada de terceira pessoa é substituída pela forma determinada da
primeira pessoa do singular, “colocando o sujeito indeterminado na situação de enunciação”,
conclui Fiorin (Ibidem, p.91).
Por outro lado, quando a terceira pessoa tomar o lugar da primeira, a embreagem será
enunciva como no enunciado “O Romário não sabe quando vai parar de jogar”, proferido pelo
próprio jogador Romário.
Enfim, são esses procedimentos e seus efeitos, gerados pelo emprego das formas
dêiticas, que buscaremos observar dentro da construção do ethos.
3.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização
Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que “as modalidades são facetas de um
processo mais geral de modalização, de atribuição de modalidades ao enunciado, pelo qual o
enunciador, em sua própria fala, exprime uma atitude em relação ao destinatário e ao
conteúdo de seu enunciado” (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p.334).
A preocupação com a noção de modalidade é antiga e os atuais estudos sobre esse
assunto – tanto na Lógica quanto na Lingüística – inserem-se numa longa trajetória de
trabalhos. Segundo Catherine Fuchs (1995, p.144-145), incluem-se nessa tradição:
• os estóicos e os aristotélicos, que assinalaram dois tipos de funcionamento (o
cognitivo e o apelativo);
• Varrão, que distinguiu as palavras em três tipos de ações (pensar, dizer e fazer);
• Aristóteles, que estabeleceu regras de equivalência por dupla negação
contraditória;
• os gramáticos da Idade Média, que propuseram a decomposição da proposição
em modus e dictum e a distinção entre as modalidades de re e as modalidades
de dicto.
Fuchs (1995, p.124) aponta como “herdeiros dessa longa tradição os lingüistas
contemporâneos que se esforçam por apresentar uma análise enunciativa das modalidades”,
tais como Bally, Halliday, Culioli, Pottier, entre outros.
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Julgamos importante a lembrança que Vasques (2000, p.54) faz a Benveniste ao
reconhecer que a ele devemos “a reabilitação do estatuto lingüístico do estudo das
modalidades”. Dessa maneira, vale recordar que Benveniste (1976, p.291) retoma a idéia de
modus e dictum para formular uma distinção entre a proposição enunciada e a perspectiva
subjetiva que pode aí ser introduzida. Por exemplo, para indicar que, em um enunciado como
“Eu acredito que vai chover”, a proposição (vai chover) é envolvida por um contexto
subjetivo (Eu acredito) cuja função é “caracterizar a atitude do locutor em face do enunciado
que profere”.
No entanto, é preciso ressaltar que, conforme Vasques (2000, p.82), “o termo
modalidade é empregado ora numa acepção restrita, ora numa acepção ampla nos estudos
lingüístico-gramaticais”. Vasques (2000, p.82-83) ilustra essas duas acepções, expressando-se
da seguinte maneira:
Atendo-nos a dois dos autores examinados, B. Pottier e A. Culioli, percebemos, neste, um emprego mais restrito e, naquele, um emprego mais amplo do termo em questão. Para A. Culioli, modalizar significa tão-somente atribuir uma modalidade a um pré-enunciado [...]. Esse emprego do termo está bem próximo da acepção que os lógicos atribuem a ele. [...]. Já para B. Pottier, o termo modalização tem um sentido mais amplo, uma vez que, para ele, estudá-la significa analisar a asserção, as modalidades, os modos, as relações modais, as relações lógicas, a topicalização e a focalização [...]”.
Embora salientemos essa distinção entre uma acepção restrita e uma acepção ampla da
noção de modalidade, nossas análises não irão se limitar a uma ou a outra acepção, pois
buscaremos em nosso corpus dois tipos de manifestações das modalidades: um tipo que é
explicitado no enunciado por meio de lexicalizações das modalidades (a acepção restrita) e
outro tipo que fica implícito no enunciado (a acepção ampla). Estas serão depreendidas por
meio dos tempos e modos verbais manifestados nos enunciados que não apresentarem formas
lexicalizadas das modalidades, ao passo que, para dar conta das primeiras, recorreremos a
Koch (2000, p.87), que apresenta vários tipos de lexicalização possíveis tais como:
• os auxiliares modais (poder, dever e etc.);
• as formas verbais perifrásticas (poder, dever e etc. + infinitivo);
• os verbos de atitude proposicional (eu sei, eu acho, eu creio e etc);
50
• as orações modalizadoras (eu tenho certeza de que);
• os predicados cristalizados (é necessário, é possível);
• os advérbios modalizadores (evidentemente, possivelmente).
Bem entendidas essa distinção no interior do termo modalidade e a maneira como
iremos depreendê-la, cabe agora tratar da modalidade com que iremos operar neste trabalho.
Como anunciado no título desta subseção, iremos nos ater a apenas uma categoria tradicional
da lógica modal, a modalidade epistêmica, que é definida por Brandão (1994, p.136) da
seguinte maneira:
• a modalidade epistêmica [...] abrange toda expressão que implica uma referência à crença, ao conhecimento que temos de um estado de coisas, isto é, que abrange toda expressão pertencente ao registro do saber.
Para procedermos à análise das modalidades epistêmicas, iremos nos apoiar,
fundamentalmente, em um trabalho de Alexandrescu (1976) que aborda com bastante
pertinência a questão dessas modalidades na enunciação.
Segundo Alexandrescu (1976), todo enunciado é modalizado por um operador
epistêmico crer ou saber, ainda que esse enunciado já esteja modalizado por uma outra
modalidade, recebendo, assim, uma dimensão epistêmica suplementar. Alexandrescu (1976,
p.24) explica que “as modalidades crer e saber estão ligadas necessariamente ao mecanismo
de produção de um enunciado ou de um texto, enquanto que as outras modalidades [...]
denotam atitudes facultativas quanto ao enunciado ou ao texto em questão”18.
Assim, podemos dizer que, em um enunciado como “Eu devo chegar cedo”, o
operador modal “devo” revela uma atitude deôntica de seu enunciador. Todavia, a essa atitude
está pressuposta uma modalidade epistêmica, ou seja, esse enunciador sabe ou acredita que
deve chegar cedo.
18 “les modalités croire et savoir sont liées nécessairement au mécanisme de production d’un énoncé ou d’un texte, tandis que d’autres modalités [...] dénotent des attitudes facultatives quant à l’énoncé ou le texte en question” (1976, p.24).
51
Alexandrescu (1976, p.25) justifica, assim, a produção de enunciados que não
possuem marcas explícitas de modalidade, complementando que “há textos que lexicalizam a
modalidade crer ou saber e outros que não o fazem”19.
Desse modo, retomando o exemplo anteriormente oferecido por Benveniste, em um
enunciado como “Vai chover” estaria implícita uma atitude epistêmica do enunciador que
poderia ser lida como “Eu creio que vai chover” ou como “Eu sei que vai chover”, o que só
poderá ser distinguido com base no contexto em que o enunciado é manifestado.
Sobre isso, Brandão (1994, p.136) entende que “a todo enunciado aplica-se uma
dimensão epistêmica suplementar que deve necessariamente ser ou a da opinião ou a do
saber, jamais as duas ao mesmo tempo. Sua enunciação se inscreve obrigatoriamente entre a
incerteza e a certeza do locutor”.
Em termos de estratégia argumentativa, é interessante ouvir o que diz Alexandrescu
(Ibidem, p.25) a esse respeito:
A ocultação da modalidade epistêmica não pode se fazer sem que haja um traço; a enunciação está lá, o locutor só faz que parece esquecê-la para dar a impressão que seu ato é neutro, que ele não manifesta nenhuma atitude diante dele, que o valor de verdade de seus enunciados é objetivo. [...] a ocultação modal é acompanhada de uma retórica do neutro, em que o locutor esconde sua enunciação para melhor convencer por seu enunciado.20
Em suma, é importante estabelecer que, enquanto toda enunciação é pressupostamente
modalizada por um operador epistêmico saber ou crer, revelando uma atitude de certeza ou
de incerteza do enunciador perante seu enunciado, a implicitação da modalidade epistêmica
revela antes uma retórica do neutro. Em outras palavras, o enunciador é, nesse sentido, um
sujeito que sabe o que diz ou que crê no que diz, no entanto ele não mostra e, sobretudo, não
quer mostrar explicitamente ao seu co-enunciador seu estatuto epistêmico. Trata-se aí de uma
19 “il y a des textes qui lexicalisent la modalité croire ou savoir et d’autres qui ne le font pas” (1976, p.25). 20 L’occultation de la modalité épistémique ne peut pás se faire sans qu’il y ait une trace; l’énonciation est là, le locuteur ne fait que semblant de l’oublier pour donner l’impression que son acte est neutre, qu’il ne manifeste aucune attitude envers lui, que la valeur de vérité de ses énoncés est objective. [...] l’occultation modale s’accompagne d’une rhétorique du neutre, que le locuteur cache son énonciation pour mieux convaincre par son énoncé (Alexandrescu, 1976, p.25).
52
escolha enunciativa que tem seus desdobramentos nas estratégias argumentativas que vão
sendo desenvolvidas pelo enunciador.
Isso posto, passemos a considerar outro ponto que merece destaque. Até agora falamos
de modalidades sem, ao menos, mencionarmos o quadrado lógico. Isso se deve ao fato de que
iremos considerar as modalidades, neste caso as epistêmicas, em um continuum, isto é, em
uma continuidade que vai do grau máximo da certeza até o grau máximo da incerteza,
passando por todos os pontos intermediários entre esses dois pólos visto que o quadrado,
embora muito profícuo, não dê conta dessas posições intermediárias.
Greimas (1976, p.28) explica que “as oposições dos termos epistêmicos são apenas
polarizações de um continuum, que permitem a manifestação do grande número de posições
intermediárias”, ilustrando que “o lexema ‘crer’, por exemplo, pode, sozinho, representar, de
acordo com os contextos, todas as posições entre /certeza/ e /incerteza/”. Logo, conclui-se que a
associação da explicitação ou da implicitação de um ou de outro operador modal epistêmico a
uma certa atitude do enunciador não é tão imediata quanto parece ser, já que somente é possível
depreender uma tal atitude observando o operador modal em relação com o seu contexto.
Dessa forma, nosso intuito, ao estudar as modalidades epistêmicas, é observar em
nosso corpus como essas modalidades expressam uma atitude de certeza ou de incerteza
(dentro de um contínuo) e como isso, de uma forma geral, influencia a construção dos ethé
dos enunciadores Márcio Moreira Alves, Mário Covas e Geraldo Freire.
Nossa perspectiva de análise coincide e, sobretudo, se inspira na de Brandão (1994,
p.136) que nos lembra que “o estudo das modalidades é uma das questões mais delicadas da
reflexão sobre a linguagem” e, assim, abarca a noção de modalidade “não em relação ao seu
comportamento lógico, mas integrada no processo de comunicação, de interação verbal”.
3.2. A heterogeneidade enunciativa
O segundo grande fenômeno considerado aqui corresponde ao da heterogeneidade
enunciativa, termo cunhado por Authier-Revuz (1990). Partindo do conceito de dialogismo
postulado por Bakhtin e da noção de sujeito e sua relação com a linguagem veiculada pela
releitura de Freud por Lacan, a autora propõe a noção de heterogeneidade constitutiva do
53
sujeito e de seu discurso para recobrir a idéia de que o Outro está constitutivamente no sujeito
e no seu discurso (1990, p.29).
Authier-Revuz, nesse artigo, se restringe a descrever as formas marcadas do que a
autora denomina heterogeneidade mostrada, aliás esse recorte será acompanhado aqui
também, pois nos interessam essas formas que “inscrevem o outro na seqüência do discurso”
(Ibidem, 24) e que representam a negociação do sujeito enunciador com a heterogeneidade
constitutiva de seu discurso (Ibidem, p.25).
O estudo desse fenômeno é de grande utilidade para a análise do ethos, pois permite,
basicamente, pesquisar a constituição da identidade discursiva com base nos modos de
negociação com a sua alteridade, ou seja, a maneira como o Mesmo se relaciona com o Outro
revela modos de dizer e de ser, enfim, revela o ethos.
Assim, analisaremos a questão do ethos neste trabalho, tomando como guia os
postulados de Bakhtin (2002) e recorrendo às atuais formulações propostas por Maingueneau
(1997).
3.2.1. O discurso citado
A noção de discurso citado corresponde às formas lingüísticas de representação do
discurso alheio – o discurso de um enunciador distinto daquele que é responsável pela
enunciação do discurso. Trata-se da manifestação lingüística mais evidente do princípio
dialógico, pois, conforme Bakhtin (2002, p.144-6), “o discurso citado é o discurso no
discurso, um discurso sobre o discurso”, o que pressupõe a “interação de pelo menos duas
enunciações, isto é, o diálogo”.
É preciso, ainda, ressaltar que o discurso citado não corresponde ao discurso do outro
em funcionamento, mas sim ao seu simulacro, que pode ser valorizado positivamente ou
negativamente pelo discurso citante.
Outro ponto relevante concerne ao contorno do discurso citado. Conforme Bakhtin
(2002, p.148), para se compreender as formas do discurso citado é preciso levar em conta a
relação entre o discurso citado e seu contexto narrativo, ou seja, considerar a “inter-relação
entre o discurso narrativo e o discurso citado”, assim como integrá-la na construção do
enunciado. Em sintonia com o autor russo, Fiorin (2002, p.74) afirma que “o discurso citante
não tem apenas a função de criar a situação de enunciação, mas também a de comentar os
54
elementos concernentes a outra semiótica presentes no discurso verbal ou ainda os elementos
relativos à oralidade”.
Esses são os pressupostos teóricos que nortearão nosso trabalho. Agora, no que diz
respeito às formas do discurso citado, nos preocuparemos em explicá-las apenas no capítulo
de análise, nos limitando a tratar somente das formas que aparecerem nos pronunciamentos
em questão.
E, como última observação, vale destacar que as coerções do gênero e as condições de
produção do discurso influenciam o funcionamento do discurso citado; por exemplo, uma
fábula e uma reportagem de jornal apresentam formas distintas de representar o discurso
alheio, bem como, num debate político, a maneira de o mediador citar será diferente daquela
dos debatedores.
3.3. A argumentação
O terceiro, e último, grande fenômeno a ser destacado aqui consiste na argumentação,
termo muito delicado e até impreciso de empregar sem uma delimitação mais adequada.
Essencialmente, a argumentação pode ser entendida como o conjunto de estratégias
lingüísticas e discursivas que visam a levar o co-enunciador à persuasão, a crer no que é dito e
a tomar alguma atitude. Assim, o modo como a argumentação é conduzida no discurso
também revela a maneira de dizer e de ser do enunciador, o que lhe confere um ethos.
Neste estudo, acolhemos perspectiva teórica encaminhada pela Teoria da
Argumentação, fundada na lógica não-formal de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca
(Mosca, 1997, p.20), da qual iremos explorar somente os objetos de acordo do auditório.
Vale mencionar a relevância da Teoria da Argumentação na Língua, localizada no
campo da pragmática lingüística e formulada, inicialmente, por Jean-Claude Anscombre &
Oswald Ducrot (1988).
55
3.3.1. Os objetos de acordo com o auditório
Em primeiro lugar, vale lembrar que a idéia de que a argumentação é constitutiva da
linguagem remonta à Retórica. Mauro (1997, p.183-184) comenta que essa obra de
Aristóteles contribui para a valorização da lógica do verossímil, que, diferentemente da lógica
da verdade, organiza-se não no campo do raciocínio demonstrativo, mas sim no do raciocínio
argumentativo, cujo ponto de partida se assenta sobre premissas verossímeis em vez de
verdadeiras, ou seja, a argumentação versa sobre aquilo que é provável, que é do âmbito da
opinião. Tanto é que as demonstrações construídas pelos lógicos são representadas por uma
linguagem artificial, ao contrário da argumentação, que se dá por meio da linguagem natural.
Quanto a isso, Osakabe (1999, p.180) argumenta que “se o discurso do orador não pode
privar-se da língua, que comporta domínios nocionais de estatutos tão diferentes, é à
argumentação que ele recorre e não à demonstração”.
É interessante perceber como Osakabe recebe a obra de Perelman, que para o autor
deve ser “interpretada como um questionamento do próprio cartesianismo”, pois se trata de
uma obra “cujo objetivo é relativizar a tendência unilateral da lógica e da teoria do
conhecimento de Descartes” (Osakabe, 1999, p.177-178). Ademais, importa destacar que O
tratado da Argumentação de Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996) revitalizou a abordagem de
uma argumentação sobre o verossímil, ou seja, uma argumentação que busca convencer seu
auditório no âmbito da negociação e que vê emergir uma dimensão intersubjetiva do discurso.
Isso posto, interessa agora entender como Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996)
definem e organizam os tipos de premissas que podem ser tomadas como ponto de partida da
argumentação, não exatamente discutindo, mas apenas arrolando os seus principais pontos.
Em primeiro lugar, esses autores (1996, p.73) ressalvam que “tanto o desenvolvimento
como o ponto de partida da argumentação pressupõem acordo do auditório”, isso quer dizer
que a argumentação versa sobre o que é admitido pelo auditório, que pode aceitar ou recusar
as premissas dependendo de como o orador as escolhe e as apresenta.
Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.74) agrupam os objetos de acordo que podem
servir de premissas em duas categorias: uma relativa ao real e outra ao preferível. A primeira
compreende os fatos, as verdades e as presunções. A segunda, os valores, as hierarquias e os
lugares do preferível. Uma sugere acordo com um auditório universal; a outra, com um
auditório particular.
56
Os referidos autores (1996, p.76) associam a noção de fato ao acontecimento, que, no
entanto, só tem estatuto de fato se não forem levantadas dúvidas sobre ele, pois “o fato como
premissa é um fato não-controverso” (Ibidem); assim, a dúvida e o questionamento já bastam
para invalidar tal estatuto que se atribui a um acontecimento. Já as ligações entre os fatos
criam sistemas mais complexos denominados pelos autores (1996, p.77) como verdades.
Ao lado dos fatos e das verdades, também são aceitas pelo auditório universal as
presunções, que, no entanto, necessitam de reforço, visto que a adesão a uma presunção não é
máxima (Ibidem, p.79), ou seja, aquilo que é apresentado com o estatuto de algo presumido,
que é assentado em conjecturas antecipadas e não em fatos, precisa ser justificado.
Passando, agora, à categoria dos objetos de acordo relativos ao preferível, Perelman
& Olbrechts-Tyteca (1996, p.84) entendem que “estar de acordo acerca de um valor é admitir
que um objeto, um ser ou um ideal deve exercer sobre a ação e as disposições à ação uma
influência determinada”. Os valores são aí pontos de vista que não se impõem a todos, por
isso são dirigidos a um auditório particular e não ao universal, embora alguns valores possam
ser tratados como fatos ou verdades (Ibidem, p.85). Interessante é a distinção que os autores
propõem entre valores abstratos – a justiça ou a veracidade, por exemplo – e valores concretos
– a França ou a Igreja, por exemplo – (Ibidem, p.87), em que os “valores concretos são
utilizados, o mais das vezes, para fundar os valores abstratos, e inversamente” (Ibidem, p.89).
Nessa categoria do preferível, a hierarquia importa à argumentação até mais que os
valores. Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.90) afirmam que “a argumentação se esteia
não só nos valores, abstratos e concretos, mas também nas hierarquias” e que “as hierarquias
de valores são, decerto, mais importantes do ponto de vista da estrutura de uma argumentação
do que os próprios valores”, pois “o que caracteriza cada auditório é menos os valores que
admite do que o modo como os hierarquiza” (Ibidem, p.92). Trata-se aí da preferência que
certos auditórios têm sobre um ou outro valor, bem como da preferência que o orador pode
dar a certos valores em seu discurso.
Os autores mostram que a adesão pode ser reforçada pela associação de um valor a
outro valor, de uma hierarquia a outra hierarquia, mas que o orador pode “também recorrer a
premissas de ordem muito geral”, as quais recebem o nome de lugares e são definidas como
depósitos de argumentos, remetendo à noção de topoi dos antigos (Ibidem, p.94). Assim, os
autores arrolam alguns lugares bem gerais tais como: os lugares da quantidade, da qualidade,
57
da ordem, do existente, da essência, da pessoa (Ibidem, p.96). Interessante notar como os
autores fornecem subsídios para uma análise do discurso e da argumentação voltada para o
problema da construção da identidade e da alteridade, ao considerar a possibilidade de
caracterizar as sociedades não só pelos valores, mas também pelos lugares (Ibidem).
Em suma, a argumentação pode se basear no objeto (construído a partir de fatos,
verdades e presunções) ou no preferível (valores, hierarquias e lugares), isso significa que as
possibilidades de escolha das premissas e de montagem de um raciocínio podem configurar
um leque diversificado de acordos entre orador e auditório, ou seja, de maneiras de
argumentar, o que remete aos modos de presença, à imagem do orador (enunciador) e do
auditório (co-enunciador). Assim, é possível dizer que para a análise de um discurso não basta
arrolar os tipos de premissas que são empregadas como ponto de partida de um raciocínio
argumentativo, pois parece que um dos cuidados que a análise deve ter é o de questionar o
porquê das escolhas de determinadas premissas em um discurso e não em outro.
De toda a obra de Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996), optamos aqui por destacar
apenas o que os autores chamam de ponto de partida da argumentação, pois a abrangência de
seu trabalho vai além dos propósitos desta pesquisa e, ademais, o enfoque sobre as premissas
parece ser central para a análise da relação argumentativa entre enunciador e co-enunciador.
58
3.4. A noção de cenografia
3.4.1. A cenografia como uma das três cenas de enunciação
O caráter interativo da atividade linguageira estabelece durante a enunciação um
conjunto de elementos que compõem sua própria situação de comunicação como uma cena,
mais especificamente uma cena de enunciação composta, assim, pelo lugar social assumido
pelo destinador do discurso, pelo lugar social atribuído ao destinatário do discurso, pelo
espaço e pelo momento que são próprios a esses lugares reconhecidos socialmente. A cena é o
quadro da enunciação, mas não um quadro que é dado a priori, independentemente da
enunciação de seu discurso, mas constitutivo dele.
Para Maingueneau (2002, p.85), a cena de enunciação é composta por outras três
cenas, a saber: a cena englobante, que corresponde ao tipo de discurso (político, jurídico,
literário, familiar, científico, religioso, etc.); a cena genérica, que se instala por meio do
gênero discursivo; e a cenografia, que é a cena com que o co-enunciador toma contato mais
explicitamente.
Dentre as três cenas, a cenografia aparece como a cena de enunciação mais propícia
aos investimentos de criação do discurso. Trata-se de uma dimensão criativa21 do discurso, na
qual engendra-se o simulacro de um momento, de um espaço e dos papéis sociais conhecidos
e compartilhados culturalmente. E, além da simulação, a cenografia se constitui como o
dispositivo de fala que é imposto pela sua enunciação, o qual, para legitimar-se, legitima
progressiva e reciprocamente sua cenografia. É oportuno observar como Maingueneau (2001,
p.123) formula sua noção de cenografia:
Chamaremos de cenografia essa situação de enunciação da obra, tomando o cuidado de relacionar o elemento -grafia não a uma oposição empírica entre suporte oral e suporte gráfico, mas a um processo fundador, à inscrição legitimante de um texto estabilizado. Ela define as condições de enunciador e de co-enunciador, mas também o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos quais se desenvolve a enunciação.
21 Derivado do verbo criar, ‘dar existência a’, ‘gerar’, ‘formar’.
59
Desse modo, a cenografia é, para Maingueneau (2002, p.87), a cena com que o co-
enunciador se depara em primeiro plano, já que as cenas englobante e genérica são deslocadas
para o segundo plano.
3.4.2. A cenografia como recurso de captação ou de subversão de papéis sociais
Tomando a Carta a todos os franceses22 como exemplo, Maingueneau (2002, p.92)
mostra que o eleitor recebe a propaganda política (gênero) de François Mitterrand como uma
carta pessoal (cenografia). O autor explora, ainda, com esse exemplo, a noção de cenas
validadas, isto é, cenas de fala “já instaladas na memória coletiva”, mostrando que “o eleitor
não é convidado apenas a ler uma carta: ele deve participar imaginariamente de uma reflexão
em família” e é essa “reunião de família” que consiste na cena validada que projeta o
enunciador “Mitterrand” como o pai e o co-enunciador “eleitor” como um dos filhos que
participam de uma reflexão em torno da mesa.
Vale ressaltar que essa noção de cenas validadas não está fundamentada em outros
pressupostos teóricos que não o do primado do interdiscurso sobre o discurso, visto que a
memória também é construção do discurso. Como bem lembra Brandão (1998, p.128), “para a
Análise do Discurso, a noção de memória discursiva nada tem a ver com a noção de memória
tal como concebida pela Psicologia ou pela Psicolingüística”, pois “a noção de memória
discursiva diz respeito à existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas
reguladas por aparelhos ideológicos”.
Avançando um pouco mais nessa questão que envolve cenografia e cenas validadas,
podemos notar que o mecanismo discursivo que produz essas cenas de enunciação (a “carta”
como cenografia e a “reunião de família” como cena validada) tem a ver com o
reinvestimento de um gênero discursivo em outros gêneros. Maingueneau (1991, p.155) fala
de reinvestimento “para sublinhar que no domínio da Análise do Discurso a prática
hipertextual visa menos a modificar que a explorar, num sentido destrutivo ou legitimante, o
capital de autoridade associado a certos textos”23. E, conforme formulação do próprio autor,
esse reinvestimento ocorre por meio de duas estratégias opostas, em que:
22 Veiculada em nome de François Mitterrand durante a eleição para presidente da França em 1988. 23 (...) pour souligner que dans le domaine de l’AD la pratique hypertextuelle vise moins à modifier qu’á exploiter dans un sens destructif ou légitimant le capital d’autorité attaché à certains textes.
60
(1) A captação consiste em transferir para o discurso reinvestidor a autoridade relacionada ao texto ou ao gênero fonte, [...]. (2) Contrariamente, na subversão, a imitação permite desqualificar a autoridade do texto ou do gênero fonte (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p.94).
Dessa maneira, é o reinvestimento dos gêneros “carta pessoal” e, sobretudo, “reunião
de família” no gênero “propaganda eleitoral” que transfere a autoridade do pai de família ao
enunciador François Mitterrand. Isso implica que as cenas de enunciação produzidas por meio
dessa captação carregam consigo os papéis enunciativos previstos no gênero captado e os
inscrevem em seu discurso. A título de ilustração, esse mesmo procedimento pode ser
observado não só na Carta aos brasileiros, de Luís Inácio Lula da Silva, durante a campanha
que o elegeu presidente do Brasil em 2002, mas também em seus discursos presidenciais, que
freqüentemente constroem uma comparação entre a administração de um país e a
administração de uma casa.
É nesse sentido que Maingueneau (2002, p.92) diz que a cenografia pode apoiar-se em
cenas validadas, isto é, “já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos que se
rejeitam ou de modelos que se valorizam”, caracterizada como “estereótipo autonomizado,
descontextualizado, disponível para reinvestimentos em outros textos”.
Todavia, é preciso sublinhar que esses efeitos de captação ou de subversão gerados
pelo reinvestimento de um gênero em outro são praticamente nulos naqueles gêneros mais
estereotipados que não propiciam a criação de cenografias variadas, pois, como aponta
Maingueneau (2005, p.75), “há gêneros de discurso cujas cenas de enunciação se reduzem à
cena englobante e à cena genérica” ao contrário de outros gêneros de discurso que “têm maior
possibilidade de suscitar cenografias que se afastam de um modelo preestabelecido”.
No primeiro grupo, têm-se a lista telefônica e a receita médica como exemplos de
gêneros que não variam suas cenografias, restringindo-as às suas cenas genéricas. Já, no
segundo grupo, encontram-se os gêneros pertencentes aos discursos publicitários, literários,
filosóficos, políticos, etc. Neste último, como ilustra Maingueneau (2005, p.76), “um
candidato poderá falar a seus eleitores como um jovem executivo, como tecnocrata, como
operário, como homem experiente etc., e conferir os ‘lugares’ correspondentes a seu público”.
Feita a ressalva, importa dizer que essa ilustração exemplifica como o modo de falar e
o seu lugar social correspondente, ambos já instalados numa memória coletiva, também são
61
captados pelo discurso, pois esse candidato, ao projetar em seu discurso a fala de um
trabalhador, capta o universo do trabalho e valida a enunciação de seu discurso político para
uma massa trabalhadora.
Enfim, podemos sintetizar os principais pontos vistos até aqui, da seguinte maneira:
• A cenografia legitima, progressiva e reciprocamente, sua enunciação, ou seja,
ela se apresenta como a cena de enunciação necessária para aquilo que enuncia;
• A cenografia define as coordenadas da pessoa (os lugares sociais do
enunciador e do co-enunciador), do tempo (cronografia) e do espaço
(topografia), construídas no discurso como simulacro;
• A cenografia corresponde à cena de enunciação oferecida imediatamente ao
co-enunciador, pois passa a cena englobante e a cena genérica para o segundo
plano, o que, entretanto, nem sempre ocorre, pois a cenografia pode estar mais
conformada à cena genérica.
62
CAPÍTULO II
OS PRONUNCIAMENTOS DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968
E O SEU CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
Sete anos após aquela terrível sexta-feira 13 de
dezembro de 1963, pode-se afirmar, sem risco de
exagero, que Antares esqueceu o seu macabro
incidente. Ou então sabe fingir muito bem.
Erico Veríssimo
A democracia não é outorgada. Direitos
democráticos são duramente conquistados.
Homens que não lutam pela liberdade não estão
maduros para viver livremente.
Donaldo Schüler
O enunciado é um elo na cadeia da comunicação
discursiva e não pode ser separado dos elos
precedentes que o determinam tanto de fora
quanto de dentro, gerando nele atitudes
responsivas diretas e ressonâncias dialógicas.
Mikhail Bakhtin
4. SOBRE O GÊNERO PRONUNCIAMENTO PARLAMENTAR
4.1. A noção de gênero do discurso
Nosso intuito ao falar de gênero do discurso se restringe a uma apresentação dessa
noção tal como ela é desenvolvida por Bakhtin e abordada por Maingueneau para apenas
situarmos com que concepção de gênero nós estamos operando e o que daí é relevante para a
análise dos discursos em nosso trabalho.
63
A noção de gênero remonta à Antigüidade e sua classificação já foi perseguida por
Platão e Aristóteles que nos legaram uma grande tradição no campo dos estudos literários e
retóricos. Assim, na literatura, destacam-se as distinções entre prosa e poesia; entre lírico,
épico e dramático; entre tragédia e comédia. Já na Retórica, distinguem-se três gêneros: o
deliberativo, o judicial e o epidítico. Haja visto que, naquele momento, a preocupação estava
voltada para a techné.
Conforme Brandão (2000, p.22-23), há, atualmente, uma série de tipologias como as
funcionais, enunciativas, cognitivas e a sócio-interacionista. Nossas reflexões sobre o gênero
são orientadas por essa última tipologia devido à sua afinidade com o quadro teórico
articulado em nossa pesquisa. Referimos-nos, pois, à tipologia fundada nos postulados do
círculo de Bakhtin, que, como nos mostra Grilo (2004, p.40), fincou “as bases para o estudo
dos gêneros do discurso”.
Bakhtin (2002, p.43), ao anunciar o problema do que ele chamou de “gêneros
lingüísticos”, observa que “cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de
discurso na comunicação sócio-ideológica”. É importante notar que o autor ressalta aí o
caráter sócio-ideológico da comunicação, caracterizando-a como discurso, cuja materialização
se dá por meio de formas repertoriadas e situadas pelas sociedades através dos tempos, ou
seja, por meio dos gêneros do discurso. Nessa perspectiva, podemos dizer, que o gênero é um
dispositivo de linguagem instituído sócio-historicamente.
Bakhtin (2003, p.267), quando se refere à “ausência de uma classificação bem pensada
dos gêneros do discurso por campos de atividade”, nos autoriza a associar os gêneros do
discurso aos diversos campos da atividade humana, tais como o jurídico, o político, o familiar,
o literário, o científico, etc. É bem o que Marcuschi (2002, p.23) chama de domínio
discursivo. O autor usa tal expressão “para designar uma esfera ou instância de produção
discursiva ou de atividade humana. Esses domínios não são textos nem discursos, mas
propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Do ponto de vista dos domínios,
falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, etc., já que as
atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um gênero em particular, mas dão
origem a vários deles”.
64
Assim, para Bakhtin (2003, p.261), cada campo da atividade humana demanda
finalidades e condições específicas que determinam a geração do enunciado, o qual, por sua
vez, as reflete por meio de três componentes, a saber:
• o tema;
• o estilo da linguagem;
• a construção composicional.
Quanto a isso, julgamos importante fazer ouvir o próprio Bakhtin (2003, p.261):
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional.
Nunca é bastante retomar como Bakhtin concebe esses três componentes do
enunciado. Como se vê, o estilo da linguagem passa pela “pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua” (2003, p.261). Já a construção composicional é
composta “de tipos de construção de conjunto, de tipos do seu acabamento, de tipos de
relação do falante com outros participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os
leitores, os parceiros, o discurso do outro” (2003, p.266). O tema, por sua vez, está associado
a conteúdo (2003, p.261), ou seja, o tema é “o sentido da enunciação completa” (Bakhtin,
2002, p.128).
Para compreender melhor a noção bakhtiniana de tema, recorreremos a Cereja (2005,
p.202), que elucida a questão nos seguintes termos:
Já o tema é indissociável da enunciação, pois, assim como esta, é a expressão de uma situação histórica concreta. Como decorrência, é único e irrepetível. Participam da construção do tema não apenas os elementos estáveis da significação mas também os elementos extraverbais, que integram a situação de produção, de recepção e de circulação. Dessa forma, o instável e o inusitado de cada enunciação se somam à significação, dando origem ao tema, resultado final e global do processo da construção de sentido.
65
De acordo com Bakhtin, podemos ver que o enunciado não é caracterizado apenas
pela sua forma composicional, seu estilo e seu tema, mas também pelos fatores que remetem
mais especificamente à interação verbal de modo que as condições de produção de um
discurso estão refletidas e refratadas em sua própria materialização lingüística. É nesse
processo dinâmico e interativo que a recorrência e a estabilização de um enunciado elaborado
num campo da atividade humana instituem o gênero do discurso. Assim, Bakhtin (2003,
p.262) define os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados,
elaborados pelos campos de utilização da língua.
Não obstante aos postulados de Bakhtin, Maingueneau (1995, p.7) entende que “a
Análise do Discurso [...] não tem por objeto nem a organização textual considerada em si
mesma, nem a situação de comunicação, mas a imbricação de um modo de enunciação e de
um lugar social determinados”24. Maingueneau (Ibidem, p.7-8) explica que “o discurso é aí
apreendido como atividade relacionada a um gênero, como instituição discursiva: seu
interesse é não pensar os lugares independentemente de enunciações que eles tornam
possíveis e que os tornam possíveis”25.
Tributário a Bakhtin, Maingueneau concebe o gênero na articulação entre sua forma
de construção e a situação social de sua enunciação, afirmando que “é preciso articular o
“como dizer” ao conjunto de fatores do ritual enunciativo” (Maingueneau, 1997, p.36), de
modo que “a explicitação das condições genéricas [...] não representa uma finalidade para a
AD” (Ibidem, p.37).
É importante destacar que, nessa perspectiva, cada gênero do discurso institui seu
ritual enunciativo e os seus lugares enunciativos correspondentes ao enunciador e ao seu co-
enunciador. O ritual e os lugares se afiguram como coerções impostas pelo próprio gênero do
discurso. Aliás, Bakhtin (2003, p.283) já menciona o caráter normativo e coercitivo do gênero
sobre o falante quando compara as formas do gênero e as formas da língua. E esse é um
aspecto que nos chama muito a atenção no que toca ao estudo do ethos.
24 “l’analyse [...] n’a pour objet ni l’organisation textuelle considérée en elle-même, ni la situation de communication, mais l’intrication d’un mode d’énonciation et d’un lieu social déterminés” (1995, p.7). 25 “le discours y est appréhendé comme activité rapportée à un genre, comme institution discursive : son intérêt est de ne pas penser les lieux indépendamment des énonciations qu’ils rendent possibles et qui les rendent possibles” (1995, p.7-8).
66
4.2. Origem e estabilização do gênero pronunciamento parlamentar
A origem do gênero pronunciamento parlamentar se confunde com a própria invenção
da política, que surgiu na Grécia e em Roma como forma de mediação dos conflitos entre as
classes sociais envolvidas na disputa pelo poder, já que a soberania das grandes famílias
começava a ser contestada pela emergente classe dos artesãos e comerciantes. De acordo com
Chauí (2002, p.374), “a luta de classes pedia uma solução. Essa solução foi a política”.
Schüler (2002, p.13), com muita concisão, nos mostra muito bem que “o homem grego
não foge da divergência, convive com ela, educa-se nela. Na divergência aprende a falar. Não
há democracia na vigência do discurso único. Na refrega verbal o diverso se anuncia, se
enuncia”.
Conforme Chauí (2002, p.376), gregos e romanos criaram, assim, o espaço público
para que os cidadãos pudessem defender seus interesses e tomar suas decisões
consensualmente, concebendo, então, o que a sociedade moderna conhece como parlamento.
Instaurava-se, portanto, o regime político, em que o debate e a expressão pública da vontade
da maioria estabeleciam o consenso, condicionando o sucesso da política à argúcia da palavra.
Assim, ao longo do tempo, estabeleceu-se no interior da atividade política uma série
de convenções sociais que instituíram a própria atividade e seus dispositivos de linguagem.
Entre algumas dessas invenções, podemos destacar a criação do espaço público (a assembléia
e o senado) como o espaço de deliberação, da figura dos políticos (tribunos e senadores) como
interlocutores imediatos, da argumentação retórica como elemento organizador do discurso,
da linguagem rebuscada como marca privilegiada do estilo de linguagem, etc.
Tais convenções sociais consistiam nas condições de produção dos discursos políticos
que se refletiam nas formas de seus próprios enunciados. E foi a estabilização desses
enunciados que instituiu o gênero do discurso que a sociedade moderna convencionou
denominar pronunciamento parlamentar.
Nosso objetivo, porém, não é o de avaliar o impacto que a diversificação das várias
atividades humanas causou sobre esse gênero através dos tempos. Entretanto, um olhar mais
voltado para as representações das atuais casas parlamentares nos mostra a instituição de
novas figuras para os participantes da comunicação como a do presidente da mesa, do
primeiro-secretário, do segundo-secretário, do orador, do plenário e dos líderes de bancada.
Isso nos permite deduzir que o próprio espaço físico dessas casas legislativas foi
67
redimensionado, adaptando-se à necessidade de representar essa hierarquia no interior da
casa, do espaço físico em si. Com efeito, essas transformações na atividade política foram
sentidas no próprio gênero parlamentar, pois, se a natureza argumentativa e o uso de uma
linguagem formal permanecem orientando sua construção composicional e seu estilo de
linguagem, por outro lado, a constituição e o desdobramento da hierarquia na casa legislativa
tornaram a fala parlamentar mais ritualizada.
Tratemos dessa questão, agora, de modo mais particular, observando como apenas um
componente do gênero (a finalidade) cria uma distinção no interior do gênero pronunciamento
parlamentar, tendo em vista o exemplo da Câmara dos Deputados Federais do Brasil.
A Câmara Federal brasileira disponibiliza em seu sítio eletrônico26 um glossário de
termos parlamentares. Nesse glossário, podemos verificar que o termo pronunciamento
parlamentar é concebido de forma generalizada, sendo definido como uma “manifestação de
opinião do parlamentar, seja em discurso ou em intervenção nos trabalhos legislativos”.
No entanto, a finalidade do pronunciamento parlamentar distingue, no mínimo, outros
dois gêneros do discurso, como nos atesta o referido glossário:
• Comunicação parlamentar: “Realiza-se após o encerramento da fase chamada
Ordem do Dia. Destina-se ao uso da palavra pelos oradores indicados pelas
lideranças partidárias para pequenos pronunciamentos”;
• Encaminhamento de votação: “Pronunciamento a favor ou contra determinada
proposição, feito por oradores inscritos e pelos líderes, pelo prazo de cinco
minutos, tão logo é anunciada a votação”.
Nessa distinção vemos que a comunicação parlamentar se caracteriza como um
pequeno pronunciamento que pode ocorrer somente após a Ordem do Dia, o estabelecimento
da pauta. Já o encaminhamento de votação implica a votação de alguma matéria em pauta (a
finalidade) e ocorre após as comunicações parlamentares.
No caso da sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968, os deputados Márcio
Moreira Alves, Mário Covas e Geraldo Freire fizeram seus pronunciamentos por meio do
gênero do discurso encaminhamento de votação e foram antecedidos por vários deputados
26 Disponível em http://www.camara.gov.br. Essa publicação não apresenta numeração de páginas.
68
que se manifestaram por meio da comunicação parlamentar. Isso posto, iremos nos referir
aos discursos desses três parlamentares de uma maneira bem geral, denominando-os
pronunciamento parlamentar.
4.3. Caracterização do gênero pronunciamento parlamentar
Antes de apontar algumas das características do gênero pronunciamento parlamentar
que nos parecem mais relevantes, é importante discutir, primeiramente, se estamos tratando de
um gênero oral ou escrito.
Marcuschi (2003, p.39) propõe uma interessante distinção entre fala e escrita,
apoiando-se em duas noções, a saber, meio e concepção. Para o autor, “a fala é de concepção
oral e meio sonoro, ao passo que a escrita é de concepção escrita e meio gráfico”. Entretanto,
os gêneros nem sempre veiculam os discursos de forma tão absoluta assim. Nessa perspectiva,
os gêneros do discurso se distribuem de acordo com o seu modo de concepção (oral/escrita) e
o seu meio de produção (sonoro/gráfico).
No gráfico a seguir, elaborado por Marcuschi (2003, p.39), podemos ver que a área em
a compreende o “domínio do tipicamente falado (oralidade), seja quanto ao meio e quanto à
concepção”, ao passo que a área em d corresponde ao domínio do “tipicamente escrito”. Já as
áreas abrangidas por c e d “constituem os domínios mistos em que se dariam as mesclagens
de modalidades”.
(Marcuschi, 2003, p.39)
69
Embasado nessas noções, podemos afirmar que o pronunciamento parlamentar é um
gênero do discurso que se realiza pelo meio sonoro, pois se materializa oralmente no orador
da tribuna. Entretanto, no que diz respeito ao seu modo concepção, é preciso ressalvar que ele
não é tão preciso quanto seu meio de produção, dado que os discursos podem ser previamente
preparados de forma integral (o orador lê o discurso na íntegra) ou parcial (o orador
desenvolve tópicos previamente definidos), bem como podem ser improvisados. Em suma,
embora em alguns casos o modo de concepção de pronunciamentos parlamentares se
aproxime do escrito, nem sempre esse é o caso. Entretanto, ao mesmo tempo, isso não quer
dizer que sua concepção pertença ao domínio da fala, pois, no limite, a concepção de um
pronunciamento passa, no mínimo, por uma elaboração mental antes que o orador o pronuncie
publicamente: o pronunciamento não possui a espontaneidade característica da oralidade.
Dessa maneira, não basta dizer se o pronunciamento parlamentar é um gênero oral ou
escrito, pois é preciso considerar que há nele uma mesclagem de modalidades que nos faz
perceber que estamos diante de um gênero de domínio misto c: concepção discursiva escrita,
meio de produção sonoro.
Isso posto, tratemos de uma segunda questão. Seria lícito pensar que o
pronunciamento realizado na tribuna e sua publicação na imprensa oficial (Diário Oficial da
Câmara dos Deputados) são dois gêneros distintos que enunciam um mesmo discurso ou a
publicação consiste em uma transcrição do pronunciamento?
Recordando o que dissemos em nossa introdução, os pronunciamentos proferidos
pelos deputados na tribuna são taquigrafados e depois publicados e chancelados pelo Diário
Oficial da Câmara dos Deputados. O problema agora incide sobre a forma de publicação do
pronunciamento no Diário Oficial, que é, aliás, a fonte de nosso corpus. Então, para resolver
esse problema, recorreremos à distinção que Marcuschi (2003, p.49) faz entre processos de
retextualização e de transcrição. Vejamos o que diz o autor:
Transcrever a fala é passar um texto de sua realização sonora para a forma gráfica com base numa série de procedimentos convencionalizados. Seguramente, neste caminho, há uma série de operações e decisões que conduzem a mudanças relevantes que não podem ser ignoradas. Contudo, as mudanças operadas na transcrição devem ser de ordem a não interferir na natureza do discurso produzido do ponto de vista da linguagem e do conteúdo. Já no caso da retextualização, a interferência é maior e há mudanças mais sensíveis, em especial no caso da linguagem.
70
Parece-nos que a diferença entre transcrição e retextualização reside no grau de
interferência que cada processo inflige a um determinado texto-base. Ao fim da transcrição, o
texto-alvo não apresenta mudanças na linguagem nem no conteúdo do discurso produzido e aí
tomado como texto-base.
E essa “série de procedimentos convencionalizados” a que se refere Marcuschi
corresponde a operações textuais que, no caso da transcrição, não chegam a produzir a
transformação do texto-base, isto é, não culmina em sua retextualização. Marcuschi (2003,
p.75) elabora um modelo dessas operações empregadas na passagem do texto oral para o texto
escrito, do qual destacamos as seguintes:
• “Eliminação de marcas estritamente interacionais, hesitações e partes de
palavras”;
• “Introdução da pontuação embasada na intuição fornecida pela entoação das
falas”;
• “Retirada de repetições, reduplicações, redundâncias, paráfrases e pronomes
egóticos”;
• “Introdução de paragrafação e pontuação detalhada sem modificação da ordem
dos tópicos discursivos”.
Podemos pressupor que tais mudanças operadas na transcrição, realmente, não
interferem na linguagem nem no conteúdo do discurso produzido. Nessa perspectiva, o texto
publicado no Diário Oficial da Câmara dos Deputados não manifesta esse nível de
interferência, logo nosso objeto de análise sofreu sim uma operação de transcrição, o que,
mesmo assim, ainda traz implicações que não podemos ignorar, sobretudo quando estudamos
o ethos, pois a entoação, os gestos, as expressões faciais não podem ser recuperadas e servir
como elementos de análise. Tal fato demanda do analista um esforço cooperativo maior para
com o texto analisado.
Outro ponto a ser considerado é que, embora a publicação do pronunciamento
parlamentar circule em outros meios que não só o da Câmara Federal, o produtor e o receptor
desse gênero já estão presumidos pelo próprio gênero, bem como estão circunscritos ao
contexto sócio-histórico específico da sua enunciação.
71
Podemos concluir que o processo de transcrição não altera os fatores essenciais do
texto-base, logo parece lícito afirmar que não será isso que irá trazer alterações em matéria de
ethos. Por isso, mais uma vez, reiteramos que, conforme dissemos em nossa introdução,
optamos pelo texto publicado no Diário Oficial da Câmara dos Deputados a fim de considerar
uma fonte que respeita a integridade dos discursos proferidos, sendo fiel à sua linguagem e ao
seu conteúdo, mesmo abdicando de elementos como os gestos, a entoação, o vestuário, enfim,
toda a situação física.
Não deixemos de ilustrar o processo de retextualização. Se retomarmos um exemplo
dado em nossa introdução quando falávamos sobre o documentário AI-5 – o dia que não
acabou produzido pelo jornalista Paulo Markun, lembraremos que o documentário, enquanto
gênero do discurso, editou os pronunciamentos. Isso significa que o editor selecionou alguns
discursos para compor o documentário, suprimiu partes desses discursos, colheu e inseriu
depoimentos dos ex-parlamentares cujos discursos integram o documentário. Além disso,
dissemos que esse processo de edição revela o ponto de vista do documentarista. Portanto, de
acordo com Marcuschi, esse documentário nos serve como exemplo de retextualização devido
às interferências e mudanças operadas, sobretudo, no conteúdo. Podemos dizer que esse
documentário cria a impressão de que o discurso de Mário Covas (MDB) é muito mais
articulado e elaborado do que o de Geraldo Freire (ARENA). Isso porque, primeiramente, o
discurso arenista sofre mais cortes do que o discurso emedebista, o que já basta para mutilar
seu discurso no que tange aos argumentos, logo ao conteúdo.
Quanto à linguagem e à expressão, não nos parece haver interferências aí. Aliás, esse
tipo de interferência é mais corrente em gêneros da mídia como notícias, entrevistas, etc. Por
exemplo, um jornal, ao noticiar um tiroteio em uma favela, publica um enunciado como
“pode-se ver que meu barraco foi atingido por projéteis de diversos calibres” e o atribui a um
morador por meio da forma do discurso direto. Parece-nos pouco provável que essa seja a
expressão mais factível a um enunciado proferido por esse sujeito presumido. Sabemos que os
manuais de redação dos grandes jornais determinam que se operem mudanças de linguagem,
de expressão, padronizando a linguagem do jornal em detrimento daquelas linguagens que
não gozam de prestígio social como os vários jargões da periferia que são influenciados pelo
jargão dos prisioneiros.
72
Se um dia os gregos sentiram necessidade de cultivar suas divergências por meio da
luta verbal, hoje, nos tempos da imprensa, a sociedade moderna sentiu a necessidade de
registrá-las e publicá-las a fim de reiterar o espírito democrático e manter viva sua memória.
Isso posto, passemos a uma descrição sincrônica do gênero pronunciamento
parlamentar, considerando dois dos três elementos do gênero apontados por Bakhtin: a
construção composicional e o estilo da linguagem próprio do gênero.
Nossa ressalva é quanto ao terceiro elemento, o tema, que não será levado em conta
nessa caracterização, pois sua natureza nos levaria a uma descrição infinita. Isso porque “o
tema da enunciação é na verdade, assim, como a própria enunciação, individual e não
reiterável”, como nos mostra Bakhtin (2002, p.128). Logo, tantas enunciações, tantos temas.
4.3.1. A construção composicional do pronunciamento parlamentar
Destacaremos aqui três componentes que observamos na construção composicional do
gênero pronunciamento parlamentar:
• o modo argumentativo de organização do discurso;
• o plano textual;
• a ritualização da fala parlamentar.
Para Charaudeau (Charaudeau & Maingueneau, 2004, p.338), “o modo argumentativo
permite organizar as relações de causalidade que se instauram entre essas ações [as ações e os
eventos nos quais os seres estão implicados], com auxílio de vários procedimentos que incidem
sobre o encadeamento e o valor dos argumentos” [grifo nosso].
Charaudeau (1992) trata do modo de organização argumentativo, visando sempre os
componentes e os procedimentos tanto da organização do raciocínio argumentativo como da
“colocação em argumentação”27. Seu objetivo é “apresentar noções de base que são destinadas
a fazer compreender como funciona a mecânica do discurso argumentativo, isto é, não um
27 Certamente, o termo soa estranho, mas não encontramos tradução mais adequada para o que Charaudeau chama de “la mise en argumentation”.
73
tipo de texto mas os componentes e procedimentos de um modo de organização discursivo”28
(Ibidem, p.781).
Assim, Charaudeau (Ibidem, p.787-802) mostra que os componentes da organização
da lógica argumentativa são os elementos de base da relação argumentativa (asserção de
partida, asserção de chegada e asserção ou asserções de passagem), os modos de
encadeamento, as relações de sentido, etc. Já os seus procedimentos são a dedução, a
explicação, a associação, etc.
Depois disso, Charaudeau (Ibidem, p.803-833) mostra também que a “colocação em
argumentação” tem como componentes o dispositivo argumentativo, os tipos de configuração
e as posições do sujeito, bem como dispõe de procedimentos semânticos, discursivos e de
composição (as etapas da argumentação: início, transição, fim).
Queremos ressaltar que estamos fazendo uma brevíssima apresentação do esquema
elaborado por Charaudeau (1992) e que vamos nos eximir de pormenorizá-lo, pois o que nos
interessa daí é, em primeiro lugar, perceber que o autor distingue o modo argumentativo em
dois planos – o da organização lógica e o da realização lingüística – e, em segundo lugar,
pinçar e relacionar estes dois pontos, a saber:
• a relação argumentativa (plano da organização lógica), cujos elementos básicos
consistem nas asserções de partida, chegada e passagem;
• o procedimento de composição (plano da realização lingüística), cujas etapas
da argumentação consistem em início, transição e fim.
Tratemos do primeiro ponto. Para Charaudeau (Ibidem, p.787), a asserção de partida
(A1) “representa um dado de partida destinado a fazer admitir uma outra asserção em relação
à qual ela se justifica”29, isto é, não se trata somente de uma introdução, mas de uma
preparação para a argumentação.
28 “présenter des notions de base qui sont destinées à faire comprendre comment fonctionne la mécanique du discours argumentatif ; c’est-à-dire non pas un type de texte mais les composantes et procédés d’un mode d’organisation discursif ” (1992, p.781). 29 “représente une donnée de départ destinée à faire admettre une autre assertion par rapport à laquelle, en retour, elle se justifie” (1992, p.787).
74
Já a asserção de chegada (A2) “pode ser chamada de conclusão da relação
argumentativa, ela representa a legitimidade da proposta”30 (Ibidem, p.788).
Por fim, a asserção de passagem “representa um universo de crenças a propósito da
maneira como os fatos se entre-determinam na experiência ou no conhecimento de mundo.
Esse universo de crenças deve ser compartilhado pelos interlocutores implicados pela
argumentação, de modo que seja estabelecida a prova da validade do laço que une A1 à A2.
Essa asserção (ou série de asserções), freqüentemente não dita, implícita, poderá ser chamada
de prova, inferência ou argumento ,conforme o quadro de questionamento no qual ela se
inscreve”31 (Ibidem, p.788).
Tomando o pronunciamento do deputado Mário Covas Júnior como exemplo, teremos
o seguinte:
• Asserção de partida (A1): “[...] eis que, hoje, esta Casa está sendo submetida a
julgamento. Recolhida ao banco dos réus, aguarda o veredicto que será exarado
pelos próprios ocupantes” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000,
p.99);
• Asserção de chegada (A2): “[...] quero declarar minha firme crença de que,
hoje, o Poder Legislativo será absolvido” (Ibidem, p.110).
As asserções que permitem a passagem de A1 à A2 se apresentam de várias maneiras e
todas visam a validar essa absolvição (A2) que se propõe legítima em relação à proposta
inicial (A1): que a Casa está sob julgamento.
Agora o segundo ponto. No que toca ao procedimento de composição, Charaudeau
(Ibidem, p.829) avisa que “não se confundirá esse procedimento com a tradicional
composição escolar em: introdução, tese (articulação), antítese, conclusão. Trata-se aqui da
30 “peut être appelée conclusion de la relation argumentative, elle représente la légitimité du propos” (1992, p.788). 31 “représente un univers de croyance à propos de la manière dont les faits s’entre-déterminent dans l’expérience ou la connaissance du monde. Cet univers de croyance doit donc être partagé par les interlocuteurs impliqués par l’argumentation, de sorte que soit établie la preuve de la validité du lien qui unit A1 à A2. Cette assertion (ou série d’assertions), souvent non dite, implicite, pourra être appelée preuve, inférence ou argument selon le cadre de questionnement dans lequel elle s’inscrit” (1992, p.788).
75
organização interna de uma argumentação que pode coincidir com todo um texto (o texto é
exclusivamente argumentativo) ou representar somente uma parte deste texto”32.
Assim, Charaudeau (Ibidem, p.829-830) prefere tratar essa questão como uma
sucessão em três etapas, da seguinte forma:
• início: trata-se de localizar os elementos da Proposta e da Proposição, seja diretamente – ou seja, expondo o essencial desses elementos –, seja com a ajuda de marcas como:
• “Começaremos por...” • “Observamos inicialmente...”
• transição: trata-se de passar de um momento da argumentação a um outro.
Isso se faz, na maior parte, com a ajuda de algumas marcas como: • “Após essa breve análise, ...” • “A segunda questão à qual me propus responder...”
• fim: trata-se de apresentar ou de anunciar o último momento da
argumentação: • “Terminamos por...” • “Podemos então concluir que...”33.
Charaudeau concebe assim o modo argumentativo de organização do discurso,
distinguindo o plano lógico do plano lingüístico, dos quais destacamos (i) os elementos
32 “On ne confondra pas ce procédé avec la traditionnelle composition scolaire en : introduction, thèse (articulation), antithèse, conclusion. Il s’agit ici de l’organisation interne d’une argumentation qui peut coïncider avec tout un texte (le texte est exclusivement argumentatif), ou ne représente qu’une partie de ce texte” (1992, p.829). 33 • début: Il s’agit de mettre em place les éléments du Propos et de la Proposition, soit directement – c’est-à-dire en exposant de plain-pied ces éléments -, soit à l’aide de marques tels que: •“On commencera par...” •“Observons tout d’abord...” • charnière: Il s’agit de passer d’un moment de l’argumentation à un autre. Cela se fait la plupart du temps à l’aide de certaines marques tels que: • “Après cette brève analyse, ...” • “La seconde question à laquelle je me suis proposé de répondre...” • fin: Il s’agit de présenter ou d’annoncer le dernier moment de l’argumentation: •“Terminons par...” •“Nous pouvons donc en concluire que...”
76
básicos da relação argumentativa (as asserções de partida, de transição e de chegada), bem
como o que o autor chama de (ii) etapas da argumentação (início, transição e fim).
Essa é uma distinção que deve ser considerada, porque nem todo gênero do discurso
apresenta coincidência entre asserção de partida e etapa inicial, asserção ou asserções de
transição e etapa de transição, asserção de chegada e etapa final. Aliás, há gêneros que
dispensam ou tornam implícita a transição, tanto a lógica quanto a lingüística. No entanto,
vale ressaltar que o pronunciamento parlamentar não se encaixa em nenhum desses dois
casos, pois é um gênero que guarda muito do antigo modelo retórico.
*
Uma vez compreendido o modo argumentativo, passemos, agora, a um segundo
componente composicional do gênero pronunciamento parlamentar: o plano textual.
Como acabamos de dizer, é possível reconhecer nesse gênero um plano textual
calcado no modelo retórico, que é assim sintetizado por Mosca (1997, p.28):
Dispositio – É a maneira de dispor as diferentes partes do discurso, o qual deve ter os seguintes componentes: exórdio, proposição, partição, narração/descrição, argumentação (confirmação/refutação) e peroração. Trata-se da organização interna do discurso, de seu plano.
O gênero pronunciamento parlamentar visa não apenas à adesão e à persuasão pelo
sentimento (como os gêneros publicitários), mas também ao convencimento pela razão, pela
produção de provas que pareçam objetivas. Barthes (1975, p.206), adotando o modelo retórico
de Aristóteles, aponta na dispositio34 uma dicotomia entre passional (o apelo aos sentimentos,
que cobre o exórdio35 e o epílogo36) e demonstrativo (o apelo ao fato e à razão, que cobre a
narratio e a confirmatio37). Parece justo dizer que cada parte do discurso impõe coerções
34 Parte da Retórica dedicada à organização interna do discurso, ao plano textual. 35 Barthes (1975, p.208) mostra que o exórdio compreende a captação da benevolência e o anúncio das partes do discurso. 36 Trata-se, conforme Barthes (1975, p.208-9), da parte final do discurso, a qual consiste em retomar e resumir os pontos do discurso (nível das “coisas”) e em explorar a emotividade do auditório (nível dos “sentimentos”). 37 Barthes (1975, p.210) diz que “à narratio, ou exposição dos fatos, sucede a confirmatio, ou exposição dos argumentos: é aí que se enunciam as ‘provas’ elaboradas, no decorrer da inventio”.
77
sobre o modo de dizer, o que, por conseguinte, vai refletir nas escolhas enunciativas do
enunciador.
Essa organização interna do texto corresponde ao que Bakhtin chama de “tipos de
construção de conjunto” (2003, p.266), o que está associado à construção composicional.
Assim, durante nossas análises, nomearemos as partes dos textos conforme o esquema
apresentado por Barthes devido à sua concisão, à sua adequação e à sua aplicabilidade nos
pronunciamentos sob análise: exórdio, narratio, confirmatio e epílogo.
*
O terceiro componente a ser tratado corresponde àquilo que envolve o rito enunciativo
instituído pelo gênero parlamentar. O ritual parlamentar, além de exercer influência sobre o
estilo da linguagem, regula a concessão da palavra, bem como determina o tipo de relação que
se estabelece entre os participantes da comunicação discursiva, ou seja, determina os lugares
enunciativos que devem ser assumidos para a legitimação do discurso.
No gênero parlamentar, mais especificamente no encaminhamento de votação, o
sujeito assume, antes, o lugar de deputado federal, conferindo ao destinatário de seu discurso
o estatuto de plenário. Em sessões plenárias que têm em sua pauta a votação de pedidos de
licença ou mesmo de cassação do mandato de um membro da Casa, obedece-se a uma ordem
predeterminada em que, primeiramente, o acusado faz seu pronunciamento de autodefesa e,
na seqüência, os líderes da oposição e da situação fazem seus pronunciamentos de defesa e de
acusação, ou vice-versa.
O deputado é, então, convidado pelo presidente da Câmara a ocupar o espaço físico da
tribuna para proferir seu discurso. Assim, ele assume o lugar enunciativo do orador e dirige
sua palavra, inicialmente, ao próprio presidente da mesa e, depois, aos seus colegas
deputados, inscrevendo-os todos como o plenário. Ressalte-se que tudo isso já está
acontecendo no momento da enunciação.
Quanto ao estilo de linguagem, já é possível adiantar que essa ritualização aparece
manifestada no texto nos momentos de interpelação e deixa no enunciado uma série de
fórmulas de polidez cristalizadas pelo emprego do vocativo e das formas de tratamento como
“Senhor Presidente, Senhores Deputados...”, “Senhor Presidente...”, “Senhores
Deputados...”, “o nobre Relator...”, “o nobre Líder do Governo...”, “o nobre Deputado”, “Sua
Excelência...”, etc. Esse tipo de tratamento requer o emprego de uma linguagem mais formal.
78
4.3.2. Estilo de linguagem do gênero pronunciamento parlamentar
Tratemos agora do estilo da linguagem no gênero parlamentar. Baseado nos
postulados de Bakhtin, entendemos que a relação entre o enunciado e as suas condições de
produção tem o seu papel na construção do estilo da linguagem de um gênero do discurso. No
caso do pronunciamento parlamentar, podemos dizer que o modo argumentativo, a finalidade
do gênero, o tipo de relação estabelecida entre os participantes da comunicação e a
ritualização da fala parlamentar juntam-se a um estilo polido e ritualizado de linguagem
formal e, assim, caracterizam a construção composicional do pronunciamento parlamentar.
Gostaríamos de ressaltar que o estilo formal e polido do gênero parlamentar não se
constitui como o resultado de um ou de outro elemento isoladamente, mas graças à
combinação desses elementos. Tomemos, por exemplo, um gênero da atividade publicitária.
O modo argumentativo só não está aí presente como é dominante, mas não é possível afirmar
que o estilo formal lhe é constitutivo; uma assembléia de condomínio também visa ao
consenso como finalidade, contudo o tipo de relação entre os seus interlocutores não está
ligado a falas tão ritualizadas como a parlamentar.
Parece-nos que o gênero do discurso não determina um estilo, mas apenas delimita sua
construção. Contudo, parece-nos que podemos refinar um pouco mais essas idéias. Baseado
em Discini (2003, p.57-63), podemos dizer que estilo é o efeito de sentido que constrói a
identidade do sujeito autor numa totalidade de discursos e que é possível depreendê-lo por
meio da recorrência das marcas lingüísticas expressas no dito. É essa ponderação que nos
permite concluir que cada deputado constrói seu próprio estilo discursivo dentro do estilo de
linguagem formal e polido do gênero parlamentar. Enfim, a construção do estilo na
composição do pronunciamento parlamentar é duplamente orientada pelo que pode ser
chamado de individual e de coletivo.
79
5. O CENÁRIO POLÍTICO QUE ANTECEDEU A SESSÃO
DELIBERATIVA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968
5.1. A conjuntura política internacional e nacional pré-64
O cenário político internacional, entre 1945 e 1989, foi marcado pela guerra fria, em
que os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS), temendo perder o domínio político e econômico que haviam conquistado após a II
Guerra Mundial, se envolveram numa corrida armamentista, financiaram guerras civis e
interferiram em governos de diversos países. Como nos lembra Chacon (1998, p.145), “a
primeira grande batalha da guerra fria no Brasil travou-se em torno do fechamento do PCB”,
em 1947. No entanto, é importante ressaltar que tais datas delimitam o início e o fim da guerra
fria somente se considerarmos as questões armamentista e geopolítica, pois, do ponto de vista
cultural e ideológico, ela extrapola os limites da queda do muro de Berlim em 1989.
A propaganda ideológica criou e manteve imagens bem distintas de cada lado. Os
norte-americanos criaram a imagem do self-made man e a idéia de que a felicidade estava no
bem-estar individual, o que fazia valorizar o mercado de consumo e o modelo capitalista. Já
os soviéticos formularam seus valores sobre a imagem de uma sociedade igualitária, na qual a
felicidade advinha de uma concepção coletiva de vida, o que sustentava a crença no controle
estatal dos meios de produção.
Em se tratando de América Latina, Bandeira (1997, p.84) nos mostra que “os EUA,
sem dúvida alguma, tiveram responsabilidade pelo estabelecimento e sustentação de muitas
ditaduras em vários países da América Latina, ao apoiarem as facções políticas mais dóceis
aos seus interesses econômicos e políticos”. Basta lembrar a reação do governo norte-
americano à ascensão de Fidel Castro ao governo de Cuba em 1959. Como se sabe, os
Estados Unidos lançaram uma ofensiva anticomunista em todo o continente americano, com o
objetivo de coibir medidas que, semelhantemente às adotadas por Fidel Castro
(nacionalização de empresas norte-americanas, aproximação com URSS, entre outras),
contrariavam seus interesses.
80
Para nós, porém, interessa observar em que circunstâncias esses dois pólos ideológicos
que marcaram a guerra fria foram recebidos no Brasil, matizando as divergências políticas já
existentes.
Antes de falar em direita, centro e esquerda, é preciso dizer que havia no Brasil uma
luta de classes em que os grupos sociais mais proeminentes – a oligarquia reacionária, a
burguesia industrial e a classe trabalhadora – se organizaram, basicamente, em torno da UDN
(União Democrática Nacional), do PSD (Partido Social Democrático) e do PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro). Vale acompanhar o que diz Dreifuss (1981, p.27) sobre a gênese
desses três partidos:
Eleições nacionais foram marcadas para dezembro de 1945, para as quais Getúlio Vargas estimulou a criação de dois partidos, o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, baseado na máquina sindical de Marcondes Filho, e o Partido Social Democrático – PSD, que não possuía coisa alguma em comum com seus homônimos europeus e se baseava em seus interventores estaduais, nos industriais de São Paulo e nos chefes políticos oligárquicos, os conhecidos coronéis. A posição de centro-direita criou a União Democrática Nacional – UDN, um conjunto amplo de posições anticomunistas, antinacionalistas e anti-Vargas (mais tarde antipopulistas), cuja base eleitoral encontrava-se principalmente nas classes médias e que era liderada por profissionais liberais, empresários e políticos.
Assim, nessas eleições de 1945, o Marechal Eurico Gaspar Dutra foi eleito presidente
pelo PSD e com apoio do PTB de Vargas, no entanto compôs seu ministério com quadros da
UDN, sinalizando o rumo que seu governo tomaria. Dreifuss (1981, p.28-29) recorda que as
diretrizes econômicas adotadas por Dutra favoreciam a empresa privada em detrimento das
estatais idealizadas no governo Vargas, além de estabelecer um “relacionamento especial com
os Estados Unidos”, em que a “economia foi reaberta ao capital estrangeiro em condições
muito favoráveis”. Foi ainda no governo Dutra que o PCB (Partido Comunista Brasileiro) “foi
declarado ilegal por decisão judicial”, justamente no momento em que o PCB reiterava, nas
eleições estaduais de 1947, sua condição de quarta força política em termos de voto popular.
Nas eleições de 1950, Getúlio Vargas foi reconduzido ao governo pelo PTB, mas
entregou a maior parte dos ministérios ao PSD, indicando qual era o partido do poder. A
UDN, por sua vez, elegeu Café Filho vice-presidente, já que as eleições para presidente e
vice-presidente eram separadas. Esse governo de Vargas foi muito conturbado, passando por
81
duas reformas ministeriais e sucumbindo a um golpe militar que levou Getúlio Vargas ao
suicídio e Café Filho à presidência da República. Como analisa Sodré (1997, p.104), “o golpe
de 1954 também foi para deter qualquer avanço no processo político das reformas
econômicas. Desde que Getúlio Vargas esposou a tese do monopólio estatal do petróleo [...] e
tomou providências no sentido de prover o Estado brasileiro de órgãos capazes de intervir na
estrutura econômica de forma progressista, foi condenado pelas estruturas reacionárias,
deposto e levado ao suicídio em agosto de 1954”.
Dessa forma, o breve governo de Café Filho trabalhou para conter as classes
trabalhadoras e estimular “a penetração de interesses multinacionais através de um
entendimento com os setores cafeeiros e financeiros” (Dreifuss, 1981, p.33). Entretanto, esse
projeto fora novamente interrompido, pois a UDN saiu derrotada nas eleições nacionais de
1956 pela aliança PSD/PTB, encabeçada por Juscelino Kubitschek e João Goulart, eleitos
presidente e vice-presidente, respectivamente. Essa aliança “incorporava a burguesia
industrial, um setor da burguesia comercial especializado no comércio de produtos industriais
locais, e as classes médias progressistas (profissionais liberais, administradores), assim como
políticos urbanos e sindicalistas” (Dreifuss, 1981, p.33-34).
Até aqui pudemos ver que os vários setores da sociedade brasileira se agrupavam
basicamente em torno de duas forças políticas: uma reacionária associada ao imperialismo e
outra progressista de teor nacionalista.
Parecia que, enfim, nas eleições de 1960, os interesses multinacionais e associados
encontrariam respaldo no governo quando as forças reacionárias levaram seu candidato à
presidência da República. A UDN havia apoiado um partido de menor expressão – o PDC
(Partido Democrata Cristão) – que elegeu Jânio Quadros presidente, no entanto o PTB ainda
demonstrava prestígio ao reeleger João Goulart vice-presidente. Jânio Quadros, entretanto,
não conseguiu resolver os problemas que herdara do governo de seu antecessor e, após sete
meses de mandato, renunciou à presidência em 25 de agosto de 1961, criando uma grave crise
política e tornando ainda mais tensa a disputa entre as forças reacionárias e progressistas da
sociedade brasileira.
No momento da renúncia de Quadros, João Goulart estava na China e somente
assumiu a presidência após uma forte negociação que implicou na instalação do regime
parlamentarista. As funções de chefe de Estado foram, então, atribuídas a um primeiro-
82
ministro, cargo ocupado pelo pessedista Tancredo Neves. Foi o que se chamou de golpe
branco, pois Goulart assumiu a presidência, mas não pôde exercer os poderes do Executivo.
No entanto, em 1963, Goulart obteve êxito em restaurar o presidencialismo e, assim, adquirir
de fato e de direito os poderes de chefe de Estado. Esse episódio se afigurou como um revés
muito desfavorável ao chamado bloco multinacional e associado, o qual passou, então, a
encampar, numa atitude golpista, uma estratégia de desestabilização do governo que culminou
na deposição de João Goulart em 1964.
Sodré (1997, p.104) nos mostra que os golpes apresentam uma forma análoga, a saber:
“a ação preparatória da mídia, uma pregação intensiva, visando isolar as forças políticas
progressistas e o coroamento por meio de uma intervenção militar do tipo que vai e vem”.
Assim, as Forças Armadas cumpriam o papel de depor o governante e assegurar sua
substituição. Feito isso, retiravam-se, diferentemente do que ocorreu após o Golpe de 64.
Quanto a isso, Paes (2002, p.42) lembra que “a propaganda envolvendo jornais (a
única exceção foi a Última Hora), rádio e televisão” exibiam diariamente “denúncias de
corrupção, de incompetência na condução da economia e – o grande filão – de ‘infiltração
comunista no governo’, de esquerdização e de uma ‘guerra revolucionária’ [...] que já estaria
em curso para instalar no País uma ‘república sindicalista”. Como ressalta a autora, o discurso
anticomunista foi o grande filão da propaganda ideológica nesse processo de desestabilização
do governo, intensificada, sobretudo, durante o período de Goulart.
Dreifuss (1981, p.233) ilustra essa prática com o seguinte episódio:
Eram também “feitas” em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação de pagamento e reproduzidas como informação fatual. Dessas notícias, uma que provocou um grande impacto na opinião pública foi que a União Soviética imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as formas de pressões internas e externas para aquele fim.
Fiorin (1988, p.34) mostra que esse grupo golpista consegue produzir um discurso em
que o sujeito Goulart engana o destinador povo e passa a obedecer a outro destinador, o
movimento comunista internacional, gerando aí insatisfação e decepção, duas faltas que
devem ser liquidadas pelo povo, que passa a instituir as Forças Armadas como o sujeito do
fazer de seu novo contrato de confiança.
83
Fiorin (1988, p.52-54) mostra ainda que esse discurso “revolucionário” promete tirar o
Brasil do “caos” (desordem, desgoverno, inflação, subversão, anarquia, etc.) e estabelecer a
“ordem” (disciplina, desenvolvimento, não-inflação, respeito à hierarquia, etc.). No entanto, o
mesmo autor argumenta (Ibidem, p.63) que “restauração da ordem não é reforma, é a negação
do reformismo, que é apresentado como “subversão””. Em outras palavras, as bandeiras
levantadas por esses grupos reacionários associados aos interesses multinacionais
apresentavam as forças progressistas como comunistas e subversivas.
Assim, a grade cultural que baliza a produção discursiva do bloco reacionário valoriza
positivamente aquela ideologia propagada pelos EUA e valoriza negativamente aquela
construída pela URSS.
5.2. A conjuntura política nacional pós-64
O primeiro gesto político do novo regime foi editar um Ato Institucional – o AI-1 –
que delegava amplos poderes ao presidente, permitindo-lhe, entre muitas outras coisas, cassar
mandatos políticos e, mesmo, fechar o Congresso. A partir daí, iniciou-se um período de
perseguições e censura, que, justificadas em nome da garantia da ordem e da paz social,
transformaram o Brasil em um Estado de terror. No entanto, como o regime militar pretendia
mostrar o Brasil como um Estado democrático, ele teve de manter o Congresso e outras
instituições democráticas, mas que, obviamente, ficaram sob seu total controle.
Todavia, o regime ia tomando medidas mais rígidas no sentido de centralizar cada vez
mais o poder no interior das Forças Armadas. Em outubro de 1965, o presidente Castelo
Branco, por meio do AI-2, dissolveu todos os partidos políticos existentes e os encerrou em
duas siglas: a ARENA e o MDB. A ARENA (Aliança Renovadora Nacional) agrupou os
apoiadores do Golpe de 64, em sua maioria membros da UDN e do PSD, enquanto que seus
discordantes, principalmente políticos do PTB, uniram-se em torno do MDB (Movimento
Democrático Brasileiro). O PCB, por sua vez, seguia na clandestinidade.
Não demorou muito para que a oposição e os protestos contra a ditadura militar
começassem a se organizar de forma decisiva para a derrubada desse regime. “As oposições à
esquerda constituíram-se por segmentos sociais em geral pertencentes às classes médias
84
intelectualizadas (artistas, intelectuais, jornalistas, estudantes), pelos partidos de esquerda,
setores do movimento estudantil e operário e setores da Igreja” (Paes, 2002, p.63).
Viam-se em várias partes do mundo manifestações estudantis em nome de uma
sociedade mais justa. O exemplo de recusa do american way of life dado pela juventude norte-
americana por meio do movimento da contracultura e os protestos contra a Guerra do Vietnã
uniram a juventude contra a política externa dos EUA. Na França, estudantes manifestaram-se
contra a reforma universitária, todavia o maio de 68 não só representou uma ameaça ao
governo do general de Gaulle, como também representou a recusa de um modelo cultural e a
proposição de um novo sistema de valores.
No Brasil, a onda de protestos e a repressão ao movimento estudantil explodiram
também em 1968, que ficou marcado por uma sucessão de episódios violentos. Em março de
1968, a ação truculenta da polícia militar para conter uma manifestação de estudantes no Rio
de Janeiro culminou no assassinato do secundarista Edson Luís de Lima Souto. Em junho de
1968, estudantes da UFRJ foram espancados ao saírem de uma assembléia. Na semana
seguinte, organizou-se a chamada “Passeata dos 100 mil” da qual participaram estudantes,
operários, políticos, religiosos, artistas, intelectuais. Em agosto, a polícia militar invadiu o
campus da Universidade de Brasília e reprimiu violentamente uma manifestação de estudantes
e professores.
5.3. Acerca do pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves
A oposição ao regime militar também encontrava guarida no Congresso e em alguns
flancos da imprensa. Márcio Moreira Alves em seu trabalho como repórter do “Correio da
Manhã” atacava incessantemente o regime ditatorial. Sua atuação profissional o credenciou
para se eleger deputado federal pelo MDB da Guanabara. Na Câmara Federal, Márcio
Moreira Alves destacou-se como um dos melhores deputados, pois fazia uso constante da
tribuna para criticar e exigir informações dos órgãos oficiais, marcando fortemente sua
posição contrária ao estado antidemocrático instalado desde o Golpe de 64.
Na sessão ordinária de 2 de setembro de 1968, em uma segunda-feira, Márcio Moreira
Alves fez um pronunciamento condenando a invasão do campus da UnB pela polícia militar ,
a qual foi seguida de violenta repressão à manifestação de estudantes e professores.
85
Nesse pronunciamento, Márcio Moreira Alves apenas cobra providências concretas
das autoridades:
Mas a nação reclama, para sua tranqüilidade, a adoção de providências concretas e urgente (sic). Ninguém mais está disposto a aceitar as meras declarações oficiosas de que, sôbre o massacre de Brasília, será aberto rigoroso inquérito [...].
Todos conhecemos a espécie de rigoroso inquérito que êste Govêrno abre sôbre os criminosos que em suas fileiras se abrigam [...] (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 1968a, p.5754)
Ainda aí o deputado rememorou outra ação criminosa da polícia militar, à qual já nos
referimos aqui:
No Rio de Janeiro, como disse o deputado Hermano Alves, apurou-se que Edson Luís de Lima Souto fôra fuzilado pela Polícia Militar, apuraram-se os nomes dos fuzilantes, mas não se tomou nenhuma providências para puni-los. (sic) (Ibidem).
No entanto, foi no dia seguinte, na sessão de 3 de setembro de 1968, que Márcio
Moreira Alves fez seu pronunciamento mais incisivo, pois, além de exortar os pais a não
levarem seus filhos ao desfile de 7 de setembro, aconselhou às moças que não silenciassem
perante seus namorados militares:
As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento profundo de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem juntos com os algozes dos estudantes. Seria necessário que cada pai, cada mãe se compenetrasse de que a presença de seus filhos nesse desfile é um auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas [...]. Este boicote pode passar também [...] às moças, àquelas que dançam com os cadetes e namoram os jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje no Brasil, com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam a Nação [...] (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 1968b, p.9).
86
Esse pequeno trecho já ilustra como o discurso de Márcio Moreira Alves despertou a
ira no meio militar. O deputado extrapolou os pedidos de inquérito, pois percebeu a ineficácia
desse tipo de ação, então partiu para outra estratégia. Seu discurso sempre era dirigido ao
presidente da República, cobrava-lhe providências e insinuava sua conivência com as ações
de opressão. Todavia, nesse pronunciamento, Márcio Moreira Alves dirigiu sua palavra ao
povo, mais especificamente aos pais e mães dos estudantes e às moças que namoram
militares, convocando-os a se manifestarem contra o regime militar. Em termos narrativos, o
destinador deputado desistiu de manipular o destinatário presidente e passou a manipular o
destinatário povo, transformando aquele em anti-sujeito e este em sujeito do fazer. E isso era
justamente o que o regime menos desejava naquele momento. Dessa forma, seu
pronunciamento foi recebido pelas Forças Armadas como injúria e ato de insurreição.
Ainda vale lembrar que a questão da invasão da Universidade de Brasília foi tratada
pelos deputados Celestino Filho (MDB/GO) e Doin Vieira (MDB/SC) no pequeno
expediente38 e, depois, pelo deputado Mário Piva (MDB/BA) no grande expediente39.
O deputado Celestino Filho (MDB/GO) foi contundente ao exigir que o presidente
afastasse as autoridades responsáveis pela Segurança Pública de Brasília para que a apuração
dos atos de violência e tortura a estudantes fosse conduzida com lisura. Caso contrário, poder-
se-ia acreditar na conivência do próprio presidente Costa e Silva. O deputado Celestino Filho
conclui assim seu pronunciamento:
Ou o Presidente da República toma essas providências, ou então seremos obrigados a acreditar que S.Exa. é conivente com o massacre de Brasília, é responsável por tudo o que está acontecendo com os estudantes e o povo na Capital da República (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 1968b, p.10).
Já o deputado Doin Vieira (MDB/SC) quis mostrar que esse episódio era a
oportunidade de o presidente Costa e Silva acenar favoravelmente à abertura democrática:
38 Segundo o glossário eletrônico da Câmara, o pequeno expediente corresponde à fase das sessões ordinárias do plenário destinada à matéria do expediente e aos oradores inscritos que tenham comunicação a fazer, com duração de sessenta minutos improrrogáveis. 39 Segundo o glossário eletrônico da Câmara, o grande expediente é a fase da sessão plenária que sucede à do Pequeno Expediente, com duração improrrogável de cinqüenta minutos. Destina-se aos
87
Propicia-se, assim, Sr. Presidente, uma oportunidade esplêndida de ação à Presidência da República e aos seus componentes principais (Ibidem, p.10).
E, assertivamente, conclui seu pronunciamento, dizendo:
E, se S.Exa, na responsabilidade do cargo que ocupa, se recusa a ser sensível a essa manifestação e êsse apêlo nacionais, então, terá de arcar, Sr. Presidente, com a responsabilidade da sua posição e do seu gesto, que lhe será cobrado històricamente por êste País cuja vocação democrática é de todo incontenível e incoercível (sic) (Ibidem, p.11).
Em 11 de outubro de 1968, o Supremo Tribunal Federal encaminhou à Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados um pedido de licença para processar o
deputado Marcio Moreira Alves, alegando que o deputado em seus discursos de 2 e 3 de
setembro havia ofendido e desmoralizado as Forças Armadas, além de “atentar contra a
ordem democrática e as instituições nacionais” (Arquivo do CPDOC – FGV). Começava aí a
batalha em torno da cassação do mandato do deputado Márcio Moreira Alves e da própria
sobrevivência do Congresso que se arrastou até 12 de dezembro de 1968.
A sucessão de fatos históricos, as tensões entre os blocos internacionais, entre os
setores da sociedade brasileira, entre os partidos políticos que bem ou mal as representam, o
golpe militar, a contestação ao golpe e a influência ideológica vinda do exterior, a tensão na
Câmara Federal, etc., constituem um percurso histórico que serve aqui não só para
contextualizar os discursos que analisaremos em nosso terceiro capítulo, mas também para
realçar a magnitude do episódio Márcio Moreira Alves, da sessão deliberativa de 12 de
dezembro de 1968, dos pronunciamentos sob análise e do Ato Institucional nº 5.
Os pronunciamentos sob análise não são simples discursos irrompidos em um certo
momento e em um certo lugar, mas sim resultado de uma sucessão de outros discursos que o
antecederam. O contexto sócio-histórico não pode ser compreendido como apenas um
envelope que guarda os discursos, pois ele também é criação de discursos.
pronunciamentos parlamentares de até vinte e cinco minutos para cada orador, incluídos aí os eventuais apartes concedidos.
88
6. A SESSÃO DELIBERATIVA DE 12 DE DEZEMBRO DE 1968
Conforme o glossário da Câmara dos Deputados Federais, a sessão deliberativa
caracteriza-se como uma “sessão ordinária ou extraordinária em que há pauta ou Ordem do
Dia designada pela Presidência da Casa legislativa”, diferentemente da sessão de debates à
qual não é “designada pauta ou Ordem do Dia”. Assim, como atesta o fac-símile da
publicação original, estamos diante de uma sessão deliberativa:
Isso posto, a Ordem do Dia estava voltada para a votação do pedido de concessão de
licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves, sendo que a votação favorável
suspenderia seu direito à inviolabilidade e culminaria na cassação de seu mandato.
Recapitulando, esse pedido chegou à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
Federal por encaminhamento do Superior Tribunal Federal, em decorrência de o Presidente da
República – Mal. Arthur da Costa e Silva – ter recebido uma representação dos três Ministros
das Forças Armadas que solicitavam “providências sobre o problema criado”, pois entendiam
que os pronunciamentos feitos pelo deputado Márcio Moreira Alves em 2 e 3 de setembro de
1968 ofendia e desmoralizava as Forças Armadas.
Assim, o desfecho dessa crise política e institucional dependia de uma decisão da
Câmara Federal, que, na sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968, negou o pedido de
concessão de licença solicitado pelo governo militar. Numa resposta imediata, o regime
concluiu a chamada “Revolução de 31 de março de 1964”, editando o Ato Institucional nº 5
na noite de 13 de dezembro.
Passemos à transcrição dos pronunciamentos realizados pelos deputados Márcio
Moreira Alves (considerado o pivô da crise), Mário Covas Júnior (líder da oposição) e
Geraldo Freire (líder da situação), já que os fac-símiles, juntados em anexo, apresentam pouca
legibilidade. Lembramos ainda que os critérios para composição do corpus estão expostos na
introdução deste trabalho.
89
6.1. Transcrição do pronunciamento de Márcio Moreira Alves (MDB/GB)
6.1.1. Primeira parte: o exórdio
Sr. Presidente, Srs. Deputados, marcou-me o acaso para que me transformasse em
símbolo da mais essencial das prerrogativas do Poder Legislativo. Independente do meu
desejo, transmudaram-me no símbolo da liberdade de pensamento, expressa na tribuna desta
Casa. Sei bem que a prova a que me submeteram está muito acima de minhas forças e de
minha capacidade. Mas transcendeu, a causa que a Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu
mandato, aos partidos. É incômoda e angustiante a posição que me tocou. Suporto-a sem
temor, embora não merecesse a honra de simbolizar a liberdade de toda a Casa do Povo. As
grandes causas exemplares, que na vida das nações firmam as garantias da democracia,
sempre ultrapassam os que as tenham motivado.
6.1.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio40
A impessoalidade das conquistas do direito é uma das mais belas realidades da luta
dos povos pela liberdade. O nome dos barões que, nas pradarias do Windsor, fizeram o Rei
João Sem Terra assinar a Magna Carta, perdeu-se nas brumas do tempo. Mas o julgamento
por jurados, o direito de os cidadãos de um país livremente atravessarem as suas fronteiras, a
necessidade de lei penal anterior e de testemunhas idôneas para determinar uma prisão,
continuar a ser imorredouro monumento àqueles homens e a todos os homens. Esqueceram as
gerações modernas as violências de Henrique VII de Inglaterra, porém todas as nações do
Ocidente incorporaram às suas tradições jurídicas a medida legal que durante seu reinado e
contra ele firmou-se o habeas corpus. Até mesmo as decisões iníquas podem ser fonte de
liberdade. Ninguém sabe ao certo onde jazem os restos do escravo Dred Scott; contudo, a
decisão que a Côrte Suprema Norte-Americana tomou, mantendo-o escravo, foi o estopim da
libertação de todos os negros da América do Norte.
40 No plano clássico, essas duas partes se distinguem, entretanto isso não ocorre tão claramente nesses três pronunciamentos parlamentares, em que a narratio e a confirmatio vão se alternando até que chegue o epílogo.
90
Assim poderá ser, também, neste caso. Apagado o meu nome, apagados os nomes de
quase todos nós da memória dos brasileiros, nela ficará, intacta, a decisão que breve a Câmara
tomará. Não se lembrarão os pósteros do Deputado cuja liberdade de exprimir da tribuna seu
pensamento é hoje contestada. Saberão, todavia, dizer se o Parlamento a que pertenceu
manteve sua prerrogativa de inviolabilidade ou se dela abriu mão. A verdade histórica é que
os homens passam, mas os direitos que uma geração estabelece, através de suas lutas, às
outras gerações são legados, pouco a pouco criando o patrimônio comum das leis, garantias e
liberdades de uma nação.
Não se julga aqui um deputado; julga-se uma prerrogativa essencial do Poder
Legislativo. Livre como o ar, livre como o pensamento a que dá guarida deve ser a tribuna da
Casa do Povo. A Constituição proíbe que se tente abolir a Federação e a República. No
entanto, os parlamentares podem defender da tribuna a monarquia e o estado unitário. A
liberdade de expressão no Congresso terá de ser total para que o Congresso sobreviva. Muitas
vezes, em períodos conturbados de nossa história, e ainda recentemente, Deputados
discursaram em defesa de um regime de exceção. Os deputados argelinos, malgaches e
africanos reiteradamente reclamaram da tribuna da Assembléia Francesa e a independência de
seus países. Fizeram o mesmo os irlandeses na Câmara dos Comuns, sem que houvessem
sofrido sanções. Os parlamentares sulistas defendem no Congresso Norte-Americano a
segregação racial que a Côrte Suprema colocou fora da lei. E nos Estados Unidos, que têm, no
Vietnã, 600 mil de seus melhores soldados, incontáveis são as manifestações de
representantes do povo contra a guerra. Pode um Deputado pronunciar um discurso que não
conte com o apoio de um só de seus colegas. O fato de poder proferi-lo livremente não quer,
entretanto, dizer que a Câmara a que pertence é solidária com os conceitos que emitiu.
Simplesmente significa que a Câmara existe, que é um poder independente e que garante a
seus membros a liberdade de palavra e opiniões.
A lição dos mestres sobre a inviolabilidade da tribuna parlamentar é inexaurível.
Nenhum dos comentaristas das Constituições que o Brasil já teve sequer admite discuti-la. Os
autores citados pelo Sr. Ministro da Justiça, ou do assunto não tratam, ou dele tratam, como é
o caso de Raul Machado Horta, para afirmar o que também afirmamos: a inviolabilidade é
irrenunciável, pois que ao Deputado não pertence e, sim, a todo o Congresso.
91
Procura-se criar, em torno da concessão ou não de uma licença para que se prossiga
um processo a respeito do que muito bem chamou o nosso professor de deveres, Deputado
Djalma Marinho, “delito impossível”, uma crise institucional. Pudesse eu evitar esta crise
abrindo mão de meus direitos, certamente o faria. Não creio que as crises que cada vez mais
freqüentemente sacodem a imperfeita e injusta estrutura constitucional brasileira possam ser
removidas pelo sacrifício de um, de dois, de dez ou de todos os Deputados. Transcendem elas
ao Congresso, aos mandatos e aos representantes do povo. São, antes, originárias de abusos de
poder que do exercício de direitos. Estão fundamente fincadas na própria Constituição de
1967, no gigantismo das atribuições do Executivo, no afastamento do povo dos governantes,
que não escolhe, na desigualdade de participação nas riquezas nacionais, nas ameaças à
soberania nacional que a todo momento sentimos. Entretanto, isto não me é dado fazer. Não
se discute, na espécie, o que pertence ao Deputado, ou seja, a sua imunidade processual.
Discute-se o que pertence à Câmara, ou seja, a inviolabilidade da sua tribuna, das suas
comissões, das suas votações.
O Ministro da Justiça, movido por misteriosas pressões e por um pertinaz desejo de
atacar o Congresso Nacional, surge, com a sua representação, perante o povo brasileiro, tal
como Shylock apareceu diante do Doge de Veneza com a confissão de dívida do mercador
Antônio, que lhe permitia tirar bem junto ao coração da vítima uma libra de carne. Não há
apelo que o aplaque, não há violência que o estarreça, não há razão que o emocione, nem
pedido que o abale. Quer, por força e a todo custo, retirar de junto do coração do Poder
Legislativo o preço que acredita ser-lhe devido.
Mas, tal como ao mercador de Veneza era impossível receber o que lhe deviam sem
romper a lei, derramando o sangue de um cristão, é também impossível ao Ministro da Justiça
receber o mandato de um Deputado sem causar a definitiva hemorragia no Poder Legislativo.
Todos nós aqui chegamos pela confiança que recebemos de uma parcela do povo
brasileiro, manifestada pelo voto secreto em eleições diretas. Esta confiança não é gratuita.
Representa o compromisso que assumimos com o pensamento e os interesses daqueles que
nos elegeram para que aqui exprimíssemos os seus anseios. Assim entendo e procuro viver o
meu mandato. Os que em mim votaram não o fizeram iludidos. Sabiam quem eu era e por isso
me escolheram. O que pensava a respeito dos tempos que vivemos no Brasil, a visão que
tenho do futuro ao qual devemos aspirar, tudo isto era conhecido de forma clara e precisa,
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pois que minhas opiniões longamente as expusera, através de livros, de discursos, de
programas de televisão e, sobretudo, de uma longa e diária presença na imprensa.
Que visão é esta? Creio poder encontrar as suas raízes em uma profecia de Isaías:
“Pois eu vou criar novos céus e uma nova terra. O passado não será mais lembrado,
não volverá mais ao espírito, mas será experimentada a alegria e a felicidade eterna daquilo
que vou criar... Serão construídas casas que se habitarão, serão plantadas vinhas das quais se
comerá o fruto. Não mais se construirá para que outro se instale, não mais se plantará para que
outro se alimente. Os filhos de meu povo durarão tanto quanto as árvores, e meus eleitos
gozarão do trabalho de suas mãos. Não trabalharão mais em vão, não darão mais à luz filhos
votados a uma morte repentina.”
É por um mundo assim que batalhamos. É por um Brasil assim que não tememos o
sacrifício. O que prego, desde o princípio de minha vida pública, nesta Casa e fora dela, é o
estabelecimento de uma sociedade justa, onde todos possam viver livremente. Livremente
exprimindo suas opiniões e tendências e recebendo oportunidades iguais de desenvolverem os
seus dotes humanos, sem sofrerem qualquer restrição por motivo de cor, de crença e,
sobretudo, de disparidades de fortuna. Assim entendo deva ser este País internamente, como
entendo ainda que externamente deva ser soberano, sem filiar-se a blocos internacionais
políticos ou militares, sem de nação alguma, por mais poderosa que seja, receber o ditado do
seu comportamento e sem que os agentes de qualquer nação, ainda que poderosa e amiga,
possam em seu desenvolvimento influir determinantemente. Acredito que todos nós tenhamos
uma responsabilidade direta na construção da paz social, como da paz internacional,
responsabilidade esta que é tanto maior quanto maiores forem os instrumentos de cultura, de
fortuna e de poder de que cada um disponha.
É-me lembrado freqüentemente, nesta Casa, por amigos que à minha responsabilidade
apelam, por adversários que me procuram julgar, que sou um dos privilegiados da sociedade
brasileira. É verdade. Tenho disto a mais profunda e pesada noção. Procuro por isso,
transformar o que de mais eficaz os privilégios me deram, ou seja, a possibilidade de acesso
aos bens da cultura, que a noventa por cento dos brasileiros é negada, em um instrumento que
permita aos despojados de hoje serem os participantes do amanhã. Quero crer, tal como Dom
Antônio Fragoso expressou em uma carta recentemente publicada nos jornais, que nos cabe
conscientizar o povo da realidade que o cerca a fim de que, dispondo de todos os elementos
93
necessários ao julgamento, possa ele fazer livremente a opção pelo sistema social e
econômico que às suas aspirações mais perfeitamente atenda.
Toda minha vida política foi e é norteada no sentido de poder eu prestar minha
colaboração à tomada de consciência do povo brasileiro quanto à sua própria realidade.
Sr. Presidente, não defendo o mandato que recebi para furtar-me à responsabilidade de
responder por minhas palavras e opiniões. Nunca deixei de ser por elas pessoalmente
responsável, como jamais deixei de exprimi-las. Ataquei governos e poderosos quando a
proteger-me tinha apenas a inviolabilidade de minha consciência. Nas trincheiras da oposição
passei minha vida de jornalista. Não abdiquei do meu dever de opinar quando muitos calavam
e o Presidente da República podia suspender arbitrariamente direitos políticos.
Por que luto, então? Luto por solidariedade a esta Câmara, livre de pressões e
ameaças. Luto por solidariedade a todos e a cada um dos deputados, cujo dever de dizerem o
que pensa – ainda que pensem de modo totalmente contrário às minhas opiniões – querem
cassar. Luto porque cedo aprendi a respeitar a Câmara dos Deputados e, depois de a ela
pertencer, aprendi a amá-la. Luto porque quero a Câmara aberta e digna. Quero que daqui
saiam as leis e as reformas que reconstruirão no Brasil a democracia e estabelecerão a justiça
social. Quero que o Congresso recobre algumas das sua prerrogativas perdidas e conserve as
que preservou.
Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que virão.
Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável. Os que pensam em aplacá-lo
hoje, com o sacrifício de um parlamentar estarão apenas estimulando a sua voracidade.
Buscam os inimigos do próprio Congresso um pretexto. Acusam-me de injuriar as
Forças Armadas. Nos processos penais de injúria a ação é liminarmente suspensa quando o
acusado nega o seu ânimo de injuriar, e o acusador aceita a explicação. Nego aqui e agora que
haja, em qualquer tempo ou lugar, injuriado as Forças Armadas. As classes militares sempre
mereceram e merecem o meu respeito. O militarismo, que pretende dominá-las e
comprometer-lhes as tradições democráticas, transformando-as em sua maior vítima, esse
militarismo – deformação criminosa que a civis e militares contamina – impõe-se ao nosso
repúdio.
94
6.1.3. Última parte: o epílogo
Finalizo, Sr. Presidente, na esperança de que as angústias e sofrimentos que
atravessamos possam servir para o engrandecimento do Congresso e a liberdade da Pátria. Os
últimos dias foram pródigos em exemplos e lições. Um homem modesto, suave e tranqüilo
mostrou ao Brasil que no momento da verdade transforma-se a dignidade no cinzel que
esculpe o herói. Djalma Marinho soube recusar as honras para ficar com a sua consciência.
Juntamente com seus companheiros de partido, que foram expurgados da Comissão de Justiça
em nome de ideais a que se conservam fiéis, personifica a independência da Câmara. Vindo
de outro Rio Grande, onde o sangue dos peleadores firmou as fronteiras da Pátria, Daniel
Krieger mostrou que estão vivas as tradições de bravura dos gaúchos. É o verdadeiro e digno
irmão do cavaleiro andante Brito Velho.
Entrego-me agora ao julgamento dos meus pares. Rogo a Deus que cada um saiba
julgar, em consciência, se íntegra deseja manter a liberdade desta tribuna, que livre recebemos
das gerações que construíram as tradições políticas do Brasil. Rogo a Deus que mereça a
Câmara o respeito dos brasileiros, que possamos, no futuro, andar pelas ruas de cabeça
erguida, olhar nos olhos os nossos filhos, os nossos amigos. Rogo a Deus, finalmente, que o
Poder Legislativo se recuse a entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo da sua
degola. Volta-se o Brasil para a decisão que tomaremos. Mas só a História nos julgará.
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6.2. Transcrição do pronunciamento de Mário Covas (MDB/SP)
6.2.1. Primeira parte, o exórdio
Sr. Presidente, permita V.Exa. e os meus pares que eu reivindique, inicialmente, um
privilégio singular: o de despir-me da roupagem vistosa da liderança transitória, com que
companheiros de partido me honraram, para falar na condição de membro desta Casa, sem
outra representação senão outorga oferecida por aqueles que para cá me enviaram. Será,
talvez, um desvio regimental concedido, entretanto, plenamente compreensível, já que a causa
que somos obrigados a apreciar sobrepaira, superpõe-se às próprias agremiações partidárias.
Em sua análise, o coletivo domina o individual, o institucional supera o humano, a
impessoalidade há de ser o traço marcante, eis que, hoje, esta Casa está sendo submetida a
julgamento. Recolhida ao banco dos réus, aguarda o veredicto que será exarado pelos próprios
ocupantes.
Discute-se validade de uma das suas mais caras prerrogativas, instrumento essencial
de seu funcionamento como poder, que é a inviolabilidade. Impugna-se seu caráter absoluto,
impondo-se-lhe restrições que a transformariam em princípio abstrato. Intenta-se, pelo dúbio
caminho do transitório que somos nós, alienar algo que, por ser propriedade da instituição, é
permanente. Contesta-se, sob o império da razão política, uma prerrogativa da qual não temos
o direito de abdicar, porque, vinculada à tradição, à vida e ao funcionamento do Parlamento, a
ele pertence, e não aos parlamentares. Para isto, investem contra a Constituição exatamente
aqueles que proclamam a sua excelência que exaltam suas virtudes e que sustentam a sua
imutabilidade.
Há alguns anos, Sr. Presidente, as atenções da nação brasileira eram convocadas com
o envio à Câmara dos Deputados de um pedido de licença para processar um parlamentar, sob
a acusação de tornar público documento considerado secreto. Durante a discussão do pedido,
o acusado, em longo discurso, inseriu estas considerações: “Um deputado converteu-se, por
decisão do Governo da República, no teste decisivo do funcionamento das instituições
democráticas do Brasil”. Hoje, em episódio dotado de igual grau de emotividade, com
semelhante dose de expectativa e com idêntico teor da ressonância, as instituições
democráticas são postas à prova, testadas em sua fortaleza, pesquisadas em sua soberania,
perquiridas em sua independência.
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A acusação é o crime de injúria a uma instituição – as Forças Armadas. A arma, a
palavra. O instante: os dias em que atingiu o clímax, a alta tensão emotiva emergente dos
episódios relacionados com a invasão da Universidade de Brasília.
Creio, Sr. Presidente, ser necessário um exame do problema, ainda que dentro das
limitações do tempo regimental, sob vários aspectos.
6.2.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio
O primeiro deles é o jurídico, evidentemente. Diria, entretanto, sem pretender
escandalizar, ser ocioso o enfoque sob tal prisma, não apenas por faltarem ao orador os
conhecimentos requeridos para tanto, como, sobretudo, porque tão copiosas, lentas e
irrespondíveis foram as torrentosas argumentações contrárias à concessão da licença nesta
Casa exibidas, que se exauriu a doutrina de forma cabal e irretorquível. E, não fora a cultura e
os dotes oratórios e retóricos de que são portadores os que por esta tribuna ou pela Comissão
de Constituição e Justiça desfilaram seus inesgotáveis conhecimentos, não fora o brilho e
teriam corrido o risco de transformar este debate num fastidioso monólogo, (dada?) a ausência
de defensores para sustentar a validade jurídica da concessão da licença. Por mais que recorra
à memória, e mesmo com o risco de involuntariamente cometer omissões, foge-me à
lembrança a presença de defensores da concessão. Não que lhes faltem recursos intelectuais.
Pelo contrário. É a própria debilidade da tese, é o próprio absurdo da pretensão que lhes anula
os argumentos, lhes minimiza a presunção, lhes condiciona a formulação jurídica.
Há uma constante neste problema, e o desenrolar dos acontecimentos o evidencia.
Muitos tentam justificar o voto; outros pleiteiam a validade da tese. Creio, entretanto, que em
todo o elenco de autoridades, em todo o rol de fontes citadas, um nome foi esquecido. As
razões desconheço. Porém, minha condição de engenheiro certamente me absolverá, se,
inspirando-me em sua lição, a tomar para guia e orientação. Trata-se do atual ocupante do
Ministério da Justiça, o Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. Leio-lhe um parecer a respeito
deste problema; e este parecer está exarado num outro processo, em curso nesta Casa, em que
solicita a licença para processar o Deputado Hermano Alves.
Eis S.Exa. em seu ofício ao Procurador da Justiça Militar:
97
“Realmente os artigos publicados pelo citado parlamentar configuram,
indubitavelmente, violações dos preceitos expressos nos artigos 14, etc., do Decreto-Lei 314,
porque:
a) por sua falsidade, tendenciosidade e deturpação põe em perigo o bom nome, a
autoridade e o prestígio do Brasil;
b) constituem atos destinados à guerra revolucionária ou subversiva;
c) ofendem a honra e a dignidade do Exmo. Sr. Presidente da República diretamente
ou através de seus Ministros de Estado e auxiliares;
d) incitam, publicamente, a subversão da ordem política e social e animosidade entre
as instituições civis e as Forças Armadas”.
Mais adiante, conclui S.Exa, de forma límpida e cristalina a orientar-nos no atual
problema.
“No tocante, porém, aos discursos proferidos na tribuna da Câmara dos Deputados,
não se afigura, in casu, exista qualquer delito, diante da indenidade assegurada do Art. 34,
caput, da Constituição, e porque o abuso do direito político praticado, sem dúvida, pelo
incontinente Deputado não atenta contra a ordem democrática nem visa à prática de
corrupção, e somente quando o abuso do direito tende a esses objetivos ou a qualquer deles,
se justifica a medida prevista no art. 151 da Lei Maior.”
Creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados, que a frente poderá ser contestada. Eu
entretanto me auto-absolvo, porque, sendo engenheiro, acho inteiramente válido consultar a
figura do Ministro da Justiça neste episódio, desta natureza.
Mas, Sr. Presidente, ouço sustentar que não só o argumento jurídico teria razões para
este procedimento. Aqui e ali, ouço que, ao analisar o problema sob o ângulo político,
diferente será o comportamento de cada um de nós.
Ainda aí, sustento eu, o individual não pode prevalecer sobre as prerrogativas da
Instituição.
Um Poder soberano não delega, não transfere, é ele próprio Juiz de seus atos. Há de ter
a independência e a grandeza de manter essa condição inalienável. E o Poder Legislativo,
exatamente para reservar-se essa condição, sabiamente estabeleceu limitações regimentais
para a inviolabilidade, fixando o Poder de Polícia pelo próprio órgão diretor da Casa.
98
Ora, sendo o Legislativo, por definição constitucional, um Poder independente, juiz,
portanto, de seus próprios atos, e dispondo de instrumental necessário ao exercício dessa
competência, infere-se uma conclusão iniludível: concedendo a licença, o Poder Legislativo
se estará autocondenando, pelo crime de omissão.
Mas, Sr. Presidente, haveria aqueles que sustentariam que seria possível vislumbrar
razões de natureza moral ou ética a justificarem a concessão.
Aos que assim se resguardam, conveniente seria lembrar que, de 1946 a esta data,
dezenas de pedidos de licença foram encaminhados a esta Casa para processar parlamentares.
Várias acusações formuladas, capituladas nos mais variados artigos do Código Penal.
Entretanto, mesmo em ocasiões em que o Deputado abria mão de suas franquias, solicitando
mesmo a concessão, a Câmara invariavelmente adotou idêntica conduta – a negativa –
sustentada por um mesmo princípio: a imunidade parlamentar.
Agora, acusa-se um Deputado de pretenso crime político. Não vejo como,
moralmente, se possa sustentar a concessão, sem que a Câmara incida numa mesquinha
exibição de intolerância e incoerência, desnudando-se, em vista dos precedentes, num
farisaísmo abominável.
São insuficientes os exemplos da nossa tradição. Ater-me-ei a apenas dois exemplos,
legados por outros povos. É da “Jurisprudência Parlamentar”, de Frederico Mohrhoff –
autorização para instaurar processo contra Deputados, página 346:
“Autorização para instaurar processo contra Deputado Dias Laura pelo crime previsto
no art. 290 do Código Penal, modificado pelo art. 2 da lei 1317, de 11 de novembro de 1947.
(Menosprezo às forças armadas do Estado).”
A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não concedeu o
pedido de autorização para processar.
Página 359:
“Autorização para processar o Deputado D’Amico pelo crime de que trata o art. 272
do Código Penal (propaganda e apologia subversiva ou antinacional).”
A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não concedeu o
pedido de autorização para processar (sic).
Eis aí dois exemplos legados pelo Parlamento italiano em casos específicos. As
invectivas contra instituições, contra as Forças Armadas do Estado não encontraram, por parte
99
daquele Parlamento, a licença para processar o Deputado. Porém, Sr. Presidente, creio que o
enfoque ético nos oferece ainda outro tema para nossa meditação.
Tem o Poder Legislativo o direito de transferir a outro Poder um problema que,
surgindo no seu âmbito, da sua competência, o colocará em confronto com outros poderes e
instituições? É possível que o faça. Mas, neste instante, já não será um Poder. Seus
componentes já não existem mais, exercerão a função pública, mas terão sido transformados
em funcionários públicos.
Resta-nos, Sr. Presidente, o argumento dos simplistas: trata-se de uma exigência. As
Forças Armadas impõem uma reparação, atingidas que foram em seus brios. Se esta
afirmação fosse verdadeira – o que contesto – eu diria que ela apresenta uma deformação
originária: não é possível desagravar uma instituição pelo caminho inviável do desrespeito a
um Poder. Para que tenha significação e validade, a manifestação de apreço desta Casa ou de
qualquer dos seus membros a qualquer instituição, necessário se faz que ela se auto-respeite.
Que conceito se faria de um chefe de família que, para exaltar as virtudes de seu
vizinho, aviltasse o procedimento de seus filhos? O elogio, sob o império da subserviência,
transforma-se em bajulação. Seu valor está na dimensão moral e na autoridade de que de
quem o manifeste.
Mas, Sr. Presidente, – e aí reside o motivo de minha contestação inicial – tenho
convicções muito fortes a negar essa afirmação. Posso invocar em meu favor a prova
documental, o testemunho idôneo ou o retrospecto histórico.
Como prova testemunhal, leio o teor do oficio do Ministério do Exército, solicitando
as providências legais.
Diz S.Exa.:
“O Deputado Federal Márcio Moreira Alves, em sessão de 2 do corrente, falando a
respeito dos lamentáveis e tristes acontecimentos ocorridos na Universidade de Brasília, no
seu legítimo direito de adversário do Governo, formulou, em termos textuais, a seguinte
pergunta.”
Mais adiante:
“O mesmo Deputado, ainda sob o clima emocional pelos fatos gerados, antes mesmo
que fossem apuradas as causas e os responsáveis, assim se pronunciou:”
Prosseguindo:
100
“Embora os referidos conceitos, de caráter e de responsabilidade pessoal do Deputado
em apreço, no uso da liberdade que lhe é assegurada pelo regime instituído com a revolução
de março, não exprimam o pensamento da Câmara mais preservativo do povo brasileiro, na
sua dignidade intangível e na respeitabilidade do seu próprio decoro, é de considerar-se a
ressonância com que eles ecoam no seio do Exército”.
E finaliza:
“A despeito da gravidade evidente das ofensas dirigidas pelo Deputado Márcio
Moreira Alves e do sentimento de repulsa com que elas ainda mais uniram os militares, como
integrantes de uma instituição a que tanto já deve a democracia brasileira, o Exército continua
empenhado em contê-las dentro da disciplina e da serenidade das suas atitudes, obediente ao
Poder Civil e confiante nas providências que V.Exa. julgue devam ser adotadas”.
Se preferirem o testemunho idôneo, dir-lhes-ei que ao longo deste episódio em contato
não apenas com civis de todas as categorias, como com militares de variadas patentes, tenho
ouvido insistente e ansiosamente repetida a afirmação de que não sobrarão outras
oportunidades para que o Poder Legislativo manifeste sua independência. É um imperativo
para que sua sobrevivência, ainda que risco houvesse, que preserve suas prerrogativas, que
resguarda sua majestade, que reitere sua soberania.
Porém, se isso ainda não bastasse, invoco o retrospecto histórico. Como acreditar que
as Forças Armadas brasileiras que foram defender em nome do povo brasileiro, em solo
estrangeiro, a liberdade e a democracia no mundo, colocassem como imperativo de sua
sobrevivência o sacrifício da liberdade e da democracia no Brasil?
6.2.3. Última parte: o epílogo
Eu, Sr. Presidente, por formação e por índole, um homem que fundamentalmente crê.
Desejo morrer réu do crime da boa fé, antes que portador do pecado da desconfiança. Creio na
Justiça, cujo sentimento, na excelsa lição de Afonso Arinos, é na noção de limitação de Poder.
Limitação bitolada por dois extremos: sua contenção para que não caia na prepotência, e seu
pleno exercício para que não se despenhe na omissão.
Creio no povo, anônimo e coletivo, com todos os seus contrastes, desde a febre
criadora à mansidão paciente. Creio ser dessa amálgama, dessa fusão de almas e emoções, que
emana não apenas do Poder, mas a própria sabedoria. E nele crendo, não posso desacreditar
101
de seus delegados. Creio na palavra ainda quando viril ou injusta, porque acredito na força das
idéias e no diálogo que é seu livre embate. Creio no regime democrático, que não se confunde
com a anarquia, mas que em instante algum possa rotular ou mascarar a tirania. Creio no
Parlamento, ainda que com suas demasias e fraquezas, que só desaparecerão se o
sustentarmos livre, soberano e independente. Creio na liberdade, este vínculo entre o homem
e a eternidade, essa condição indispensável para situar o ser à imagem e semelhança se seu
criador. Creio, Sr. Presidente, e esta minha crença mais se consolidou pelas últimas lições que
recebi, pois nunca é tarde para aprender, na honra, esse atributo indelegável, transferível por
ser propriedade divina.
Porque em tudo isso creio, Sr. Presidente, e protegido pelo resguardo de minhas
palavras iniciais, quero declarar minha firme crença de que, hoje, o Poder Legislativo será
absolvido.
Da altitude dessa tribuna, da majestade desta Mesa, da altivez deste plenário, as vozes
do gênio do Direito e da Deusa da Justiça podem ser ouvidas no seu patético apelo: não
permitais que um “delito impossível” possa transformar-se no funeral da Democracia, no
aniquilamento de um Poder e no cântico lúgubre das liberdades perdidas.
102
6.3. Transcrição do pronunciamento de Geraldo Freire (ARENA/MG)
6.3.1. Primeira parte, o exórdio
Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns
equívocos.
6.3.2. Segunda e terceira partes: a narratio e a confirmatio
O primeiro deles, é quando se diz que estamos procedendo à degola de um Deputado,
a cassação de um de nossos colegas. Não se trata absolutamente disto. O que temos em vista é
um pedido de licença dirigido pelo Supremo Tribunal Federal à Câmara dos Deputados. Então
quem entender que se trata de degola, necessariamente, há de estabelecer que os juízes do
Tribunal Superior Federal são carrascos e não magistrados. Trata-se porém de um foro
privilegiado perante o qual responde o próprio Presidente da República.
Está claro, a não mais poder, e todos os advogados que compulsam o Código de
Processo Penal o sabem, que quando o fato não constitui crime, quando se figura
evidentemente que o fato não constitui crime, a queixa, a representação, ou a denúncia não são
recebidas. Basta, então, que o Supremo Tribunal Federal tenha encaminhado o pedido para que logo
se conclua de que o fato não tem essa evidência de não constituir crime. Chegou até o nobre Relator
a estabelecer que há dúvidas e elas serão oportunamente desfeitas. O que temos em vista é que logo,
de uma vez por todas, fique esclarecido no juízo de cada qual isto: ninguém vai julgar. Esta Câmara
não é composta de juízes, é composta de políticos. O nosso voto é a respeito de sabermos se
vamos conceder ou negar uma licença para processo do Deputado, solicitada pelo Supremo
Tribunal Federal.
Poderia aqui fixar a lição de Manzini. Na justa apreciação de Manzini a autorização da
Câmara não constitui condição de perseguibilidade, mas de processabilidade. A Câmara não
julga, não condena, nem absolve. Seu papel é o de um poder político, nunca de um poder
juridicional.
O ato da Câmara é de sua autonomia política. Os motivos políticos hão de orientar a
decisão da Câmara. Concedida a licença, a imunidade se ausenta, restaura-se a vigência
normal do princípio fazendo desaparecer os privilégios. O representante do povo não é um
homem que possa sustentar privilégios e prerrogativas, porque o que recebemos dos nossos
eleitores são deveres para com este povo. E seria absolutamente incrível que nós votássemos
103
leis a que todos os cidadãos brasileiros fossem obrigados a obedecer, enquanto nós próprios
nos considerássemos semi-deuses, sujeitos a moral, ao bem e a verdade, superiores ao bem e
ao mal.
Nesse caso, Sr. Presidente, desfeito o primeiro equívoco, passamos para o segundo.
Afirma-se também que em havendo uma declaração do agente de que não teve a intenção de
injuriar, não há infração penal a punir.
Nada mais inexato, Sr. Presidente. Todos que militam no foro conhecem o Art.143 do
Código Penal que diz:
“O querelado que antes da sentença se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação,
fica insanto de pena.”
Aqui não se fala em injúria. Injúria não pode ter retratação, pode comportar pedido de
desculpas, nunca, porém, uma retratação. E o dolo da injúria se mede não pela declaração da
infração do agente, mas sim pela medida das próprias palavras empregadas. Ao juiz, como
julgador, é que cabe medir a responsabilidade e o alcance do dolo e não o próprio agente,
porque senão, pessoa alguma seria processada ou condenada por injúria.
Mas há outro equívoco. É que ninguém até agora falou em injúria.
Aqui está em causa o abuso de direitos políticos, abuso este que atenta contra a ordem
democrática. Não é injúria contra a instituição, contra as Forças Armadas ou contra militares,
o que há é um atentado contra a ordem democrática do Brasil, no qual o agente chega a
aconselhar o nosso povo que boicote a nossa independência. Se não houver abuso nisto, então
pergunto ao brasileiro: Onde está o abuso dos direitos, se nós desde meninos, com a nossa
mãe, depois com a nossa professora e mais tarde nas universidades e na nossa vida política,
todos aprendemos e ensinamos que a Pátria deve ser colocada acima de tudo. E se negamos
ou boicotamos a comemoração de nossa própria independência, mutilamos pelas raízes a
fonte da nossa própria nacionalidade? Então devemos reivindicar isso, quer dizer fazendo esta
ofensa pessoalmente, mas quando se pede processo perante o Supremo Tribunal Federal, o
processo então é contra a Câmara dos Deputados que não poderia ser conivente com esta
infração. É preciso que se restabeleça, Sr. Presidente, com toda tranqüilidade, a verdade dos
acontecimentos e dos comentários.
104
Outro equívoco. Falou-se a não mais poder e o fizeram dezenas de ilustres deputados,
a respeito do Art.34 da Constituição do Brasil. Mas não é este Artigo que está em jogo. Trata-
se do Art.151. Então dir-se-á que não atinge.
Então pergunto aos autores da Constituição, aos seus intérpretes autênticos: Por que se
fez o parágrafo único do Art.151? A lei não pode ter palavras inúteis. E isto qualquer
estudante do curso inicial de Direito sabe. Não podemos presumir inutilidade da lei, se o
parágrafo único do Art.151 declara expressamente que em se tratando de titulares de cargo
eletivo federal, o processo deve ser precedido de licença da respectiva Câmara.
Evidentemente.
Evidentemente está-se tratando de uma exceção ao princípio da inviolabilidade. Aliás,
este princípio não pode ser absoluto. Tudo na vida tem uma finalidade, e o principal método
de interpretação da lei é o teleológico: temos de olhar à distância, e ver a finalidade da lei
para, depois, dar-lhe aplicação exata. Digamos, para evocar a mais sábia de todas as leis,
quando no 5º Mandamento, Deus disse a Moisés: “Não matarás”, o legislador bíblico colocou
um ponto final. Então, vamos ver que a regra é absoluta. Ninguém pode matar, ninguém,
absolutamente ninguém. Vire-se a página e, logo adiante, nota-se a pena de Talião, olho por
olho, dente por dente. Aquele que matar será morto. E, possivelmente o homem mais genial
da humanidade até hoje, São Tomás de Aquino, chegou a dizer que matar em defesa própria é
um direito, porém matar em defesa de terceiro é um dever. Onde está o absolutismo da regra
contida no 5º Mandamento da mais sábia e da mais santa de todas as leis? Poderíamos evocar
todas as leis que se fazem no mundo, mas o que é preciso notar é o sentido da interpretação:
“não matarás” – para que a vida se poupe. Toda vez que a vida estiver ameaçada é lícito
matar. Às vezes é até obrigatório matar. Aqui também existe a inviolabilidade para que o
Deputado cumpra seu mandato. No exercício do mandato, o deputado é inviolável. Toda vez,
porém, que ele transborda, que ele foge às regras éticas, cívicas e patrióticas do seu próprio
procedimento, evidentemente que ele não pode chamar para si o direito de ofender a própria
Pátria, em cujo nome a Constituição foi feita. E o deputado não estará exercendo o seu
mandato quando, da tribuna em que deveria fazer pequenas comunicações, ele quebra a
harmonia dos poderes, insulta instituições que pertencem à outra esfera da administração
pública e vai ao ponto de negar a própria autenticidade da própria independência do Brasil.
105
Então, Srs. Deputados, citarei apenas – embora pudesse citar ainda outros autores, mas
muitos já se fizeram ouvir ou leram da tribuna – a opinião de um autor estrangeiro, o
Professor Juan Antonio Gonzales Calderon, de Buenos Aires, que diz: “A livre manifestação
de suas idéias” – do Deputado ou do Senador – “não exime o representante de
responsabilidade quando, num parlamento, calunia ou injuria o cidadão ou algum funcionário
público, pois a tribuna parlamentar não deve converter-se em meio da difamação impune para
ferir impunemente a honra daqueles, porque, em tal caso, se transforma em réu de delitos
comuns, e a Câmara poderá suspendê-lo de suas funções e pô-lo à disposição do juiz
competente”. O limite está marcado pela mesma Constituição, quando reconhece o privilégio
pelas opiniões e palavras que tal representante emite desempenhando seu mandato de
legislador. O nobre Deputado Mário Covas evoca o processo que, no passado, já ocupou a
atenção desta Casa. Completarei a citação de S.Exa., lembrando a lição do Relator Martins
Rodrigues, que disse o seguinte: “Mas nem é mister que essa inclusão seja expressa, porque
está implícito que a prerrogativa não deve prevalecer quando, em lugar de tutelar o legítimo
exercício do mandato, sirva para broquelar a sua deturpação, o seu uso irregular e indevido
ou, o que é mais grave, criminoso, porque se haverá de entender, por exemplo, que o
privilégio do mandatário possa permitir-lhes a provocação, o crime, o incitamento à desordem
e à rebelião, a pregação da indisciplina das classes armadas e a revelação de planos militares,
de campanhas, de segredos que interessam à defesa da Nação ou ao jogo, à política dos
Estados e que, uma vez devassados, importariam em ameaça à segurança do País e à paz
internacional”.
A inviolabilidade de parlamentar pelas palavras, opiniões e votos no exercício do
mandato, não significa, aliás, quando se lhe dê a inteligência, que ela requer a sua aplicação, a
irresponsabilidade absoluta do representante do povo. Ela implica nos justos limites em que
deve ser entendida em subtrair o membro da representação popular à censura e ao julgamento
de outro poder.
No final de seu relatório, diz ainda S.Exa.: “Seguimos, assim, a lição de Paulo de
Gusmão, para quem a imunidade parlamentar deve ser entendida como ligada ao exercício
normal do mandato e não ao exercício anormal ou abusivo.” Há outras palavras, que me
dispensarei de ler, porque está claro demais que no regime da Constituição de 1944 assim já
se interpretava. Mas, agora, a situação mudou muito. Vejamos. O Art.34 diz que o Deputado é
106
inviolável nas suas opiniões, palavras e votos. O Art.37 diz que o Deputado não é inviolável,
porque, toda vez que ele viola o decoro parlamentar, pode ter seu mandato cassado.
Que inviolabilidade é esta, na qual o indivíduo, exercendo-a, fica sujeito a perder o
próprio mandato? E no caso, o juiz é a própria Câmara.
Mas o Art.151 diz que todo aquele – note-se bem – seja Deputado, trabalhador rural,
operário de fábrica, seja homem formado ou inculto – porque nesta Pátria não há privilégios –
todo aquele que abusar dos direitos políticos, atentando contra a ordem democrática ou
praticando corrupção, fica sujeito à perda desses direitos, à suspensão desses direitos, por dois
a dez anos, mediante declaração do Supremo Tribunal Federal e sob representação do
Procurador-Geral da República.
Vale dizer, nosso privilégio existe no foro do julgamento, mas não podemos elevar as
prerrogativas do Deputado em fonte de crimes e impunidades.
Sr. Presidente, muitas e outras coisas caberia retificar. Por exemplo, o nobre Líder do
Governo, Deputado Mário Covas, disse que nenhuma vez se levantou aqui na defesa do
pedido de licença. É natural que S.Exa., como eu, bem estivesse ocupado nos trabalhos da
Comissão de Justiça. É natural que não se possa acompanhar as dezenas ou – quem sabe? – as
centenas de pronunciamentos desta Casa. Não os acompanhei a todos. Confesso-me, assim,
tão mal informado como S.Exa. Mas, pessoalmente – e quero dizer pessoalmente, porque vou
omitir muitos dos nomes que não tive tempo de ouvir ou de acompanhar nos pronunciamento
que se fizeram – apontarei apenas os que ouvi: Arnaldo Cerdeira, Raimundo de Brito, José
Lindoso, Américo de Sousa, Clóvis Stenzel, Benedito Ferreira, Cantídio Sampaio, Heitor
Dias, Carlos Quintela. Devemos acrescentar, por certo, outros nomes, mas estes se fizeram
ouvir aqui, mestrando, com toda sua manifestação política e jurídica, a validade da tese que
defendemos.
Se não houve mais Deputado da ARENA na tribuna, é porque a nós interessava julgar
o caso e não haveríamos de contribuir com obstrucionismo para chegar ao fim dele.
6.3.3. Última parte: o epílogo
Sr. Presidente, eu louvo não apenas aqueles que me acompanharam, louvo a unidade
monolítica demonstrada pelo MDB. Lembro-me que na Comissão de Justiça o nobre
Deputado Erasmo Martins Pedro, defendendo uma preliminar levantada pelo nobre Relator
107
Lauro Leitão, depois de elaborar magníficos conceitos jurídicos, terminou votando a favor
daquela preliminar, mas avisando bem: Se a minha bancada, entretanto, pensar o contrário,
para que não haja quebra de unidade, eu acompanharei a bancada.”
Louvo aqueles que pensam contra mim, louvo esta estreita fidelidade partidária do
MDB. Vou mais, Sr. Presidente, não ouso censurar a ninguém pelo fato de discordar de mim,
esteja em que legenda for. Mas, Sr. Presidente, eu ia dizendo que me enchia de orgulho, se
orgulho fosse permitido a um cristão, mas na unidade da minha condição pessoal, ergo-me
num desvanecimento de gratidão imensa a Deus, porque nestes dias tumultuosos e
passageiros, me fez líder de um grupo de homens desabusados e dignos, coerente e puros,
bravos e patrióticos que aqui vieram arrostando todas as dificuldades para sustentar esta causa
que é patriótica e política, mas perante cuja jurisdicidade, legitimidade e constitucionalidade
nós não temos do que nos corar.
Sr. Presidente, a hora é decisiva. Há pressões, sim. Há pressão de certa imprensa que
procura alardear o voto daqueles que entendem rebeldes e procura diminuir aqueles que se
consideram fiéis à sua própria formação. Há pressão dos partidos políticos, mas existe a
pressão autêntica, que é obedecida por mim e por companheiros que me acompanharam, sem
desdouro daqueles que votam contra mim, ou contra vossa causa, que é, Sr. Presidente, a
pressão da nossa consciência.
108
CAPÍTULO III
ANÁLISE DOS PRONUNCIAMENTOS
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
Carlos Drummond de Andrade
É importante anunciar como apresentaremos as análises dos pronunciamentos dos três
deputados que protagonizaram a sessão deliberativa de 12 de dezembro de 1968.
Cada pronunciamento será analisado separadamente conforme a ordem em que foram
proferidos. Assim, examinaremos, na seção 7, o pronunciamento do deputado Márcio Moreira
Alves (MDB/GB); na seção 8, o pronunciamento do deputado e líder da oposição Mário
Covas Júnior (MDB/SP); e na seção 9, o pronunciamento do deputado e líder do governo
Geraldo Freire (ARENA/MG).
Cada uma dessas seções comportará quatro subseções nas quais observaremos:
• as projeções da enunciação no enunciado;
• a heterogeneidade enunciativa;
• a cenografia;
• a caracterização do ethos.
Como o fenômeno da argumentação será considerado no interior de cada subseção ao
lado dos demais fenômenos, não vimos razão para lhe dedicar uma subseção.
Dessa maneira, a primeira subseção de cada análise – as projeções da enunciação no
enunciado – abarcará dois estudos, sendo um dedicado à dêixis lingüística e outro às
modalidades epistêmicas. Mas, antes de continuarmos avançando, é necessário fazer algumas
acomodações.
Recordemos que no primeiro capítulo deste trabalho nos demoramos um pouco para
expor os postulados teóricos de Benveniste acerca da dêixis lingüística, enquanto fomos mais
109
ligeiros ao apresentar os seus desdobramentos atuais. Isso porque a contribuição de
Benveniste foi fundadora para os estudos da enunciação e, assim, o atual estado de
refinamento dos modelos teóricos se deve ao gesto inaugural de Benveniste. Feita a ressalva,
devemos advertir que a análise da dêixis lingüística se apóia no modelo teórico formulado por
Fiorin em sua As astúcias da enunciação, porque, embora enuncie a partir de uma outra
perspectiva teórica que não a da Análise do Discurso, o autor tem como ponto de partida a
obra de Benveniste e, além disso, o seu modelo é elaborado de um modo mais sistemático e
aprofundado do que aquele apresentado por Maingueneau (2002, p.113-123), o qual distingue
o plano embreado do plano não embreado da enunciação. Não se trata aqui de fazer uma
crítica ao modelo de Maingueneau, mas sim de, entre dois modelos teóricos que partem do
mesmo discurso fundador (Benveniste), fazer uma opção metodológica por aquele que
abrange com mais amplitude o fenômeno lingüístico em questão.
Isso posto, iremos concentrar nossa atenção, principalmente, sobre os dêiticos da
categoria da pessoa a fim de verificar como os efeitos de sentido de proximidade subjetiva e
de distanciamento objetivo se comportam nos pronunciamentos e quais os tipos de contratos
enunciativos que eles estabelecem entre enunciador e co-enunciador.
Quanto às modalidades epistêmicas, parece-nos que não há ressalvas a fazer, bastando
apenas dizer que buscaremos aí verificar como a manifestação lingüística, implícita ou
explícita no enunciado, das modalidades do crer e do saber pode revelar o comportamento
epistêmico do enunciador situado em um ponto do contínuo que vai da certeza à incerteza.
Já a segunda subseção de cada análise – a heterogeneidade enunciativa – será dedicada
às formas do discurso citado. O objetivo aí é verificar como a recorrência a essas formas
auxilia na construção do ethos, bem como revela a maneira de o enunciador negociar com a
sua alteridade com vistas à construção de sua identidade discursiva.
Na terceira subseção de cada análise – a cenografia – nos preocuparemos,
essencialmente, com que tipo de mundo (momento e lugar) é construído em cada discurso
com vistas a abrigar uma qualidade de ethos, o qual será caracterizado ao término da análise
de cada pronunciamento, em uma quarta subseção que irá recuperar, então, as noções de
incorporação, anti-ethos, imagem pré-discursiva do enunciador, eficácia do ethos.
E, finalmente, em nossas conclusões, teceremos considerações sobre os três discursos
e os ethé dos três enunciadores a fim de compreender a relação que há entre cada tipo de
110
fiador e seu discurso, sua identidade discursiva e sua inscrição numa dada formação
discursiva, considerando a polêmica em torno da cassação do mandato de Márcio Moreira
Alves.
111
7. ANÁLISE DO ETHOS CONSTRUÍDO NO PRONUNCIAMENTO DE
MÁRCIO MOREIRA ALVES (MDB/GB)
7.1. As projeções da enunciação no enunciado
7.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem
O texto abaixo é uma transcrição da parte inicial do exórdio do pronunciamento de
Márcio Moreira Alves:
Sr. Presidente, Srs. Deputados, marcou-me o acaso para que me transformasse em símbolo da mais essencial das prerrogativas do Poder Legislativo. Independente do meu desejo, transmudaram-me no símbolo da liberdade de pensamento, expressa na tribuna desta Casa (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).
Observemos como as pessoas enunciativas são instaladas nesse trecho. O eu da
enunciação é projetado no enunciado por meio de uma debreagem enunciativa, sendo
expresso pelas formas pronominais “me” e “meu”. Já o tu da enunciação é projetado no
enunciado por meio de uma forma de tratamento consagrada pelo ritual parlamentar: “Sr.
Presidente, Srs. Deputados”.
Essas formas pronominais e de tratamento possuem valor dêitico, porque instalam no
enunciado as marcas lingüísticas que estabelecem uma referência com o contexto situacional
que envolve a enunciação do discurso, ou seja, o referente dessas formas lingüísticas só pode
ser identificado com base no ambiente espaciotemporal da enunciação. Assim, essas formas
aqui apontadas instalam Márcio Moreira Alves como o “eu” da enunciação e também
instalam o presidente da mesa, deputado José Bonifácio, e os deputados presentes no plenário
da Câmara como o “tu” da enunciação.
É interessante notar que, embora a forma de tratamento “Sr. Presidente, Srs.
Deputados” apareça empregada na posição de vocativo e seja considerada pelas gramáticas
como um pronome de segunda pessoa, o que instala a segunda pessoa do discurso – o “tu” da
enunciação – há que se convir que essa forma de tratamento cria um distanciamento entre o
112
enunciador e o seu co-enunciador, já que desse “tu” está se ressaltando a sua persona, o seu
papel social.
Essas projeções geram efeitos de sentido diferentes para o “eu” e o “tu” enunciativos.
De um lado, a debreagem enunciativa instala no enunciado a pessoa, ressaltando, assim, a
individualidade desse “eu” enunciativo, Márcio Moreira Alves.
De outro lado, o emprego de uma forma de tratamento no lugar de um pronunciamento
pessoal como tu, vós ou, até mesmo, você nos leva a entender que a instalação do “tu”
enunciativo perde um pouco de seu aspecto subjetivo, tornando-se um pouco objetivo.
Poderíamos falar aí de uma embreagem enunciva que está projetando no enunciado a persona
e sublinhando o papel social desse “tu” enunciativo, os indivíduos que compõem a mesa e o
plenário da Câmara. Como bem mostra Fiorin (2002, p.100), “no caso da embreagem, [...]
usar a terceira pessoa no lugar de qualquer outra é objetivar o enunciado, é esvaziar a pessoa e
ressaltar a persona, é enfatizar o papel social em detrimento da individualidade”.
Nesse jogo enunciativo, podemos perceber que o efeito de sentido de pessoa, que é aí
gerado, sustenta a imagem de um enunciador que se coloca como o indivíduo acusado que
está sentado no banco dos réus, ao passo que o efeito de sentido de persona, que também é aí
gerado, sustenta a imagem de um co-enunciador que é colocado no papel social do júri que irá
condená-lo ou absolvê-lo. Essa descrição corresponde a apenas um primeiro momento das
projeções enunciativas desse pronunciamento.
Em um segundo momento, já podemos observar a passagem de um sistema
enunciativo para um sistema enuncivo ou, se quisermos recuperar os termos de Benveniste, a
passagem do plano do discurso para o plano da história. Isso porque as marcas lingüísticas da
enunciação são apagadas e o co-enunciador é colocado como espectador de uma cena que está
sendo relatada pelo enunciador.
Márcio Moreira Alves lança em seu exórdio a premissa inicial de que ele foi
transformado em símbolo da liberdade, não porque ele quis, mas sim pelo acaso, pelas
circunstâncias dos fatos. Na narratio, essa premissa inicial é desenvolvida por meio da
narração de fatos que, mais precisamente, correspondem a relatos de feitos historicamente
reconhecidos. Acompanhemos o texto transcrito a seguir, que compreende o início da
narratio:
113
A impessoalidade das conquistas do direito é uma das mais belas realidades da luta dos povos pela liberdade. O nome dos barões que, nas pradarias do Windsor, fizeram o Rei João Sem Terra assinar a Magna Carta, perdeu-se nas brumas do tempo. Mas o julgamento por jurados, o direito de os cidadãos de um país livremente atravessarem as suas fronteiras, a necessidade de lei penal anterior e de testemunhas idôneas para determinar uma prisão, continuar a ser imorredouro monumento àqueles homens e a todos os homens. Esqueceram as gerações modernas as violências de Henrique VII de Inglaterra, porém todas as nações do Ocidente incorporaram às suas tradições jurídicas a medida legal que durante seu reinado e contra ele firmou-se o habeas corpus. Até mesmo as decisões iníquas podem ser fonte de liberdade. Ninguém sabe ao certo onde jazem os restos do escravo Dred Scott; contudo, a decisão que a Côrte Suprema Norte-Americana tomou, mantendo-o escravo, foi o estopim da libertação de todos os negros da América do Norte (Ibidem, p.87-88).
Podemos notar aí que Márcio Moreira Alves pinça momentos históricos relativos a
lutas de classes que resultaram na conquista e no estabelecimento de direitos que passaram a
constituir as tradições jurídicas e democráticas não só da Inglaterra e dos Estados Unidos, mas
como também de todos os Estados modernos do ocidente, entre os quais se inclui o Brasil.
No fundo, é a liberdade que é assegurada por todos estes direitos arrolados por Márcio
Moreira Alves: “a Magna Carta”, “o julgamento por jurados”, “o direito de os cidadãos de um
país livremente atravessarem as suas fronteiras”, “a necessidade de lei penal anterior e de
testemunhas idôneas para determinar uma prisão”, “o habeas corpus”, “a libertação de todos
os negros da América do Norte”.
O relato dessas conquistas democráticas mostra que nessa luta pela liberdade os
homens passam, seus nomes são esquecidos, mas o direito permanece vivo nas tradições de
um povo. É interessante notar que o discurso de Márcio Moreira Alves atualiza essa memória
por ele suscitada, ou seja, ele também apaga o nome dos heróis, cita o de alguns tiranos e
arrola uma lista de direitos conquistados e preservados.
Observando o jogo entre enunciação e enunciado, podemos ver que os sujeitos da
enunciação (Márcio Moreira Alves e membros da mesa e do plenário, instalados no exórdio
como pessoa e como persona, respectivamente) são projetados por meio de uma debreagem
enunciva de modo que eles pareçam estar distantes da fonte enunciativa. Esse efeito de
distanciamento é que coloca o co-enunciador como espectador dos relatos históricos
oferecidos pelo enunciador.
114
Na confirmatio, esse jogo enunciativo experimenta um terceiro momento, no qual as
marcas da enunciação voltam a projetar o enunciador no enunciado. Vejamos um trecho
inicial da confirmatio:
(1) Assim poderá ser, também, neste caso. Apagado o meu nome, apagados os nomes de quase todos nós da memória dos brasileiros, nela ficará, intacta, a decisão que breve a Câmara tomará. (2) Não se lembrarão os pósteros do Deputado cuja liberdade de exprimir da tribuna seu pensamento é hoje contestada. Saberão, todavia, dizer se o Parlamento a que pertenceu manteve sua prerrogativa de inviolabilidade ou se dela abriu mão. (3) A verdade histórica é que os homens passam, mas os direitos que uma geração estabelece, através de suas lutas, às outras gerações são legados, pouco a pouco criando (sic)41 o patrimônio comum das leis, garantias e liberdades de uma nação (Ibidem, p.88-89).
Nesse trecho, o co-enunciador é levado a reconhecer Márcio Moreira Alves e todo o
episódio que se criou em torno dele como a atualização de memória concernente às tradições
das conquistas democráticas. Detalhemos a função dos dêiticos dentro dessa estratégia
discursiva.
No segmento em (1), as formas pronominais “meu” e “nós”, que é um nós inclusivo (=
“eu + vós”) projetam no enunciado o “eu” da enunciação. O “tu” da enunciação é,
rapidamente, projetado por essa forma inclusiva “nós”, uma vez que ele está aí incluso, no
entanto o que prevalece é a sua projeção por meio de expressões referencias tais como “a
Câmara”, em (1), e “o Parlamento”, em (2).
No emprego dessas formas dêiticas e referenciais, o enunciador é novamente projetado
como pessoa por meio da debreagem enunciativa, enquanto o co-enunciador volta a ser
projetado como persona por meio da embreagem enunciva, já que “a Câmara julgará” quer
dizer vocês julgarão. Estabelece-se aí um jogo enunciativo em que o co-enunciador é levado a
reconhecer o enunciador como uma atualização daqueles heróis cujos nomes foram
esquecidos nas “brumas do tempo”.
No segmento em (2), as marcas da enunciação são apagadas e as instâncias
enunciativas passam a ser referenciadas pelos sintagmas “o Deputado” (= “eu” enunciativo) e
41 A forma verbal criam parece mais plausível nesse trecho. Esse tipo de inadequação pode advir do próprio orador ou do taquígrafo, no entanto, conta para a análise a versão fac-similar publicada pelo Diário Oficial.
115
“o Parlamento” (= “tu” enunciativo). O que vemos aí é uma embreagem enunciva, pois o
enunciador se refere a si mesmo e ao seu co-enunciador na terceira pessoa. Atenua-se aí a
presença do enunciador no enunciado e se continua a destacar o papel social do co-
enunciador. No segmento em (3), as marcas da enunciação são apagadas para enunciar uma
sentença como uma verdade eterna.
Até esse momento, vimos que o funcionamento dos dêiticos da pessoa está a serviço
de uma estratégia discursiva que consiste em inscrever o enunciador no panteão dos heróis da
tradição democrática. E, com isso estabelecido em seu discurso, Márcio Moreira Alves, na
segunda metade de seu discurso, passa a exibir seus feitos enquanto indivíduo no exercício de
seu direito, ressaltando seu compromisso com o jornalismo e com a política. Essa estratégia
discursiva tem conseqüências nas escolhas enunciativas, pois, para se autodefender, é preciso
falar de si e isso leva a uma maior recorrência às formas dêiticas da primeira pessoa. Daí em
diante o que se pode ver é a predominância de enunciados debreados enunciativamente,
instalando no enunciado a pessoa, a individualidade.
Esse jogo enunciativo, além de corroborar essas estratégias de instalação dos sujeitos
da enunciação no enunciado, deixa entrever também um tom enunciativo. Vejamos. Essa
debreagem enunciativa, predominante em toda a segunda metade do pronunciamento de
Márcio Moreira Alves, estabelece entre enunciador e co-enunciador um contrato subjetivante.
Isso quer dizer que o enunciador mostra e quer mostrar que ele está presente e engajado na
relação comunicacional com seu co-enunciador.
Com base nesses dados, podemos concluir que os efeitos de sentido gerados a partir da
projeção da enunciação no enunciado, mais especificamente da categoria dêitica da pessoa,
constroem nesse pronunciamento um tom de proximidade, ou seja, é o tom que permite ao
enunciador se aproximar de seu co-enunciador para lhe dirigir sua palavra. A relação entre
sujeitos é bem próxima, no entanto só isso não nos autoriza a dizer se, embora próximo, seu
tom parece alto ou baixo e daí se ele cria a imagem de um enunciador que parece bradar para
que sua voz ecoe no Congresso ou se o enunciador parece sussurrar ao pé do ouvido de cada
parlamentar. Assim, em busca do tom do enunciador, passaremos à análise das modalidades
epistêmicas das quais tentaremos extrair resposta para essas questões que ficaram pendentes.
116
7.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização
Duas observações iniciais. A primeira é que vamos dispor os textos de uma maneira
que torne mais ágil a leitura das análises, assim, alguns fragmentos textuais já estudados em
subseções anteriores serão eventualmente retomados.
Em segundo lugar, observaremos a lexicalização dos operadores epistêmicos crer e
saber, considerando também o ponto de vista da argumentação. Expliquemos. Vimos no
primeiro capítulo que as premissas podem ser construídas com base em duas categorias de
objetos de acordo, a saber, o real (fatos, verdades e presunções) ou o preferível (valor,
hierarquia e lugares do preferível). Nossa hipótese é que há uma relação pertinente entre a
explicitação desses operadores epistêmicos e essas duas categorias de objetos de acordo, mais
especificamente pretendemos mostrar que a lexicalização de um operador modal saber
sempre incide sobre um fato, ao passo que a lexicalização de um operador modal crer vai
incidir sobre um valor.
Iniciemos a análise observando o trecho que compõe o exórdio do pronunciamento de
Márcio Moreira Alves, transcrito a seguir:
Sr. Presidente, Srs. Deputados, marcou-me o acaso para que me transformasse em símbolo da mais essencial das prerrogativas do Poder Legislativo. Independente do meu desejo, transmudaram-me no símbolo da liberdade de pensamento, expressa na tribuna desta Casa. Sei bem que a prova a que me submeteram está muito acima de minhas forças e de minha capacidade. Mas transcendeu, a causa que a Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu mandato, aos partidos. É incômoda e angustiante a posição que me tocou. Suporto-a sem temor, embora não merecesse a honra de simbolizar a liberdade de toda a Casa do Povo. As grandes causas exemplares, que na vida das nações firmam as garantias da democracia, sempre ultrapassam os que as tenham motivado (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).
Em primeiro lugar, é interessante notar que a única ocorrência de lexicalização de um
operador modal epistêmico corresponde à oração modalizadora “Sei bem que...”, já que os
demais enunciados, embora também modalizados pelo operador modal saber, manifestam-no
implicitamente.
117
O enunciado “Sei bem que a prova a que me submeteram está muito acima de minhas
forças e de minha capacidade” descreve um estado de coisas que envolve o enunciador e o seu
estado de alma. Essa prova a que se refere Márcio Moreira Alves corresponde ao episódio em
torno da tentativa de cassação de seu mandato, o que é construído no discurso como um fato42
que inflige ao enunciador um estado anímico de impotência perante uma força maior. Assim,
importa destacar que a manifestação explícita do operador saber modaliza esse enunciado, de
modo a construir uma atitude de certeza do enunciador perante a enunciação de um fato.
Tratemos agora das manifestações implícitas dos operadores epistêmicos nesse
primeiro fragmento textual. Observando que as formas “É”, “suporto”, “marcou”,
“transmudaram”, “tocou” e “transcendeu” expressam os tempos e os modos verbais do
sistema enunciativo, o pretérito perfeito43 e o presente do indicativo, podemos inferir que tais
formas indiciam uma atitude de certeza do enunciador, logo a presença pressuposta do
operador modal saber. Isso porque o tempo verbal dessas formas deixa entrever que o
enunciador possui um saber sobre o estado de coisas que ele descreve em seu enunciado, pois
dizer “é incômoda e angustiante” é bem diferente de dizer “seria incômoda e angustiante”,
bem como dizer “suporto-a sem temor” imprime outra atitude epistêmica que não a contida
em “suportaria-a sem temor”.
Ainda nesse trecho, o conteúdo do enunciado “As grandes causas exemplares, que na
vida das nações firmam as garantias da democracia, sempre ultrapassam os que as tenham
motivado” tem estatuto de sentença, pois o tempo presente expresso na forma verbal
“ultrapassam” é empregado com valor omnitemporal, ou seja, o momento de referência e o
momento de acontecimento são ilimitados e remetem ao infinito. Como nos mostra Fiorin
(2002, p.151), “é o presente utilizado para enunciar verdades eternas ou que se pretendem
como tais”. Esse aspecto é ainda reforçado pela forma adverbial “sempre”, o que corrobora a
atitude epistêmica de certeza desse enunciador.
Com base nesses dados, podemos concluir que o exórdio desse pronunciamento de
Márcio Moreira Alves é inteiramente modalizado pelo operador modal saber, o que confere
ao enunciador uma atitude de certeza perante seu enunciado que é transmitida ao seu co-
42 Na acepção de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p.76). 43 Conforme Fiorin (2002, p.153), “o pretérito perfeito simples acumula em português duas funções: anterioridade em relação a um momento de referência presente e a concomitância em relação a um
118
enunciador, ainda que as modalidades epistêmicas estejam lingüisticamente implícitas na
maioria de seus enunciados.
Passando à análise da narratio e da confirmatio, vemos que nessa parte do
pronunciamento a atitude epistêmica do enunciador é conservada de modo a reiterar a certeza
que ele vem inspirando desde a enunciação das premissas iniciais. Há, porém, uma leve
alteração nas estratégias lingüísticas empregadas, que serão observadas no decorrer da análise.
Comecemos pelo exame do fragmento a seguir:
A verdade histórica é que os homens passam, mas os direitos que uma geração estabelece, através de suas lutas, às outras gerações são legados, pouco a pouco criando o patrimônio comum das leis, garantias e liberdades de uma nação (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.88-89).
Em suma, Márcio Moreira Alves está dizendo que a verdade histórica é que os homens
passam, mas os direitos são legados. Primeiramente, é importante dizer que esse enunciado é
construído como uma verdade eterna, que fica patente graças à manifestação do presente
omnitemporal expresso pela forma verbal “é”. Tal proposição, assim apresentada como
verdade estabelecida, não precisa ser justificada e reforçada pelo enunciador para que seja
aceita pelo auditório. Do ponto de vista da modalização, isso significa que, se em seu
enunciado ele diz “é verdade que...”, em sua enunciação ele está projetando um “eu sei que é
verdade que...”. Esse modo de dizer revela que o enunciador está muito certo sobre aquilo que
ele enuncia.
A partir daí, Márcio Moreira Alves vai argumentar no sentido de provar que aquilo
que pertence ao individual detém o traço da efemeridade, enquanto aquilo que pertence ao
coletivo apresenta o traço da perenidade. Isso porque ele quer convencer os membros do
plenário de que seu julgamento extrapola o âmbito individual e coloca na berlinda aquilo que
pertence ao coletivo (o princípio da inviolabilidade) e, por conseguinte, o próprio Legislativo.
Com base nesse argumento, Márcio Moreira Alves vai dizer, logo depois de narrar e relatar os
fatos, que o que está em questão é a liberdade de expressão do indivíduo que é garantida pelo
momento de referência pretérito”, assim um pertence ao sistema enunciativo e o outro ao sistema enuncivo.
119
coletivo, e não o conteúdo daquilo que é manifestado pelo indivíduo, como querem fazer
acreditar os seus adversários políticos. Acompanhemos:
O fato de poder proferi-lo livremente não quer, entretanto, dizer que a Câmara a que pertence é solidária com os conceitos que emitiu. Simplesmente significa que a Câmara existe, que é um poder independente e que garante a seus membros a liberdade de palavra e opiniões (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90).
Interessante notar que tudo isso é dito com o estatuto de fato e modalizado pelo
operador saber. “Simplesmente significa que...” é uma oração modalizadora que incide sobre
o fato de a Câmara existir e garantir a liberdade de expressão, enquanto a outra oração
modalizadora “não quer [...] dizer que...” incide sobre o fato de a Câmara não ser solidária
com o que dizem seus membros, que têm o direito de liberdade de expressão.
A partir daí, os argumentos de Márcio Moreira Alves começam a desdobrar no sentido
de mostrar que a cassação de seu mandato parlamentar é um equívoco e que isso não resolve
crise:
(1) Pudesse eu evitar esta crise abrindo mão de meus direitos, certamente o faria. (2) Não creio que as crises que cada vez mais freqüentemente sacodem a imperfeita e injusta estrutura constitucional brasileira possam ser removidas pelo sacrifício de um, de dois, de dez ou de todos os Deputados (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90-91).
Aparentemente se trata de um fragmento discursivo cuja atitude epistêmica do
enunciador é de incerteza devido ao emprego do verbo no modo subjuntivo (“pudesse”). No
entanto, esse enunciado em (1) é sintaticamente construído como uma oração condicional,
sobre a qual incide a forma adverbial “certamente”, que lexicaliza o operador saber,
revelando a atitude de certeza do enunciador. Isso fica mais claro se observarmos a seguinte
paráfrase: eu tenho certeza de que abriria mão de meus direitos se eu tivesse certeza de que
isso resolveria a crise.
120
Do enunciado em (2), é preciso destacar a oração modalizadora “Não creio que...”. Eis
um caso em que forma verbal “creio” recai sobre algum ponto intermediário do contínuo entre
os pólos da certeza e da incerteza, evidentemente no ponto mais próximo à certeza.
Márcio Moreira Alves está dizendo que cassar deputado não resolve crise. Quanto a
isso, não levantamos dúvidas, porém o seu modo de dizer não quer revelar esse grau máximo
de certeza que acabamos de inferir.
Márcio Moreira Alves não quer mostrar o grau máximo de certeza, porque ele
argumenta com objetos que pertencem não ao universo dos fatos aceitos universalmente,
mas sim ao universo das crenças compartilhadas pelo seu grupo social e que circulam em
sua formação discursiva. Assim, temos em torno desse “creio” uma estratégia lingüística
voltada para amenizar o tom do enunciador e lhe conferir uma imagem de um sujeito que
não impõe seus valores, o que lhe é altamente favorável em termos de ethos.
Essa estratégia de amenização do tom do enunciador incide sobre o enunciado que
inscreve a voz de seus adversários, em que a polifonia se manifesta por meio do “não”, que é
um não polêmico, pois, quando Márcio Moreira Alves diz “Não creio que [cassar deputado
resolve crise]”, ele deixa pressupor que há uma voz que diz creio que [cassar deputado
resolve crise].
O enunciado que manifesta essa polêmica no nível dos enunciadores é modalizado de
forma a suavizar o tom do enunciador, porque, quando Márcio Moreira Alves diz que cassar
deputado não resolve crise, ele está argumentando sobre o preferível, mais especificamente
sobre um valor, um ponto de vista, um objeto que não se impõe ao co-enunciador, mas sim
lhe é dirigido com vistas a influenciá-lo na direção de determinada ação que, nesse caso, é
votar contra o “pedido de licença”.
No decorrer do pronunciamento, podemos observar que a polêmica em torno da
cassação assume um caráter se cada vez mais desvelado, como neste enunciado:
Mas, tal como ao mercador de Veneza era impossível receber o que lhe deviam sem romper a lei, derramando o sangue de um cristão, é também impossível ao Ministro da Justiça receber o mandato de um Deputado sem causar a definitiva hemorragia no Poder Legislativo (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.92).
121
A oração modalizadora “é também impossível...”, apesar de lexicalizar um operador da
modalidade alética (eixo da necessidade e da impossibilidade), deixa entrever uma
modalidade epistêmica que indica o operador saber, que volta a imprimir o grau máximo de
certeza que vinha sendo impresso ao tom do enunciador Márcio Moreira Alves que, nesse
trecho, aponta as conseqüências negativas de sua cassação para o Poder Legislativo.
Avançando. Márcio Moreira Alves argumenta sobre os valores que o motivaram a
fazer seus pronunciamentos de 2 e de 3 de setembro de 1968. Acompanhemos:
(1) Todos nós aqui chegamos pela confiança que recebemos de uma parcela do povo brasileiro, manifestada pelo voto secreto em eleições diretas. (2) Esta confiança não é gratuita. (3) Representa o compromisso que assumimos com o pensamento e os interesses daqueles que nos elegeram para que aqui exprimíssemos os seus anseios. (4) Assim entendo e procuro viver o meu mandato (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.92).
Desse enunciado, vejamos primeiramente seus três primeiros períodos. Com base na
distinção que Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.87-89) fazem entre os dois tipos de
valores, podemos dizer que o enunciador Márcio Moreira Alves alicerça seu argumento sobre
os valores abstratos expressos pelos léxicos “confiança”, “compromisso”, “pensamento”
“interesses” e “anseios” e sobre os valores concretos expressos pelos sintagmas “voto
secreto” e “eleições diretas”. O princípio da representação é construído nesse enunciado como
um valor valorizado positivamente pelo enunciador.
No quarto período do enunciado em questão, “Assim entendo e procuro viver o meu
mandato”, vemos que a forma adverbial “Assim” funciona como um anafórico que retoma o
que foi dito anteriormente para que tudo isso seja modalizado pela forma verbal “entendo”
que inspira uma atitude do enunciador de quase certeza, pois, se não é a verdade de todos, é,
ao menos, a sua própria verdade, por isso ela deve ser relativizada. Isso porque, no contínuo
entre certeza e incerteza, a atitude epistêmica do enunciador é, novamente, aquela situada no
ponto mais próximo da certeza, visto que, novamente, o enunciador argumenta com base em
valores.
Essa estratégia de suavização do tom do enunciador é ainda reiterada no contorno de
uma citação de autoridade:
122
Que visão é esta? Creio poder encontrar as suas raízes em uma profecia de Isaías (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.93): [segue discurso citado]
Como esse enunciado introduz uma citação sob a forma do discurso direto, devemos
considerar a relação entre a modalização do discurso citante e a modalização do discurso
citado. Assim, a forma verbal “creio” ameniza o tom do enunciador do discurso citante (de
Márcio Moreira Alves) para, no contraponto de vozes, elevar o tom do enunciador do discurso
citado (de Isaías). A captação do discurso religioso, mais precisamente do discurso cristão,
cria a imagem de um sujeito que compartilha desse universo discursivo, o que lhe é muito
favorável, pois se trata da crença religiosa oficialmente estabelecida no Brasil.
Mais adiante, podemos notar que o conteúdo dessa citação bíblica é desenvolvido pelo
discurso de Márcio Moreira Alves, como no enunciado a seguir:
Assim entendo deva ser este País internamente, como entendo ainda que externamente deva ser soberano, sem filiar-se a blocos internacionais políticos ou militares, sem de nação alguma, por mais poderosa que seja, receber o ditado do seu comportamento e sem que os agentes de qualquer nação, ainda que poderosa e amiga, possam em seu desenvolvimento influir determinantemente. Acredito que todos nós tenhamos uma responsabilidade direta na construção da paz social, como da paz internacional, responsabilidade esta que é tanto maior quanto maiores forem os instrumentos de cultura, de fortuna e de poder de que cada um disponha (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.93-94).
Esse enunciado retoma o conteúdo veiculado pela citação da profecia de Isaías por
meio do anafórico “assim”. Dessa profecia depreendemos os valores como liberdade,
igualdade e justiça que se somam a valores como soberania e paz arrolados nesse enunciado.
Os operadores epistêmicos são lexicalizados duas vezes pela forma verbal “entendo” e
uma vez pela oração modalizadora “Acredito que...”. Vemos aí, novamente, a recorrência
àquela estratégia de suavização do tom do enunciador que vimos descrevendo.
Apenas mais dois exemplos para concluir a análise dessa parte do pronunciamento:
123
É-me lembrado freqüentemente, nesta Casa, por amigos que à minha responsabilidade apelam, por adversários que me procuram julgar, que sou um dos privilegiados da sociedade brasileira. É verdade. Tenho disto a mais profunda e pesada noção (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.94).
Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que virão. Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.96).
Nesses dois fragmentos, as orações modalizadoras “É verdade que”, “Tenho disto [...]
noção” e “Sei que...” explicitam o operador modal saber, o que revela grau máximo de
certeza do enunciador perante os fatos que ele enuncia: “sou um dos privilegiados da
sociedade brasileira”, “a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que
virão”, “o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável”.
O primeiro fato tem a ver com a imagem pré-discursiva de “moço rico” que era
conferida a Márcio Moreira Alves, como podemos ver a seguir no fragmento extraído de uma
reportagem publicada pela Veja em 18 de dezembro de 1968:
Em Brasília, instalou-se em uma bela casa junto ao lago, decorada com móveis Luís XV, misturados com o velho colonial mineiro, quadros de Djanira, Pancetti, Heitor dos Prazeres e diversas gravuras de nobres franceses, antepassados de sua mulher. Márcio sempre mostrou-se à vontade em um tipo de vida requintado. [...]. Seus adversários não cansam de lembrar êsses fatos para caracterizarem sua origem de “môço rico”. Origem que o próprio Márcio Moreira Alves admitiu em seu discurso, na Câmara Federal, na quinta-feira passada, antes da votação de seu pedido de cassação (Veja, 1968a, p.25).
Se pensarmos nas grades culturais e nos seus valores, podemos dizer que essa imagem
pré-discursiva atribuída a Márcio Moreira Alves não parece ser a imagem mais apropriada
para um político militante de esquerda. Ciente disso, Márcio Moreira Alves reconstrói
discursivamente esse fato à sua maneira, dizendo que tal fato é visto por seus amigos de forma
diferente de como é visto pelos seus adversários, pois os amigos apelam à sua
responsabilidade, enquanto os adversários tentam julgá-lo. A interação do enunciador com os
primeiros tem carga positiva e com os segundos, negativa; no entanto, o que prevalece é o seu
124
próprio veredicto: “É verdade. Tenho disto a mais profunda e pesada noção”. Márcio Moreira
Alves reconhece assertivamente tal fato e imprime o grau máximo de certeza sobre o que diz
para fazer seu mea-culpa e, assim, reverter a imagem pré-discursiva negativa e conflitante de
um “moço rico” militante de esquerda.
Já o segundo fato se refere ao próprio episódio em torno do “pedido de licença”, que o
discurso de Márcio Moreira Alves chama de pedido de cassação. Nesse segundo fragmento, o
enunciado “Sei que a tentativa de cassar o meu mandato é apenas a primeira de muitas que
virão” assume um tom pressagioso, especialmente pelo emprego do futuro do presente na
forma verbal “virão”, construindo uma previsão negativa sobre as conseqüências de sua
cassação para o Poder Legislativo.
E, ainda, nessa parte do discurso, Márcio Moreira Alves aponta seu anti-sujeito:
As classes militares sempre mereceram e merecem o meu respeito. O militarismo, que pretende dominá-las e comprometer-lhes as tradições democráticas, transformando-as em sua maior vítima, esse militarismo – deformação criminosa que a civis e militares contamina – impõe-se ao nosso repúdio (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.96-97).
Importa adiantar aqui que “militarismo” é o nome dado pelo discurso do enunciador
ao seu sujeito antagonista, ao anti-sujeito. E, enquanto o discurso vai construindo o ethos do
enunciador, vai construindo também o seu anti-ethos, seu avesso moral, ético e social. Se ao
final da análise concluirmos que o discurso de Márcio Moreira Alves constrói um ethos X,
concluiremos também que ele terá construído um anti-ethos anti-X (coisa bem diferente de
não-X), que será conferido ao anti-sujeito “militarismo”.
Tratemos agora do epílogo, a última parte do pronunciamento de Márcio Moreira
Alves, que é aqui, novamente, transcrita:
Finalizo, Sr. Presidente, na esperança de que as angústias e sofrimentos que atravessamos possam servir para o engrandecimento do Congresso e a liberdade da Pátria. Os últimos dias foram pródigos em exemplos e lições. Um homem modesto, suave e tranqüilo mostrou ao Brasil que no momento da verdade transforma-se a dignidade no cinzel que esculpe o herói. Djalma Marinho soube recusar as honras para ficar com a sua consciência. Juntamente com seus companheiros de partido, que foram expurgados da Comissão de Justiça em nome
125
de ideais a que se conservam fiéis, personifica a independência da Câmara. Vindo de outro Rio Grande, onde o sangue dos peleadores firmou as fronteiras da Pátria, Daniel Krieger mostrou que estão vivas as tradições de bravura dos gaúchos. É o verdadeiro e digno irmão do cavaleiro andante Brito Velho.
Entrego-me agora ao julgamento dos meus pares. Rogo a Deus que cada um saiba julgar, em consciência, se íntegra deseja manter a liberdade desta tribuna, que livre recebemos das gerações que construíram as tradições políticas do Brasil. Rogo a Deus que mereça a Câmara o respeito dos brasileiros, que possamos, no futuro, andar pelas ruas de cabeça erguida, olhar nos olhos os nossos filhos, os nossos amigos. Rogo a Deus, finalmente, que o Poder Legislativo se recuse a entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo da sua degola. Volta-se o Brasil para a decisão que tomaremos. Mas só a História nos julgará (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.97-98).
“Finalizo” é aí a forma verbal que corresponde à fórmula lingüística que apresenta ou
anuncia o último momento da argumentação, conforme Charaudeau (1992, p.830). Todo o
epílogo desse pronunciamento não apresenta sequer uma lexicalização dos operadores modais
crer e saber. Do ponto de vista da projeção da enunciação, a debreagem enunciativa é o
processo que caracteriza todo o conjunto desse trecho final devido à projeção da instância da
enunciação, o eu, o aqui e o agora da enunciação, nos enunciados do epílogo. Os tempos
verbais aí são, portanto, os do sistema enunciativo, a saber:
Formas verbais empregadas no epílogo do discurso de Márcio Moreira Alves
Presente pretérito perfeito 1 futuro do presente
finalizo entrego atravessamos tomaremos possam rogo foram julgará
transforma deseja mostrou
esculpe rogo recebemos
conservam mereça construíram personifica olhar
estão rogo é volta
126
A disposição desses tempos verbais nos enunciados em questão é que nos permite
perceber a manifestação implícita do operador modal saber, o que confere uma atitude de
certeza do enunciador perante todos os seus enunciados que compõem o epílogo, no qual o
enunciador reitera o que ele vem argumentando desde o início de seu pronunciamento, ou
seja, que a cassação de seu mandato significa prejuízo não ao indivíduo Márcio Moreira
Alves, mas sim à coletividade representada pelo Congresso e ao próprio Poder Legislativo.
Márcio Moreira Alves exorta aí o Poder Legislativo a não aceitar a exigência das
Forças Armadas, sob pena de se tornar um poder subjugado, de perder sua soberania,
condição essencial de qualquer um dos três poderes. Nessa metáfora criada por Márcio
Moreira Alves, a idéia da concessão do pedido de licença se associa à imagem do instrumento
de corte empregado para decapitação, o “cutelo”, que serviria para “degolar” o Poder
Legislativo, ou seja, abrir precedente para sucessivas cassações de mandatos parlamentares e,
sobretudo, para subjugar a soberania do Congresso.
Após o exame da modalização em todas as partes do pronunciamento de Márcio
Moreira Alves, parece-nos oportuno esboçarmos, ao menos, uma breve conclusão.
De um modo geral, o enunciador Márcio Moreira Alves inspirou em seu discurso uma
atitude de certeza perante seu enunciado e ao seu co-enunciador, em que nem sempre tal
atitude foi manifestada em seu extremo, deixando-se deslizar no contínuo entre a certeza e a
incerteza, conforme os tipos de objetos de acordo suscitados.
Assim, vimos que no exórdio o operador modal saber foi manifestado de forma
explícita quando o enunciador expunha um fato e de forma implícita quando tratava de um
valor. A atitude de certeza do enunciador ficou visível nos dois casos, porém com graus
diferentes de certeza, se concordarmos que a explicitação do operador saber revela um grau
maior de certeza do que a não explicitação. E isso ajuda a melhorar o ethos do enunciador.
Mais adiante, na narratio e na confirmatio, acompanhamos a manutenção dessa
atitude epistêmica, logo a manutenção do tom do enunciador, embora tenhamos anotado
alterações nas estratégias lingüísticas.
Em seu início, a mesma regra é reiterada. Apresenta-se o grau máximo de certeza na
construção de um fato, mostrando uma atitude altiva do enunciador perante os fatos que ele
expõe. Entretanto, na seqüência do texto, outras operações se desenrolam. Vimos que o
enunciador volta a argumentar sobre valores e a partir daí assistimos a uma estratégia de
127
amenização de seu tom, que é desvelada pelo fato de algumas formas verbais como “creio”
e “entendo” nos levarem a conferir ao enunciador não uma atitude epistêmica situada nos
pontos extremos da certeza e da incerteza, mas sim no contínuo entre esses dois pólos, mais
especificamente no ponto mais próximo à certeza.
Também aventamos a hipótese de que essa amenização do tom do enunciador
representa um ganho à qualidade de seu ethos, pois tal estratégia cria a imagem de um sujeito
que não impõe seus valores e aceita discuti-los abertamente. Ademais, vimos que, no sentido
de melhorar seu ethos, o enunciador usa o grau máximo de certeza para reverter uma imagem
pré-discursiva negativa de si, fazendo um mea-culpa em relação à sua condição social.
Por fim, observamos que o operador saber foi manifestado de forma implícita em
todos os enunciados do epílogo, reiterando a atitude de certeza do enunciador que
predominou em todo o seu pronunciamento, bem como o seu tom que se manteve,
predominantemente, altivo para defender a tese de que o Congresso irá ferir sua própria
soberania se autorizar sua cassação.
128
7.2. A heterogeneidade enunciativa
7.2.1. O discurso citado
O pronunciamento de Márcio Moreira Alves apresenta formas do discurso citado
apenas na narratio e na confirmatio, não havendo inscrição de vozes alheias no exórdio nem
no epílogo. No total, são cinco ocorrências, as quais serão examinadas a partir de agora:
Os autores citados pelo Sr. Ministro da Justiça, ou do assunto não tratam, ou dele tratam, como é o caso de Raul Machado Horta, para afirmar o que também afirmamos: a inviolabilidade é irrenunciável, pois que ao Deputado não pertence e, sim, a todo o Congresso (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90).
Nesse primeiro fragmento, podemos notar que Márcio Moreira Alves faz menção ao
próprio pedido de licença encaminhado pelo Ministro da Justiça ao Congresso e daí reproduz
uma citação atribuída a Raul Machado Horta44. Importa dizer que, apesar de o Ministro da
Justiça Gama e Silva45 ser um governista, o discurso do autor citado pelo Ministro da Justiça é
traduzido46 pelo discurso de Márcio Moreira Alves como uma voz concordante, acarretando
uma integração reivindicada47. Em outras palavras, o discurso citado de Raul Machado Horta
é integrado positivamente ao discurso de Márcio Moreira Alves para reforçar o argumento de
que a inviolabilidade é uma prerrogativa pertencente não ao deputado, individualmente, mas
sim, coletivamente, ao Congresso.
44 Raul Machado Horta foi jurista e professor catedrático e emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Era reconhecido como um especialista em Direito Público. 45 Logo após o golpe de 64, Luiz Antônio da Gama e Silva foi nomeado Ministro da Justiça no dia 4 de abril de 1964 e, cumulativamente, em 6 de abril, Ministro da Educação e Cultura do governo do Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. No entanto, deixou os dois Ministérios no dia 15 de abril para voltar à Universidade de São Paulo, da qual foi reitor entre 1963 e 1966. Já, no governo do Marechal Arthur da Costa e Silva, Gama e Silva assumiu novamente o Ministério da Justiça. 46 Maingueneau (1997, p.120) refere-se a uma “tradução de um tipo bem particular, pois ela opera, não de uma língua natural para outra, mas de uma formação discursiva à outra [...]. Assim, quando uma formação discursiva faz penetrar seu Outro em seu próprio interior, por exemplo, sob a forma de uma citação, ela está apenas ‘traduzindo’ o enunciado deste Outro, interpretando-o através de suas próprias categorias”.
129
Vejamos, agora, a segunda ocorrência de discurso citado que anotamos:
Procura-se criar, em torno da concessão ou não de uma licença para que se
prossiga um processo a respeito do que muito bem chamou o nosso professor de deveres, Deputado Djalma Marinho, “delito impossível”, uma crise institucional (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.90).
Nesse fragmento, Márcio Moreira Alves faz uma referência ao deputado Djalma
Marinho, jurista e deputado eleito pela ARENA, que, durante o caso “Márcio Moreira”,
exerceu a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Federal,
comissão responsável pelo relatório favorável ou contrário à licença para processar o
deputado Márcio Moreira Alves. Djalma Marinho, porém, não aceitou as manobras do
Ministro da Justiça Gama e Silva e do Presidente da República Costa e Silva que visavam a
pressionar a CCJ a entregar um relatório favorável à licença, o que culminaria na cassação de
Márcio Moreira Alves. Djalma Marinho renunciou, então, à presidência da CCJ e à própria
Comissão após anunciar seu voto contrário e cunhar a célebre frase “ao meu rei tudo, menos a
honra”, citando o escritor espanhol Calderón de la Barca. Vale lembrar que o pedido de
licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves passou pela CCJ e foi à votação na
Câmara, porque teve êxito a manobra governista de substituir nove deputados arenistas
contrários à licença por outros da mesma legenda que se mostravam favoráveis.
Do ponto de vista formal, vemos nesse enunciado uma forma de discurso citado que
Maingueneau (2002, p.151) chama de “ilha textual ou ilha enunciativa”. Vale ponderar que,
embora o autor destaque seu emprego nos textos de imprensa, esse recurso pode ser
encontrado em qualquer outro discurso manifestado por meio do suporte gráfico, como é o
caso dos pronunciamentos parlamentares publicados pelo Diário Oficial da Câmara dos
Deputados.
Para Maingueneau (2002, p.151), a ilha pode ser indicada pelos sinais gráficos aspas
ou itálico de modo que “a ilha está perfeitamente integrado (sic) à sintaxe: só a tipografia
permite verificar que essa parte do texto não é assumida pelo relator”. Trata-se de uma forma
que se assemelha à do discurso indireto, pois comporta apenas uma única situação de
47 O emprego do termo se inspira no que diz Maingueneau (1997, p.122) sobre a oposição entre as categorias semânticas reivindicadas (ou “positivas”) e as recusadas (ou “negativas”), relacionada ao
130
enunciação, em que o discurso citante engloba o discurso citado no que toca à referência
dêitica e aos termos apreciativos.
Nesse segundo fragmento sob análise, podemos identificar as seguintes características:
• verbo de elocução (“chamou”) indiciando a subsistência de um discurso alheio;
• sinal gráfico – aspas – marcando a fronteira entre discurso citante e discurso
citado;
• a concretização do enunciador do discurso citado (“Deputado Djalma
Marinho”);
• uma única situação enunciativa em que a situação citante engloba a situação
citada.
O discurso citante de Márcio Moreira Alves traduz48 esse discurso citado, lançando
apreciações do tipo “muito bem”, que incide sobre o verbo de elocução “chamou” atribuído ao
enunciador do discurso citado, e “o nosso professor de deveres”, que constrói a captação de
uma voz do discurso jurídico para integrá-la positivamente em seu discurso. Vemos, portanto,
a integração reivindicada de mais uma voz do discurso jurídico que corrobora a orientação
argumentativa de seu discurso.
Já, na terceira ocorrência de uma forma do discurso citado, podemos ver que, além do
discurso jurídico, Márcio Moreira Alves também dialoga com o discurso religioso.
Acompanhemos o seguinte fragmento textual:
Que visão é esta? Creio poder encontrar as suas raízes em uma profecia de Isaías:
“Pois eu vou criar novos céus e uma nova terra. O passado não será mais lembrado, não volverá mais ao espírito, mas será experimentada a alegria e a felicidade eterna daquilo que vou criar... Serão construídas casas que se habitarão, serão plantadas vinhas das quais se comerá o fruto. Não mais se construirá para que outro se instale, não mais se plantará para que outro se alimente. Os filhos de meu povo durarão tanto quanto as árvores, e meus eleitos gozarão do trabalho de suas mãos. Não trabalharão mais em vão, não darão mais à luz filhos votados a uma morte repentina.” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.93).
imbricado processo de tradução do discurso do Outro e de construção da identidade discursiva. 48 Reiteramos que “traduz” refere-se aqui à operação de uma formação discursiva para outra, no sentido proposto por Maingueneau (1997, p.120).
131
Por meio dessa profecia de Isaías, Márcio Moreira Alves propõe um jogo enunciativo
em que deixa explícita (no dito) uma visão de futuro a que os brasileiros devem aspirar, ao
mesmo tempo em que ele deixa implícita (no dizer) a situação vigente no Brasil. Se, por um
lado, o dito se refere à visão de futuro e aos valores defendidos pelo enunciador, por outro
lado, o dizer alude à situação vivida no Brasil durante a ditadura militar. Nesse jogo
enunciativo, Márcio Moreira Alves reclama a soberania do país, denuncia a usurpação das
riquezas nacionais pelo capital estrangeiro, a baixa expectativa de vida no Brasil, os mortos e
desaparecidos49 no regime militar.
Do ponto de vista formal, esse discurso citado se manifesta por meio de uma citação
sob a forma do discurso direto. Falemos um pouco sobre a citação e o discurso direto. Para
Maingueneau (1997, p.86), a citação implica o distanciamento da voz do discurso citado, em
que “o locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como o não-eu, em relação ao qual o locutor
se delimita, e como a “autoridade” que protege a asserção”. A esse respeito, devemos lembrar
que o discurso citado corresponde somente ao simulacro do discurso do outro, assim a voz
desse locutor citado não é outra coisa senão uma simulação construída pelo discurso citante.
No caso do fenômeno da citação, o poder de mimese e o distanciamento entre enunciador
citante e enunciador citado são sustentados pela forma do discurso direto que é, segundo
Fiorin (2002, p.74), “um simulacro da enunciação construído por intermédio do discurso do
narrador”, o que é corroborado por Grilo (2004, p.115) ao dizer que o discurso direto torna o
discurso citado mais mimético.
Tratemos dessa citação que Márcio Moreira Alves faz de Isaías, observando, pela
ordem, o contorno do discurso citado (as apreciações do discurso citante sobre o discurso
citado), a dupla situação de enunciação (a do discurso citante e a do discurso citado) e a
simulação da voz do discurso citado.
Primeiramente, é interessante notar que o contorno desse discurso citado recebe muito
pouco investimento apreciativo (aquilo que se diz sobre o discurso e o enunciador alheio), do
qual podemos destacar o seguinte:
• “raízes” que qualifica o discurso citado como um discurso fundador;
49 Processo que se agravaria mais ainda após a edição do AI-5. Esse ponto é bem abordado no trabalho organizado por Janaína Teles, intitulado Mortos e desaparecidos políticos: reparação ou impunidade? 2. ed. São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
132
• “profecia” que indica o gênero discursivo pelo qual esse discurso citado é
originalmente manifestado, conforme a própria nomeação bíblica, livros
proféticos;
• “Isaías” que apenas tem a função de mencionar o nome do profeta sem
nenhum outro predicativo.
Márcio Moreira Alves, ao se limitar a fazer uma breve apresentação de Isaías, prepara
a citação de um discurso cujo enunciador citado dispensa apresentação, referências elogiosas
e formalidades, diferentemente do que acontece nas citações que ele faz aos juristas.
Um dado que o discurso de Márcio Moreira Alves não faz menção, mas que parece
válido suscitar é que a “participação ativa nos assuntos de seu país faz de Isaías um herói
nacional. [...]. Isaías é o maior dos profetas messiânicos” (Bíblia, 2003, p.1238).
Em segundo lugar, a dupla situação de enunciação, que marca a fronteira entre os dois
discursos (citante e citado) é, graficamente, marcada pelos dois-pontos, pelas aspas e pela
paragrafação. Essas duas situações de enunciação podem ser configuradas da seguinte forma:
Dupla situação de enunciação: Márcio Moreira Alves (discurso citante) e Isaías (discurso citado)
discurso citante discurso citado
“eu” Márcio Moreira Alves “eu” Isaías
“tu” plenário da Câmara “tu” povo de Judá e Jerusalém
“aqui” Câmara Federal “aqui” reinos de Judá e Jerusalém
“agora” 12 de dezembro de 1968 “agora” c.700 a.C.
É importante dizer que Márcio Moreira Alves suprime passagens do texto bíblico,
principalmente aquelas que fazem referência a Iahweh e à Jerusalém para não explicitar a
distância, cronológica e geográfica, que há entre as duas situações de enunciação.
Em terceiro lugar, essa citação sob a forma de discurso direto simula a enunciação do
discurso do profeta bíblico, de modo que a visão profética de Isaías50 sirva tanto para o antigo
50 Isaías, capítulo 65, versículos 17 a 25.
133
povo de Jerusalém como para o contemporâneo povo do Brasil. Trata-se aí de um discurso
alheio que é integrado positivamente no discurso citante de Márcio Moreira Alves, o que lhe
confere a imagem de um enunciador que compartilha e que se rende ao universo discursivo da fé
confessada oficialmente no Brasil.
Passemos ao exame da quarta ocorrência de uma forma do discurso citado nesse
pronunciamento de Márcio Moreira Alves:
É-me lembrado freqüentemente, nesta Casa, por amigos que à minha
responsabilidade apelam, por adversários que me procuram julgar, que sou um dos privilegiados da sociedade brasileira (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.94).
Já vimos, anteriormente, que esse fragmento revela grau máximo de certeza do
enunciador perante o fato que ele enuncia e que está relacionado com a imagem pré-
discursiva de “moço rico” que lhe é conferida. Vimos também que Márcio Moreira Alves
reconstrói essa imagem, dizendo que tal fato é recebido diferentemente por amigos e por
adversários, pois essa opinião compartilhada é usada para diferentes propósitos
argumentativos. Assim, no contorno do discurso citado, a cobrança dos amigos recebe valor
positivo, pois é apreciada como apelo à sua responsabilidade, enquanto a cobrança dos
adversários recebe valor negativo, pois é apreciada como julgamento.
Do ponto de vista formal, o discurso alheio é manifestado por meio do discurso
indireto. Isso pode ser observado com mais nitidez por meio da seguinte paráfrase: Amigos
que à minha responsabilidade apelam e adversários que me procuram julgar lembram-me
freqüentemente nesta Casa que sou um dos privilegiados da sociedade brasileira. Desse
enunciado, podemos localizar o verbo de elocução (“lembram”), a fronteira entre discurso
citante e discurso citado (a conjunção “que”), a única situação de enunciação em que o
sistema de referência dêitica do discurso citado é interpretado conforme o do discurso citante.
É também interessante ouvir o que diz Maingueneau (2002, p.149) sobre o discurso indireto:
Com o discurso indireto, o enunciador citante tem uma infinidade de maneiras para traduzir as falas citadas, pois não são as palavras exatas que são relatadas, mas sim o conteúdo do pensamento.
134
Em outras palavras, o discurso indireto não visa à simulação da voz do discurso alheio,
não quer presentificá-la e criar efeito de realidade, como se pretende com o recurso do discurso
direto. O discurso citante quer mostrar que se interessa somente por aquilo que é dito,
negligenciando a maneira como é dito. É bem certo que as formas do discurso citado não geram
efeitos de sentido por elas mesmas, pois os efeitos dependem também do conteúdo do que é
citado. Nesse caso, apenas imaginemos Márcio Moreira Alves empregando discurso direto: o
tom seria aí bem próximo ao das intrigas reservadas à vida privada. No entanto, ao englobar
para o seu sistema enunciativo o discurso citado “sou um dos privilegiados da sociedade
brasileira”, Márcio Moreira Alves assume tal fato e a partir daí faz seu mea-culpa, revertendo a
imagem pré-discursiva negativa que faziam dele, conforme vimos na análise das modalidades.
Examinemos agora a última ocorrência de discurso citado:
Quero crer, tal como Dom Antônio Fragoso expressou em uma carta
recentemente publicada nos jornais, que nos cabe conscientizar o povo da realidade que o cerca a fim de que, dispondo de todos os elementos necessários ao julgamento, possa ele fazer livremente a opção pelo sistema social e econômico que às suas aspirações mais perfeitamente atenda (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.94-95).
Nesse fragmento textual, podemos ver que Márcio Moreira Alves faz nova incursão à
esfera religiosa ao citar um discurso de Dom Antônio Fragoso, bispo de Crateús no estado do
Ceará e membro da Comissão Representativa da CNBB, veiculado na mídia impressa. Nessa
citação, o enunciador capta o discurso das tendências progressistas da Igreja Católica, que se
manifestavam contrariamente ao golpe de 64 e seus desdobramentos. Novamente, o discurso
indireto é usado para enfatizar o conteúdo do discurso citado em detrimento da expressão.
À guisa de conclusão, podemos destacar que há no discurso político de Márcio
Moreira Alves uma forte negociação com o discurso jurídico e o discurso religioso. Trata-se
de um discurso que, embora não fuja da polêmica, também não se mostra refutatório, já que
todas as suas citações são integradas positivamente a fim de reforçar e corroborar seu ponto
de vista. Sua identidade discursiva é construída no diálogo com juristas, que mostram o
caminho da justiça dos homens, e com religiosos, que mostram os caminhos da justiça divina
e da conscientização do povo.
135
7.3. A cenografia
É preciso, antes, advertir que o nosso percurso para chegar à descrição da cenografia
passa por duas etapas distintas, ou seja, leva em conta as noções discursivas de quadro cênico
e de cenas validadas.
Para Maingueneau (2002, p.87), o quadro cênico do texto é definido, conjuntamente,
pelas cenas englobante e genérica. “É ele que define o espaço estável no interior do qual o
enunciado adquire sentido – o espaço do tipo e do gênero de discurso” (Ibidem). E, para evitar
confusão entre as noções de tipo e de gênero de discurso, lembramos que “os gêneros de
discurso pertencem a diversos tipos de discurso associados a vastos setores de atividade
social [...] – setores que correspondem a grandes tipos de discurso” (Maingueneau, 2002,
p.61-62).
Dessa forma, podemos dizer que o quadro cênico apresentado no pronunciamento de
Márcio Moreira Alves estabelece entre os participantes da enunciação o estatuto pragmático e
institucional da comunicação definido pela cena genérica (pronunciamento parlamentar) e
pela cena englobante (discurso político). Isso quer dizer que, independentemente de qualquer
simulação de papéis que uma cenografia possa propiciar no discurso, os participantes da
enunciação, no caso o deputado Márcio Moreira Alves (enunciador) e o presidente da mesa
mais o plenário da Câmara (co-enunciador), jamais perdem de vista os seus papéis sociais
estabelecidos pelo quadro cênico da enunciação: o de políticos.
Esse discurso cria duas cenas validadas que captam papéis sociais culturalmente
reconhecidos e estereotipados, que, oriundos de outras esferas da atividade humana, se
manifestam em seu texto por meio de itens lexicais pertencentes aos campos do tribunal e da
guerra. A captação dos papéis do tribunal e da guerra constrói uma cenografia que permite ao
discurso instalar o co-enunciador num tribunal e o interpelar como o jurado que irá absolver
ou condenar o herói (posto na condição de réu), bem como oferecer ao co-enunciador a
chance de fazer parte desse corpo de heróis que lutam pelos valores democráticos, captando o
imaginário desse co-enunciador por meio de estereótipos valorizados culturalmente. É
possível dizer que, por meio dessa cenografia, o discurso de Márcio Moreira Alves subverte o
rito de cassação ao transformar o seu julgamento político em um julgamento penal. O
enunciador cria uma cenografia menos esperada dentro do gênero pronunciamento
parlamentar, sugerindo um distanciamento que, mais adiante, pode ser lido como ruptura com
136
o establishment. Vamos esmiuçar isso mais um pouco, começando pelo levantamento dos
enunciados que promovem a captação da cena validada do tribunal:
Mas transcendeu, a causa que a Câmara julgará, à minha pessoa, ao meu mandato, aos partidos (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).
Não se julga aqui um deputado; julga-se uma prerrogativa essencial do
Poder Legislativo (Ibidem, p.89). Entrego-me agora ao julgamento dos meus pares. Rogo a Deus que cada um
saiba julgar, [...] (Ibidem, p.97). Mas só a História nos julgará (Ibidem, p.98).
É o sentido do item lexical “julgar” e suas três formas flexionadas (“julgará”, “julga”,
“julgará”) e uma derivada (“julgamento”) que permite ao discurso de Márcio Moreira Alves
captar a cena validada do tribunal e instalar uma cena de enunciação que atribui ao enunciador
o lugar do réu, ao co-enunciador o lugar do juiz, à topografia o espaço do tribunal e à
cronografia o momento de julgar.
Ademais, essa cena validada é reforçada por um enunciado que mobiliza a memória de
um outro tribunal, aquele em que se realizou o julgamento de Dred Scott51:
51 O julgamento de Dred Scott se passa no contexto da polêmica acerca do regime escravocrata que vigorava nos estados do sul dos EUA, período que precedeu a Guerra Civil americana. Em 1846, Dred Scott e sua esposa Harriet entram com um processo por sua liberdade na Corte Distrital de Saint Louis. Em 1850, o júri, em segunda instância, decidiu que os Scotts mereciam ser cidadãos livres com base em seus anos de residência nos territórios não escravocratas de Wisconsin e Illinois. Irene Emerson, reivindicando direito de posse sobre os Scotts, apela para a Suprema Corte do Missouri, que, em 1852, revoga tal decisão tornando os Scotts escravos novamente. Em 1853, Dred Scott, com o apoio de advogados contrários à escravidão, abre processo na Corte Federal dos EUA, que também julga contra. Em 1856, Scott e seus advogados apelam para a Suprema Corte americana, que, em 1857, estabelece o veredicto final, considerando os Scotts escravos e, assim, não cidadãos americanos, sem direito a juntar processo em qualquer Corte Federal. Dred Scott morreu em 1858 e, diferentemente do que diz Márcio Moreira Alves, os seus restos mortais jazem em local conhecido: seção 1 do lote 177 do Cemitério do Calvário, no norte de Saint Louis. Mas, somente em 1957 (100 anos após a sentença), a pedra tumular de Dred Scott recebeu uma inscrição. Em sua lápide pode-se ler: “Dred Scott nasceu em 1799, morreu em 17 de setembro de 1858. Dred Scott, alvo da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1857, que negou cidadania para o negro, rasgado o Compromisso de Missouri, tornou-se um dos eventos que resultaram na guerra civil” (DRED SCOTT BORN ABOUT 1799 DIED SEPT. 17, 1858. DRED SCOTT SUBJECT OF THE DECISION OF THE SUPREME COURT OF THE UNITED STATES IN 1857
WHICH DENIED CITIZENSHIP TO THE NEGRO, VOIDED THE MISSOURI COMPROMISE ACT, BECAME ONE
137
Ninguém sabe ao certo onde jazem os restos do escravo Dred Scott; contudo, a decisão que a Côrte Suprema Norte-Americana tomou, mantendo-o escravo, foi o estopim da libertação de todos os negros da América do Norte (Ibidem, p.88).
Essa referência ao caso Dred Scott, além de construir a memória das conquistas
democráticas, filiando o enunciador a essa tradição, também reforça a cena validada do
tribunal que é parte constitutiva da cenografia de seu discurso.
Passemos agora ao exame da cena validada da guerra, observando os enunciados a
seguir:
Suporto-a sem temor, embora não merecesse a honra de simbolizar a liberdade de toda a Casa do Povo (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87).
O Ministro da Justiça, movido por misteriosas pressões e por um pertinaz
desejo de atacar o Congresso Nacional (Ibidem, p.91). É por um mundo assim que batalhamos. É por um Brasil assim que não
tememos o sacrifício (Ibidem, p.93). Ataquei governos e poderosos quando a proteger-me tinha apenas a
inviolabilidade de minha consciência. Nas trincheiras da oposição passei minha vida de jornalista (Ibidem, p.95).
Por que luto, então? (Ibidem, p.95). Sei que o apetite, dos que a esta Casa desejam mal, é insaciável. Os que
pensam em aplacá-lo hoje, com o sacrifício de um parlamentar estarão apenas estimulando a sua voracidade (Ibidem, p.96).
Buscam os inimigos do próprio Congresso um pretexto (Ibidem, p.96).
OF THE EVENTS THAT RESULTED IN THE CIVIL WAR). Fonte: Sítio eletrônico da Universidade de Washington em Saint Louis, Missouri, EUA. Disponível em: <http://library.wustl.edu/vlib/dredscott/chronology.html>.
138
Os itens lexicais “atacar”, “batalhamos”, “tememos”, “sacrifício”, “ataquei”,
“proteger”, “trincheiras”, “luto”, “aplacar”, “inimigos” mais o enunciado “suporto-a sem
temor” mobilizam a memória discursiva das angústias e das privações infligidas pela guerra, o
que permite ao discurso de Márcio Moreira Alves captar a cena validada da guerra e instalar
uma outra cena de enunciação que atribui ao enunciador o lugar do herói, ao co-enunciador o
lugar do co-herói (se nos permitem a expressão), à topografia o espaço do campo de batalha e
à cronografia o momento de lutar.
Além disso, a captação dessa cena validada, que leva para dentro do discurso todo o
universo cultural e ideológico que cerca os estereótipos dos heróis, dos tiranos e dos valores
democráticos, também se dá por meio de referências culturais, ou seja, por meio de saberes
prévios compartilhados socialmente que remetem à história e à literatura52, respectivamente:
O nome dos barões que, nas pradarias do Windsor, fizeram o Rei João Sem Terra assinar a Magna Carta, perdeu-se nas brumas do tempo. Mas o julgamento por jurados, (...), a necessidade de lei penal anterior e de testemunhas idôneas para determinar uma prisão, continua a ser imorredouro monumento àqueles homens e a todos os homens (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.87-88).
O Ministro da Justiça, movido por misteriosas pressões e por um pertinaz
desejo de atacar o Congresso Nacional, surge, com a sua representação, perante o povo brasileiro, tal como Shylock apareceu diante do Doge de Veneza com a confissão de dívida do mercador Antônio, que lhe permitia tirar bem junto ao coração da vítima uma libra de carne. Não há apelo que o aplaque, não há violência que o estarreça, não há razão que o emocione, nem pedido que o abale. Quer, por força e a todo custo, retirar de junto do coração do Poder Legislativo o preço que acredita ser-lhe devido (Ibidem, p.91-92).
No início desta seção, havíamos prometido descrever a cenografia, passando, antes,
pelo quadro cênico da enunciação e pelas cenas validadas. Pois bem, juntemos as pontas
desse novelo.
Em uma ponta, temos a cena englobante e a cena genérica interpelando os
participantes da enunciação, o deputado Márcio Moreira Alves (enunciador) e o presidente
da mesa mais o plenário da Câmara (co-enunciador), como parlamentares, sendo que um
52 Refere-se a O mercador de Veneza, de Shakespeare.
139
está na condição de orador que vai defender o seu mandato político e os demais estão na
condição de ouvintes de um pronunciamento proferido da tribuna da Câmara Federal que
irão, em votação secreta, deliberar contrária ou favoravelmente sobre o pedido de licença
para processar um deputado.
No entanto, se as relações pragmáticas e institucionais estabelecidas entre o
enunciador e o co-enunciador estão assim fixadas pelo quadro cênico, temos, na outra
ponta, a construção de duas cenas validadas que captam os papéis sociais do tribunal e da
guerra e os atribuem aos sujeitos da enunciação desse discurso. Dizíamos que a cenografia
corresponde à dimensão criativa do discurso, mas isso não quer dizer que a cenografia
compreenda apenas a simulação de um tribunal ou a simulação de uma situação de guerra,
pois a cenografia de um discurso vai além disso, ela se constrói no entrelaçamento entre
essas cenas validadas e as cenas definidas pelo quadro cênico.
Apenas para ilustrar o que estamos dizendo, esses mesmos enunciados que nos
permitem reconhecer as cenas do tribunal e da guerra também revelam a cena política por
meio de itens lexicais como “Câmara”, “deputado”, “prerrogativa”, “Poder Legislativo”,
“Casa do Povo”, “governos e poderosos”, “inviolabilidade”, “Ministro da Justiça” e
“Congresso Nacional”. Isso já implica na leitura de três cenas simultâneas, mas que
possuem estatutos distintos, pois as duas primeiras são cenas validadas, enquanto a terceira
corresponde a uma cena genérica.
Dessa forma, podemos perceber que o discurso vai construindo uma cena de
enunciação bem complexa, pois os lugares suscitados pelas cenas validadas e pela cena
genérica se entrelaçam e criam uma cenografia que simula não só o julgamento do herói,
mas também das conquistas e dos valores democráticos por ele defendidos, o que nos leva a
falar em uma cenografia do julgamento (do paladino) da democracia.
Essa cenografia instala o co-enunciador num tribunal e o interpela como o jurado
que irá absolver ou condenar o herói (o enunciador), juntamente com os valores por ele
defendidos (a democracia, a liberdade de expressão, etc.), assim como também o interpela a
participar da luta de heróis contra tiranos em nome dos valores democráticos, visando captar
o imaginário do co-enunciador para que ele experimente fazer parte desse corpo de heróis e,
assim, se identifique com o enunciador e rechace o seu adversário, aderindo, portanto, ao
seu posicionamento.
140
Enfim, é no mundo criado por essa cenografia que o herói encarnado pelo
enunciador deve construir seu ethos de modo a legitimar a enunciação desse discurso
ideologicamente filiado às formações discursivas de tradição democrática, que no contexto
sócio-histórico da enunciação desse discurso é, no Congresso, fortemente reivindicada pelo
MDB.
7.4. Caracterização do ethos de Márcio Moreira Alves
Apesar de o nosso trabalho priorizar o ethos, falamos muito pouco sobre isso até
aqui, pois estávamos preparando o terreno para esboçar uma descrição que não caísse em
um subjetivismo infundado. Não que seja impossível, mas é difícil assegurar uma qualidade
de ethos com base no exame de apenas uma categoria lingüística ou discursiva, por isso
reservamos esse momento para reunir os resultados das análises feitas em separado e,
considerando o que cada uma revelou de pertinente, caracterizamos o ethos construído no
pronunciamento de Márcio Moreira Alves.
A análise da dêixis lingüística, mais especificamente a categoria da pessoa, nos
mostrou, fundamentalmente, um jogo entre proximidade e distanciamento, entre
subjetividade e objetividade. De um modo geral, o emprego da dêixis da pessoa coloca os
co-enunciadores (presidente da mesa e membros do plenário da Câmara) à distância,
instalando-os como persona – no sentido proposto por Fiorin (2002) – e ressaltando o seu
papel social. Por outro lado, o enunciador (Márcio Moreira Alves), uma vez colocado,
assim, na condição de réu, constrói um tom próximo que revela o caráter de um sujeito que
é engajado e quer engajar seus ouvintes na luta da pela democracia contra a ditadura. O
enunciador Márcio Moreira Alves assume sim um papel social, no entanto o faz se despindo
da persona e valendo-se apenas de sua dimensão pessoal, enfrentando o tribunal de forma
destemida, revelando firmeza de espírito como um traço de caráter que constitui seu ethos.
O exame das modalidades epistêmicas no processo de modalização no discurso de
Márcio Moreira Alves nos apontou que o enunciador manteve perante seu enunciado uma
atitude epistêmica de certeza, que flutuou entre o pólo extremo da certeza e as posições
intermediárias no contínuo entre a certeza e a incerteza, conforme os tipos de objetos de
acordo suscitados. Dessa forma, a atitude epistêmica da certeza do enunciador perante seu
141
discurso de autodefesa e de defesa da soberania do Poder Legislativo atribui ao tom
enunciativo um traço de altivez.
Quanto ao discurso citado, é preciso fazer algum esforço extra para daí determinar
um traço do tom enunciativo, pois, como já dissemos, não basta verificar se o discurso
apresenta mais incidência do discurso direto ou do discurso indireto, devem-se apurar as
circunstâncias em que tais formas são empregadas. Em sendo assim, o estudo do discurso
citado indicou que o discurso político de Márcio Moreira Alves integra positivamente todas
as ocorrências de discurso citado, o que lhe permite construir um tom discurso não
refutatório, mas que também não abdica de seu ponto de vista, revelando firmeza e destemor
como traços de caráter desse enunciador que se posiciona contra o establishment.
No que diz respeito à cenografia, vimos como o discurso de Márcio Moreira Alves
transforma seu julgamento político em um julgamento penal, construindo a cenografia do
julgamento (do paladino) da democracia, por meio da captação de lugares suscitados pelas
cenas validadas e pela cena genérica que se entrelaçam, de modo que o co-enunciador se
sinta em um tribunal, onde ele é o jurado (do paladino) da democracia, ao mesmo tempo em
que ele se sinta também em uma guerra, na qual ele experimenta fazer parte de um corpo de
heróis que lutam contra tiranos em nome dos valores democráticos.
Dessa forma, vemos que Márcio Moreira Alves fala de acordo com esse “mundo”
criado por ele em sua cenografia, em que o paladino se mostra próximo e engajado a fim de
seduzir seus ouvintes para a luta, ao mesmo tempo em que demonstra como traços de
caráter a firmeza de espírito para enfrentar o tribunal e o destemor para romper com o
establishment, o que implica um corpo ereto, erguido, próprio dos paladinos, indivíduos
destemidos e sempre prontos para defender os oprimidos em nome de causas justas53.
A inscrição desse discurso em uma formação discursiva que se alinha à tradição das
conquistas democráticas é legitimada graças à construção discursiva dessa cenografia do
julgamento (do paladino) da democracia, bem como à de um ethos combativo que garante o
que é dito, a defesa da democracia.
A existência de um mundo em que há guerras em torno de um ideal e tribunais que
condenam seus heróis suscita estereótipos culturalmente reconhecidos e valorizados que se
convertem nos modos de presença do herói, do tirano e do covarde. Assim, ao mesmo
53 Conforme Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
142
tempo em que, desse discurso emerge um ethos combativo, emerge também dois anti-ethé:
um tirânico e um receoso. Isso porque seu discurso não constrói só a defesa da democracia,
mas também investe contra a antidemocracia, a ditadura. Como, a partir dessa cenografia do
julgamento (do paladino) da democracia, esse ethos combativo suscita a memória de um
corpo enunciante historicamente especificado (o dos heróis que lutaram pela liberdade),
suscita também um anti-ethos tirânico, que abrange a imagem do anti-herói, daquele que,
por aversão, investe contra os valores veiculados pelo ethos. E, ainda, desse ethos
combativo, podemos inferir a construção de um anti-ethos receoso, que é atribuído àqueles
que não tem coragem de romper como o establishment por temor às retaliações que por
ventura viriam a sofrer; esse anti-ethos é endereçado, justamente, aos parlamentares que
aceitam a República forjada pelo regime militar, com a anuência do governo dos EUA.
Assim, a legitimação recíproca entre a cenografia e sua enunciação passa pela
legitimação dessa qualidade de ethos que o discurso está construindo, isto é, pressupõe-se
que o enunciador, ao construir de si a imagem do herói em julgamento, ajuste o seu modo
de dizer a essa imagem construída, pois não basta ao enunciador apresentar imagem de
herói, é preciso que ele fale como herói, que ele seja combativo.
Um último fenômeno a ser considerado se refere ao processo de incorporação que aí
ocorre por meio da assimilação desse ethos combativo pelo co-enunciador que se identifica
com seu corpo, que é um corpo já disposto socialmente e um modo de ser no espaço social,
em que as representações sócio-culturais valorizam os heróis, desvalorizam os tiranos e
impõem essa axiologia aos seus sujeitos, que se instauram no discurso como enunciador e
co-enunciador.
Dessa maneira, a estratégia argumentativa, nesse discurso, visa a levar o co-
enunciador a rechaçar a imagem do tirano e a querer assimilar a do herói, a fim de que o
parlamentar experimente o sentimento de formar corpo com outros parlamentares, de se
sentir parte de um grupo unido em torno de um ideal.
É importante dizer também que essa oposição de valores que emana do discurso de
Márcio Moreira Alves reflete e refrata, nos termos de Bakhtin, a grade cultural estabelecida
durante o período histórico compreendido pela Guerra Fria que coloca as seguintes
oposições:
• EUA versus URSS;
143
• capitalismo versus socialismo;
• o ideal de sociedade de consumo versus o ideal de sociedade igualitária;
• os setores favoráveis ao Golpe de 64 versus os setores contrários ao golpe;
• governo ditatorial versus oposição democrática;
• ARENA versus MDB.
Desse modo, a construção de um ethos combativo e um anti-ethos tirânico e outro
receoso valoriza positivamente o segundo pólo dessa oposição, ao passo que valoriza
negativamente seu primeiro pólo. Vemos, assim, esse ethos construído no pronunciamento
de Márcio Moreira Alves como a amálgama entre o seu discurso, a sua identidade
discursiva e a sua inscrição na formação discursiva denominada MDB.
144
8. ANÁLISE DO ETHOS CONSTRUÍDO NO PRONUNCIAMENTO DE
MÁRIO COVAS JÚNIOR (MDB/SP)
8.1. As projeções da enunciação no enunciado
8.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem
Iniciemos a análise, observando o seguinte fragmento textual que compõe o exórdio
do pronunciamento de Mário Covas:
Sr. Presidente, permita V.Exa. e os meus pares que eu reivindique, inicialmente, um privilégio singular: o de despir-me da roupagem vistosa da liderança transitória, com que companheiros de partido me honraram [...]. Será, talvez, um desvio regimental concedido, entretanto, plenamente compreensível, já que a causa que somos obrigados a apreciar sobrepaira, superpõe-se às próprias agremiações partidárias (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.99).
Nesse trecho, o enunciador Mário Covas procura captar a benevolência de seu co-
enunciador com vistas a criar uma identificação entre orador e plenário, pois ele se propõe a
falar como um deputado, como um igual, e diz que os partidos estão igualmente submetidos à
mesma causa.
Quanto à instalação das pessoas enunciativas nesse trecho, vemos que o “eu” da
enunciação é projetado no enunciado pelo pronome “me”, enquanto o “tu” da enunciação é
projetado de forma bipartida, isto é, projeta, de um lado, o presidente da mesa por meio do
vocativo e das formas de tratamento “Sr. Presidente” e “V.Exa.” e projeta, de outro lado, os
deputados, membros do plenário, por meio do sintagma “os meus pares”. Essas pessoas
enunciativas são projetadas no enunciado de uma maneira que estabelece, já de início, uma
estratégia de identificação entre o orador e o plenário, mantendo o presidente da mesa à
distancia, resguardando seu papel social de juiz, de mediador.
O enunciador Mário Covas, após criar identificação com o plenário e captar sua
benevolência, cumpre a segunda função do exórdio, que é anunciar a partição do discurso,
vejamos:
145
Creio, Sr. Presidente, ser necessário um exame do problema, ainda que dentro das limitações do tempo regimental, sob vários aspectos. O primeiro deles é o jurídico, evidentemente (Ibidem, p.101).
A narratio e a confirmatio combinarão aí a exposição dos relatos e o desenvolvimento
dos argumentos que incidirão sobre os vários aspectos anunciados em seu exórdio. Assim, o
primeiro ponto a ser discutido por Mário Covas é o aspecto jurídico do problema em torno do
pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves. Entendemos que essa
questão aparece no discurso de Mário Covas com o estatuto de argumento central de seu
pronunciamento.
A construção desse argumento se apóia basicamente em uma citação de um parecer
dado pelo Ministro da Justiça Luiz Antônio da Gama e Silva, um ministro governista. Nesse
caso, é preciso observar as projeções da enunciação sobre o discurso citante e o discurso
citado. Vejamos dois trechos do pronunciamento de Mário Covas que correspondem ao
contorno do discurso citado, sendo que o primeiro fragmento antecede a citação, enquanto o
segundo, a sucede:
Creio, entretanto, que em todo o elenco de autoridades, em todo o rol de fontes citadas, um nome foi esquecido. As razões desconheço. Porém, minha condição de engenheiro certamente me absolverá, se, inspirando-me em sua lição, a tomar para guia e orientação. Trata-se do atual ocupante do Ministério da Justiça, o Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. Leio-lhe um parecer a respeito deste problema; e este parecer está exarado num outro processo, em curso nesta Casa, em que solicita a licença para processar o Deputado Hermano Alves.
Eis S.Exa. em seu ofício ao Procurador da Justiça Militar: (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.102).
Creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados, que a frente poderá ser contestada. Eu entretanto me auto-absolvo, porque, sendo engenheiro, acho inteiramente válido consultar a figura do Ministro da Justiça neste episódio, desta natureza (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.103).
As formas verbais “creio”, “desconheço”, “leio”, “auto-absolvo”, “acho” e as
pronominais “meu”, “minha”, “me” projetam no enunciado do discurso citante o “eu” da
146
enunciação por meio de uma debreagem enunciativa, gerando o efeito de sentido de
proximidade subjetiva, o que instala nesse discurso citante de Mário Covas a pessoa ao invés
da persona. Já, no discurso citado54, a ausência de vestígios enunciativos revela o efeito de
distanciamento objetivo que permeia a fala do enunciador citado, esvaziando a pessoa e
ressaltando a persona, o papel social do Ministro da Justiça Gama e Silva.
Assim, na medida em que Gama e Silva é colocado à distância, Mário Covas e o
plenário são postos em proximidade, o que reforça a estratégia de identificação entre eles. A
projeção da categoria da pessoa assim descrita atribui ao enunciador (deputado Mário Covas)
e ao seu co-enunciador (os deputados que compõem o plenário da Câmara) o estatuto de
pessoa, ao passo que atribui ao enunciador do discurso citado (o Ministro da Justiça Gama e
Silva) o estatuto de persona.
O pronunciamento de Mário Covas desenvolve, ainda, outros argumentos, discorrendo
sobre outros aspectos como o político, o ético, o histórico. Todos os enunciados que abrangem
esses tópicos estão embebidos pelas formas dêiticas que remetem à primeira pessoa do
singular. Esses dêiticos deixam de aparecer somente em dois momentos em que o enunciador
faz citações em discurso direto, seguindo o mesmo padrão de comportamento descrito
anteriormente na citação ao parecer do Ministro da Justiça.
Essa recorrência à construção de enunciados debreados enunciativamente, em que as
formas da primeira pessoa do singular se espalham por toda a extensão do texto, ressalta
fortemente o efeito de proximidade subjetiva, revelando que o enunciador mostra e quer
mostrar que está presente e engajado na relação comunicacional com seu co-enunciador.
De um modo geral, esses efeitos de sentido gerados a partir da projeção da
enunciação no enunciado constroem nesse pronunciamento de Mário Covas um tom de
proximidade, um tom que permite ao enunciador falar de perto com o seu co-enunciador.
Entretanto, a exemplo do que vimos em Márcio Moreira Alves, ainda não é possível dizer se
o enunciador, por meio desse tom de proximidade, sussurra, fala ou brada. Temos aí apenas
o primeiro traço do tom do enunciador, que se juntará aos demais traços conforme nossa
análise for avançando.
54 Veja transcrição no capítulo II, subseção 6.2.2.
147
8.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização
O exórdio do pronunciamento de Mário Covas consiste em dizer que a Câmara
Federal está sendo posta em julgamento e sua soberania está sob ameaça. Remetendo-nos à
leitura da transcrição do texto que contempla o exórdio, podemos notar que o enunciador
Mário Covas revela, não de forma explícita, uma atitude epistêmica de certeza sobre aquilo
que ele diz. Detalhemos isso um pouco mais.
Dos quinze enunciados que compõem o exórdio, apenas o último enunciado apresenta
uma lexicalização de um operador modal epistêmico, que é expresso pela forma verbal
“creio”. Já os quatorze primeiros enunciados ocultam o operador modal epistêmico e relatam
os fatos empregando o tempo presente. O uso do tempo presente no lugar do tempo passado
consiste em uma embreagem temporal que permite ao enunciador Mário Covas presentificar o
episódio em lide e inspirar em seu co-enunciador uma atitude de certeza sobre os fatos que ele
relata. Assim, a predominante ocultação da modalidade epistêmica e sua única manifestação
explícita revelam uma atitude de neutralidade epistêmica, criando aí uma retórica do neutro.
Passando à narratio e à confirmatio, vemos que o argumento central de Mário Covas
corresponde à construção da prova jurídica, que consiste na citação de um parecer do Ministro
da Justiça, Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. E, por se tratar de uma citação sob a forma de
discurso direto, observaremos as modalidades do discurso citante e do discurso citado.
Os modificadores destacados nos enunciados “realmente os artigos publicados pelo
citado parlamentar configuram, indubitavelmente, violações...” e “o abuso de direito político
praticado, sem dúvida, pelo incontinente deputado não atenta contra a ordem...” revelam o
grau máximo de certeza do enunciador do discurso citado – Ministro Gama e Silva – e
modalizam sua voz estabelecendo uma coerência entre o estatuto de autoridade dessa citação
e a firmeza do seu tom.
Já, no discurso citante, a profusão das lexicalizações dos operadores saber e crer não
revela a mesma atitude epistêmica observada no discurso citado, pois uma atitude de certeza é
manifestada em “o primeiro deles é o jurídico, evidentemente”, “conclui V.Exa. de forma
límpida e cristalina...” e “porém, minha condição de engenheiro certamente me
absolverá...”, ao passo que uma atitude de incerteza se manifesta em “creio que...”, “as razões
desconheço...”, “creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados...”.
148
É possível notar aí um deslizamento entre essas duas atitudes que nos permite atribuir
ao enunciador Mário Covas uma atitude epistêmica localizada numa posição intermediária no
contínuo entre a certeza e a incerteza. Isso não significa que ele queira esconder uma ou outra
atitude, já que ele mostra explicitamente as duas, mas sim revela uma amenização do tom
enunciativo, em que a certeza é relativizada pela incerteza.
No epílogo, podemos ver que o operador modal epistêmico se manifesta de forma
explícita em toda essa parte por meio da forma verbal “creio”. Mais uma vez, não se trata de
mostrar alguma atitude de incerteza do enunciador perante seu enunciado, mas sim uma
atitude epistêmica localizada em um ponto mais próximo da certeza, considerando o contínuo
que vai da certeza à incerteza.
O enunciador Mário Covas repete reiteradamente a fórmula “eu creio em [p]”, pois
aquilo que enuncia é construído como objeto de acordo do preferível, assim o enunciador
pode dar de si a imagem de um sujeito que não impõe seus valores. São empregados aí no
epílogo recursos lingüísticos dessemelhantes aos vistos no exórdio, na narratio e na
confirmatio, mas que, no entanto, servem à mesma estratégia discursiva de amenizar o tom
enunciativo.
Em síntese, podemos concluir que o discurso de Mário Covas apresenta uma atitude
epistêmica que flutua entre a certeza e a incerteza, o que vai construindo um tom enunciativo
relativizador, ou seja, que nega o caráter absoluto do que enuncia para afirmar seu caráter
relativo.
149
8.2. A heterogeneidade enunciativa
8.2.1. O discurso citado
O pronunciamento de Mário Covas, diferentemente daquele de Márcio Moreira Alves,
apresenta formas do discurso citado em todas as suas partes, embora as concentre na narratio
e na confirmatio. Totalizamos nove ocorrências que passaremos a examinar a partir de agora:
Há alguns anos, Sr. Presidente, as atenções da nação brasileira eram convocadas com o envio à Câmara dos Deputados de um pedido de licença para processar um parlamentar, sob a acusação de tornar público documento considerado secreto. Durante a discussão do pedido, o acusado, em longo discurso, inseriu estas considerações: “Um deputado converteu-se, por decisão do Governo da República, no teste decisivo do funcionamento das instituições democráticas do Brasil” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.100).
O fragmento textual supracitado nos mostra que essa primeira ocorrência de discurso
citado nesse pronunciamento faz referência a um outro pedido de licença para processar um
parlamentar, cujo nome não é revelado. Todavia, quando Mário Covas se refere a esse
parlamentar como “o acusado”, também está considerando, implicitamente, Márcio Moreira
Alves como acusado, mostrando logo de início que entende esse episódio como um
julgamento. Veremos que, nesse discurso, o enunciador trabalha com a idéia de um
julgamento judicial e a de um julgamento político, em que este é conduzido pelo próprio
Parlamento e possui os seus próprios trâmites, diferentemente dos procedimentos adotados em
um julgamento judicial.
O discurso citado desse parlamentar inominado é integrado positivamente pelo
discurso de Mário Covas como uma voz concordante, corroborando a orientação
argumentativa proposta por seu colega de partido, Márcio Moreira Alves, que acabara de
discursar, e sinalizando também qual será a sua linha de defesa. Já essa citação, do ponto de
vista formal, se manifesta sob a forma do discurso direto, o que gera um efeito de realidade e
dá respaldo à argumentação de Mário Covas.
Passemos à segunda ocorrência de discurso citado, que consiste em um trecho bem
mais extenso do que esse que acabamos de analisar:
150
Há uma constante neste problema, e o desenrolar dos acontecimentos o evidencia. Muitos tentam justificar o voto; outros pleiteiam a validade da tese. Creio, entretanto, que em todo o elenco de autoridades, em todo o rol de fontes citadas, um nome foi esquecido. As razões desconheço. Porém, minha condição de engenheiro certamente me absolverá, se, inspirando-me em sua lição, a tomar para guia e orientação. Trata-se do atual ocupante do Ministério da Justiça, o Dr. Luiz Antônio da Gama e Silva. Leio-lhe um parecer a respeito deste problema; e este parecer está exarado num outro processo, em curso nesta Casa, em que solicita a licença para processar o Deputado Hermano Alves.
Eis S.Exa. em seu ofício ao Procurador da Justiça Militar: “Realmente os artigos publicados pelo citado parlamentar configuram,
indubitavelmente, violações dos preceitos expressos nos artigos 14, etc., do Decreto-Lei 314, porque:
a) por sua falsidade, tendenciosidade e deturpação põe em perigo o bom nome, a autoridade e o prestígio do Brasil;
b) constituem atos destinados à guerra revolucionária ou subversiva; c) ofendem a honra e a dignidade do Exmo. Sr. Presidente da República
diretamente ou através de seus Ministros de Estado e auxiliares; d) incitam, publicamente, a subversão da ordem política e social e
animosidade entre as instituições civis e as Forças Armadas”. Mais adiante, conclui S.Exa, de forma límpida e cristalina, a orientar-nos no
atual problema. “No tocante, porém, aos discursos proferidos na tribuna da Câmara dos
Deputados, não se afigura, in casu, exista qualquer delito, diante da indenidade assegurada do Art. 34, caput, da Constituição, e porque o abuso do direito político praticado, sem dúvida, pelo incontinente Deputado não atenta contra a ordem democrática nem visa à prática de corrupção, e somente quando o abuso do direito tende a esses objetivos ou a qualquer deles, se justifica a medida prevista no art. 151 da Lei Maior.”
Creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados, que a frente poderá ser contestada. Eu entretanto me auto-absolvo, porque, sendo engenheiro, acho inteiramente válido consultar a figura do Ministro da Justiça neste episódio, desta natureza (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.102-103).
Nesse extenso fragmento textual, o pronunciamento de Mário Covas produz o que
consideramos ser o seu argumento central. Por meio dessa citação, Mário Covas constrói um
fato, no sentido de Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996, p.76), que associam a noção de fato
ao acontecimento, desde que não sejam levantadas dúvidas sobre ele. Vejamos: por meio do
discurso citado de Gama e Silva, Mário Covas cria o fato de que o deputado Márcio Moreira
Alves, em seus pronunciamentos de 2 e de 3 de setembro de 1968, não atenta contra a ordem
151
democrática nem visa à corrupção, o que lhe preserva o direito à inviolabilidade, garantida no
artigo 34 da Constituição Federal de 1967, doravante CF/67, e o afasta da suspensão dos
direitos políticos prevista em seu artigo 151.
Tal fato é construído em torno dessa citação em forma de discurso direto que simula a
enunciação do discurso do ministro governista – Gama e Silva – que encaminhou o pedido de
licença para processar Márcio Moreira Alves. Mário Covas evoca, por meio dessa citação, as
vozes do establishment para amparar sua argumentação, o que consiste numa estratégia muito
astuciosa, pois integra positivamente em seu discurso, justamente, a voz daquele que
encaminhou o pedido de licença para processar o deputado Márcio Moreira Alves. O Ministro
da Justiça, ao encaminhar seu ofício à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal,
justifica tal pedido e, certamente, não isenta o referido deputado; contudo, Mário Covas cita o
pedido de Gama e Silva de forma ardilosa, já que usa as palavras do Ministro para mostrar
que ele disse o que, efetivamente, não quis dizer.
É importante mostrarmos como Mário Covas constrói a imagem desse enunciador
citado – Gama e Silva. O contorno desse discurso citado – que corresponde ao discurso
citante – se caracteriza pelo grande encadeamento de enunciados cuja finalidade é lançar as
apreciações valorativas do enunciador do discurso citante (Mário Covas) sobre o discurso
citado (o parecer do Ministro da Justiça).
Desse processo de preparação para a citação do discurso alheio, podemos destacar,
inicialmente, um dos momentos em que o discurso constrói a imagem do anti-sujeito. No
enunciado “Muitos tentam justificar o voto; outros pleiteiam a validade da tese”, vemos o
emprego do discurso narrado55, ou seja, a narração de uma ação enunciativa, o que não chega
a construir um simulacro do discurso alheio, mas apenas lhe faz menção. Nesse enunciado, o
enunciador está narrando para o seu co-enunciador um discurso alheio, em que as formas
verbais “tentam” e “pleiteiam” indicam a subsistência de uma voz alheia cuja força
ilocucionária está no patamar da pretensão e não no da realização. Tal mecanismo lingüístico
desqualifica a voz daqueles que se mostram favoráveis ao pedido militar, oferecendo ao co-
enunciador a imagem de um anti-sujeito.
55 Para Grilo (2004, p.115), o discurso narrado “se apresenta como o menos mimético e o mais distante das fontes, reduzindo-as a uma descrição e integrando-as ao discurso citante. Do ponto de vista formal, o discurso citado subsiste com a presença de um verbo de elocução e é mencionado sob a forma de um infinitivo ou de um sintagma nominal, o que o diferencia do discurso indireto”.
152
Nos enunciados seguintes, o discurso citante de Mário Covas qualifica o discurso
citado por meio dos itens lexicais “lição”, “guia” e “orientação”, da apreciação valorativa
contida em “de forma límpida e cristalina” e das formas verbais “conclui” e “orientar”.
O discurso de Mário Covas atribui ao Ministro da Justiça a imagem do jurista que
possui autoridade máxima sobre o assunto para dizer em seu lugar que “o abuso do direito
político praticado, sem dúvida, pelo incontinente Deputado não atenta contra a ordem
democrática” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.103). E, de acordo com
Maingueneau (1997, p.100), temos aí uma citação de autoridade, em que “o ‘locutor’ se apaga
diante de um ‘Locutor’ superlativo que garante a validade da enunciação”.
Mais adiante, o discurso de Mário Covas integrará negativamente as vozes daqueles
que incentivam o pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves, por meio destas
duas ocorrências de discurso citado:
Mas, Sr. Presidente, ouço sustentar que não só o argumento jurídico teria razões para este procedimento. Aqui e ali, ouço que, ao analisar o problema sob o ângulo político, diferente será o comportamento de cada um de nós (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.103-104).
Mas, Sr. Presidente, haveria aqueles que sustentariam que seria possível vislumbrar razões de natureza moral ou ética a justificarem a concessão (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.104).
No primeiro fragmento (terceira ocorrência), o enunciador do discurso citante traduz
essas vozes por meio do discurso narrado56, pois vemos aí a narração de uma ação enunciativa
alheia que se deixa perceber pela forma verbal “ouço” (que funciona aí como verbo de
elocução) e pelo conteúdo discursivo pertencente ao discurso de seus adversários. Embora não
seja tão mimético quanto à forma do discurso direto, o discurso narrado indica a subsistência
do discurso alheio no fio discursivo e isso já nos basta para não negligenciar essa forma de
discurso citado.
No segundo fragmento (quarta ocorrência), tais vozes são traduzidas por meio do
discurso indireto, o que permite ao enunciador do discurso citante demarcar fronteira entre
56 Conforme apresentado por Grilo (2004, p.115).
153
seu discurso e o discurso do outro e, sobretudo, fazer prevalecer o seu modo de dizer sobre o
do outro para apresentar à sua moda o conteúdo do discurso alheio. A fórmula do discurso
indireto aparece aí bem nitidamente: “haveria aqueles que sustentariam que...”. Novamente,
Mário Covas se vale de uma estratégia para infirmar a voz daqueles que ele considera seus
adversários.
Passemos ao exame da quinta ocorrência de discurso citado:
São insuficientes os exemplos da nossa tradição. Ater-me-ei a apenas dois exemplos, legados por outros povos. É da “Jurisprudência Parlamentar”, de Frederico Mohrhoff – autorização para instaurar processo contra Deputados, página 346:
“Autorização para instaurar processo contra Deputado Dias Laura pelo crime previsto no art. 290 do Código Penal, modificado pelo art. 2 da lei 1317, de 11 de novembro de 1947. (Menosprezo às forças armadas do Estado).”
A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não concedeu o pedido de autorização para processar.
Página 359: “Autorização para processar o Deputado D’Amico pelo crime de que trata o
art. 272 do Código Penal (propaganda e apologia subversiva ou antinacional).” A Câmara, chamada a decidir, acolheu o parecer da Comissão e não
concedeu o pedido de autorização para processar (sic). Eis aí dois exemplos legados pelo Parlamento italiano em casos específicos.
As invectivas contra instituições, contra as Forças Armadas do Estado não encontraram, por parte daquele Parlamento, a licença para processar o Deputado (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.105-106).
Nesse fragmento textual, vemos que Mário Covas volta a dialogar com o discurso
jurídico, integrando positivamente ao seu discurso a Jurisprudência parlamentar de Federico
Mohrhoff57 (e não Frederico como fora publicado pelo Diário Oficial da Câmara dos
Deputados). Trata-se aí de mais uma extensa citação sob a forma do discurso direto, que cria
o efeito de realidade, pois dá a impressão de que o discurso citado é fiel à fonte, já que o
enunciador do discurso citante (Mário Covas) parece estar repetindo o que o enunciador do
discurso citado (Federico Mohrhoff) disse.
57 MOHRHOFF, Federico. Giurisprudenza Parlamentare. Dottrina e massimario. Roma, Bardi, 1950.
154
Sabendo-se que a jurisprudência concerne ao “conjunto das decisões e interpretações
das leis feitas pelos tribunais superiores, adaptando as normas às situações de fato”58, bem
como que a obra citada é de origem italiana, podemos dizer que tal citação visa, de imediato,
querendo ou não, a expor nossa face colonialista, pois quer mostrar que um país europeu,
portanto avançado, tem uma democracia madura que sabe respeitar o Parlamento e que,
inclusive, já tem seus direitos resguardados em jurisprudência. Se o Brasil não tem isso, logo
é um país atrasado, sobretudo no que tange à sua democracia. Esse é um aspecto.
O outro aspecto deve ser apanhado dentro da seqüência de citações que analisamos.
Lembremos que o discurso de Mário Covas constrói ardilosamente, por meio da citação de
um parecer do Ministro Gama e Silva, seu argumento irrefutável de que Márcio Moreira
Alves não atentou contra a ordem nem praticou corrupção. No entanto, a defesa não se
encerra aí. Essa citação do discurso de Federico Mohrhoff mostra justamente que as
invectivas contra as Forças Armadas não podem conceder a licença para processar o
deputado. Em outras palavras, o discurso de Mário Covas integra positivamente os discursos
citados do Ministro Gama e Silva e do jurista italiano Federico Mohrhoff para corroborar sua
tese de que Márcio Moreira Alves, no uso de suas atribuições parlamentares, não atentou
contra a ordem nem praticou corrupção, ao investir contra as Forças Armadas, logo o
Parlamento não pode conceder a licença para processá-lo.
Examinemos, agora, a sexta ocorrência:
Resta-nos, Sr. Presidente, o argumento dos simplistas: trata-se de uma exigência (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.106).
Podemos notar que, nesse fragmento textual, Mário Covas volta a desqualificar o
discurso daqueles que se mostram favoráveis ao pedido de licença para processar Márcio
Moreira Alves. O discurso citado manifesta-se aí sob a forma de um discurso direto sem
aspas. Tem-se aí a simulação não da enunciação textual de um discurso alheio, mas sim do
conteúdo desse discurso de outrem. O conteúdo do discurso citado “trata-se de uma
exigência” é apreciado como o último dos argumentos tanto na quantidade (“resta-nos”) como
na qualidade (“simplistas”), pois, quando Mário Covas diz “resta-nos”, ele quer dizer que não
58 Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
155
há mais o que argumentar; e, quando ele diz “simplistas”, desqualifica aqueles que, ao
contrário dele, consideram apenas um aspecto de todo esse problema em torno da cassação,
que são, justamente, aqueles que concluem favoravelmente ao pedido de licença. O emprego
do discurso direto cria aí o efeito de realidade, imputando a esse enunciador citado um
conteúdo discursivo sem fonte de citação, mas que se sustenta, pois manifesta a imagem que
se faz do discurso dos que defendem a cassação do mandato parlamentar.
Já na sétima ocorrência de uma forma de discurso citado nesse pronunciamento,
Mário Covas volta a recorrer a uma citação sob a forma do discurso direto, reproduzindo
partes de um documento oficial: um ofício do Ministério do Exército, que solicita
providências quanto aos pronunciamentos de Márcio Moreira Alves. Acompanhemos:
Como prova testemunhal, leio o teor do ofício do Ministério do Exército, solicitando as providências legais.
Diz S.Exa.: “O Deputado Federal Márcio Moreira Alves, em sessão de 2 do corrente,
falando a respeito dos lamentáveis e tristes acontecimentos ocorridos na Universidade de Brasília, no seu legítimo direito de adversário do Governo, formulou, em termos textuais, a seguinte pergunta.”
Mais adiante: “O mesmo Deputado, ainda sob o clima emocional pelos fatos gerados,
antes mesmo que fossem apuradas as causas e os responsáveis, assim se pronunciou:”
Prosseguindo: “Embora os referidos conceitos, de caráter e de responsabilidade pessoal do
Deputado em apreço, no uso da liberdade que lhe é assegurada pelo regime instituído com a revolução de março, não exprimam o pensamento da Câmara mais preservativo do povo brasileiro, na sua dignidade intangível e na respeitabilidade do seu próprio decoro, é de considerar-se a ressonância com que eles ecoam no seio do Exército”.
E finaliza: “A despeito da gravidade evidente das ofensas dirigidas pelo Deputado
Márcio Moreira Alves e do sentimento de repulsa com que elas ainda mais uniram os militares, como integrantes de uma instituição a que tanto já deve a democracia brasileira, o Exército continua empenhado em contê-las dentro da disciplina e da serenidade das suas atitudes, obediente ao Poder Civil e confiante nas providências que V.Exa. julgue devam ser adotadas” (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.107-108).
156
Podemos observar nesse fragmento textual que o discurso de Mário Covas integra
positivamente esse discurso citado, traduzindo apenas os enunciados que oferecem categorias
reivindicadas aleatoriamente, desconsiderando a linha de raciocínio do discurso citado. Em
outros termos, Mário Covas reproduz em seu discurso somente as categorias que a ele
interessa ressaltar.
Os quatro enunciados reproduzidos sob a forma do discurso direto são postos em
seqüência por meio das formas “diz S.Exa.”, “mais adiante”, “prosseguindo”, “e finaliza”.
No primeiro enunciado, “O Deputado Federal Márcio Moreira Alves [...] formulou [...]
a seguinte pergunta”, o catafórico “seguinte” fica sem referente interno graças à interrupção do
prosseguimento do texto citado, que deixa a pergunta sem resposta. Isso porque o que interessa
ao discurso citante de Mário Covas é mostrar que o Ministério do Exército reconhece “os
lamentáveis e tristes acontecimentos ocorridos na Universidade de Brasília”, bem como o
“legítimo direito de adversário do Governo” que goza Márcio Moreira Alves.
É possível observar o mesmo comportamento também no segundo enunciado, “o
mesmo Deputado [...] assim se pronunciou”, que também suprime o que supostamente fora
pronunciado por Márcio Moreira Alves, já que importa mostrar que ele estava sob o clima
emocional dos fatos gerados. Já, nos dois últimos enunciados, não há mais supressões
textuais, entretanto mantém-se a estratégia de mostrar que o Ministério do Exército é uma
instituição que também reconhece os valores democráticos. Nessa sétima ocorrência de
discurso citado, o efeito de realidade gerado pelo emprego do discurso direto colaborou não
para construir um raciocínio do tipo ‘x então y’, como na segunda e na quinta ocorrência, mas
sim para valorizar positivamente a imagem pré-discursiva de Márcio Moreira Alves por meio
da voz do próprio Ministério do Exército.
Trata-se aí de mais um ardil empregado por Mário Covas para distorcer um discurso
produzido pelo establishment e integrá-lo positivamente no seu discurso oposicionista, que, na
verdade, vai se construindo como um discurso de conciliação que visa ao consenso.
Tratemos, agora, da oitava ocorrência:
Se preferirem o testemunho idôneo, dir-lhes-ei que ao longo deste episódio em contato não apenas com civis de todas as categorias, como com militares de variadas patentes, tenho ouvido insistente e ansiosamente repetida a afirmação de que não sobrarão outras oportunidades para que o Poder Legislativo manifeste sua independência (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.109).
157
Nesse fragmento, podemos notar que Mário Covas, ao mostrar que dialoga com “civis
de todas as categorias” e “militares de variadas patentes”, mostra que dialoga com um amplo
leque de setores da sociedade brasileira, ou seja, que esse enunciador do discurso citado é um
ente amplificado e representativo que opina contrariamente ao pedido de licença para
processar Márcio Moreira Alves.
Por meio desse discurso citado, Mário Covas quer dizer que amplos setores da
sociedade estão preocupados com o Congresso, pois sabem do risco que ele corre de ser
fechado pelo regime militar, como atesta uma reportagem da revista Veja (1968) publicada
em 4 de dezembro de 1968 sob o título “Afinal, quem ameaça o Congresso?”59.
Examinemos, enfim, a nona e última ocorrência:
Da altitude dessa tribuna, da majestade desta Mesa, da altivez deste plenário, as vozes do gênio do Direito e da Deusa da Justiça podem ser ouvidas no seu patético apelo: não permitais que um “delito impossível” possa transformar-se no funeral da Democracia, no aniquilamento de um Poder e no cântico lúgubre das liberdades perdidas (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.110).
Nesse fragmento, vemos que o enunciador Mário Covas recorre ao discurso direto
para invocar todo o princípio moral do Direito e da Justiça, simulando a voz de dois
enunciadores que não possuem uma referência ontológica. O “gênio do Direito” e a “Deusa da
Justiça” são seres antropomorfizados, pois encarnam aí os espíritos que regem e inspiram o
Direito e a Justiça. Essa voz citada possui também um traço mágico e não humano, dando a
impressão de que se trata de uma voz que paira sobre o que é humano.
Portanto, pode-se dizer que esse discurso citado é traduzido positivamente como a voz
daqueles que estão acima dos homens, mas que nesse momento enunciativo se submetem aos
membros do plenário em nome de algo maior, que é a liberdade.
De um modo geral, podemos perceber que o discurso de Mário Covas se vale de um
grande número de citações, mas negocia somente com vozes de dois universos discursivos: o
59 Vide anexo VII.
158
jurídico e o político. Vejamos o quadro a seguir que visa a recuperar os dados levantados
durante a análise:
As nove ocorrências de formas do discurso citado no pronunciamento de Mário Covas
nº integração forma enunciador citado
1 positiva discurso direto parlamentar acusado
em outro processo
2 positiva discurso direto Ministro da Justiça
Gama e Silva
3 negativa discurso narrado os que são favoráveis
ao pedido de licença
4 negativa discurso indireto os que são favoráveis
ao pedido de licença
5 positiva discurso direto Jurisprudência parlamentar
de Federico Mohrhoff
6 negativa discurso direto os que são favoráveis
ao pedido de licença
7 positiva discurso direto Ministério do Exército
8 positiva discurso indireto Civis de todas as categorias
e militares de variadas patentes
9 positiva discurso direto gênio do Direito e
Deusa da Justiça
Na negociação com o discurso alheio oriundo do universo político, Mário Covas
mostra com quais setores da sociedade ele se identifica e não se identifica, operando com
integrações reivindicadas (positivas) e recusadas (negativas). Assim, as ocorrências
numeradas por 1, 7 e 8 são integradas positivamente ao pronunciamento de Mário Covas para
sustentar o seu discurso, ao passo que as ocorrências 3, 4 e 6 são integradas negativamente, a
fim de desqualificar a voz de seus adversários políticos. Nessas seis ocorrências, podemos
observar que o diálogo interdiscursivo se manifesta variavelmente sob as formas do discurso
narrado, do discurso direto e do discurso indireto. Podemos dizer que esse uso das formas do
159
discurso citado revela uma maneira articulada e desenvolta de dizer, pois não se deixa prender
a uma forma de inscrever o discurso de outrem.
No que toca ao diálogo com o discurso jurídico, as ocorrências 2 e 5 nos mostraram
que o discurso citado se manifesta por meio da citação sob a forma do discurso direto, de
maneira a amenizar o tom do enunciador Mário Covas para elevar o tom dos enunciadores
alheios Gama e Silva e Federico Mohrhoff. Na ocorrência 9, o tom do enunciador também é
amenizado, porque, na verdade, há aí um apelo e esse apelo não é feito pelo “gênio do
Direito” e pela “Deusa da Justiça”, mas sim pelo próprio enunciador.
De um modo geral, o que vale ressaltar é que o emprego das formas do discurso citado
constrói no discurso de Mário Covas um modo de dizer articulado, mostrando que o
enunciador possui habilidades próprias de um orador, pois transmite ardilosamente ao seu co-
enunciador as principais vozes do establishment, transformando-as em vozes aliadas. Mário
Covas complementa essa estratégia de não atacar frontalmente o regime militar, deixando de
indicar as fontes dos discursos que ele desqualifica, ou seja, ele critica um comportamento,
mas não se compromete com ninguém nominalmente.
160
8.3. A cenografia
Antes de tratarmos propriamente da cenografia, cercaremos o quadro cênico e as
cenas validadas construídas pelo discurso de Mário Covas.
Assim como no discurso de Márcio Moreira Alves, o quadro cênico aí apresentado
estabelece entre os participantes da enunciação o estatuto pragmático e institucional da
comunicação que é definido pela cena genérica (propiciada pelo pronunciamento parlamentar)
e pela cena englobante (propiciada pelo discurso político), ou seja, o enunciador e o co-
enunciador são aí interpelados como parlamentares, independentemente da captação de papéis
sociais promovida pelas cenas validadas, as quais serão tratadas a partir de agora.
A exemplo do pronunciamento de Márcio Moreira Alves, o de Mário Covas também
trabalha fortemente com a cena validada do tribunal, captando, assim, os papéis sociais a ela
pertencentes. Vejamos os enunciados que permitem tal leitura:
Em sua análise, o coletivo domina o individual, o institucional supera o humano, a impessoalidade há de ser o traço marcante, eis que, hoje, esta Casa está sendo submetida a julgamento. Recolhida ao banco dos réus, aguarda o veredicto que será exarado pelos próprios ocupantes (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.99).
A acusação é o crime de injúria a uma instituição – as Forças Armadas. A
arma, a palavra. O instante: os dias em que atingiu o clímax, a alta tensão emotiva emergente dos episódios relacionados com a invasão da Universidade de Brasília (Ibidem, p.100-101).
Ora, sendo o Legislativo, por definição constitucional, um Poder
independente, juiz, portanto, de seus próprios atos, e dispondo de instrumental necessário ao exercício dessa competência, infere-se uma conclusão iniludível: concedendo a licença, o Poder Legislativo se estará autocondenando, pelo crime de omissão (Ibidem, p.104).
Porque em tudo isso creio, Sr. Presidente, e protegido pelo resguardo de
minhas palavras iniciais, quero declarar minha firme crença de que, hoje, o Poder Legislativo será absolvido (Ibidem, p.110).
Esses enunciados são permeados pelo campo lexical do tribunal, que pode ser
depreendido por meio dos seguintes itens lexicais: “julgamento”, “banco dos réus”,
161
“veredicto”, “acusação”, “crime de injúria”, “arma”, “juiz”, “autocondenando” e “absolvido”.
Isso é que nos permite a leitura de uma cena validada que mobiliza a memória de um tribunal
e capta seus papéis sociais, autorizando o enunciador Mário Covas a falar e a agir como o
advogado de defesa do Poder Legislativo e a interpelar o seu co-enunciador (o plenário da
Câmara) como o júri que deverá absolver ou condenar tal Poder.
Entretanto, como já vimos, é preciso ponderar que Mário Covas não reproduz
exatamente o mesmo tribunal construído pela cenografia do discurso de Márcio Moreira
Alves, pois, enquanto este afirma a cena de um julgamento judicial, aquele constrói uma cena
mais contemporizadora que visa a estabelecer que o pedido de licença consiste em um
julgamento, porém um julgamento político que obedece aos trâmites do próprio Congresso.
Tratemos, agora, de correlacionar o quadro cênico e a cena validada que acabamos de
descrever a fim de compreender a construção da cenografia nesse pronunciamento.
A cena englobante e a cena genérica interpelam o deputado Mário Covas (enunciador)
e o presidente da mesa mais o plenário da Câmara (co-enunciador) como parlamentares. Já a
cena validada capta os papéis sociais do tribunal e os atribuem ao enunciador e ao co-
enunciador desse discurso. Assim, o discurso de Mário Covas vai construindo uma cena de
enunciação, em que os papéis suscitados pela cena validada e pela cena genérica se
entrelaçam e criam a cenografia do julgamento do Poder Legislativo.
Por meio dessa cenografia, Mário Covas reforça mais a idéia da criação não de um
tribunal judicial, mas sim de um tribunal político, em que o presidente da mesa é, então,
interpelado como o juiz da sessão deliberativa, isto é, o juiz do processo político, ao passo que
o plenário é interpelado como júri que irá absolver ou condenar o próprio Poder Legislativo,
assim como o enunciador é colocado como o advogado de defesa de Márcio Moreira Alves e,
por extensão, do Poder Legislativo.
Enfim, é no mundo criado por essa cenografia que o advogado de defesa encarnado
pelo enunciador deve construir seu ethos de modo a legitimar a enunciação desse discurso que
se inscreve na formação discursiva denominada MDB.
162
8.4. Caracterização do ethos de Mário Covas
Tratemos, agora, de caracterizar o ethos construído no discurso de Mário Covas com
base nas análises que apresentamos até aqui.
A análise da dêixis lingüística, mais especificamente a categoria da pessoa, mostrou
que a projeção das pessoas enunciativas obedece a uma estratégia discursiva que visa a criar
uma identificação entre o enunciador Mário Covas e os membros do plenário da Câmara e a
manter certa distância em relação ao presidente da mesa. De um modo geral, essa estratégia
constrói nesse pronunciamento um tom de proximidade, um tom que permite ao enunciador
falar de perto com o seu co-enunciador.
O exame das modalidades epistêmicas nos mostrou que o deslizamento entre a certeza
e a incerteza constrói um tom relativizador, revelando a tolerância (tendência a admitir, nos
outros, maneiras de pensar, de agir e de sentir diferentes ou mesmo diametralmente opostas às
nossas60) como traço de caráter do enunciador.
Ao analisarmos o discurso citado, vimos o desenvolvimento de uma estratégia
astuciosa que vai desenhando um modo refinado de dizer que, do ponto de vista oratório,
revela um sujeito argucioso, mas que, do ponto de vista ideológico, revela um sujeito que faz
concessões ao establishment em nome de um consenso.
Quanto à cenografia, vimos que o pronunciamento de Mário Covas produz uma cena
validada e uma cena genérica que se entrelaçam e constroem o que chamamos de cenografia
do julgamento do Poder Legislativo. Essa cenografia limita-se a criar a cena do julgamento
político, em que o presidente da mesa é interpelado como o juiz desse processo político, o
plenário é interpelado como júri e Mário Covas se posiciona como o advogado de defesa.
A fim de legitimar a enunciação de seu discurso, Mário Covas encarna o advogado e
enuncia em um tom que o permite se aproximar do júri para sensibilizá-lo, como o fazem os
grandes defensores. Ele se mostra como um sujeito contemporizador, que procura relativizar
seu ponto de vista em nome do consenso. Ele se vale de ardis para provar a inconsistência do
pedido de licença para processar Márcio Moreira Alves. Essas são características que
atribuem ao enunciador Mário Covas o que podemos chamar de ethos conciliador. É esse
ethos que o torna fiador de um discurso endereçado a uma frente ampla, de um discurso que
163
busca na própria existência do Congresso o motivo para a conciliação entre seus membros, os
quais, ainda que filiados a agremiações distintas, partilham o mesmo princípio que sustenta o
Poder Legislativo: a democracia. Assim, esse pronunciamento não se limita a ser o discurso
da formação discursiva denominada MDB, pois, ao despir-se da roupagem vistosa da
liderança transitória, Mário Covas discursa para todo o Congresso.
Também é importante dizer que a construção discursiva de um mundo em que a
liberdade é questionada, posta sob julgamento, indica a existência de uma classe oprimida e
outra opressora. Nesse mundo, as representações sociais não apresentam um matiz tão
variado. Então, ao mesmo tempo em que, desse discurso emerge um ethos conciliador do
defensor público da liberdade e da democracia, emerge também um anti-ethos brutal daquele
que é avesso à liberdade e à democracia, o anti-ethos tirânico.
Assim, a legitimação recíproca entre a cenografia e sua enunciação passa pela
legitimação dessa qualidade de ethos que o discurso está construindo, isto é, pressupõe-se que
o enunciador, ao construir de si a imagem do defensor público, ajuste o seu modo de dizer a
essa imagem construída, pois não basta ao enunciador apresentar tal imagem, é preciso que
ele fale como tal.
Tratemos agora de outros dois fenômenos ligados ao ethos. Primeiramente, para
entender o processo de incorporação no discurso de Mário Covas, é preciso lembrar que esse
discurso constrói uma identificação irrestrita entre o enunciador e seu co-enunciador, com
vistas a conquistar a maioria do plenário e obter êxito na votação, já que Mário Covas
representa aí a liderança da minoria no Congresso.
Considerando tal estratégia, vemos que Mário Covas oferece ao seu co-enunciador a
incorporação não simplesmente da imagem do defensor público da democracia, mas sim da
imagem do homem que acredita nos valores das tradições democráticas. Assim, o enunciador,
ao se mostrar como um igual perante seus pares e ao defender os valores da democracia,
oferece ao seu co-enunciador, os demais deputados, a experiência de eles se sentirem parte
desse grupo de homens que acreditam na democracia, que se expressam e que compreendem
uma fala conciliadora.
Todavia, se, do ponto de vista lingüístico e estratégico, esse discurso revela um
político habilidoso, ele suscita dúvidas quanto ao posicionamento ideológico desse político,
60 Conforme Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
164
pois ao convocar as vozes do establishment como defensores do Estado de direito, Mário
Covas, além de distorcer o discurso dessa formação discursiva, se aproxima demais dela e
compromete sua identidade discursiva.
O ethos, o anti-ethos e o processo de incorporação não se dão ao acaso, pois remetem
a corpos já dispostos socialmente e modos de ser no espaço social, em que as representações
sócio-culturais valorizam os democráticos e desvalorizam os antidemocráticos, impondo essa
axiologia aos seus sujeitos, que se instauram no discurso como enunciador e co-enunciador.
Podemos concluir que, diferentemente do ethos construído no pronunciamento de
Márcio Moreira Alves, esse ethos conciliador de Mário Covas, ao negociar com o regime,
garante a enunciação de um discurso preocupado com a sobrevivência do Congresso, ao
mesmo tempo em que promove uma abertura no discurso oposicionista da formação
discursiva MDB, pois deixa de ser o discurso da ruptura para ser o discurso do convívio com
o regime militar. Ao menos é o que parece.
165
9. ANÁLISE DO ETHOS CONSTRUÍDO NO PRONUNCIAMENTO DE
GERALDO FREIRE (ARENA/MG)
9.1. As projeções da enunciação no enunciado
9.1.1. A dêixis lingüística e os processos de embreagem e debreagem
O texto a seguir é uma transcrição da parte inicial do exórdio do pronunciamento de
Geraldo Freire:
Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é apenas o de desfazer alguns equívocos. O primeiro deles, é quando se diz que estamos procedendo à degola de um Deputado, a cassação de um de nossos colegas. Não se trata absolutamente disto. O que temos em vista é apenas um pedido de licença dirigido pelo Supremo Tribunal Federal à Câmara dos Deputados. Então quem entender que se trata de degola, necessariamente, há de estabelecer que os juízes do Tribunal Superior Federal são carrascos e não magistrados (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.111).
É interessante como o exórdio desse texto negligencia a captação da benevolência do
plenário e o anúncio das partes do discurso, pois privilegia a apresentação imediata do
seguinte contra-argumento: o Congresso não está julgando Márcio Moreira Alves, mas sim
votando um pedido de licença para processá-lo. E isso já indica duas características: um
discurso de refutação, por conseguinte um tom refutatório, e um modo de dizer franco e
direto, que desconsidera as etiquetas e o excesso de formalidades.
Quanto à instalação das pessoas no enunciado, o “eu” e o “tu” da enunciação são
projetados distintivamente apenas no primeiro enunciado, em que o “eu” é projetado pelo
pronome “meu”, enquanto o “tu” o é por meio da forma de tratamento consagrada pelo ritual
parlamentar: “Sr. Presidente, Srs. Deputados”.
No entanto, o que observamos durante a narratio e a confirmatio é o uso recorrente
do “nós” para projetar as pessoas da enunciação. As marcas lingüísticas expressas no texto –
tais como as formas verbais “estamos”, “temos”, “sabermos”, “vamos”, “recebemos”,
“votássemos” e “considerássemos” e os pronomes “nossos”, “nós” e “nos” – referem-se ao
166
“nós” inclusivo e não ao plural majestático, de modéstia ou de autor, pois implica a
amplificação da primeira pessoa por meio da inclusão do “tu”.
Esse tipo de projeção enunciativa propõe ao co-enunciador um contrato que estabelece
uma identificação imediata entre enunciador e co-enunciador, delineando um mesmo corpo
para ambos. Nesse discurso de Geraldo Freire, os sujeitos da enunciação comungam do
mesmo corpo social daqueles que se identificam com os valores “patrióticos”. Cria-se a
imagem do defensor da Pátria, do homem patriótico que “todo brasileiro deve ser”.
Ainda na narratio e na confirmatio, vemos que o discurso de Geraldo Freire também
se concentra na construção da prova jurídica, pois visa a refutar o argumento central de Mário
Covas, que fora construído como algo irrefutável. Todavia, como Geraldo Freire não tem
(pois não apresenta) um argumento tão incontestável como o de Mário Covas, ele recorre a
onze representações do discurso citado que constituem uma estratégia que compreende cinco
etapas, a saber: (a) desqualificar o adversário; (b) configurar o parágrafo único do artigo 151
da CF/67 como uma exceção; (c) justificar a exceção; (d) respaldar sua justificativa; (e)
retomar e reler o parágrafo único do artigo 151.
Quanto às projeções da enunciação, há que se observar novamente a relação entre
discurso citante e discurso citado. As apreciações valorativas contidas no discurso citante são
emitidas por um “eu” projetado por meio da debreagem enunciativa, o que ressalta o caráter
subjetivo dessas apreciações. Esse número exagerado de citações, que são entrecortadas pelos
comentários do enunciador, cria a imagem de um sujeito glosador, um indivíduo capaz de
dialogar com a Bíblia, a Constituição e tantos outros textos religiosos e políticos. No entanto,
seu discurso não consegue mostrar astúcia, mas sim cominação, o que se desvela em seu
epílogo, como se vê no seguinte fragmento:
Louvo aqueles que pensam contra mim, louvo esta estreita fidelidade partidária do MDB. Vou mais, Sr. Presidente, não ouso censurar a ninguém pelo fato de discordar de mim, esteja em que legenda for (Diário da Câmara dos Deputados, 2000, p.120-121).
Nesse trecho, a unidade partidária do MDB está sendo julgada dentro de um sistema
de valores morais como um valor positivo pelo próprio líder da ARENA. No entanto, Geraldo
Freire, ao dizer que louva seu adversário, quer dizer que seus aliados devem seguir o mesmo
167
exemplo de unidade do MDB, o que garantiria a vitória governista na votação. O que Geraldo
Freire faz aí é coagir os membros da ARENA.
Finalmente, é preciso considerar que o discurso de Geraldo Freire parece construir no
enunciado o corpo de um homem comportado, “desabusado”61, defensor da moral e da
ordem, já que ele se diz “líder de um grupo de homens desabusados e dignos, coerente e
puros, bravos e patrióticos...”, todavia são as suas estratégias, desenvolvidas na enunciação,
que constroem um modo de dizer desprovido de refinamento e, dessa maneira, o tom altivo
declina para o impositivo, o corpo vigoroso do herói para o corpo espesso do censor, o caráter
expansivo para o caráter castrador.
Esses traços mostram também como a imagem do enunciador é construção da
enunciação, pois notamos aí que o discurso constrói não um ethos “desabusado” como parece
pretender o enunciado, mas sim um ethos embrutecido. Com efeito, esses são alguns fatores
que comprometeram a eficácia do discurso arenista naquela sessão deliberativa, já que o
MDB não só venceu a votação como manteve sua imagem de paladino da democracia.
9.1.2. As modalidades epistêmicas no processo de modalização
O pronunciamento de Geraldo Freire é um discurso de refutação; dessa maneira, sua
narratio e sua confirmatio consistem na contra-argumentação de que não há julgamento nem
ameaça à instituição, mas sim uma votação para processar um deputado.
A forte presença das marcas da enunciação no enunciado e a constante lexicalização
do operador saber constituem um recurso lingüístico que caracteriza essa parte do texto.
Logo, o efeito de proximidade subjetiva e a atitude de certeza, daí decorrentes, imprimem na
voz do enunciador um tom exclusivamente assertivo.
O operador saber se manifesta por meio de lexicalizações como as apresentadas nos
enunciados “está claro a não mais poder...”, “evidentemente que o fato não constitui
crime...”, “fique esclarecido no juízo de cada qual...”, bem como se manifesta implicitamente
nos enunciados “o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos”, “o que
temos em vista é que fique esclarecido” e “o nosso voto é a respeito de sabermos...”. Esses
61 Embora “desabusado” corresponda ao que é abusado, de caráter atrevido, no discurso de Geraldo Freire significa o contrário de abusado.
168
enunciados permitem ao enunciador construir sua ordem sobre um estado de coisas, além de
fazer pressupor um estado de desordem anterior, implicitamente atribuído ao seu adversário,
construindo a imagem de seu anti-sujeito, o anti-ethos.
Como dissemos, Geraldo Freire, para refutar Mário Covas, também privilegia a
construção da prova jurídica e revela aí o grau máximo de certeza como podemos observar
nos enunciados “evidentemente, está se tratando...”, “o parágrafo único do art.151 declara
expressamente que...”, “devemos acrescentar, por certo, outros nomes”, “está claro demais
que...”, dos quais destacamos as lexicalizações do operador saber.
Essa atitude epistêmica revela um tom assertivo que também soa prescritivo devido à
grande incidência das marcas dos operadores deônticos (do permitido e do proibido) como os
destacados em “a lei não pode ter palavras inúteis”, “não podemos presumir a inutilidade da
lei”, “temos de olhar à distância”, “ele não pode chamar para si o direito de ofender a própria
Pátria”, “da tribuna em que [ele] deveria fazer pequenas comunicações”, “não podemos
elevar as prerrogativas do Deputado...”.
Podemos dizer que a recorrência a esses operadores revela a atitude de um enunciador
que quer impor um determinado comportamento. Dessa forma, a prescrição e a interdição
mais a certeza imprimem ao discurso a firmeza de um tom que sustenta a voz de um
enunciador que sabe o que deve e não deve ser feito.
No epílogo, o que sobressai é a repetição do operador axiológico destacado em “Sr.
Presidente, eu louvo não apenas aqueles que me acompanharam, louvo a unidade monolítica
demonstrada pelo MDB” e “Louvo aqueles que pensam contra mim, louvo esta estreita
fidelidade partidária do MDB”, pois a unidade partidária do MDB está sendo julgada dentro
de um sistema de valores morais como um valor positivo pelo próprio líder da ARENA. No
entanto, Geraldo Freire não só louva a unidade do adversário, como também pressiona seus
aliados a seguirem o mesmo exemplo de unidade, já que a maioria governista garante a vitória
na votação.
A pressão e a coação impostas ao seu co-enunciador são desveladas por meio de
enunciados como “a hora é decisiva”, “há pressões, sim”, “existe a pressão autêntica”, em que
o tempo e o modo das formas verbais “há”, “é” e “existe” inspiram a atitude de certeza do
enunciador, implicitando o operador epistêmico saber, que identifica a assertividade de todo o
tom desse discurso de Geraldo Freire.
169
9.2. A heterogeneidade enunciativa
9.2.1. O discurso citado
Como vimos, o pronunciamento de Geraldo Freire, o último deputado a discursar
naquela sessão, é essencialmente um discurso de refutação aos do MDB. Assim, o líder
governista argumenta que Márcio Moreira Alves deve sim ser processado com base no artigo
151 da CF/67, pois abusa do poder político, atentando contra a ordem democrática, em seus
pronunciamentos de 2 e 3 de setembro de 1968.
Geraldo Freire constrói esse argumento com uma forte recorrência às formas do
discurso citado, o que indica a intensa presença de outras vozes em seu discurso. No entanto,
o que se reconhece como a voz do enunciador também aparece fortemente no contorno do
discurso citado, o que permite projetar suas apreciações valorativas e dirigir bem de perto o
fazer interpretativo de seu co-enunciador.
As onze representações do discurso citado constituem uma estratégia que compreende
cinco etapas, a saber: (a) desqualificar o adversário; (b) configurar o parágrafo único do artigo
151 da CF/67 como uma exceção; (c) justificar a exceção; (d) respaldar sua justificativa; (e)
retomar e reler o parágrafo único do artigo 151. Vejamos.
No enunciado “Falou-se a não mais poder e o fizeram dezenas de ilustres deputados a
respeito do Art.34 da Constituição do Brasil [...]. Então, dir-se-á que não atinge”, Geraldo
Freire desqualifica a voz de seus adversários por meio discurso narrado, em que os verbos de
elocução “Falou” e “dir-(se)-á” indiciam a subsistência de um discurso alheio que é traduzido
como algo de pouca importância, pois “Falou” é empregado aí como fala de conteúdo
esvaziado e “dir-se-á” aparece no futuro e com sujeito indeterminado.
Em seguida, no enunciado “Não podemos presumir inutilidade da lei, se o parágrafo
único do Art.151 declara expressamente que em se tratando de titulares de cargo eletivo
federal, o processo deve ser precedido de licença da respectiva Câmara”, a voz do outro – da
lei – é agora representada de uma maneira um pouco mais mimetizada, pois é integrada à
situação de enunciação do enunciador por meio do discurso indireto62. Trata-se aí de uma
62 Lembrando que, dentre as várias considerações que faz, Grilo também coloca que “o discurso indireto é um pouco mais mimético que o narrado e em princípio capaz de exaustividade” (2004, p.115).
170
integração reivindicada63, porque o verbo de elocução “declara” denota posição oficial e o
advérbio “expressamente” – derivado do adjetivo “expresso” – atribui ao ato de declarar a
qualidade de um ato realizado com palavras inequívocas.
Para validar a interpretação do parágrafo único do artigo 151 como uma exceção ao
princípio da inviolabilidade, Geraldo Freire cita três discursos de outros campos de atividade
que não o da política.
No primeiro momento, simula a enunciação bíblica por meio do enunciado:
Digamos, para evocar a mais sábia de todas as leis, quando no 5º Mandamento, Deus
disse a Moisés: ‘Não matarás’, o legislador bíblico colocou um ponto final (Diário Oficial da
Câmara dos Deputados, 2000, p.115).
O enunciador simula aí a voz de Deus, que é apreciada positivamente como “a mais
sábia de todas as leis”, para estabelecê-la como a regra.
No segundo momento, Geraldo Freire constrói a exceção dessa regra com os seguintes
enunciados:
Vire-se a página e, logo adiante, nota-se a pena de Talião, olho por olho, dente por dente. Aquele que matar será morto (Ibidem, p.116).
E, possivelmente o homem mais genial da humanidade até hoje, São Tomás
de Aquino, chegou a dizer que matar em defesa própria é um direito, porém matar em defesa de terceiro é um dever (Ibidem, p.116).
Nota-se aí um discurso citado menos mimetizado e integrado à situação de enunciação
do discurso citante que traduz esses dois discursos, distantes no tempo e no espaço, como
polêmicos em relação ao também distante discurso bíblico. Está feita a analogia, pois, se há
exceção no quinto mandamento, também há exceção no princípio da inviolabilidade, que, para
Geraldo Freire, está no parágrafo único do artigo 151.
63 Apenas para recordar, o emprego do termo se inspira no que diz Maingueneau (1997: 122) sobre a oposição entre as categorias semânticas reivindicadas (ou “positivas”) e as recusadas (ou “negativas”),
171
Parece que tais justificativas não bastam. Geraldo Freire busca, então, respaldá-las por
meio de duas citações de autoridade, cujas vozes pertencem ao Professor Juan Antonio
Gonzales Calderon, de Buenos Aires, e ao Relator Martins Rodrigues.
No entanto, sua maneira de citar é distinta da de Mário Covas, pois não diminui o tom
de sua enunciação ao se apresentar como um sujeito que está no nível de comentar a citação
de autoridade. Por exemplo, no enunciado “‘A livre manifestação de suas idéias’ – do
Deputado ou do Senador – ‘não exime o representante de responsabilidade quando [...]’”, é
gritante a ênfase que o enunciador quer dar sobre o responsável pela ação, já que a parentética
“– do Deputado ou do Senador –” faz alusão ao deputado Márcio Moreira Alves.
Ao final, Geraldo Freire retoma o diálogo com o discurso legislativo, traduzindo-o por
meio do discurso indireto. Os fragmentos a seguir pertencem ao artigo 151 da CF/67 e ao
discurso de Geraldo Freire, respectivamente:
Art 151 – Aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos §§ 8º, 23. 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão destes últimos direitos [...] (BRASIL. Constituição (1967)).
Mas o Art.151 diz que todo aquele – note-se bem – seja Deputado,
trabalhador rural, operário de fábrica, seja homem formado ou inculto – porque nesta Pátria não há privilégios – todo aquele que abusar dos direitos políticos, atentando contra a ordem democrática ou praticando corrupção, fica sujeito à perda desses direitos, à suspensão desses direitos [...] (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.119).
No discurso citado, o quantificador “todo” generaliza o sujeito que abusa do poder; já,
no discurso citante, o primeiro item do sintagma “seja Deputado, trabalhador rural, operário
de fábrica” especifica esse sujeito para fazer alusão ao deputado Márcio Moreira Alves.
Também é diferente o sentido entre “para atentar contra a ordem democrática ou
praticar a corrupção” (CF/67) e “atentando contra a ordem democrática ou praticando
corrupção” (Geraldo Freire).
relacionada ao imbricado processo de tradução do discurso do Outro e de construção da identidade discursiva.
172
No enunciado da CF/67, os direitos individuais e políticos são suspensos somente se o
abuso desses poderes tiver a finalidade de atentar contra a ordem democrática ou praticar a
corrupção, enquanto que, no enunciado de Geraldo Freire, essas finalidades são traduzidas
como ações subjacentes ao abuso de poder. Dessa forma, simulando a voz da lei, Geraldo
Freire conclui a construção desse seu argumento.
O discurso de Geraldo Freire desenvolve uma estratégia discursiva assentada em um
grande número de citações, porque visa relativizar o argumento de Mário Covas a fim de
mostrar que para toda regra há uma exceção e também porque não dispõe de um argumento
tão incontestável como o de Mário Covas.
Essa estratégia se associa a um modo de dizer que acompanha bem de perto o fazer
interpretativo do co-enunciador para construir a imagem de um enunciador que impõe
brutalmente seu modo de entender um estado de coisas, revelando, assim, a arrogância como
traço de caráter desse enunciador.
9.3. A cenografia
Igualmente aos discursos de Márcio Moreira Alves e de Mário Covas, o quadro cênico
apresentado no pronunciamento de Geraldo Freire interpela o enunciador e o co-enunciador
como parlamentares, captando os papéis sociais dessa atividade humana.
No entanto, esse discurso se diferencia dos emedebistas no que diz respeito às cenas
validadas, pois, além de captar uma cena da ordem democrática, Geraldo Freire reafirma a
cena da sessão deliberativa, reiterando, assim, uma cenografia da reiteração parlamentar.
O enunciado a seguir ilustra como a cenografia construída pelo discurso de Geraldo
Freire visa não apenas à reafirmação de uma cena estritamente política, mas também à
denegação da cenografia produzida no discurso de seu adversário, Márcio Moreira Alves:
Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos. O primeiro deles, é quando se diz que estamos procedendo à degola de um Deputado. Não se trata absolutamente disto. Então quem entender que se trata de degola, necessariamente, há de estabelecer que os juízes do Tribunal Superior Federal são carrascos e não magistrados (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.111).
173
A construção de uma cenografia totalmente alinhada a um modelo preestabelecido
pelo gênero pronunciamento parlamentar cria, nesse discurso, o efeito de sentido da ordem, o
que converge para (a) a discursivização da manutenção do establishment tanto no dito quanto
no modo de dizer; (b) a neutralização do discurso adversário; (c) a legitimação e inscrição de
seu discurso numa formação discursiva situacionista.
A cena validada da ordem democrática pode ser percebida por meio de enunciados que
apresentam o que chamamos de o campo lexical da “ordem”. Vejamos:
Sr. Presidente, Srs. Deputados, o meu propósito nesta tribuna é o de desfazer alguns equívocos (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.111).
É preciso que se restabeleça, Sr. Presidente, com toda tranqüilidade, a
verdade dos acontecimentos e dos comentários (Ibidem, p.114-115). Vou mais, Sr. Presidente, não ouso censurar a ninguém pelo fato de
discordar de mim, esteja em que legenda for (Ibidem, p.120-121). [...] me fez líder de um grupo de homens desabusados e dignos, coerentes e
puros, bravos e patrióticos [...] para sustentar esta causa que é patriótica e política (Ibidem, p.121).
Geraldo Freire se mostra como um sujeito que desfaz equívocos, que restabelece a
verdade dos fatos, que não ousa, logo é contido, que é líder de um grupo de homens
desabusados e patrióticos. Dessa maneira, Geraldo Freire não só constrói um mundo que
valoriza a ordem democrática e os valores da Pátria, mas como reconstrói discursivamente o
mundo ideal dos setores da sociedade brasileira que apoiaram o Golpe de 64. Então, o que
está sendo captado aí por essa cena validada da ordem democrática são os papéis sociais
valorizados positivamente por essas determinadas classes sociais, que Geraldo Freire
defendendo.
Dessa maneira, a cenografia da reiteração parlamentar e essa cena validada da ordem
constroem o mundo em que o enunciador deve construir seu ethos.
174
9.4. Caracterização do ethos de Geraldo Freire
A análise da dêixis lingüística, mais especificamente a categoria da pessoa, mostrou
que a projeção das pessoas enunciativas obedece a uma estratégia discursiva que visa a criar
uma identificação entre o enunciador Geraldo Freire e os membros do plenário da Câmara. No
entanto, vimos que se trata de uma identificação que une enunciador e co-enunciador em um
mesmo corpo social, no corpo daqueles que se identificam com os valores “patrióticos”.
Nesse discurso, a estratégia também é a de construir um tom de proximidade que permite ao
enunciador falar de perto com o seu co-enunciador.
O exame das modalidades epistêmicas nos apontou que o enunciador manteve
perante seu enunciado uma atitude epistêmica de certeza constante, o que nos levou a
atribuir ao seu tom enunciativo um traço de assertividade.
Quanto ao discurso citado, vimos o desenvolvimento de uma estratégia associada a um
modo de dizer que acompanha bem de perto o fazer interpretativo de seu co-enunciador para
construir a imagem de um enunciador que impõe seu modo de entender um estado de coisas,
revelando, assim, a arrogância como traço de caráter desse enunciador.
No que toca à cenografia, vimos que Geraldo Freire constrói uma cena de enunciação
bem conformada à cena genérica e, ainda, é sustentada por uma cena validada da ordem. Essa
cenografia visa a rechaçar as cenografias de julgamento criadas por Márcio Moreira Alves e
Mário Covas, para estabelecer a ordem: não há julgamento, há deliberação política.
Assim, para legitimar a enunciação de seu discurso, Geraldo Freire encarna o político
patriótico que professa seus valores como se fossem verdades absolutas, ao enunciar em um tom
assertivo. Esse político patriótico não só se aproxima de seus ouvintes como já os considera
parte desse corpo de homens “desabusados” e patrióticos, que lutam contra a ameaça comunista
e o caos em nome da Pátria e da ordem democrática. Geraldo Freire, ao se deter na refutação do
discurso emedebista, se apresenta como um sujeito arrogante, pois exibe uma superioridade
moral, assumindo para si uma atitude prepotente em relação aos seus adversários.
Eis aí características que conferem ao enunciador Geraldo Freire o que podemos
chamar de ethos ordeiro. Esse ethos é que torna Geraldo Freire fiador de um discurso
preocupado com a ordem democrática, a disciplina dos Poderes, o bom comportamento dos
parlamentares, enfim, um discurso voltado à manutenção do próprio establishment, que não
175
hesita em coagir ou excluir aqueles que se opõem ao regime ditatorial. Esse ethos ordeiro
legitima a enunciação desse discurso que emerge não só da formação discursiva denominada
ARENA, mas, sobretudo, daquelas formações discursivas que engendraram, apoiaram ou
consentiram o Golpe de 64.
Da construção desse ethos ordeiro, emerge também o que chamamos de um anti-ethos
abusado, como podemos ver em enunciados do tipo:
[...] o que há é um atentado contra a ordem democrática do Brasil, no qual o agente chega a aconselhar o nosso povo que boicote a nossa independência (Diário Oficial da Câmara dos Deputados, 2000, p.114).
Toda vez, porém, que ele transborda, que ele foge às regras éticas, cívicas e
patrióticas do seu próprio procedimento (Ibidem, p.116). [...] a imunidade parlamentar deve ser entendida como ligada ao exercício
normal do mandato e não ao exercício anormal ou abusivo (Ibidem, p.119). [...] todo aquele que abusar dos direitos políticos, atentando contra a ordem
democrática (Ibidem, p.119).
Trata-se aí de uma estratégia em que o enunciador desqualifica e marginaliza seu anti-
ethos, bem como atribui valores positivos ao seu ethos, para captar o imaginário do co-
enunciador e fazê-lo membro de seu grupo ordeiro, conquistando sua adesão. Além disso,
Geraldo Freire legitima a enunciação de seu discurso situacionista, construindo, nesse mundo
discursivizado pela cenografia da reiteração parlamentar, seu ethos e seu anti-ethos com base
na oposição entre ordem e caos, valorizando positivamente o jeito ordeiro e comportado de
ser no espaço social.
Podemos concluir, portanto, que a construção de uma cenografia conformada à cena
genérica de um discurso político não significa só a produção de um discurso limitado, mas
censurador, pois o discurso de Geraldo Freire não inscreve apenas um sujeito conformado às
regras que lhe são impostas, mas sim um enunciador que utiliza todo esse conjunto de
coerções para construir uma imagem valorizada de si, um ethos ordeiro, enquanto marginaliza
a imagem do Outro com um anti-ethos abusado, passando-as ao seu co-enunciador como
modelos a seguir e a rechaçar, respectivamente.
176
CONCLUSÕES FINAIS
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Fernando Pessoa
Finalmente, eis o momento de construirmos nossa asserção de chegada, de tecermos
nossas considerações finais. Como todo texto argumentativo visa a orientar o co-enunciador a
determinadas conclusões, pretendemos, nesse momento final, levar nosso leitor a recuperar
conosco os pontos mais relevantes deste trabalho.
No capítulo I, dedicado ao estudo teórico do ethos, nossa primeira observação sobre a
noção de ethos reside no problema da tradução francesa e portuguesa do termo ethos pelo
termo caráter, o que leva, segundo Plebe (1978) e Eggs (1995), a uma visão estreita dessa
noção retórica, já que operar com o ethos não é só pensar em sua dimensão moral, mas
também social. Nossa segunda observação de partida foi firmar com Barthes (1978), Ducrot
(1987), Declercq (1992), Fiorin (2004) e Maingueneau (2005), em concordância com
Aristóteles (1998), que o ethos é, essencialmente, uma construção do discurso, mas não algo
dado a priori.
A partir daí, passamos a comentar como Maingueneau (1997) integra e adapta o ethos
retórico no quadro teórico da Análise do Discurso (AD). Importa ressaltar que para AD
mesmo os textos escritos são dotados de uma voz, de um tom, que está associado a um caráter
e a uma corporalidade, o que vai ao encontro das advertências anotadas por Plebe (1978) e
Eggs (2005). Além disso, é preciso sublinhar que o ethos deve ser compatível com o mundo
que é construído no discurso por meio da cenografia. Vimos também que Maingueneau (2005,
p.72) fala da noção de incorporação para dar conta da relação entre o ethos e o co-enunciador.
Depois de estabelecer as questões básicas que cercam a noções de ethos, discutimos
algumas noções mais complicas. Colocamos nosso ponto de vista sobre os problemas aí
177
suscitados, partindo sempre do pressuposto teórico de que o ethos está associado à imagem do
enunciador, o que nos levou a fazer algumas críticas às noções que, impropriamente, recebem
o rótulo de ethos. Apenas para recordar, tratamos da questão da questão da imagem prévia do
enunciador (chamada de ethos prévio), da eficácia do ethos enquanto efeito de sentido, do
ethos institucional.
Para concluir o primeiro capítulo, explanamos sobre algumas categorias de análise do
ethos, tais como a dêixis lingüística, as modalidades epistêmicas, o discurso citado, os objetos
de acordo com o auditório, a cenografia, etc.
No segundo capítulo, tratamos do gênero pronunciamento parlamentar, discorrendo
sobre a noção de gênero do discurso e, depois, sobre a origem do gênero pronunciamento
parlamentar, recuperando a própria origem da política, invenção dos gregos e dos romanos,
para, enfim, tentar traçar algumas características contemporâneas do gênero pronunciamento
parlamentar. Na seção 5, recobramos algumas questões históricas, cercando a conjuntura
política internacional e nacional que envolveu a sessão deliberativa de 12 de dezembro de
1968. Além da relevância de contextualizar os discursos sob análise, julgamos importante
sempre nos lembrarmos desses fatos históricos para que eles não se percam na memória. Na
seção 6, pudemos apresentar a transcrição que fizemos dos pronunciamentos, cujos fac-
símiles estão juntados em anexo, já que a leitura dos originais está parcialmente prejudicada.
Finalmente, no terceiro capítulo, pudemos aplicar, não sabemos se a contento, as
categorias de análise apresentadas no primeiro capítulo e descrever os ethé produzidos pelos
três deputados que protagonizaram a sessão parlamentar que antecedeu o AI-5.
Dessa forma, vimos que Márcio Moreira Alves constrói um ethos combativo, que é
condizente com a cenografia do julgamento (do paladino) da democracia e legitima a
enunciação de um discurso oposicionista e de ruptura com o establishment. Márcio Moreira
Alves oferece ao seu co-enunciador a incorporação desse ethos combativo e leva os membros
do plenário a experimentem fazer parte de um corpo de heróis que lutam contra tiranos em
nome dos valores democráticos do plenário, de modo que eles não se acovardem e não
aceitem as imposições do regime militar, sendo coniventes com a república forjada pelo
Golpe de 64.
Quanto ao discurso de Mário Covas, pudemos mostrar que esse enunciador constrói
uma cenografia do julgamento do Poder Legislativo, em que ele se coloca como o advogado
178
de defesa e instala o plenário da Câmara como o júri que irá se auto-absolver ou se
autocondenar. Dessa cenografia, emerge um ethos conciliador que garante a enunciação de
um discurso dirigido a uma frente ampla, que está preocupada com a própria sobrevivência do
Congresso. Ao lado desse ethos, emerge um anti-ethos brutal daquele que é avesso à
liberdade e à democracia, o anti-ethos tirânico.
Já o discurso de Geraldo Freire, ao construir uma cenografia conformada à cena
genérica e sustentada pela cena validada da ordem democrática, mostra que a ordem orienta a
construção de seu mundo, do qual emerge um ethos ordeiro que garante a enunciação de seu
discurso alinhado ao establishment. Geraldo Freire oferece ao seu enunciador a incorporação
de um ethos que valoriza positivamente a ordem democrática e a Pátria e valoriza
negativamente o caos e a ameaça comunista, que é encarnada pelo anti-ethos abusado.
Nessa sessão deliberativa, em que o plenário negou ao regime militar o pedido de
licença para processar Márcio Moreira Alves, parece-nos que o Congresso deu a resposta que
os setores progressistas da sociedade brasileira esperavam e que o regime militar aguardava, a
fim de usar como pretexto para promulgar o AI-5 e concluir, definitivamente, o Golpe de 64.
Nesse episódio, Márcio Moreira Alves se mostrou alinhado às tradições democráticas
e não temeu as conseqüências. A tentativa de conciliação engendrada por Mário Covas serviu,
talvez, para conquistar a maioria do plenário, no entanto deixa suspeitas quanto às concessões
políticas as quais ele se mostrou afeito. Ao contrário de outros nomes da ARENA, como
Djalma Marinho, Geraldo Freire cumpriu fielmente o seu papel de liderança de um partido
que estava a serviço da ditadura militar, tentando imputar a Márcio Moreira Alves a
responsabilidade de um “delito impossível”.
Enfim, pudemos perceber que essa polêmica em torno do caso “Márcio Moreira
Alves” apresenta no dito a manifestação de uma disputa em torno da cassação de um deputado
que supostamente teria ofendido as Forças Armadas, mas esconde no dizer a disputa pela
hegemonia discursiva em torno da idéia de democracia, isto é, quem vai dizer e como vai
dizer para a população qual democracia é que vale.
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