Apontamentos entre História e teatro: possibilidades investigativas para o uso do texto
teatral em sala de aula
NÁDIA CRISTINA RIBEIRO1
Tanto cansou, entendeu
Que lutar afinal
É um modo de crer
É um modo de ter
Razão de ser. Trecho da Canção: O Açoite Bateu
Arena conta Zumbi
Eu vivo num tempo de guerra
Eu vivo num tempo sem sol?
Só quem não sabe das coisas
É um homem capaz de rir.
Ai triste tempo presente
Em que falar de amor e flor
É esquecer que tanta gente
Tá sofrendo tanta dor. Trecho da Canção: Tempo de Guerra
Arena conta Zumbi
Este trabalho traz algumas reflexões sobre o texto teatral Arena conta Zumbi de
Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, circunscrito no campo dos novos objetos e
abordagens, valorizando, assim, as manifestações artísticas e culturais como objeto de estudo.
Essa relevância foi construída e legitimada ao longo do tempo, garantindo o
alargamento do corpus documental e revelando histórias, só possíveis a partir de outras
fontes:
A História fez-se, sem dúvida, com documentos escritos. Quando há. Mas pode e
deve fazer-se sem documentos escritos, se não existirem [...]. Faz-se com tudo o que
a engenhosidade do historiador permite utilizar para fabricar o seu mel, quando
faltam as flores habituais: com palavras, sinais, paisagens e telhas [...] Em suma,
com tudo o que, sendo próprio do homem, dele depende, lhe serve, o exprime, torna
significante a sua presença, atividade, gostos e maneira de ser. ( LE GOFF,2003,
p.107)
*Doutora em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia, Prof. da Escola Estadual Seis de Junho da
Rede Estadual de Ensino em Uberlândia-MG e Membro do Membro do Núcleo de Estudos em História Social da
Arte e da Cultura – NEHAC.
Le Goff deixa claro que o historiador, para produzir o conhecimento histórico,
pode se utilizar de uma gama de fontes. Também ressalta que o historiador não é ingênuo na
construção desse conhecimento, pois reconhece que esses documentos foram concebidos a
partir de determinados pontos de vista e foram preservados guardando a intencionalidade de
algum grupo social.
Diante disso, torna-se relevante compreender o documento como fruto de um
determinado momento histórico, intrinsecamente ligado às relações sociais, tornando-se,
dessa maneira, um instrumento de luta. Então, o documento não carrega autonomia
explicativa, necessita de um constante diálogo com o período em que foi forjado. Deve,
portanto, ser considerado como uma representação de dada realidade e não a própria
realidade. Neste sentido,
(...) o enfoque do documento como algo produzido exige a retomada de sua própria
materialidade – considerando as propriedades naturais de que é composto, seus elementos
físicos, químicos, etc. - de sua condição de objeto, isto é, um resultado de produção e
apropriação por homens determinados historicamente. (MARSON, 1984: 53-54)
Assim, é preciso pensar na importância do historiador como investigador que irá
interrogar os documentos, decompô-lo, avaliar sua credibilidade. É ele que irá identificar a
partir dos pressupostos teórico-metodológicos suas intencionalidades e a estrutura de poder ao
qual pertence. Como diria Marc Bloch tudo que o homem fabrica pode nos informar sobre ele,
mas é preciso saber interrogar esses vestígios do passado, de maneira que se tornem fontes
históricas. Esses vestígios são responsáveis pela ampliação do campo de análise histórica, e
ainda pela constante ressignificação de temas e debates.
Nesse campo dos novos objetos está o texto teatral, como um documento que
guarda grandes especificidades, e que estabelece importante interlocução com a sociedade de
seu tempo. Para João das Neves o texto teatral é uma obra de arte, e como tal “suscita, ao
primeiro contato, inúmeras emoções, frequentemente contraditórias. Mas essas emoções, por
contraditórias que sejam, significam o primeiro passo para a percepção do caráter objetivo da
peça teatral. (...)” (NEVES, 1987: 08).
Diante disso, essa obra de arte possui, como todo documento histórico, uma
intencionalidade, e perceber essas nuances é importante para entender o universo criativo do
autor pois, “há por trás dessa obra de arte outro criador que a ela emprestou sua intuição, sua
experiência de vida, suas observações; que nela imprimiu sua visão de mundo”. (NEVES,
1987: 08)
Em consonância com o trabalho do historiador, Neves propõe que se tenha uma
atitude questionadora e reflexiva diante do documento, percebendo os diferentes agentes
presentes em sua produção. Segundo ele, “o texto teatral necessita sempre de mediadores
entre o mero leitor e o espectador. Estes mediadores são os intérpretes: atores, diretores (...),
que partindo do texto, irão se apresentar em uma das inúmeras formas finais possíveis aos
prováveis espectadores”. (NEVES, 1987: 08)
Pensando assim, buscaremos articular a história e o texto teatral como
possibilidade investigativa em sala de aula, considerando a dificuldade inerente a essa
linguagem, principalmente por que o teatro não faz parte da vida da maioria dos alunos do
ensino fundamental das escolas públicas estaduais. Ao analisarmos Arena conta Zumbi
pontuaremos duas temporalidades específicas: a escrita que se refere a Zumbi dos Palmares,
sua luta contra a escravidão e como esse tema foi ressignificado por meio da encenação em
1965, em plena ditadura militar brasileira: momento de cerceamento de liberdades individuais
e coletivas, prisões e exílios.
O texto teatral e a crítica especializada: diferentes elementos para a
construção histórica em sala de aula
Gianfranesco Guarnieri em parceria com Augusto Boal, recontou a história de
Zumbi dos Palmares e em parceria com o Teatro de Arena de São Paulo montou o espetáculo
Arena conta Zumbi. Para contar a história de Zumbi, os autores enfatizaram principalmente a
presença do herói positivo e o papel desempenhado por ele: sacrificar-se pela revolução. Essa
retomada se deu porque Zumbi é exemplo de dedicação a uma causa: mudança do status quo,
questionamento dos padrões estabelecidos e tentativa de transformação social. O musical se
utiliza da história para falar do presente (1965).
Dessa forma, mesmo diante de um Estado que a cada momento cerceava mais e mais
a liberdade de expressão, Guarnieri não deixou de se manifestar, encontrando nos musicais e
na música um veículo eficiente para traduzir sua mensagem. Se não podia dizer, não o
impediram de cantar.
Em 1965, em plena ditadura militar, o Teatro de Arena por meio de Zumbi
procurou estabelecer reflexões sobre esses tempos de exceção. Nele os diálogos são
extremamente significativos, pois, ao mesmo tempo em que falam de uma realidade já finda -
a escravidão e os diversos embates entre as autoridades, os senhores de engenho, a igreja e os
negros - também remetem ao presente, numa metáfora sobre a liberdade e as dificuldades para
alcançá-la. Assim, esse texto consegue extrapolar aquela realidade e falar do presente.
Momento delicado para a sociedade brasileira, em que a esquerda e os setores que se
contrapunham ao Estado instaurado tentavam expressar sua insatisfação.
O espetáculo Arena Conta Zumbi foi baseado no romance Ganga Zumba de João
Felício dos Santos, com música de Edu Lobo e participação especial de Vinicius de Morais na
composição de Zambi no açoite. O texto final é assinado por Guarnieri2 e Boal, que usaram
também documentos de época para a composição do texto. O espetáculo estreou no Teatro de
Arena no dia 1º de maio de 1965. O musical é composto de dois atos. O primeiro destaca
desde a fuga do cativeiro até a construção de Palmares por Zumbi. Enfoca principalmente a
sociedade criada em Palmares: livre, pacífica, sustentada pelo trabalho e pela solidariedade. E
deixa claro a transição de poder de D. Pedro de Almeida que firmara a paz com os negros e
que é destituído, assumindo o governo D. Ayres de Souza Castro, responsável pela
organização decisiva da repressão.
O segundo ato será a execução dos planos para acabar com Palmares e todos os
outros quilombos construídos pela força da liberdade. O novo governador Dom Ayres trama
uma repressão aos quilombolas, comandada pelo Capitão-Mor Fernão Carrilho, que tem
ordens de acabar com qualquer foco de resistência negra que encontrar.
2 De acordo com Guarnieri, o espetáculo Arena conta Zumbi iniciaria uma série, mas, dado o momento histórico,
a falta de liberdade de expressão e a truculência da repressão, o projeto foi abandonado. A dificuldade inicia-se
com a apresentação do trabalho para a censura. Segundo Guarnieri a censora que liberou o trabalho não tinha
ideia do alcance que poderia atingir, naquele momento histórico, o nome de Zumbi. Depois da liberação, ela
passou a pressionar o Grupo para que tirassem a peça de cartaz, pois estava sendo pressionada pelos superiores,
ao que Guarnieri respondia: “Mas minha senhora, veja se isso é possível. Nós temos casa lotada todos os dias,
nós não podemos, em sã consciência, tirar a peça de cartaz. A menos que a senhora proíba a peça, a senhora tem
este poder, não tem?” Dessa maneira a censora ficava em dúvida, pois não queria assumir essa responsabilidade
sozinha. Foi nesse período também que o Regime foi mostrando seu lado mais sombrio: ainda na temporada de
Zumbi não eram raros os telefonemas ameaçando os atores e o teatro. (ROVERI, 2004: 135-137)
D. Ayres fala das atribuições desse soldado: “convêm que a pessoa que houver de
ocupar o dito posto seja prática de valor de resolução para – nas ocasiões que se oferecerem –
prender, torturar, castigar, matar estes negros fugidos e lavantados”3(GUARNIERI, 2011).
Deixa claro que em caso de resistência à prisão podem ser sumariamente mortos, conforme a
lei.
Como demonstração de força, o governador autoriza a destruição da cidade de
Serinhaem, considerada traidora por não colaborar com efetivo e armas. Diante da recusa em
enviar recursos, restam poucos homens e armas para irem em busca do quilombo dos
Palmares. No entanto, o Capitão não se desanima.
Carrilho: Soldados! O número não dá nem pra tira o ânimo aos
valorosos. Posto que a multidão dos inimigos é grande, é
também multidão de escravos e covardes, a quem a natureza
criou mais para obedecer do que para resistir. Nossos inimigos
vão pelejar como fugidos, nós os vamos buscar como senhores.
Nenhum dos meus soldados defende o alheio, mas todos
pelejam pelo próprio. Para o meu trabalho não quero outro
prêmio além do bom sucesso. Meu intento é buscar maior poder,
pois quero acabar ou vencer (GUARNIERI, 2011: 32-33).
O primeiro passo da luta foi dado, destruíram a cidade rebelde e mataram Ganga
Zona. Ao saber da notícia, Zumbi se mata depois de passar a responsabilidade para Ganga
Zumba de liderar o povo negro contra o eminente ataque. Apesar de toda a tragédia anunciada
pela morte de Zumbi, suas últimas palavras no centro do palco com um punhal, como indica a
rubrica do texto, são um incentivo para que seus descendentes continuem nessa árdua
caminhada. Em seus momentos finais, ele declara:
ZAMBI – Eu vivi nas cidades no tempo das desordem. Eu vivi no
meio da minha gente no tempo da revolta. Assim passei os tempo que
me deram pra vivê. Eu me levantei com a minha gente, comi minha
comida no meio da batalha. Amei, sem ter cuidado... Olhei tudo que
via, sem tempo de bem ver... Assim passei os tempos que me deram
pra viver. A voz da minha gente se levantou e minha voz junto com a
dela. Minha voz não pode muito mas gritá eu bem gritei. Tenho
certeza que os donos dessas terra e Sesmaria ficaria mais contente se
3 Este texto foi disponibilizado para pesquisa em PDF pela biblioteca da Universidade Federal de Uberlândia e
faz parte do acervo digitalizado de peças teatrais. Um projeto financiado pela FAPEMIG e pela UFU.
(GUARNIERI, 2011)
não ouvisse a minha voz... Assim passei os tempo que me deram pra
viver. (GUARNIERI, 2011: 36-37)
A última prece feita por Zumbi foi da “beleza de viver” e diz aos que ficarem para
não entrarem em desespero, porque ele morre, mas estará presente em cada negro que nascer.
Nesses termos Zumbi convida os seus filhos à luta, pois é a única maneira de poderem viver
em paz, mesmo que antes disso seja necessário matar ou morrer e brigar para ganhar ou
perder.
No encontro para a entrada definitiva em Palmares e dizimação dos negros, D.
Ayres convoca o bandeirante Domingos Jorge Velho, que ao lado do Bispo consolidam os
últimos planos com o aval da Igreja.
DOMINGOS (Depois de tentar repetir os nomes em vão) –
Desse negro, evoluiremos para um novo tipo de guerra!
Procuram-se os negros atingidos por doenças contagiosas.
Febres, tísica, peste, varíola – construiremos grupos e os
tangeremos a procura da liberdade em Palmares... Se ainda
assim houver sobreviventes que insistam em não se entregar,
faremos uma severa advertência, queimando e exterminando as
populações dos quilombos mais próximos. Velhos, mulheres,
crianças, todos... e se a estupidez chegar a ponto de nem assim
conseguirmos a rendição, então será o extermínio total. Nenhum
negro fugido ficará em vida. Teremos, enfim, conquistado a paz!
DOM AYRES – Senhor Capitão, por várias vezes tenho dito que
os paulistas são a melhor ou a única defesa que têm os povos do
Brasil contra os inimigos do sertão. Por esta causa se fazem de
toda a honra e mercê...
BISPO – Aos negros devemos acabar, pois vivem com tal
liberdade, sem lembrança da outra vida e com tal altura como se
não houvesse justiça, porque a de Deus não a temem e a da terra
não lhes chega. O hábito da liberdade faz o homem perigoso.
(GUARNIERI, 2011)
Nesse diálogo no final da peça percebe-se que as palavras do bandeirante fazem
alusão não ao massacre que será empreendido contra os quilombolas, mas a guerra,
empreendida no presente: a Guerra do Vietnã4. E a como os norte-americanos reagem nas
4 De acordo com Edelcio Mostaço, o espetáculo faz alusões à luta do povo vietnamita. Não só utiliza de lutas
típicas desse povo como no programa da peça aparece a figura de um vietcong. Alusão ao fato de que a luta pela
disputas imperialistas. E não somente a esse caso, mas a todos em que há a tentativa de
controle absoluto sobre o conquistado, como na conquista da América pelos Espanhóis, que
dizimou aldeias inteiras pelos massacres, pela escravização e pelas doenças trazidas pelos
europeus e desconhecidas pelos indígenas, que portanto, não sobreviviam a inúmeras delas.
O Bispo, representante da Igreja Católica, que compactua com todas as
arbitrariedades do governo de D. Ayres, é o mesmo que estabelece uma estreita relação com o
governo dos militares no presente. Além disso, trabalha para tentar confortar as classes
subalternas pregando que a exploração faz parte do plano divino. Referindo-se ao trabalho
escravo, argumenta: “Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à cruz e à
paixão de Cristo que o vosso” (GUARNIERI, 2011). Posteriormente também defende o
massacre do Quilombo alegando que a liberdade faz o homem muito perigoso. Aliás, organiza
marchas em defesa da família5, da propriedade, enfim, em prol da manutenção da ordem
estabelecida.
Assim, analogamente, D. Ayres reproduz os discursos do Mal. Castelo Branco em
tom autoritário e com a clareza de sua impopularidade. Além disso, permite a pluralidade de
opiniões, desde que isso não impeça a obediência a suas ordens. Alega que seu governo
garantirá a lei e a ordem e que, para tanto, tomará medidas impopulares.
Meu governo será impopular, e assim, há de vencer, passo a passo
dentro da lei que eu mesmo hei de fazer. Senhores, vós guerreais
como quem faz política. Eu farei política como quem guerreia. Vossas
entradas são derrotadas pela pluralidade de opiniões e partidos de
pensamento. Minhas entradas serão vitoriosas pela unicidade do
ataque. A independência é necessária na teoria, na prática vigora a
interdependência. Não é aqui, neste Brasil, que as decisões políticas
devem ser tomadas: é na Metrópole, nossa Mãe Pátria, a quem
devemos lealdade, a quem devemos servir como vassalos fiéis.
(GUARNIERI, 2011: 29)
Esse discurso de D. Ayres deixa evidente que se trata de um diálogo com o
presente, fazendo da política a arma legitimadora de todas as arbitrariedades. Declara ainda
liberdade não era travada somente no Brasil Colônia, ou no Brasil ditatorial, mas também em outras partes do
mundo. (MOSTAÇO, 1982: 84-85) 5 São muitas as demonstrações de força da Direita Católica, entre elas Rosário da Família, manifestos da
Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), das Senhoras Católicas, que
extrapolam a esfera cultural, transformando-se em pura repressão: IPMs, censura, sindicâncias, investigações,
além da violência policial crescente. (Cf. MOSTAÇO, 1982: 97)
lealdade a uma pátria distante (Portugal/Estados Unidos), ao mesmo tempo em que afirma que
os inimigos estão no Brasil e não fora. Ele assume o discurso da necessidade de uma força
repressiva, policial contra o inimigo comum, que está dentro do território brasileiro. D. Ayres
atinge diretamente a parcela da esquerda brasileira que antes de 1964 pensava num Brasil
independente economicamente e resistente ao imperialismo norte-americano6.
A ideia de utilizar um personagem histórico para narrar a história é clássica
(LIMA, 1978: 58). Por meio de todas as alusões construídas ao longo do texto é possível
inferir que se trata do presente. “Palmares será a metáfora dos acontecimentos de 1964.
Pretende-se analisar o golpe de abril, a derrota das forças populares, expondo suas causas de
modo a subsidiar uma atitude de resistência” (CAMPOS, 1988: 74). Uma das principais
restrições de Campos ao espetáculo é o cunho imediatista e solidário à esquerda.
A superficialidade da análise política responde, em parte, a uma
limitação auto-imposta de atender ao imediato, fazendo de Zumbi uma
peça datada, já pelo insistente recurso a alusões que se perdem para
quem não tenha proximidade com os acontecimentos (CAMPOS,
1988: 77).
Diante dessas alegações, é importante frisar que os musicais não se colocam
“dentro de um ponto de vista solidário” à esquerda. Os erros táticos do PCB tinham sido
detectados e precisariam ser superados. No entanto, os musicais não se comprometeram a dar
“soluções” ou “respostas” definitivas aos impasses. Antes de tudo, procuraram contribuir para
o debate, buscando suscitar no espectador uma semente de desconfiança em relação ao
sistema, a partir da qual haveria a possibilidade de avançar em direção a mudar essa
6 O final dos anos 1950 testemunhou o ápice da guerra fria caracterizada como uma disputa pela hegemonia
mundial que dividiu o mundo pós guerra. A bipolarização efetivada pela URSS que tentava fazer avançar o
socialismo, e pelos EUA que tinha a árdua missão de combater esse avanço, viu-se espelhada na corrida
armamentista que dava o tom dessa disputa. Essa disputa de forças também esteve presente em diferentes
momentos da década de 1960 como na Revolução Cubana, na construção do Muro de Berlim e no
recrudescimento dos EUA diante da descoberta de bases nucleares russas no Caribe em 1962. Por isso, no ano
seguinte assinaram (EUA, URSS e Inglaterra) um tratado de não proliferação de testes nucleares. Também
decorrente desse episódio, abandonou-se os princípios não intervencionistas, de soberania das nações, e criou-se
uma “política de interdependência”. Assim têm-se justificadas todas as interferências dos EUA principalmente
nas nações latino-americanas. “Dessa forma, a política de interdependência associava o combate do comunismo
e a luta pela penetração das multinacionais, afastando ‘justificadamente’ as resistências a elas oferecidas por
governos ou movimentos nacionalistas em muitos países do continente”. Essa dominação e exploração
promovida pelos EUA, diante das nações periféricas, consolidaram nesses países lutas contra a denominada ação
imperialista norte-americana, que teve no Brasil, por meio do PCB, uma tentativa de enfrentamento. (PAES,
1993: 16).
sociedade, livrando o país do imperialismo norte-americano e construindo frentes
nacionalistas de enfrentamento para essa luta.
Ao afirmar que Zumbi é uma obra datada, acredita-se que isso não significa que é
superada pelo tempo, cumprindo o seu papel somente naquele momento histórico. Antes de
tudo, significa que a obra esteve ligada às lutas políticas e estéticas de seu tempo e que deverá
ser relida procurando-se redimensionar seus temas e propostas, criando-se, assim, outras
interpretações ( Cf. OLIVEIRA, 2003; PATRIOTA, 1999.).
Por sua vez, o crítico Edelcio Mostaço faz apontamentos que em grande medida
lembram aqueles feitos por Prado em suas críticas. Entre eles a dicotomia exagerada entre
brancos e negros e o maniqueísmo que outros críticos também apontaram na época da
montagem.
Um maniqueísmo excessivo marca a realização: os negros são sempre
belos, altaneiros, alegres; os brancos despóticos, surumbáticos,
desprezíveis e cruéis. As correlações históricas entre o passado e o
presente foram forçadas deliberadamente para demonstrar a similitude
de fatos, e assim atingir sua mensagem política: a uma fase de
tolerância e de transações de amizade e convivência pacífica entre
negros e brancos, sobrevém um duro golpe militarista, destinado a
desbaratar os quilombolas, a apagar a memória daquele sonho de
liberdade e felicidade humanas. (MOSTAÇO, 1982: 83)
Décio de Almeida Prado faz várias restrições ao espetáculo, principalmente em
relação à dicotomia estabelecida entre brancos e negros: em que os primeiros são maus e os
outros, bons. O que fica é a seguinte questão: se é assim, então por que são os brancos que
obtêm êxito no final? Essa é a pergunta com que Prado inicia sua crítica. Para ele, nesse
mundo maniqueísta não existe lugar para a contingência histórica nem essa simplificação do
“fazer social”, que torna seus personagens tão irreais. Permeando a peça existe uma
romantização do negro, assim como se fez com o indígena. O crítico afirma que, na tentativa
de ressaltar as características positivas de seu protagonista, os autores empobreceram a
discussão possível, pois, tentando enfatizar o combate, deixaram perder-se no horizonte outras
possibilidades. Acrescenta que não seria necessário tanto esforço para tornar a peça
revolucionária, já que a sociedade brasileira, como escravocrata que era, não poderia admitir
uma comunidade de negros livres, não somente pelos prejuízos, mas pela possibilidade de
liberdade, que levaria a uma outra ideia, a de igualdade, primeiro racial e, posteriormente
social. “Esse germe de subversão já era suficientemente forte para dispensar qualquer
acréscimo caricatural ou reforço romântico” (PRADO,1965: 22). Prado ainda reserva alguns
elogios, principalmente para as composições de Edu Lobo “por ter aquela fácil
comunicabilidade necessária ao teatro” e a interpretação de Dina Sfat, como destaque entre as
mulheres, e de Guarnieri como “um prodigioso ator de farsa que, nesse terreno, ainda não foi
devidamente explorado”. Mas para o restante do espetáculo, é enfático:
Apesar de tantas e tantas objeções, Arena conta Zumbi é um
espetáculo agressivo e inteligente. Lamentamos apenas que tenha tão
pouca confiança naquilo que os autores talvez classifiquem de razão
fria. Afinal de contas, Brecht e Sartre, para tomar dois exemplos
celebres, são autores revolucionários pelo conteúdo objetivo de seu
pensamento ou pela comoção generalizada que criam no palco? Arena
conta Zumbi lembra frequentemente um comício político cantado e
dançado: um frenesi de movimentos, de rumor, com poucas
perspectivas realmente novas. (PRADO, 1965: 22)
Nessas considerações, o crítico deixa claro que o espetáculo não teve o alcance
esperado pelos autores, principalmente por tender a ser um “panfleto” da esquerda, obra
demagógica. A exemplo de Sartre e Brecht, deveriam se prender mais ao conteúdo.
Justificando assim tantas restrições ao texto e a encenação.
No entanto, é valido dizer que esses autores estavam em consonância com seu
tempo. Guarnieri, depois do Golpe, optou pela chamada “resistência democrática” ao regime
militar. Sendo assim, seu trabalho refletirá, inevitavelmente, essa opção. Isso não significa
que a peça servirá de “panfleto” do Partido, mas buscará refletir a delicada posição em que se
encontravam aqueles que não concordavam com o Estado instaurado a partir de 1964.
Escrever sobre os momentos mais difíceis da sociedade brasileira, para Guarnieri, é uma
forma de intervir e tentar modificá-la.
Na visão de Sábato Magaldi, o espetáculo, apesar de destacar bons intérpretes e de
falar de liberdade, o que é sempre importante, o tratamento dramático do tema foi feito de
maneira rudimentar e esquemática (MAGALDI, 1969: 17)
Paulo Mendonça, assim como Prado, não poupa elogios a Dina Sfat pela presença
em palco e a Guarnieri pela inteligência nas inflexões e atitudes em cena. Elogia o espetáculo
como um todo e diz se tratar de uma explosão de talentos. Faz algumas restrições às cenas
finais do espetáculo, enfatizando que ele perde o ritmo e com várias intenções “grifadas”,
perde em qualidade. E acredita que palavras em defesa da liberdade naquele período soam
como um despropósito, “já que estão em bocas que estão obviamente no pleno exercício dessa
liberdade. Ou não estão?” (MENDONÇA, 1965:04). Diante disso, o crítico estabelece uma
interlocução com o momento vivido, período em que a liberdade de expressão ainda existia,
apesar da censura, e coloca em dúvida a própria razão de ser do espetáculo, defendendo que,
se existe liberdade, por que a necessidade de a colocar em questão?
Essas interlocuções são importantes pois criam um caleidoscópio sobre o período
(1965) do ponto de vista cultural. A percepção da crítica especializada sobre esse processo
estabelece diferentes observações sobre o espetáculo e sobre o Brasil daquele período. Assim
é possível, por meio desses fragmentos, estabelecer relações e validades históricas em sala.
Ao perceber essas opiniões tão diversas, os alunos entenderam que o passado é uma
construção e que a visão histórica sempre depende dos agentes e de sua intencionalidade.
Assim, pode-se abordar algumas possibilidades do texto em sala de aula: ou o
período revolucionário, empreendido por Zumbi e a construção de uma sociedade negra
baseada na coletividade e no auxilio mutuo, ou ainda na ressignificação desse texto nos anos
de 1965, pensando a liberdade e as formas que o poder instituído usa para se beneficiar do
processo histórico.
Ao escolher o primeiro caminho enfatiza-se o quanto a aliança entre alguns
setores da sociedade via com desconfiança a comunidade criada por Zumbi e na sua
destruição a confirmação do status quo de uma classe que quer manter-se hegemônica.
Ao optar pela ressignificação do texto, seguimos o caminho sugerido pela
encenação: fazer alusão a Zumbi e a história do povo negro para falar do presente.
Entendendo que esse presente é o início do período ditatorial (1965) com todos os problemas
que a sociedade da época enfrentava, pensando principalmente em como os militares lidavam
com a cultura, em especial com o teatro.
Escolher o texto teatral trouxe algumas dificuldades e surpresas. Ao propor esse
estudo, houve o estranhamento dos alunos, mas eles foram aderindo ao longo das aulas,
pesquisando e levando informações adicionais, reflexões sobre os dois momentos estudados
(escravidão, a resistência negra e a ditadura militar). Essa estratégia fez com que os alunos
saíssem da passividade, tornando-se agentes da construção do conhecimento e das
possibilidades de interpretação de diferentes momentos históricos.
A experiência foi gratificante e trouxe para o debate diferentes formas de pensar o
processo histórico, além de trazer uma novidade para os alunos, pois foi feita uma leitura
dramática do texto, ouviram o áudio disponível do espetáculo, com todos os instrumentos
musicais e as vozes dos atores em cena. Tudo isso fez com que a experiencia fosse positiva e
que alguns alunos se interessaram mais pela disciplina.
De tudo, o fundamental foi repensar o passado de uma maneira dinâmica, nesse
sentido
Todo ser humano tem consciência do passado (definido como o período
imediatamente anterior aos eventos registrados na memoria de um indivíduo) em
virtude de viver com pessoas mais velhas. Provavelmente todas as sociedades que
interessam ao historiador tenham um passado, pois mesmo as colônias mais
inovadoras são povoadas por pessoas oriundas de alguma sociedade que já conta
com uma longa história. Ser membro de uma comunidade humana é situar-se em
relação ao seu passado (ou da comunidade), ainda que apenas para rejeitá-lo. O
passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um
componente inevitável das instituições, valores e outros padrões da sociedade
humana. O problema para os historiadores é analisar a natureza desse sentido do
passado na sociedade e localizar suas mudanças e transformações. (HOBSBAWM,
1998: 22)
Bibliografia
CAMPOS, Cláudia de Arruda. Zumbi, Tiradentes (e outras histórias contadas pelo Teatro de
Arena de São Paulo). São Paulo: Perspectiva, 1988.
GUARNIERI, Gianfrancesco. Arena conta Zumbi. [19--]. 49f. Disponível em:
http://www.bdteatro.ufu.br/pesquisa.php?q=arena+conta+zumbi&t=. Acesso em: fevereiro de
2011.
HOBSBAWM, Eric. Sobre a História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
LIMA, Mariângela Alves de. História das Idéias. In: DIONYSOS. Rio de Janeiro:
MEC/SEC/SNT, n. 24, out. de 1978. Especial Teatro Arena.
MAGALDI, Sábato. Zumbi. Jornal da tarde. 12 set. de 1969, p. 17. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/teatroarena/arena.html. Acesso em: 26 de out de 2011.
MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento Histórico. In: SILVA, M. A. da (org).
Repensando a História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984.
MENDONÇA, Paulo. Arena conta zumbi. Folha de São Paulo, IV Caderno, 11 de mai de
1965, p. 04. Disponível em http://www2.uol.com.br/teatroarena/arena.html. Acesso em: 26 de
out de 2011.
MOSTAÇO, Edelcio. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da
cultura de esquerda). São Paulo: Proposta Editorial, 1982.
NEVES, João das. A Análise do texto teatral. Rio de Janeiro: INACEN, 1987.
Oliveira, Sírley Cristina. A Ditadura Militar (1964-1985) à luz da Inconfidência Mineira
nos Palcos Brasileiros: Em Cena: “Arena Conta Tiradentes” (1967) e “As Confrarias”
(1969). Dissertação (Mestrado em História), PPG/INHIS/UFU, 2003.
PAES, Maria Helena Simões. A Década de 60: Rebeldia, contestação e repressão política.
São Paulo: Ática, 1993.
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo:
Hucitec, 1999.
PRADO, Décio de Almeida. Arena conta Zumbi. O Estado de São Paulo. 09 de mai. de
1965, p. 22. Disponível em: http://www2.uol.com.br/teatroarena/arena.html. Acesso em 27
out. de 2011.
ROVERI, Sérgio. Gianfrancesco Guarnieri – Um grito solto no ar. São Paulo: Imprensa
Oficial, 2004.