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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIA POLTICA
BRUNO LIMA ROCHA
A Interdependncia Estrutural das Trs Esferas: uma anlise libertria da Organizao Poltica para o processo de radicalizao
democrtica
Tese de doutoramento apresentada como
requisito parcial para a obteno do ttulo de
Doutor em Cincia Poltica no Programa de
Ps-Graduao em Cincia Poltica da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Baquero
Porto Alegre, maro de 2009.
A Interdependncia Estrutural das Trs Esferas: uma anlise libertria da Organizao Poltica para o processo de radicalizao
democrtica
Banca Examinadora:
________________________________________________________________
Coordenador: Prof. Dr. Marcelo Baquero (UFRGS)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Adlson Cabral (UFF)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Vizer (UBA)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Gabriel Vitullo (UFRN)
________________________________________________________________
Profa. Dra. Jussara Pr (UFRGS)
________________________________________________________________
Prof. Dr. Valrio Brittos (Unisinos)
Porto Alegre, maro de 2009.
DEDICATRIA
Dedico este trabalho a minha famlia, esposa e filho, por tudo o que passamos e
estamos construindo, e pela alegria de trazer o Joo Camilo ao mundo enquanto
conclua a tese. Tambm quero dedicar a minha famlia de sangue, me, tia, tio, avs e
prima, por tudo e para sempre. Em especial ao meu av, Jorge, que falecera ante de ver
tudo isto pronto. Igualmente dedico a meu sogro, genro, cunhada, cunhado, sobrinho,
contra parente, pela ternura e o conforto. Tambm quero oferecer estas palavras aos
motivadores de tudo isso: a todos os homens e mulheres que ofereceram suas vidas,
pouco ou muito, algo ou tudo, para agir no princpio de semear ventos, colher
tempestades e depois desta a bonana coletiva.
AGRADECIMENTOS
Esta sempre a parte mais complicada. Ficamos na nsia de no cometer nenhuma
injustia, e nem tampouco parecer piegas ou domesticado. De forma generalizada
agradeo imensamente a amigos, companheiros, companheiras, mrtires e referentes.
Nesse mbito, fica o meu muito obrigado aos vizinhos da Grande Santa Isabel, 4
distrito da Vila Setembrina, meu cho por adoo e onde esta obra foi escrita. Do morro
sanga, do beco at a avenida, daqui no saio mais. Na figura coletiva de todos el@s,
resumo o quanto sou grato.
De forma especfica, dentro do mbito acadmico-universitrio, inicio
agradecendo a CAPES pela bolsa de doutorado, sem a qual seria impossvel chegar a
este momento. Igualmente ao conjunto do PPG de Cincia Poltica, nas partes ruins e
boas do total dos sete anos de ps. Na adversidade aprendi e na generosidade se cresce.
Um abrao especial para a turma de mestrado que entrou em 2002, extensivo aos
colegas de doutorado com quem compartilhamos aulas neste ano e em 2003.
Discrepvamos em aula e conseguimos manter um ambiente saudvel, sadio e
cooperativo fora dos debates. Ainda na UFRGS, agradeo ao primeiro orientador (de
mestrado) Carlos Arturi, por me receber ao chegar e por me ver afastar sem traumas. Na
seqncia, ao Marcelo Baquero, orientador de uma tese e de um doutorando mais que
arisco. Sua generosidade intelectual permitiu este momento. Tenho certeza de que usara
toda a sua vertente freireana para tanto. Grato pelo dilogo, a pacincia, a orientao e a
boa divergncia.
Ainda na seara acadmica, aos novos/velhos colegas da comunicao, do Emerge,
do Cepos e da Ulepicc. Sem individualizar os homenageados, sinto-me muito contente
em poder ter um p na cincia poltica e outro de onde nunca sa. Suamos a camisa e
queimamos tanta retina juntos que no h muito mais para dizer.
Embora estes artistas no o saibam, agradeo a energia e o combustvel para o
trabalho intelectual vindos da raiz do samba nos vinis de Bezerra da Silva, Martinho da
Vila, Jorginho do Imprio, Moreira da Silva, Roberto Ribeiro, Clara Nunes, Paulinho da
Viola e Joo Nogueira dentre outr@s bambas; do nativismo rio-grandense a garra para
horas escrevendo saram dos acordes em vinil de Noel Guarany, Cenair Maic, Pedro
Ortaa, Joo de Almeida Neto e dos versos de Jayme Caetano Braun dentre tantos
guascas a mais; del lado de All que es el mismo lado federal vieram notas e cantos de
Alfredo Zitarrosa, Olimareos, Loz Zucar, Jos Larralde, Jaime Roos, Atahualpa
Yupanqui, Jorge Cafrune, Chito de Mello, la payada de Carlos Molina, y otros
laburantes del canto y de la palabra.
Por fim, nos versos abaixo, lapidados pela poetisa libertria uruguaia Idea
Vilario, deixo meu profundo e sincero agradecimento aqueles e aquelas que vivem
atravs de seus atos
LOS ORIENTALES
De todas partes vienen, sangre y coraje, para salvar su suelo los orientales; vienen de las
cuchillas, con lanza y sable, entre las hierbas brotan los orientales.
Salen de los poblados, del monte salen, en cada esquina esperan los orientales.
Porque dejaron sus vidas, sus amigos y sus bienes, porque es ms querida la libertad que no
tienen, porque es ajena la tierra y la libertad ajena y porque siempre los pueblos saben romper
sus cadenas.
Eran diez, eran veinte, eran cincuenta, eran mil, eran miles, ya no se cuentan.
Rebeldes y valientes se van marchando, las cosas que ms quieren abandonando.
Como un viento que arrasa van arrasando, como un agua que limpia vienen limpiando.
Porque dejaron sus vidas...
SUMRIO
Apresentao do Trabalho de Tese................................................................................. 10 1. Bases da Teoria da Interdependncia Estrutural das Esferas: uma anlise libertria do papel da Organizao Poltica para o processo de radicalizao democrtica ............... 16
1.1. O Mtodo Utilizado............................................................................................. 16 1.2. A Questo Central, o Problema de Pesquisa e os objetivos secundrios: ........... 23 1.3. A anlise estratgica e o Jogo Real da Poltica ................................................... 25 1.4. A matriz estruturalista, os primeiros passos na definio do que cincia e o enfoque realista........................................................................................................... 33 1.5. A estrutura de classes e a categoria de dominao.............................................. 47 1.6. Um mapa analtico do terreno onde esta tese tem a inteno de ser universalizvel ............................................................................................................ 53
2. Condies iniciais para formar uma teoria para incidncia e conflito na Amrica Latina: identidade posicionamento poltico pressupostos terico-epistemolgicos. 56
2.1. A raiz do conflito e da origem da produo intelectual latino-americana. Uma viso do perodo da bipolaridade................................................................................ 58 2.2. Um pensamento social brasileiro e latino-americano.......................................... 62 2.3. Acercamento e afastamento dos poderes centrais ............................................... 74 2.4. Institucionalizao e radicalizao da cincia social na Argentina anterior ao golpe de 1976 ............................................................................................................. 77 2.5 O estudo de caso mexicano e a obra fundamental de Casanova .......................... 83 2.6 A afirmao de uma base terico-epistemolgica atravs da obra de Celso Furtado........................................................................................................................ 88 2.7.A tomada de posio............................................................................................. 90
3. A Interdependncia Estrutural das Esferas: ancestralidade e atualidade da construo e origem desta teoria....................................................................................................... 92
3.1. A ancestralidade e o marco orgnico no qual a obra coletiva de Cariboni foi produzida .................................................................................................................... 93 3.2. A importncia da Teoria e o trabalho de Raul Cariboni .................................. 96 3.3. Uma definio adequada da categoria ideologia ............................................... 105 Parte II A atualidade da teoria das 3 esferas e a contribuio original 108 3.4. Os trs nveis de representao.......................................................................... 108 3.5. Sobre o conceito estrutura global ...................................................................... 110 3.6. A representao das esferas e das estruturas ..................................................... 113 3.7. A relevncia da luta ideolgica como forma organizativa de identidades, sujeitos e agentes ................................................................................................................... 117
4. Aspectos do treinamento necessrio para a organizao poltica e o partido de quadros ......................................................................................................................... 119
4.1. O debate da caracterizao e tipificao de funes do partido poltico no regime democrtico .............................................................................................................. 120
4.2. O problema repressivo deve ser levado em conta ............................................. 127 4.3. O estudo da organizao poltica e a carncia na cincia poltica atual ............ 128 4.4. A polifuncionalidade ......................................................................................... 130 4.5. Caracterizando o partido de quadros com inteno de ruptura ......................... 131 4.6. Um possvel e factvel cenrio para o desenvolvimento deste tipo de organizao.................................................................................................................................. 135 4.7. A respeito do tema do treinamento de quadros e o ambiente institucional propcio.................................................................................................................................. 141 4.8. Habitus, domnio e inteligibilidade dos cdigos das classes onde se est, a idia de insero social e o recrutamento adequado.......................................................... 145 4.9. Retomando a arena prioritria para este modelo e suas razes ......................... 148 4.10. A ancestralidade do modelo de organizao aqui desenvolvido ..................... 151 4.11. Desenvolvimento do modelo de organizao aqui apontado .......................... 154 4.12. Aspectos conclusivos quanto ao tema do partido de quadros ......................... 156
5. O conceito de Processo de Radicalizao Democrtica: uma forma social de defesa, criao e ampliao de direitos..................................................................................... 157
5.1. Na busca de um paradigma de uma rea necessariamente aparadigmtica ... 158 5.2. A importncia da identidade; quando a matriz epistemolgica tambm poltica e esttica ................................................................................................................... 170 5.3. O dilogo do Capital social com a sociedade civil: a redefinio deste conceito aplicado em uma nova institucionalidade................................................................. 179 5.4. As limitaes da democracia representativa e a localizao terica da radicalizao democrtica ........................................................................................ 186 5.5. Territrio desorganizado, fragmentao e reorganizao do tecido social. As condies essenciais para a radicalizao democrtica............................................ 193 Parte II A perspectiva do Poder Popular e das foras em acumulao 194 5.6. A perspectiva do Poder Popular como forma de acumulao de foras do processo de radicalizao democrtica..................................................................... 195 5.7. O conceito de independncia de classe.............................................................. 196 5.8. A hierarquia de prioridades e a necessidade de coordenao para o processo de radicalizao democrtica ........................................................................................ 199
6. Uma crtica econmica dos constrangimentos sofridos pelos cmbios da democracia brasileira atual............................................................................................................... 202
6.1. As vises do Estado como regulador social e na definio macroeconmica. Premissas e temporalidade ....................................................................................... 203 6.2. Premissas de Anlise na relao entre os limites democrticos e o desenho de Estado ....................................................................................................................... 208 6.3. A verso latino-americana e os modelos de Estado: neoliberal e desenvolvimentista ................................................................................................... 212 6.4. Caracterizando a conjuntura macro econmica e de desenho democrtico em que vivemos hoje no subcontinente ................................................................................ 215 Parte II A anlise da poltica econmica quando da passagem de governo de Fernando Henrique para Lula e os constrangimentos estruturais 217 6.5. A transio da democracia representativa consolidada no Estado Neoliberal .. 218 6.6. Fatores e agentes de constrangimento do exerccio do poder poltico .............. 221 6.7. A permanncia do constrangimento e da impossibilidade estratgica .............. 231 6.8. Um debate conclusivo a respeito dos limites da disputa democrtica dentro de um constrangimento estrutural que impede uma opo estratgica ............................... 236 Parte III Dois exemplos que fundamentam e evidenciam a concluso lgica 237
6.9. A estabilidade econmica e poltica e os custos de gerao de emprego direto.................................................................................................................................. 238 6.10. Os hbitos de consumo cultural dos brasileiros e o volume de investimentos do Estado nesta rubrica, atravs do oramento do Ministrio da Cultura ..................... 241
7. Estudo Estratgico em sentido pleno a aplicabilidade da teoria da interdependncia no crescimento da Organizao Poltica............................................................................ 244
7.1 O que estratgia?.............................................................................................. 245 7.2 A guerra como extenso da poltica. A poltica como expresso de guerra total246 7.3. O conceito estratgico e a Grande Estratgia .................................................... 250 7.4. A inteligncia, o planejamento e o conflito interno........................................... 255 7.5. Na Amrica Latina a luta popular ganha forma anti-imperialista ..................... 260 7.6 A luta de classes no longo prazo ........................................................................ 262 7.7. A interdependncia das trs esferas aplicada. O modus operandi da FAU....... 264 7.8. A violncia como linguagem e o Jogo Real da Poltica .................................... 274 Parte II A proposta de anlise estratgica aplicada no Jogo Real atravs de uma organizao poltica com intenes de cmbio 278 7.9. Categorias fundamentais para a anlise e incidncia a partir da organizao poltica proposta ....................................................................................................... 279 7.10. Retomando o conceito estratgico aplicado no conflito social permanente (os prazos) ...................................................................................................................... 282 7.11 Os nveis de incidncia adotados nesta Parte II................................................ 283 7.12 Os recortes geogrficos os espaos e territrios de incidncia...................... 285 7.13 Os conceitos bsicos de tempos e movimentos. Um mapa conceitual............ 286 7.14 A idia de processo e a acumulao de foras necessria para a radicalizao democrtica............................................................................................................... 288
8. Concluses da Tese .................................................................................................. 291 8.1. A exposio da parte intrnseca atravs dos captulos....................................... 291 8.2. Respondendo as duas questes centrais............................................................. 292 8.3. A aplicao e ampliao do conceito estratgico centrado no acionar da poltica.................................................................................................................................. 293
9. Referncia Bibliogrfica........................................................................................... 295 9.1. Bibliografia........................................................................................................ 295 9.2. Documentos eletrnicos consultados................................................................. 304 9.3. Hemerografia ..................................................................................................... 317
LISTA DE FIGURAS E TABELA
Pgina 21 Figura 1: Grfico de representao da Interdependncia das esferas Poltica; Econmica e Ideolgico-cultural. Pgina 22 Figura 2: Grfico de projeo das esferas onde o conjunto das prticas se manifesta. Pgina 22 Figura 3: Grfico de representao do entramado de prticas das distintas esferas atuando em uma sociedade concreta Pgina 23 Figura 4: Grfico de representao onde o campo das prticas sociais em nvel de conjuntura aplicada para uma conformao social concreta. Pgina 31 Figura 5: Tabela demonstrativa de nvel de confiana nas categorias e instituies
RESUMO
A tese formaliza a Teoria da Interdependncia Estrutural das 3 Esferas (poltica;
ideolgica; econmica) aplicando seu modelo de anlise no estudo do papel da
Organizao Poltica Finalista e na projeo de um processo poltico e social
denominado de Radicalizao Democrtica. A exposio desta Teoria de Mdio
Alcance divide-se em partes intrnseca e extrnseca, iniciando com a articulao das
categorias e seguindo com a argumentao lgica. A dimenso ontolgica do trabalho
se posiciona a partir dos pressupostos ideolgico-doutrinrios anarquistas. A dimenso
terico-epistemolgica se localiza na aproximao do estruturalismo com a centralidade
da cincia poltica, em especfico da democracia de tipo social. A dimenso
metodolgica localiza o trabalho dentro dos estudos de anlise estratgica. O trabalho
formula uma teoria que instrumente o conceito de construo de Poder Popular. Este
criador de uma nova institucionalidade, onde as distintas representaes e cortes de
interesse e identidade estejam representados em uma base societria distributivista, com
plenitude de direitos e garantias individuais e coletivas das liberdades de reunio,
expresso, manifestao e organizao.
ABSTRACT
The thesis formalizes the Theory of Structural Interdependence of the 3 spheres
(political, ideological, economic) applying its model of analysis in the study of the role
of the Organization and the final political projection of a social and political process
known as Radicalizing the Democracy. The exposure of a Middle Range Theory
(empirical theory construction) divides itself into intrinsic and extrinsic parts. The first
part provides the essential theoretical statements, and the second one provides the
definition of terms and all logical arguments. The ontological dimension of the thesis
stands from the doctrinal-ideological anarchists assumptions. The theoretical-
epistemological dimension is located in the approach of structuralism with the centrality
of political science, in particularly in the social dimension of democracy. The
methodological dimension is located in the strategic studies and subsequent analysis.
The thesis produces a theory whose instrumentalizes the concept of building Peoples
Power. This power creates a new political design, where the different sectors, identities,
class fractions and segments is represented in a social equality based society with full
rights and guarantees of individual and collective freedoms of assembly, expression,
expression and organization.
10
APRESENTAO DO TRABALHO DE TESE
O fator expansivo da democracia participativa do demos frente a democracia
oligrquica das elites tem uma manifestao colateral na exploso cvico-cultural que
historicamente vm acompanhando a suas escassas manifestaes Isto prova que, a
extraordinria capacidade criativa inserida nas energias que so liberadas quando o
povo seu prprio destino sem interferncias nem representaes profissionais.
(Rafael Cid, 2008, p.36)
Este trabalho tem uma ancestralidade que vai muito alm do perodo de
doutorado, da ps-graduao em cincia poltica na UFRGS e at mesmo a relao com
o ensino formal. Nesta Apresentao, exporemos o foco do trabalho inicial, as reas que
podem ser desenvolvidas, as vinculaes acadmicas e os possveis desdobramentos.
Entende-se que essas informaes iro facilitar a compreenso do leitor do texto, do
contexto e da intencionalidade encontrada.
Inicio a tese expondo a trajetria pessoal acadmica e poltica que resultaram neste
trabalho; exponho as reas e eixos de estudo; explico o porqu dos ttulos dos captulos,
da bibliografia escolhida e a conjuno de mtodos adotados. Partindo desta
intencionalidade, a tese voltada para o estudo de uma teoria de mdio alcance, na
verdade a formulao desta, e que como todo trabalho de flego no um ato de brilho
individual, mas o processamento de um debate coletivo. O posicionamento como Teoria
de Mdio Alcance, no se d pelo fato de testarmos ao longo do trabalho as hipteses
levantadas, mas por provarmos no discurso articulado os dois teoremas enunciados.
Teorema 1: A aplicao da estratgia possibilita o conflito social atravs da
luta popular. Sem organizao poltica finalista no h possibilidade de estratgia
11
permanente, portanto no h planejamento estratgico e nem conceito estratgico. O
inverso tambm verdadeiro.
Teorema 2: A luta popular constri Radicalizao Democrtica e acumula
Poder Popular. A democracia se torna substantiva medida que serve como valor
organizacional na acumulao e coordenao de foras pelas maiorias (Poder Popular) e
o avano nas conquistas de direitos, redistribuies, soberania, garantias e liberdades
so obtidas atravs do conflito social organizado.
Chegar formalizao destes dois teoremas, tendo como eixo de anlise ao papel
da organizao poltica finalista no eleitoral e de ideologia-doutrina anarquista foi um
largo caminho. Entende-se que o estudo de partido poltico finalista com democracia
interna uma lacuna na cincia poltica, mesmo considerando os estudos dos chamados
partidos revolucionrios. Em geral, se naturaliza, tanto na interna do campo como na
sociedade, o modelo de partido de representao, ou o intermedirio entre setores da
sociedade e o desenho formal do exerccio do poder. Um partido, ou organizao
poltica, que atue tendo a democracia social (participativa, substantiva, deliberativa,
com multiplicidade de formas de representao e delegao, democracia radical) como
valor indispensvel uma via de estudo da cincia poltica que vai ao encontro da
Teoria Democrtica que est por ser construda. A participao poltica especfica por
fora das concorrncias da democracia representativa no exclusividade dos chamados
movimentos sociais e o desenvolvimento deste estudo uma lacuna na cincia
poltica, por mais aberta e ampla que seja seu espectro. Parte da intencionalidade do
esforo aqui apresentado de somar no avano do estudo desta modalidade de partido
poltico, onde se professa uma ideologia, tem-se uma base doutrinria e aposta-se na
arena no-institucional para construir outra institucionalidade como forma de exerccio
de poder contra-hegemnico ainda sob o regime de democracia formal.
Como se nota, esta tese tem um passado terico e uma vinculao ontolgica.
Mas, precisamente no se trata de uma obra anarquista, mas um trabalho terico-
epistemolgico cuja dimenso ontolgica anarquista. Opto por apresentar esta
dimenso de forma direta por opo metodolgica. Isto porque colaborar com o avano
desta escola de pensamento no mbito acadmico tambm uma inteno do trabalho. O
12
mesmo foi iniciado em 1970, atravs dos trabalhos de Raul Cariboni1, historiador
uruguaio e responsvel pela formao poltica da Federacin Anarquista Uruguaya
(FAU). Esta Organizao Poltica, adepta de ideologia anarquista adotou em sua
formao interna a alguns pressupostos terico-epistemolgicos do estruturalismo que,
somados s formas histricas de fazer poltica e mobilizao libertria, resultaram em
um modus operandi e uma construo terica pioneira na Amrica Latina, materializada
nos dois documentos apresentados e debatidos aqui: Huerta Grande (1970) e El Copey
(1972).
Nestes estudos, que pode ser considerado material de teoria emprica ou de mdio
alcance, se apresenta uma teoria poltica de transformao social, baseada na anlise
estruturalista, nas idias-guia do anarquismo politicamente organizado e tomando como
sujeito protagonista as maiorias mobilizadas. Tambm se encontra a fundamentao
ideolgica-doutrinria e terico-epistemolgica para o uso sistemtico da fora
simultaneamente da prtica de democracia como um valor fundamental tanto na interna
da organizao, nos ambientes poltico-sociais e sociais, assim como na montagem de
um espao pblico do movimento popular onde as distintas posies fossem toleradas
em uma idia de ruta comn. O conceito de interdependncia estrutural, de que a
poltica a sntese decisria discursiva e de que a ideologia transversal a todas as
esferas se condensa nesse perodo.
Como esta tese centrada no objeto da cincia poltica o exerccio do poder
organizado no nos ateremos na histria poltica da FAU, e nem na dimenso da
filosofia poltica do anarquismo. De agora em diante, d-se o histrico da trama
intelectual da tese. Os canais por onde esta passou se do, a partir de 1973, em duas
vias. Uma, dentro do Uruguai, nos grupos de estudos organizados pelos militantes da
FAU encarcerados no sistema poltico-prisional uruguaio, em especial no Penal de
Libertad. Neste lugar se estrutura o pensamento do anarquismo politicamente
organizado, conhecido no Cone Sul como especifismo2, e se aprofundam os estudos em
1 preciso compreender que ao citarmos Cariboni, nos referimos na verdade ao conjunto da equipe de formao e anlise poltica que trabalhava sob coordenao deste e diretamente vinculada ao Secretariado da FAU em clandestinidade como na submerso (respectivamente 1967-1971 e 1971-1973). Ver FAU e FAU Secretariado General. 2 Trata-se da denominao adotada no Cone Sul para o formato de organizao poltica anarquista recriada a partir dos anos 1950 no Uruguai, como uma soma das experincias prvias, flexibilizando
13
cima da obra de autores como Foucault, Althusser e Poulantzas. O conceito de classe
no centralizado na categoria explorao econmica se concretiza nesses estudos.
Outra etapa de construo da ancestralidade desse trabalho se d tambm com
militantes da FAU, presos polticos no sistema prisional argentino, em especial na
Penitenciria de Mxima Segurana de La Plata, Provncia de Buenos Aires. Nesta
priso, o autodidata argentino Mauricio Malamud3 ministrava, na cadeia, cursos de
formao aproximando o pensamento estruturalista e o campo nacional-popular. O
desenvolvimento das categorias de discurso, estrutura de pensamento, importncia da
linguagem, a questo da identidade se condensa e ganha forma nesse perodo.
A relao direta com alguns operadores polticos que passaram por estas etapas de
formao se d a partir de dezembro de 1994. J a minha contribuio neste processo
especfico de formulao iniciou-se em abril de 1998, no bairro do Cerro de Montevidu
e aps na cidade de Colnia do Sacramento. O que hoje se formaliza como tese de
doutoramento, tem sua estrutura em cima de uma srie de estudos e material de
formao no-acadmica que tive a oportunidade de ajudar a formular, antes mesmo de
adentrar na ps-graduao em cincia poltica. Este esforo se d em grande parte, e no
em sua totalidade, em funo de compromisso militante com a Federao Anarquista
Gacha (FAG), organizao poltica aliada estratgica da FAU.
Neste esforo de formulao, o tema da tese - a Organizao Poltica e seu papel -
de longa data objeto de estudo e experimentao. J a Interdependncia Estrutural
fruto de uma pesquisa retomada em 2003, cujo texto base em formato no acadmico
foi concludo somente em novembro de 2007, nas cidades lindeiras de Santana do
Livramento e Rivera, na Fronteira Oeste do Rio Grande4. Eis o porqu da data remota
teoricamente as modalidades de interveno e sendo uma soma de experincias iniciadas em 1868 com a Aliana Internacional. Para uma definio de especifismo, ver FAO (2007). 3 O nico registro eletrnico que encontrei a respeito de Malamud est em: LA PGINA DE TOMAS ABRAHAM. Acerca del profesor N.E. Perdomo, documento eletrnico encontrado em: http://74.125.45.132/search?q=cache:Urh9bqnIFJ0J:www.tomasabraham.com.ar/filosofia/perdomo.htm+mauricio+malamud&hl=es&ct=clnk&cd=1&gl=ar; arquivo consultado em 10 de setembro de 2008. O relato que aporto aqui oral, com pessoal que trabalhou e estudou diretamente com esse pensador autodidata. 4 Esta tese, conforme corresponde autoral; mas de inspirao coletiva. O processo cumulativo cientfico que temos no campo acadmico se d de forma parecida no universo da esquerda no-parlamentar. A diferena est nos ritos e formalidades, que so distintos. Aguardei o documento que tem papel
14
da concluso da tese, considerando que iniciei o doutorado em maro de 2004. O
material original (ver FAU/FAG 2007) serve como inspirao, fonte direta e matriz
terico-epistemolgica. E, conforme j havia exposto, na seara acadmica por
excelncia, o elo da histria com a disciplina de estudo se encontra no acionar libertrio
e na aproximao com os chamados estruturalistas, ainda na acirrada conjuntura latino-
americana da segunda metade dos anos 1960.
Como guia de leitura, exponho que a tese se divide em:
- o incio de uma proposta epistemolgica (Captulos 1 e 2);
- um problema terico a ser resolvido atravs da elaborao de uma teoria de
mdio alcance, (Captulos 3 , 4 e 5);
- a reafirmao dos objetivos da pesquisa, na forma de pensamento estratgico e
treinamento para sua aplicao, justo quando o processo reencontra a concluso
(Captulos 6, 7 e 8 e a representao geomtrica no Anexo).
A partir deste trabalho se abrem algumas vias de estudo, tais como: de novo
desenho institucional; do experimentalismo poltico-jurdico; de estudo das teorias e
formas de mobilizao popular; de ao coletiva fomentada por minorias polticas; de
definio do sentido de democracia como exerccio de direitos, liberdades, distribuies
e garantias; do processo de acumulao de foras atravs da radicalizao democrtica;
do estudo dos conflitos de baixa intensidade e participao massiva; da dimenso
ideolgica anarquista.
O conjunto destes estudos derivados deste trabalho se orienta por uma dimenso
normativa que visa o exerccio das liberdades polticas, religiosas, culturais, identitrias,
individuais, tnicas sobre uma estrutura societria sem classes, de organizao poltico-
jurdica-administrativa federalista e economicamente distributivista. A sentena acima
resume a normatividade encontrada na tese. Afirmo esta normatividade porque vou ao
encontro da afirmao de Cid (2008, p. 37)
fundacional para a Interdependncia das 3 Esferas porque, da mesma forma que seria impossvel desenvolver estudo em cima da teoria habbermasiana (por ex.) sem a obra de Jungen Habermas, seria impraticvel desenvolver uma teoria de mdio alcance sem os fundamentos da matriz a qual esta se filia.
15
Do contrrio, se o povo termina suplantado pelas elites e reduzido a um
espelhismo epistemolgico, o sistema poltico se converte em roleta russa reversvel.
Esta serve igual para passar legalmente de uma situao de ditadura a outra de
democracia pactuada (como a transio espanhola do Pacto de Moncloa), assim como
o caminho inverso, da democracia dos espelhismos elitistas ao totalitarismo.
16
1. BASES DA TEORIA DA INTERDEPENDNCIA ESTRUTURAL DAS ESFERAS: UMA ANLISE LIBERTRIA DO PAPEL DA ORGANIZAO POLTICA PARA O PROCESSO DE RADICALIZAO DEMOCRTICA
Neste captulo, inicio explicitando o mtodo utilizado para a modelagem terica, a
formulao da questo central, dos problemas de pesquisa, dos objetivos
complementares e o dilogo empregado para a aproximao de distintas reas de
saberes que se complementam5.
1.1. O Mtodo Utilizado
Utiliza-se aqui um formato de base estruturalista por compreender ser o mesmo o
mais adequado para uma tese terica. A postura em relao ao uso da metodologia que
adoto e de qualquer metodologia - comparte com Dencker & Vi (2001, p. 29) o
seguinte ponto de vista:
O uso da metodologia deve ser fruto de uma reflexo sobre a atividade cientfica.
Na realidade, todas as abordagens podem ser usadas desde que o mtodo escolhido
possa ajudar na resoluo dos problemas de pesquisa. O objetivo dessa reflexo
chamar a ateno para a importncia de no transformarmos o mtodo em uma
camisa-de-fora, que aprisiona o pesquisador em um projeto de pesquisa cientfica.
[...] Encontrar o equilbrio entre as tendncias e desenvolver um mtodo prprio,
adequado ao seu objeto de estudo, so os desafios que se colocam para o pesquisador.
5 Para fins didticos, explicito que todos os grifos ao longo do texto desta tese so meus.
17
Entendo ser necessrio expor uma forma de montagem de teoria, de modo que
possa explicitar a parte intrnseca da mesma. Aplica-se aqui uma modelagem que est
construda a partir do trabalho de Gibbs apud Thompson (1976), Baquero (2004
polgrafo), Baquero & Pr (2004 polgrafo) e Dencker & Vi (2001). Tomamos como
base um modelo de construo de teorias, no como uma receita pronta, um recipiente
pr-fabricado para ser preenchido, mas como um formato aceitvel e
epistemologicamente coerente. Gibbs apud Thompson (1976, p.1) aponta trs formas
aceitadas pelo campo acadmico para a construo de teorias.
Uma o modelo de Teoria Formal, que incorpora equaes como linguagem pura,
aplicando as sentenas na forma de equaes matemticas. Outra tem o modelo de
Teoria Normativa Pura; esta puramente discursiva, sem preocupao com a incidncia
na sociedade, no mundo da vida. Sua montagem se d em cima da racionalidade
discursiva, sendo que a preocupao por torn-la efetiva no cabe aos formuladores da
teoria, mas sim aos que a vo utilizar.
Outro formato, que o incorporado aqui, trata da Teoria de Mdio Alcance, ou
Teoria Emprica. Esta teoria tem base normativa e tangibilidade. A produo desta
teoria um discurso coerente com instrumentos de medio e incidncia que permitem
seu teste, adaptao, validao, falsificao e conseqente adequao. Outra
caracterstica desta modelagem a construo do conhecimento, no como
representao, mas como saber estratgico.
O formato de exposio adotado aqui o dos dois autores citados acima, que
apresenta uma conveno estruturalista de construo, apresentao e exposio das
teorias. Este formato de construo tem a intencionalidade de aumentar a clareza de
seus componentes e a eficincia e a organizao e apresentao do sistema de idias
chamado de Teoria. Esta forma de construir se baseia em trs princpios:
- Interpelao lgica entre os componentes declarados.
- A diferenciao entre definies e assertivas empricas
- Nem todas as assertivas empricas so de mesmo tipo
18
Estes trs princpios permitem que a apresentao da Teoria se d em duas partes.
Primeiro, na parte intrnseca, equivalente a metfora de ser o esqueleto da teoria. Para
tanto, no esqueleto, se utiliza uma articulao lgica e coerente da construo
substantiva (intrnseca). A outra parte da apresentao a parte extrnseca. Esta, pelo
formato construdo, d a definio dos termos empregados no segmento intrnseco e
qualquer outro aspecto, termo, conceito parcial, fragmento que sejam necessrios para
comunicar e justificar a teoria para o leitor.
Incorporo este formato de montagem para tornar explcita a parte intrnseca da
Teoria da Interdependncia das Esferas aplicada na anlise no papel da Organizao
Poltica no processo de Radicalizao Democrtica. A parte extrnseca , portanto, o
restante deste primeiro captulo e os seguintes, incluindo o conclusivo, o captulo 8,
quando voltamos a expor a parte intrnseca da Teoria.
Segundo Gibbs (apud Thompson 1976, p. 2), a parte substantiva da modelagem de
uma Teoria de Mdio Alcance consiste em trs termos. So eles:
- construtos: termos que no so nem completamente definveis nem aplicveis
empiricamente
- conceitos: termos que so completamente definveis, mas no so
empiricamente aplicveis
- referenciais: termos que designam empiricamente frmulas aplicveis ou
operacionalizveis
J as assertivas da parte intrnseca servem para relacionar os termos substantivos e
dar um ordenamento lgico na linguagem de sentenas. Estas so compostas de cinco
tipos (Baquero 2004, polgrafo, p.10):
- (1) axiomas: formulaes que relacionam construtos;
- (2) postulados: formulaes que relacionam os construtos como conceitos;
19
- (3) proposies: formulaes que relacionam conceitos;
- (4) transformacionais: formulaes que relacionam conceitos com referenciais;
- (5) teoremas: formulaes formalmente derivadas que relacionam referenciais.
Antes de seguir na exposio da parte intrnseca, preciso observar uma ressalva
quanto apologia deste formato. Segundo Baquero (2004, polgrafo, p. 11):
Obviamente que esta forma de construir teorias no se constitui exclusivamente num
livro texto. De fato, a natureza do processo de construo de teorias no pode estar
baseada num tipo de livro de cozinha. O que o formato da construo de teorias acima
discutido permite melhorar a clareza e a apresentao e organizao de uma teoria.
dentro desse esprito que o formato utilizado neste estudo.
Para a boa exposio das assertivas e formulaes desta teoria, necessrio expor
os pressupostos da mesma. O modelo de processo para a incidncia da organizao
poltica proposto nesta tese se adqua ao contexto latino-americano ps-transio e a
partir do receiturio neoliberal. A democracia de procedimentos que se aplica nesse
cenrio tem, necessariamente, de isolar e fragmentar o sentido de unidade de classe(s) e
desorganizar o tecido social formador de identidades coletivas. A disputa poltica
consolidada nestas democracias no passa pelo avano dos direitos individuais e
coletivos para o bem comum e tampouco se empodera a populao de modo a participar
de forma direta das decises fundamentais para o pas.
Portanto, de forma estrutural (podendo se aventar a hiptese do desenho de no
participao ser deliberado), d-se o esvaziamento da poltica e a substituio do
conflito poltico e social pela massificao de premissas ocultas (de corte ideolgico-
doutrinrio) referenciadas no suposto domnio da tcnica originria da economia.
Ou seja, baseada no hiper-estruturalismo neoliberal. A inverso desse quadro passa
necessariamente pela construo de um modelo terico-organizativo, que veja o espao-
sntese da poltica, que no substitua a instncia poltica-especfica pelo sujeito social
organizado (o agente social na forma de movimentos populares) e que tome a ideologia
20
como componente interdependncia estrutural da sociedade. Para isso preciso que,
deliberadamente, no se oculte a dimenso ontolgica das premissas terico-polticas.
A garantia da multiplicidade de organizao e representao de interesses,
sujeitos, identidades, setores de classe se d atravs da ao coletiva coordenada de um
ou mais agentes polticos imbudos deste objetivo finalista. Ao manifestar esse objetivo
atravs de fora social, esta a manifestao do processo de Radicalizao
Democrtica. Este processo leva e se d atravs do acmulo de foras dentro da
construo poltico-social chamado de Poder Popular.
Expondo a Dimenso Intrnseca
Axioma I: A no existncia de organizaes polticas de objetivo finalista
significa o abandono da estratgia e, por tanto, a vitria pontual da hegemonia
dominante;
Axioma II: A confuso entre ideologia, doutrina e teoria leva a incapacidade
preditiva-analtica, portanto paralisia das polticas proativas, indefinio estratgica
e, por tanto, incorporao e admisso das premissas ocultas hegemnicas no contexto
dominante;
Axioma III : A fragmentao do tecido social baixa o estoque de capital social e
dificulta a forja de identidades coletivas, por tanto, prejudica a organizao dos sujeitos
sociais e impede o empoderamento das maiorias;
Axioma IV: A crescente midiatizao das relaes sociais aumenta e refora o
comportamento individualista na vida privada e indiferente na vida coletiva;
Axioma V: Quanto maior a noo de que a estabilidade democrtica se d na
forma de procedimento e no em termos substantivos (como polticas econmicas
distributivas e um desenho de economia poltica independente e soberana), aumenta a
indiferena ao exerccio de direitos, o que leva a uma maior apatia e ceticismo;
21
Axioma VI: A idia de equilbrio desigual entre classes e jogo de soma zero
leva paralisia do processo reivindicativo e naturaliza a injustia social sob
procedimento da concorrncia entre partidos;
Axioma VII: A mudana no comportamento poltico se d atravs de uma
escalada de mobilizao coletiva, incluindo a miditica e cultural, reorganizando o
tecido social e valorando a democracia como a pluralidade dentro do processo de luta
popular.
Postulado 1: O horizonte de idias-guia sistematizadas o primeiro delimitador da
profundidade e do tipo de acionar poltico;
Postulado 2: Na atual etapa do capitalismo o horizonte de idias midiatizado e as
atividades cotidianas se vem atravessadas pelas Tecnologias de Informao e
Comunicao (TICs);
Postulado 3: O acmulo de foras dos sujeitos sociais passa pela construo
identitria e isto tambm se d atravs dos agentes sociais motivados pelas organizaes
polticas incidindo sobre e a partir destes setores;
Postulado 4: A incidncia nos sujeitos sociais organizados deve atender aos
distintos nveis de interveno, em escala e complexidade, dentro das maiorias. Para
atend-los necessria a existncia de uma ou mais organizaes polticas que adotem
este formato organizacional e atue no processo de Radicalizao Democrtica;
Postulado 5: A estratgia permanente para a Radicalizao Democrtica passa
pelo protagonismo popular, obrigando o Estado a ser responsivo e compatvel com a
ampliao de direitos e liberdades coletivas e individuais, atendendo a multiplicidade de
sujeitos, demandas, identidades e questes generalizveis.
Proposio 1: A anlise e a percepo da realidade organizvel atravs do
desenho da interdependncia estrutural das esferas poltica, econmica e ideolgica;
22
Proposio 2: No h determinao de uma esfera sobre a outra;
Proposio 3: A esfera ideolgica estruturante de todas as demais;
Proposio 4: A esfera poltica (jurdico-militar) concentra a sntese das formas de
conflitos e decises.
Transformacional 1: A ao coletiva por parte das maiorias s tem seu
protagonismo assegurado se for desenvolvida no marco no-institucional, para que isso
ocorra necessrio o finalismo determinado na forma de organizao de minoria
poltica;
Transformacional 2: O exerccio da poltica no formato de ao coletiva no-
institucional obriga o Estado a ser responsivo, tornando-o mais pblico e, por
conseqncia, mais democrtico;
Transformacional 3: A democracia se torna substantiva medida que um conjunto
de foras sociais organizadas a incorporam como um valor essencial para a justia
social.
Teorema 1: A aplicao da estratgia possibilita o conflito social atravs da
luta popular. Sem organizao poltica finalista no h possibilidade de estratgia
permanente, portanto no h planejamento estratgico e nem conceito estratgico. O
inverso tambm verdadeiro.
Teorema 2: A luta popular constri Radicalizao Democrtica e acumula
Poder Popular. A democracia se torna substantiva medida que serve como valor
organizacional na acumulao e coordenao de foras pelas maiorias (Poder Popular) e
o avano nas conquistas de direitos, redistribuies, soberania, garantias e liberdades
so obtidas atravs do conflito social organizado.
23
O conjunto da parte extrnseca ser demonstrado nos captulos a seguir. Retorno
modelagem terica nas concluses do trabalho.
1.2. A Questo Central, o Problema de Pesquisa e os objetivos
secundrios:
Esta tese de doutoramento em cincia poltica afirma seu principal objetivo, dentre
os vrios a ser localizados dentro do texto. vontade atravs deste trabalho de dar uma
forma terica ao debate, formulao e concluso da questo central, apresentada em
dois tpicos:
1) Formular uma teoria que instrumente o conceito de construo do Poder Popular,
criador de uma nova institucionalidade, onde as distintas representaes e cortes de
interesse e identidade estejam representados em uma base societria distributivista, com
plenitude de direitos e garantias individuais e coletivas das liberdades de reunio,
expresso, manifestao e organizao.
2) Formular uma idia de processo de Radicalizao Democrtica, onde se aplica a
acumulao de foras para a construo desta forma de Poder, tendo por base a anlise
estratgica aplicada nas categorias centrais apontadas para este objetivo. Tanto o
acmulo de foras para a criao de um poder emanado das maiorias como o processo
que radicaliza e torna substantiva a democracia tem, neste trabalho, como eixo de
anlise, o papel da Organizao Poltica. Este modelo de instituio poltica tem sua
atividade-fim na construo do Poder Popular e como atividade-meio para isso o
processo de Radicalizao Democrtica.
A Questo Central se depara com dois problemas de pesquisa a ser solucionados.
O problema atual para qualquer organizao e movimento com intenes de ruptura
desenvolve-se sobre um procedimento j clssico da poltica, aplicado para a sociedade
de classes contempornea. Parto de duas premissas polticas e estratgicas, que tomo
como vlidas e hoje so operacionalmente absolutas. Assim, para retornar questo
central e atingir o problema de pesquisa, preciso tomar estas premissas como dado de
realidade e exigncia para qualquer operador poltico. Estas so as necessidades de, no
caso do conflito estudado na tese:
24
1 - Dividir para reinar (dominncia)
2 - Concentrar foras para o conflito (a-dominncia)
Assim, o problema de pesquisa para atender aos objetivos da questo central
buscar a resposta para duas perguntas:
- A excessiva fragmentao dos sujeitos sociais, somada a incapacidade de
aglutinar dos agentes, pode impedir tanto a dominao organizada como a organizao
da resistncia contra a dominao?6
- Quais as formas de ao coletiva e formatos de organizar coletivamente para
acumular foras rumo a um processo de ruptura?7
Este antagonismo atravessa o eixo do trabalho por onde veremos o confronto das
intencionalidades e bases conceituais. Concluo a exposio de objetivos e
problematizaes afirmando que, como tese de doutorado em cincia poltica, existe
outras duas metas, estas dentro do mbito institucional e acadmico:
- Avanar no estudo da configurao atual da sociedade de classes,
especificamente na idia de classes oprimidas, na nova pobreza, na luta por ampliao
de direitos coletivos e suas formas de organizao contemporneas na Amrica Latina.
Assim, a concluso deste trabalho formaliza uma Teoria de Mdio Alcance, mas com
base totalizante, que sirva como instrumental terico para a anlise e incidncia finalista
em nosso Continente8.
- Contribuir para o avano da pesquisa e anlise incidente e com identidade latino-
americana e de aproximao da Universidade Pblica para com as demandas das
6 Assumo como vlida tanto a existncia de classes como a fragmentao das maiorias que compem a sociedade dividida em classes. Esta ausncia de unidade, tanto no aspecto identitrio como nas formas estruturantes de vida coletiva, buscarei afirmar e comprovar ao longo do trabalho. 7 Ruptura com a ordem constituda pode implicar em vrios processos distintos. O termo e a profundidade necessrias veremos com afinco no Captulo 5. 8 E por extenso generalizvel, no Brasil e na Amrica Latina, sabendo das limitaes tericas e de realidade distintas.
25
maiorias. Especificamente no campo da cincia poltica, participando do esforo da
construo de um pensamento poltico de teoria democrtica latino-americana. Sendo
esta vista como um grande arcabouo terico-epistemolgico onde as matrizes de
pensamento que operam e incidem no meio acadmico a partir desta tica coexistam e
contribuam nos conceitos substantivos de democracia, como o de participativa,
deliberativa, substantiva, radical, popular, dentre outros.
1.3. A anlise estratgica e o Jogo Real da Poltica
Explicito a aspirao da construo epistemolgica dentro das cincias humanas,
especificamente na cincia poltica, para demonstrar para leitores e crticos qual a
intencionalidade poltica e terica da tese. Este trabalho visa tambm aproximao de
duas reas aparentemente distintas, ou ao menos afastadas, dentro da cincia poltica.
Mais precisamente, trata-se do debate a respeito da ausncia de objetivos finalistas
(estratgicos) como forma de derrota e/ou enfraquecimento do movimento popular e das
organizaes polticas inseridas nestes setores de classe organizada. Partimos da
premissa que uma acumulao de foras s possvel quando existem os recipientes
para este acmulo, ou seja, instituies polticas e sociais que operem nessa lgica e
com objetivos finalistas de largo prazo9. Entendo que neste campo perfeitamente
aplicvel um desenvolvimento dos estudos estratgicos, iniciados ainda no final da
graduao (em comunicao social, habilitao jornalismo, UFRJ, 2001), a partir de
uma leitura crtica - e oposta - de Golbery do Couto e Silva e Carl von Clausewitz10.
Cheguei neste objetivo e vontade atravs das pesquisas e trabalhos de monografia
e dissertao de mestrado, onde justamente abordei a anlise estratgica a partir do
estudo de dois rgos federais de segurana e inteligncia11. Entendi haver alcanado
um limite do estudo estratgico do ente estatal, onde no h possibilidade do trabalho
implicar nem em proposio, e tampouco em reflexo terica aprofundada por dentro
destas instituies. Por isso resolvi-me por mudar o tema do estudo e apontar um novo
pblico alvo, visando outro foco para o trabalho de anlise estratgica.
9 Abordamos este tema especfico no Captulo 4. 10 Veremos com preciso esta anlise no Captulo 7. 11 Trata-se das duas agncias federais da atualidade. O primeiro trabalho foi a respeito do modus operandi da Agncia Brasileira de Inteligncia (ABIN) e a dissertao de mestrado foi sobre as disputas internas do Departamento de Polcia Federal, tambm conhecido como Polcia Federal (atravs da sigla oficiosa, PF). Ambos os trabalhos constam na Bibliografia.
26
Uma leitura da bibliografia e tambm atravs da observao da trajetria
individual de autores mostra que a mudana de pblico alvo, de objeto de estudo, de
destino da pesquisa e da explicitao da posio de partida, so fenmenos recorrentes
dentro do universo das cincias sociais em geral e da cincia poltica em particular. O
que h de contra-hegemnico o posicionamento e no a funo. Porque a construo
desta teoria prev uma postura, um ponto de partida e de mirada do cientista social.
Entendo que estas posies sempre existem, a diferena que opto por explicit-la12. O
fao no por preciosismo ou para marcar uma distino para com o campo, mas por
identificar esta necessidade de rigor para abordar o tema.
O que fao teoria que parte da reflexo e da posio no diletante. Portanto,
quem faz este tipo de trabalho se coloca como analista estratgico13; formulador e
participante, criando hipteses e operacionalizando-as no real. Desde o princpio
operando e analisando para um dos lados (vrios) do(s) conflito(s) de classes e projetos
de ptria, povo, terra e sociedade.
De um ponto de vista estritamente acadmico, reconheo que o termo analista
estratgico tem a correlao com analista simblico, afinando-me com a definio de
livro de Brunner e Sunkel (1993, p.11-14).
Segundo estes pesquisadores chilenos, trs marcas caracterizam o analista
simblico. So elas:
- identificam, solucionam ou arbitram problemas mediante a manipulao de
smbolos, para este trabalho empregam instrumentos analticos aguados pela
experincia (grifo meu);
- habitualmente seus rendimentos no esto ligados s horas que emprega no
trabalho, mas sim nos resultados de seus produtos de anlise, com nfase na qualidade,
originalidade, oportunidade e inteligncia dos mesmos;
- no campo profissional, suas carreiras no so lineares ou necessariamente
hierarquizadas, mas sim dependente de suas redes de relaes, capacidade de trabalho,
formas de interao e trabalho em equipe.
12 Adentro neste debate na primeira parte do Captulo 2 13 Ver Silva (Golbery do Couto e) apud Lima Rocha (2003, captulo 1).
27
Este perfil se contextualiza com a alocao de verbas para demandas que passam
pelos saberes das cincias humanas e sociais, e da cincia poltica em especfico, mas
no necessariamente passam por mais recursos para as universidades pblicas. A
demanda crescente de pessoal especializado e polifuncional14 com capacidade para
solucionar problemas reais e concretos, em geral, no menor espao de tempo possvel.
Temas como desenvolvimento organizacional, planejamento estratgico, desenho de
sistemas, formao e reorientao de recursos humanos, marketing e publicidade, sub-
contratao de funes pblicas, avaliao de conhecimentos e reas correlatas; esto
dentre as reas para as quais se pode prestar algum tipo de consultoria e/ou projetos de
assessoria de mdio e longo prazo.
Tambm exerce o analista simblico, ou o estratgico, o necessrio domnio das
teorias dominantes e com maior peso gravitacional em cada um dos campos onde este
atua. Reconheo esta funo e busco na tese uma exposio tanto deste domnio, como
da capacidade de utilizar parcelas de teorias adjacentes. Estas entram como
complemento de reas de estudo que a Teoria da Interdependncia Estrutural das
Esferas, aplicada na anlise do papel da Organizao Poltica no processo de construo
do processo de Radicalizao Democrtica (ou seja, esta tese), deve dialogar e
problematizar.
Voltando caracterizao do analista simblico, reconheo esta correlao com a
do analista estratgico, admito toda esta funcionalidade e a partir dela me posiciono em
condies e funes dentro das sociedades de classes existentes na Amrica Latina.
Conforme j disse antes, a frieza da anlise tambm implica o posicionamento prvio, o
que ir definir se uma predio est antecipadamente correta ou no. a forma de
racionalizao usada por Golbery do Couto e Silva (1981a, 1981b) para o planejamento
estratgico, atravs de uma mxima. Eis a assertiva:
O objetivo subordina o mtodo, conforme as condicionalidades.
14 muito interessante observar como o mesmo conceito de polifuncionalidade era aplicado por organizaes polticas com intenes de ruptura, conforme abordamos nos Captulos 4 e 7. Na definio de quadros mdios que empregada na tese, o conceito de indivduo polifuncional empregado.
28
O que vemos hoje como norma hegemnica e muitas vezes no dita, a premissa
oculta, de um nico e pretenso objetivo que se universaliza pela prpria prepotncia do
chamado pensamento nico15. Digo que esta premissa no total e menos ainda
absoluta. Inicio usando o exemplo do analista simblico como muito prximo do
analista estratgico porque entendo ser este o ofcio e a funo de tornar tangvel a
imensa massa de conhecimento cientfico e acadmico de modo a poder incidir na
realidade. Portanto, cabe ao analista ir alm da premissa oculta e das regras aparentes e
formais.
Para operar na poltica, o formulador de anlise e incidncias deve reconhecer a
amplitude do leque de variaes possibilidade de cada conjuntura, de cada momento. E,
tambm tem de reconhecer a estratgia tal como natureza desta rea de estudo. Ou
seja, como a cincia do conflito; uma disputa de interesses irreconciliveis; a interao
competitiva por agentes contrrios; com o fator risco permanente; sendo que qualquer
anlise realista deve tomar as condicionalidades como dadas de antemo.
Neste sentido, quando o cientista poltico16 ou profissional de reas afins trabalha
apenas dentro das condies hegemnicas, como num simulacro de desenvolvimento de
um saber de tipo nico ou para quem este prestar consultoria, ser nesta situao
onde o chamado analista simblico pode ser considerado tambm como um prestador de
servios. Ou seja, um profissional especializado embora muito verstil, com alto grau de
informao estratgica (dotado de fontes de inside information17) e com capacidade de
trabalho em equipe.
15 No Captulo 5 nos dedicamos de forma lateral a abordar a crtica ao pensamento nico e a premissa oculta. Expomos trs clssicos do neoinstitucionalismo e vemos como a premissa destes autores no est nada oculta. O ocultamento destas sob um suposto jogo de tabuleiro de soma zero polirquica fruto da hegemonia do pensamento neoliberal e neoinstitucional clssico do ps-guerra sobre a deformao do campo da cincia poltica. J no Captulo 6 fazemos um debate e polemizamos com as concepes de Estado e democracia constrangidos pelo peso gravitacional das teorias econmicas, particularmente o neoliberalismo, operando como plo de fora por sobre a poltica e a ideologia declaradas. O problema da premissa oculta permanente nestas abordagens. 16 Registro tambm a existncia e o uso do termo politlogo, empregado em lngua castelhana e francesa para designar o cientista poltico. 17 Para um conceito apropriado de inside information, ver PALAST, Greg. A melhor democracia que o dinheiro pode comprar. So Paulo, Francis, 2004. O termo ganha uma boa definio no Captulo 6: Pat Robertson, General Pinochet, Pepsi-Cola e Anticristo: Reportagens especiais investigativas. Uma viso complementar e crtica pode ser encontrada na cobertura de Greg Palast da reunio do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional, no seguinte endereo eletrnico: http://www.gregpalast.com/imf-and-world-bank-meet-in-washington-greg-palast-reports-for-bbc-televisions-newsnight/ (documento consultado em 02 abril de 2007). Uma viso da atuao do tipo de prtica de inside information no capitalismo informacional e financeiro pode ser encontrado no depoimento de Greg Palast para o
29
Este analista, o simblico, difere um pouco dos analistas de informao das
agncias de inteligncia e organizaes militares. O analista simblico teria um papel
intermedirio entre um analista de informaes, um formador de recursos humanos
(treinamento, formao e reconverso) e de um estrategista clssico. Estas trs
caractersticas citadas acima, portanto, avaliamos como sendo parte do perfil do
trabalho do analista simblico.
No Brasil a funo no novidade e temos vrios cases18 de sucesso.
Consideramos importante explicitar a funo do analista simblico porque o
entendemos como uma possibilidade no excludente da tipificao de um
profissional altamente qualificado, e que pode vir a trabalhar para distintos mercados,
tanto de lgica empresarial como de lgica poltica especfica. Entendo que esta
polifuncionalidade aproxima a figura do analista simblico ao papel de um dos analistas
por mim mais utilizado em distintas atividades profissionais e de ofcio (tais como
textos, artigos, dissertao de mestrado, cursos e livro publicado).
Este outro analista utilizado ao longo da tese o general riograndino19 Golbery do
Couto e Silva20. Ele, consagrado estrategista das Foras Armadas (FFAA) brasileiras,
utilizado no porque concorde com o destino e atividade-fim de suas anlises e
incidncias, mas por outra virtude. Entendo que este gacho, militar de carreira, aplicou
e operacionalizou em um sistema lgico e materializvel, conceitos a princpio
estanques e abstratos.
Golbery do Couto e Silva (1981a, 1981b) tinha a capacidade de execuo, alm da
predio, fator esse que considero essencial. Muito de seus conceitos j foram
superados, mas ainda no panorama do pensamento estratgico continuam vlidos e
jornalista Alex Jones, a respeito dos documentos secretos do Banco Mundial sobre a Argentina. O mesmo se encontra em: http://www.gregpalast.com/world-bank-secret-documents-consumes-argentinaalex-jones-interviews-reporter-greg-palast/ (arquivo consultado em 02 de abril de 2007). 18 Os colegas de comunicao com habilitao em publicidade me perdoem a ironia, mas a linguagem carrega o conceito e o tipo de trabalho empregado. Para uma boa definio de case ver: FALCO, Eduardo; GRANDI, Rodolfo; MARINS, Alexandre (orgs.). Voto marketing, o resto poltica. Estratgias Eleitorais Competitivas. So Paulo, Loyola, 1992. 19 Em geral costuma-se confundir o termo. Riograndino o cidado natural da cidade do Rio Grande, litoral sul do Rio Grande do Sul, porto mais meridional do Brasil. Golbery natural deste municpio que fora a primeira capital lusa da ento Capitania de So Pedro. 20 Ver Captulo 7.
30
funcionando nas organizaes que o executam. Vou alm. Se e caso o general fosse
mais lido ao invs de comentado, princpios bsicos da poltica e da estratgia no
seriam to ignorados. Afirmo que a simples noo de Programa Mximo e Programa
Mnimo, ou Objetivo Estratgico e Meta Ttica para a Etapa esto quase perdidos no
uso corrente.
Um exemplo do abandono conceitual da idia de processo est na constatao de
que o conceito de meta (target) hoje quase inexiste em seu sentido estratgico. Em Silva
(1981a, p.266) encontramos uma citao de Golbery para um texto de Arthur Lewis
(Princpios de Planejamento Econmico), diferenciando a meta da atividade planejadora
e do balano inicial da equao de possibilidades, recursos disponveis, prazos
planificveis e a estimativa de interao dos agentes contrrios. A meta , de fato,
aquilo que nos propomos de realizar como resultado da ao que pensamos realmente
empreender. Mais frente, a definio de condicionalidades se d ao definir as
estimativas. muito importante estim-la (a meta) sem quaisquer iluses quanto ao
que de fato possvel fazer. Dou este exemplo para demonstrar a possibilidade de que
o corpo conceitual de uma tese como esta tem de expor um processo poltico alm das
noes generalizantes e no substantivas dos conceitos empregados.
O mesmo se d na crtica de Silva (1981 a, p. 89) ao pensamento elaborado de
forma simplista ou reducionista. Segundo Golbery, e tomando como aporte um
conceito de Mannheim, o pensamento planificado, que est na base de toda a doutrina,
implica no abandono definitivo do conceito simplista da causalidade linear e no
reconhecimento da interao concomitante como o complexo e indissolvel que d
organicidade de fato s estruturas dinmicas em perptua evoluo. Entendo que a
opo por negar qualquer matriz de pensamento de causalidade linear essencial para a
capacidade de predio. Em funo do abandono das ambies estratgicas de agentes
sociais e tambm pela reduo analtica dentro dos parmetros polirquicos, vivemos na
cincia poltica hegemnica hoje uma perda de capacidades e habilidades.
Esta perda atinge a termos equivalentes a ser alfabetizado em anlise. O que dir
de noes bsicas complementares como: acumulao de foras; caracterizao de
etapa; mera descrio do cenrio complexo; identificao de agentes centrais e
secundrios com seus respectivos interesses estratgicos e tticos; coeres aplicveis;
31
manobra de envergadura, dentre outras. Entendo que Golbery fez de sua erudio
terreno frtil para a incidncia sobre a sociedade. No discuto aqui o carter normativo
desta, mas reconheo o seu mrito como analista estratgico e considero suas obras
como fundamentais tanto para o pensamento poltico brasileiro (com nfase na
modernizao conservadora e no desenvolvimento da sociedade de controle) como para
esta tese. Estamos e estou em posies opostas de origem, assim como tambm estou
perante boa parte dos advisors ou consultants (consultores) operando no Planalto
Central. Mas, considero que ambos nos oferecem boas tipificaes de analistas
estratgicos compatveis como aquilo que podem ser considerados analistas simblicos.
Afirmada a diferena, esta tese de doutorado em cincia poltica tambm tem
como objetivo apresentar parmetros mnimos que possam iniciar um dilogo entre o
conhecimento acadmico e sua incidncia na sociedade realmente existente, nutrida esta
incidncia de intencionalidade, propsito estratgico, frieza analtica e o rigor
necessrio para operar no Jogo Real da Poltica (incluindo normas legais e reais, formais
e informais). Neste aspecto me refiro diretamente busca por uma cincia poltica
produzida e vinculada Amrica Latina. Uma disciplina aberta pautada em estudos das
relaes, instituies e seus valores que processam e administram poder, como parte
consistente das cincias humanas e sociais, incidente dentro de sua complexidade e
dotada, por tanto, da contundncia da anlise estratgica21.
O conceito de Jogo Real da Poltica aqui por mim definido como um conjunto
de regras e instituies formais e informais, legais e ilegalizadas, com discursos
explcitos e implcitos e margens de manobra que ultrapassam o constrangimento. Este
conceito tem sua semelhana com a definio de Clausewitz (p. 127) quando este afirma
que a guerra assemelha-se mais ainda poltica[...] a poltica a matriz na qual a
guerra se desenvolve. Por conseqncia este conceito de Jogo Real e a definio de
guerra como tendo origem na poltica e por tanto como a guerra sendo uma varivel
da poltica e desta da guerra necessita uma teoria que no confunda o sentimento
empregado de crena em objetivos finalistas e na estratgia que assegura a esta
finalidade com o conhecimento cientfico do jogo em si.
21 Por compreendermos que este conceito, o de anlise estratgica, central para o decorrer do trabalho, dedicamos a esta rea de estudo a integralidade do Captulo 7.
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Temos por diante a dificuldade prpria da definio da natureza daquilo que
estamos chamando de poltica, especificamente de Jogo Real, dado que a realidade
no algo absoluto, mas sim o conjunto de existncias constitudas, sendo ou no
perceptveis. Clausewitz (p. 108) nos aponta esta dificuldade e assinala uma sada: Para
reconhecer com clareza a dificuldade que representa a elaborao de uma teoria da
guerra, para poder deduzir de tal dificuldade o carter que a teoria deve ter, tem de se
considerar mais de perto as dificuldades essenciais inerentes natureza da atividade
blica.
O Jogo Real da Poltica, pela ausncia de pr-definio de regras absolutas,
necessita de uma teoria que da complexidade e das interaes entre agentes opostos e
aliados, extraia a organicidade dinmica que s existe em um cenrio real. Para tanto, a
capacitao terica do operador poltico se parece com a de um homem ou mulher em
posio de comando em um cenrio de guerra. Vou ao encontro e concordo com a
crtica de Golbery ao pensamento simplista e de causalidade linear. Nenhum
formulismo permite a deciso acurada e nenhum treinamento indireto possibilitar uma
carga de habilidades acima da ambientao. Clausewitz (p. 114) nos d um exemplo
desta capacitao terica, pondo-se em acordo com aqueles que vem a importncia do
conhecimento como algo tangvel e de aplicao estratgica e no o confundem com
algo que, embora importante, no cientfico. Ou seja, Clausewitz faz a crtica da
formulao do conhecimento como representao.
A teoria existe para que as pessoas no precisem estar permanentemente pondo
as coisas em ordem e traando caminhos, mas para que se encontrem as coisas
ordenadas e esclarecidas. Ela destinada a educar o esprito do futuro chefe de
guerra, digamos, antes, a orientar a sua auto-educao e no a acompanh-lo no
campo de batalha, assim como um pedagogo prudente orienta e facilita o
desenvolvimento espiritual do jovem sem que, no entanto, o traga amarrado a si
durante toda a sua vida
Aquilo que no cientfico pertence ao universo dos sistemas de crenas, que no
entender deste trabalho, inerente condio humana e interdependente com os saberes
cientficos. Os sistemas de crenas tomam como matria prima o elemento ideolgico,
que no caso da natureza da guerra (anloga a poltica) assim caracterizado por
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Clausewitz (p. 109), como o fruto da experincia acumulada em um meio hostil e
adverso, com o risco real: [...] o combate engendra um elemento de perigo em que
todas as atividades da guerra tm de se manter e evoluir, como um pssaro no ar ou um
peixe na gua [...] a coragem no um esforo de inteligncia, um sentimento assim
como o temor.
1.4. A matriz estruturalista, os primeiros passos na definio do que
cincia e o enfoque realista
Conforme vimos na Apresentao, esta aproximao da anlise estratgica com
um posicionamento analtico a favor da Radicalizao Democrtica e fundamentado na
identidade e na importncia do componente ideolgico, tem uma similitude com o corpo
conceitual do estruturalismo que chegara Amrica Latina a partir da segunda metade
da dcada de 1960 do sculo XX. Veremos neste tpico a relevncia desta matriz de
pensamento cientfico para a construo desta tese.
Desta aproximao com o estruturalismo decorrem posies e postulados
filosficos e epistemolgicos. O primeiro deles diz respeito justamente concepo do
surgimento, de como aparece uma cincia humana. Vou ao encontro de Foucault
quando este afirma que: No oferece dvidas que cada uma das cincias humanas se
tenha feito por ocasio de um problema, de um obstculo de ordem terica ou prtica22
(Foucault in Coelho, 1968, p.46). Portanto, vemos o surgir de uma cincia, de uma
disciplina, se uma subdisciplina, subcampo ou novo campo de saberes como um
problema a ser resolvido e um desafio a ser transposto. No caso desta tese, o desafio a
soluo terica para uma possibilidade de realizao do Poder Popular como uma nova
forma de institucionalidade constituda.
Sabemos que o carter de novidade deste tipo de abordagem, ou mesmo de
redescoberta, sofrer as mais variadas crticas. Nada que no passe pelo debate
acadmico de bom nvel, e tambm pelas idiossincrasias do campo. Vemos o fenmeno
novo, ou ressuscitado, como algo positivo em todas as circunstncias. 22 Trata-se da coletnea portuguesa organizada por Eduardo Prado Coelho em Lisboa, agosto de 1967. Na Introduo, de sua autoria, Coelho trs o interessante subttulo: Introduo a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e estruturalismos. Este livro trs o recorte necessrio para a compreenso dos paradigmas que esta gerao de pensadores franceses se prope e todo o rigor necessrio para romper com as regras de disciplinas pr-estabelecidas de forma administrativas.
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Nas razes daquilo que estudamos, sendo a prpria rea de saberes e disciplinas
cumulativas conhecidas como cincias humanas, surgem como algo distinto e um
fenmeno inaugural. Ainda segundo Foucault (idem ao anterior, p.46): o fato de pela
primeira vez desde que existem seres humanos e que vivem em sociedade, o homem
isolado ou em grupo, se ter tornado objeto de cincia isso no pode ser considerado
nem tratado como um fenmeno de opinio: um acontecimento da ordem do saber.
Esta abordagem de acontecimento da ordem do saber implica em reconhecer os
quesitos necessrios para um estudo de rigor (vamos expor logo em seguida) e ao
mesmo tempo refutar premissas de antemo. A forma escolhida de faz-lo a
declarao inicial do marco de intenes, da vontade de incidncia e da necessidade de
buscar uma episteme prpria para o tema. No ser com premissas ocultas de
maximizao de ganhos e diminuio de perdas e nem tampouco com
exemplificaes oriundas da econometria que iremos debater e propor um
encadeamento conceitual para acumulao de poder e democracia substantiva.
Nenhuma idia pr-concebida de jogo de soma zero pode ser distributivista e
participativa.
O debate aqui traado visa o empoderamento dos operadores reais da poltica,
conceituados por ns como agentes sociais. A tese visa aproximar nossa viso a partir
das realidades vividas pelas classes mais pobres da sociedade - cuja definio geral,
segundo nossa caracterizao de classes oprimidas e cujos setores de classe com
possibilidade de serem organizados conceituamos como sujeitos sociais. Eis a assertiva:
Agentes (operando no nvel de incidncia poltico, poltico-social ou social)
organizam e incidem sobre Sujeitos. Na ausncia destes agentes concretos e sem um
sujeito realmente existente, no h nada que se organize.
Ou seja, necessrio ter uma formao social concreta, historicamente constituda,
dotada de identidade e sentido coletivo (mesmo que latente) para que possa ser
organizada no sentido da acumulao de parcelas de poder prprio. Eis o porqu da tese
necessariamente atravessar o debate da cultura poltica e da composio do tecido social
organizado, e para tal, passa pelo conceito de capital social.
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Repetimos que, nossa busca pela formulao de um entramado terico que seja
operacional a partir da posio estratgica das classes oprimidas. Assim, contribumos
para aproximar a academia com o real, ajudando na diminuio do hiato no centro de
saber para com a sociedade; indo de encontro do crculo virtuoso e auto referenciado
pelos prprios pares dentro do campo universitrio. Esta tese e o esforo do qual ela
parte visa tornar acessveis conceitos operacionais, municiadores de capacidades para o
processo de deciso daqueles que operam a poltica de dentro das classes oprimidas.
Para aplicar esta proposta, a de um estudo estratgico embasado em uma nova
teoria de mdio alcance, necessrio um terreno. Entendemos que no se faz poltica
nem tampouco se analisa a poltica fora do mundo real e concreto. Para isto, so
necessrios quatro elementos que compem o terreno: sociedades concretas; um recorte
de espao geogrfico; linha de tempo (para inferncia) e experincias formuladoras de
idias-guia.
O recorte propriamente dito onde se aplicam as hipteses e inferncias apontadas
ao longo do texto. Isto , o continente chamado de Amrica Latina e especificamente
nas experincias de superao do neoliberalismo e do Consenso de Washington. Este
recorte tem como bases de incio das experincias arbitrrio por suposto, como todo
corte a duas passagens do cenrio poltico latino-americano dos anos 1990. Uma o
chamado Levante Zapatista ocorrido no estado de Chiapas, sul do Mxico, em 1 de
janeiro de 1994 (Ornelas 2004). Outra experincia marcante a derrubada do presidente
equatoriano Abdala Bucaram Ortiz em 5 de fevereiro de 1997, com apenas seis meses
de mandato (Torre, 2005).
A relevncia da experincia zapatista se d por uma srie de fatores (Parra 2002 e
Ornellas 2004). Um deles a abordagem de controle do territrio, outro, que pode ser
compreendido como causa deste a ancestralidade das populaes originais e sua
relao com a terra nativa. Isto ocorre num momento em que o uso dos recursos naturais
visto como commodity e no como patrimnio coletivo no renovvel. Interessante
tambm ressaltar que o uso da fora abriu espao poltico, levando inclusive a um
impasse na poltica tradicional e contribuindo de forma decisiva para dar cabo do
regime Priista, levando a uma renovao conservadora na poltica profissional
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mexicana. Por fim, dos elementos que cabe ressaltar, o reflexo da no-
profissionalizao da maioria dos encarregados polticos, havendo um bom ndice de
rotatividade e de aprendizado comum nas funes de coordenao.
A experincia da rebelio popular que derrubou Abdala Bucaram, em fevereiro de
1997 (com apenas 120 dias de mandato) ganha contornos de relevncia por inaugurar
um processo que culmina em uma srie de puebladas (Pachano 2005 e Torre 2005)
onde diversas modalidades de luta e participao tiveram presentes. Elementos
ideolgicos, incluindo os de motivao republicana incidiram com peso, somada ao
vazio constitucional e a presena constante da organizao social dos povos originais no
formato de confederao indgena (Confederao Nacionalidades Indgenas de
Equador) como vetor destas lutas. Assim, compreendo que a queda de Bucaram se
equipara a uma modalidade inaugural. quando a fragmentao da multiplicidade de
sujeitos sociais representados d lugar a uma unidade ttica (ao menos) gerando uma
experincia vitoriosa. Tal feito histrico assegura um grau de confiana das maiorias
equatorianas que se mobilizavam contra os efeitos da dolarizao da economia e dos
efeitos do comportamento poltico das elites dirigentes associadas presidncia e ao
prprio presidente Bucaram. A derrota do presidente Jamil Mahuad em janeiro de 2000
e do coronel Lucio Gutirrez em abril de 2005, entendo que so a culminao do
processo iniciado com a rebelio do vero de 1997.
O fato de haver ressaltado estas duas experincias no para estudo de caso, mas
justo o inverso, para aproveitar o que h de generalizvel e universalizante (para o
Continente) destes dois episdios histricos, e que no momento que concluo a redao
da tese (dezembro de 2008) mantm a sua vitalidade. Tomo estas experincias como
inauguradoras de um discurso de ao direta popular, democracia direta, espao pblico
horizontal e deciso coletiva mediante amplo debate.
Estas prticas polticas vo de encontro e em repdio s medidas de governo,
necessariamente decises fundamentais para os respectivos pases, e que no passaram
por nenhuma forma de consulta. Entendemos que na Amrica Latina, suas sociedades
concretas passaram e seguem sofrendo o acionar de duas idias aplicadas sobre dois
discursos completamente antagnicos. O primeiro o conjunto dos efeitos da
desconstruo do tecido social a partir das reformas do neoliberalismo. O segundo
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conforma um conjunto arbitrrio (por ser de minha escolha) de prticas generalizantes
que acumulam para o conceito de Poder Popular como forma de organizao dessa
mesma sociedade fragmentada.
Uma vez considerado o recorte de terreno (espao) e perodo histrico (tempo)
desta tese, retorno matriz estruturalista que deu origem aos estudos que nutriram a
origem deste trabalho. Vou ao encontro das razes da escola estruturalista. No passo
nesse momento por George Canguilhem (1904-1995) de quem Michel Foucault
(1926-1984) foi assistente mas por um livro que demarca o incio da afirmao da
idia de que o inconsciente irredutvel e opera sobre qualquer formulao de
pensamento. Estou me referindo obra cuja primeira edio original em francs
datada de 1938 e tem a autoria de Gastn Bachelard (1884-1962). Para a tese, o material
utilizado a edio hispano-mexicana de 1972.
Alm da linguagem refinada, por vezes aproximando-se da poesia, Bachelard
como filsofo e epistemlogo nos oferece um rico manancial de possibilidades de
crtica e de conhecimento sobre a formao do pensamento cientfico. Para a abordagem
desta tese, mais relevante do que a afirmao de que o tema ou a abordagem ou no
cientfico, importa mais a aplicao de mtodo de rigor e preciso. O esforo do
conhecimento demanda a existncia do esprito cientfico, que pelas palavras do
prprio Bachelard implica em:
Mostraremos o efeito da memria sobre a razo. Insistiremos sobre o fato de que
no pode prevalecer de um esprito cientfico, enquanto no se est seguro de, a cada
momento de sua vida mental, ter de reconstruir todo seu saber. Somente os eixos e
bases racionais permitem tal reconstruo. O resto apenas baixa mnemotecnia. A
pacincia da erudio no tem nenhuma relao com a pacincia cientfica.
(Bachelard, 1972, p. 10).
Fao acordo com esta postura e vou alm. Vejo que existe um duplo discurso. Na
maior parte das vezes, uma corrente hegemnica de um determinado campo se afirma
como cientfica, mas se nega a rever seus prprios paradigmas. A afirmao de
cientificidade se d sobre uma posio de fora e controle dentro de um campo de saber
ou subrea. A amplitude de viso na politologia implica por tanto a considerao de
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todos os cenrios analticos e a explicitao da premissa. No existe esprito cientfico
possvel de florescer quando uma idia de equilbrio timo prevalece na formulao
terica por em cima das prticas polticas realmente existentes. A formulao de tipo-
ideal, ou melhor, de tipos ideais, entendo como modelagem e no como base
cientfica.
Por isso vejo como positiva a atitude inversa. Assumir a tipificao de modelos
como influncia direta da normatividade, portanto algo intencional. A normatividade
que gera modelos serve como fora motivadora para a pesquisa, o estudo, a anlise e a
incidncia. Equivale para a epistemologia como a esfera ideolgica para a poltica. A
normatividade necessariamente uma construo de idia.
As idias tm irredutibilidade e uma existncia material to concreta como
qualquer matria de tipo fsico. Isto vale para a idia normativa e a capacidade de
abstrao para a realizao cientfica. Na ausncia de abstrao, prevalece qualquer
coisa, menos o esprito cientfico. Indo ao encontro de Bachelard: Em todas as
questes, para todos os fenmenos, necessrio passar antes de tudo da imagem para a
forma geomtrica e logo aps, da forma geomtrica para a forma abstrata, e recorrer o
caminho psicolgico normal do pensamento cientfico. (Bachelard, 1972, p.10).
Reconheo que difcil compreender esta base de pensamento e ainda mais difcil
nos dias que vivemos, quando a hegemonia em nosso campo opera dentro de uma
suposta racionalidade pr-concebida e absoluta. Bachelard tambm afirma que o
pensamento abstrato no sinnimo de m conscincia cientfica como o pensamento
trivial costuma colocar. Entendo que o conceito se d de forma abstrata em seu formato
original. Por isso a abstrao ativa e dinamiza o esprito cientifico (Bachelard, p.8).
no estado abstrato (posterior e mais avanado aos estados concreto e concreto-abstrato,
classificao de estados de pensamento) que o esprito empreende informaes
voluntariamente substradas da intuio do espao real, voluntariamente desligadas da
experincia imediata (hegemnica e aparentemente onipresente) e at polemizando com
a realidade bsica, sempre impura e sempre disforme (p.11).
na falsa aparncia de concretude que o pensamento hegemnico do momento
se arvora e atribui cientificidade. Vejo a normatividade como necessria e
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fundamental para alimentar o esprito cientfico, mas ao mesmo tempo a
normatividade no deveria nem substituir um fenmeno realmente existente, ou ainda
pior, simplesmente negar que estes fenmenos existam. Na ausncia de pesquisa, as
prticas polticas e sociais existentes na sociedade so vistas como empiria quando o
que na verdade falta a abstrao e modelagem terica que possa formatar hipteses de
pesquisa e teorias de mdio alcance que dem sustentao para estas me