UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO
ROBERTO SILVA DE OLIVEIRA
A CIDADE E O PENSAMENTO POLTICO DE LEON BATTISTA ALBERTI NO DE RE DIFICATORIA E OUTROS ESCRITOS
Salvador 2010
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ROBERTO SILVA DE OLIVEIRA
A CIDADE E O PENSAMENTO POLTICO DE LEON BATTISTA ALBERTI NO DE RE DIFICATORIA E OUTROS ESCRITOS
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Arquitetura, rea de concentrao em Urbanismo.
Orientador: Prof. Dr. MRIO MENDONA DE OLIVEIRA.
Salvador 2010
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ROBERTO SILVA DE OLIVEIRA
A CIDADE E O PENSAMENTO POLTICO DE LEON BATTISTA ALBERTI NO DE RE DIFICATORIA E OUTROS ESCRITOS
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Arquitetura, rea de concentrao em Urbanismo.
Aprovada em 8 de novembro de 2010
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________ Prof. Dr. Mrio Mendona de Oliveira Orientador
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia
_________________________________________________________ Prof. Dr. Antnio Heliodrio Lima Sampaio
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia
________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco de Assis da Costa
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia
________________________________________________________ Prof. Dr. Grayce Maire Bonfim Souza
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
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Ao Prof. Dr. Mrio Mendona de Oliveira que gentilmente me franqueou sua biblioteca particular, sem a qual no teria conseguido realizar este trabalho.
minha amada esposa pela dedicao nos momentos mais adversos.
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AGRADECIMENTOS
Brenda, Iago e Ariel que souberam suportar, com muita pacincia, meu isolamento e mau
humor.
Ao casal Rodrigo e Carine que me acolheu em sua casa, sempre com muito carinho, e aos
quais espero, algum dia, retribuir com a mesma generosidade e nobreza de esprito.
Jlia, essa pequena flor, com quem muito disputei a TV durante os telejornais.
Aos meus amigos Espedito e Meire, Luiz e Rita, Cau e Selma, Avaldo e Aldair, Alexandre e
Claudia pelas festas que ajudaram-me a tolerar os finais de semana, cruis e incomensurveis.
Dona Maria e Aline pelo socorro que me prestaram no momento mais absurdo que vivi
neste mestrado.
Aos professores Dr. Antnio Heliodrio Lima Sampaio, Dr. Francisco de Assis da Costa e
Dr. Grayce Mayre Bonfim pelas preciosas orientaes que muito contriburam para a
realizao desta pesquisa.
Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia que contriburam de modo significativo para minha formao.
Aos secretrios do Programa, Silvandira e Telmo que muito tm me ajudado a vencer as
amarras da burocracia.
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, pela concesso da Bolsa de Mestrado, sem a
qual seria impossvel a realizao desta pesquisa.
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Em vo retesa o arco quem no tem para onde dirigir a seta (Alberti, De pictura, I, 23).
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RESUMO
Considerado o Vitrvio Florentino, Leon Battista Alberti legou Modernidade extensa obra
de carter filosfico, poltico e tcnico, em que se destaca o De Re dificatoria, ou o Tratado
de Arquitetura, como ficou mais conhecido. Sob a influncia da Antiguidade Clssica,
especialmente das obras de Vitrvio, Plato, Aristteles e Ccero, o De Re dificatoria
constituiu-se no marco fundamental da arquitetura na Idade Moderna. Objetiva-se com este
trabalho analisar o pensamento arquitetnico e urbanstico de Alberti assim como suas
implicaes polticas no mbito do humanismo cvico do sculo XV. Foram utilizados para o
exame da obra os conceitos de representaes sociais, de prticas culturais e de
identidade/alteridade. Em termos metodolgicos, a referncia o Estruturalismo gentico de
Lucien Goldmann, que orientou a organizao do trabalho em trs captulos, sendo o primeiro
uma exposio do contexto histrico no qual Alberti e sua obra tiveram origem; o segundo,
uma apresentao da tradio literria que fundamentava as discusses polticas do
humanismo da poca; e o terceiro, uma anlise do discurso apresentado por ele no De Re
dificatoria. Estas partes articuladas permitem verificar que o discurso albertiano prestou
importante contribuio arquitetura, ao urbanismo e filosofia poltica do Mundo Moderno.
Palavras-chave: Alberti, De Re dificatoria, Humanismo, Renascimento, Arquitetura e Poltica.
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ABSTRACT
Considered the Florentine Vitruvius, Leon Battista Alberti left Modernity an extensive
work of philosophical, political and technical character, among which stands out De Re
dificatoria or the Treaty of Architecture, as it became better known. Under the influence of
Classical Antiquity, especially the works by Vitruvius, Plato, Aristotle and Cicero, De Re
dificatoria constituted the cornerstone of architecture in the Modern Age. This work aims at
analyzing Alberti's urbanistic and architectural thought as well as its political implications in
the context of fifteenth-century civic humanism. In order to examine the work, the concepts of
social representations, cultural practices and identity/alterity were used. In methodological
terms, the reference is Lucien Goldmann's genetic Structuralism, which guided the
organization of the work into three chapters, the first being an exposition of the historical
context in which Alberti and his work had their origin; the second, a presentation of the
literary tradition which underlay the political debates of the humanism of that time; and the
third, an analysis of the discourse presented by him in De Re dificatoria. These articulated
parts enable verifying that Albertis speech provided a significant contribution to the
architecture, urbanism and political philosophy of the Modern World.
Key-words: Alberti, De Re dificatoria, Humanism, Renaissance, Architecture and Politics.
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LISTA DE ILUSTRAES
Figura 1. A morte no perdoa nem bispo nem nobre. Guyot Marchant, La Danse Macabre, 1485. Paris................................................................................................................................26
Figura 2. La Tavola Strozzi su Napoli. Rosselli, F. (?), 1483. Npoles...................................28
Figura 3. Planta em perspectiva de Npoles. Duperac E. A. Lafrery, 1566. Npoles...........28
Figura 4. Vulcano e Eolo. Piero di Cosimo, 1505. National Gallery of Canada, Ottawa.........43
Figura 5. Detalhe esquerdo da construo da casa. Piero di Cosimo........................................44
Figura 6. A construo de um palcio. Piero di Cosimo, 1515 1520. Ringling Museum of Art, Sarasota, Flrida, Estados Unidos.....................................................................................45
Figura 7. Cpula da Catedral de Florena. Brunelleschi, F. Florena, 1420-1436.................46
Figura 8. Capela Pazzi. Brunelleschi, F. Florena, 1429..........................................................47
Figura 9. Santa Maria Novella. Alberti, L. B. Florena, 1456.................................................48
Figura 10. Bramante, D. San Pietro de Montorio. Roma,1502...............................................49
Figura 11. Bramante, D. Baslica de So Petro. Roma, 1506..................................................49
Figura 12. Benevolo, L. Vista da Praa de So Pedro. Roma, 1935.......................................50
Figura 13. Donatello. Monumento equestre de Gattamelata. Pdua, 1453..............................55
Figura 14.Verrocchio, A. Monumento equestre de Bartolommeo Colleoni. Veneza, 1479.....56
Figura 15. Detalhe da cabea de Bartolommeo Colleoni.........................................................57
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SUMRIO
INTRODUO:......................................................................................................................12
CAPTULO 1: A DINMICA DA MODERNIZAO.....................................................22
1.1. A EMERGNCIA DO MUNDO MODERNO...............................................................................22
1.2. RENASCIMENTO E HUMANISMO: etiquetas cmodas ou processo civilizatrio?................30
1.3. ARTE, CINCIA E SABER TCNICO NA RENASCENA............................................................43
1.4. AS FUNES SOCIAIS DA ARQUITETURA NA RENASCENA..................................................58
1.5. ALBERTI: tempo, espao, vida e obra.................................................................................62
1.6. O DE RE DIFICATORIA......................................................................................................71
CAPTULO 2: AS FUNDAES DA FILOSOFIA POLTICA DO SCULO XV.......79
2.1. RIQUEZA, RETRICA E LIBERDADE NAS ORIGENS DO REPUBLICANISMO MODERNO..............79
2.2 OS TEMAS E AS ABORDAGENS DO REPUBLICANISMO NO SCULO XV....................................84
2.2.1 Dante Alighieri: monarquia versus repblica..................................................................85
2.2.2 Marslio de Pdua: a lei como fundamento da paz..........................................................91
2.2.3. Petrarca: a educao cvica............................................................................................96
2.3.4. Coluccio Salutati: Invectiva contra Antonio Loschi de Vicenza...................................106
2.3.5. Leonardo Bruni: Dilogo a Pier Paolo Vergerio.........................................................112
2.3.6. Poggio Bracciolini: Carta para Leonardo Arentino.....................................................121
2.3.7. Leon Battista Alberti: O destino e a fortuna.................................................................124
2.4. OS ELEMENTOS DA QUESTO............................................................................................131
CAPTULO 3. POLTICA E PODER NO DE RE DIFICATORIA.............................136
3.1. A LINGUAGEM DA POLTICA E DO PODER...........................................................................148
3.1.2. As origens da filosofia poltica moderna......................................................................149
3.1.3. A natureza, o homem e a cidade no De Re dificatoria..............................................163
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3.1.4. A cidade albertiana no De Re dificatoria..................................................................195 CONCLUSO.......................................................................................................................221 FONTES E BIBLIOGRAFIA..............................................................................................226
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INTRODUO
O perodo que vai de Dante Alighieri a Nicolau Maquiavel, respectivamente do sculo
XIV ao XVI, legou ao mundo moderno parte das formas de saber, de organizao social e
poltica que conhecemos. A Itlia constituiu-se no bero principal desse processo, um
estranho laboratrio para homens de Estado (BRAUDEL, 1995a, p. 19) e principal centro
irradiador de saber e de cultura (Idem., 2007, p. 19, 27 e 85). Nela, o desenvolvimento
precoce de uma economia de mercado produziu um dinamismo social que precipitou a
dissoluo das estruturas feudais e a construo do mundo moderno. Novas fronteiras tnicas,
subsumidas lgica das pretenses burguesas, foram erguidas como estratgias de poder no
campo da ao social, da poltica e da cultura. O aparelhamento dessas novas identidades
possibilitou o desenvolvimento de um tipo de saber voltado, fundamentalmente, s questes
prticas e ordinrias da vida cotidiana. Este novo saber, gestado a partir da retrica, da
gramtica, da histria e da literatura, enfim, dos estudos das humanidades, (studia
humanitatis)1 fez surgir o intelectual burgus, engajado no processo de re-significao do
mundo e das relaes nele produzidas. Estes homens se tornaram essenciais administrao
das cidades, integrando-se s chancelarias e s cortes principescas.
A defesa da liberdade ante as violncias cvicas e as ameaas (internas e externas) deu
azo a uma aguda conscincia do valor que deveria ser devotada s coisas pblicas. Em seu
desenvolvimento, os studia humanitatis, originados margem das academias, primaram pela
formao do bom cidado e do homem completo (BIGNOTTO, 2001, p. 160). A produo
humanstica, principalmente no sculo XV, estava centrada na construo de uma conduta
1 Movimento que se firmou como uma viso nova do homem e do mundo, amadurecida margem das
academias, voltado valorizao dos aspectos humanos e racionais. Os studia humanitatis promoveram uma dessacralizao da cultura e uma profunda alterao na forma de compreenso do homem e suas relaes com a natureza. Em termos educacionais, os studia humanitatis centravam-se no estudo da gramtica, da retrica, da histria, da potica e da filosofia moral em detrimento do corpo de disciplinas que compunha a escolstica: trivium (gramtica, retrica e dialctica) e quadrivium (aritmtica, msica, geometria e astronomia).
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cidad, operacionalizada pela reconstruo histrica dos valores cvicos, pela necessidade de
proteo e de preservao da integridade dos homens no espao urbano. A busca pela
organizao das instituies e das funes pblicas os reconduziu s fontes do pensamento
clssico. A descoberta de autores como Plato, Aristteles, Tcito, Tucdides, Plutarco,
Vitrvio e, em principal, Ccero deu fundamento a uma nova viso de homem e de mundo,
superou o imobilismo da teologia medieval e estabeleceu as bases de uma vida ativa no
espao urbano. A virtude (virtus) foi incorporada ao discurso poltico como instrumento de
aferio de valor s aes pblicas. A educao cvica, alada ao desenvolvimento da
eloquncia, da retrica, tornou-se a meta da cultura humanista. Assim, mais que produzir
homens capazes de desempenhar adequadamente certas funes materiais, o humanismo do
sculo XV buscou formar cidados virtuosos, capacitados s funes que a sociedade exigia.
Neste sentido, podemos afirmar que o humanismo foi um movimento de recuperao do
discurso de valorizao do homem e da cidade. O conceito de homem, integrado a essa nova
orientao poltico-pedaggica, torna-se dinmico, pois se fundamenta nas relaes que este
estabelece com o ambiente social urbano. Isso levou a urbanista italiana Donatella Calabi a
afirmar que, apesar do sculo XV ter sido um perodo de profunda depresso, de prosperidade
limitada, a organizao dos espaos fsicos e dos ambientes edificados produz, naquele
sculo, um novo tipo de cultura urbana (CALABI, 2008, p. 17).
De fato, os programas arquitetnicos, os monumentos histricos, os templos, as
praas, as ruas, as esttuas, os arcos, as pontes etc., so evidncias desse processo de
racionalizao da vida e da territorializao2 do poder. As incipientes tentativas de
organizao das atividades urbanas lastreadas na revalorizao desses elementos instituram
prticas e estratgias para alm de suas caractersticas meramente fsicas ou espaciais, porque
se constituram em instrumentos estruturantes da prpria realidade social. Nesta perspectiva,
os tratados de urbanismo se configuram como desdobramento da cultura humanista uma vez
que preservam uma determinada tradio poltica. As normas construtivas e o ordenamento
urbano proposto por seus autores, embora se prendam tradio filosfica de Plato e
Aristteles os quais pensaram a cidade como espao natural da realizao humana
refletem as premncias sociais e culturais do perodo.
O De Re dificatoria, ou como ficou mais conhecido, o Tratado de Arquitetura de
Leon Battista Alberti, escrito em 1452, foi a primeira obra do gnero a ser publicada na Idade
Moderna, mais precisamente em Veneza, no ano de 1485. Esta obra teve como referncia o
2 O termo define o acesso diferenciado ao espao e as relaes de poder que orientam seu uso e sua apropriao
no mbito das prticas sociais (GOMES, 2002, p.139).
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De Architectura Libri Decem (Dez livros sobre a Arquitetura) de Vitrvio, que a escreveu por
volta do sculo 1 a.C. (VITRVIO, 2006, p. 12). No entanto, a obra de Leon Battista Alberti
vai alm de Vitrvio medida que busca estabelecer-se como critrio universal da arte de
construir (ars aedificandi). Em suas observaes, a beleza das construes pblicas e privadas
deveria ligar-se utilidade, funcionalidade e ao deleite de seus habitantes (firmitas, utilitas e
venustas). As questes prticas ligadas ao devir cotidiano das cidades, tais como o traado das
ruas, as disposies sociais dos indivduos, as condies climticas e topogrficas, a
circulao do ar, a limpeza, o abastecimento, a diviso social das atividades produtivas, a
separao dos espaos por ordem de funo privados ou pblicos , a comunicao
territorial das classes, a adequao da cidade aos diferentes tipos de governo etc., foram
amplamente analisadas e comentadas. Para Alberti, essas condies eram fundamentais
segurana social e ao bom andamento das funes concernentes ao espao pblico. Nesta
perspectiva, a localizao da cidade era de suma importncia. Ela deveria localizar-se em
una zona pianeggiante situata in montagna o un rialzo in pianura (ALBERTI, 1966a, IV,
2, p. 278) no seu ponto central, de onde fosse possvel a visualizao de toda a rea
circundante; estar apta a contemplar as oportunidades e preparada, sempre que a necessidade
se apresentasse, para defender-se ou atacar. Em seu texto, Alberti afirma que a cidade precisa
situar-se convenientemente para que os feitores (fattori) e os cultivadores (coltivatori)
possam conduzir-se aos campos quando quiserem e retornar em seguida transportando a
colheita (Ibid., p. 278). O controle epidmico, a limpeza e o esgotamento sanitrio so traos
marcantes que reforam, assim, o sentido de preservao e da segurana pblica (Ibid., 7, 322
e 324), j h muito integrados tradio filosfica dos antigos.
A anlise do De Re dificatoria nos revelou duas fases distintas da obra: a primeira
compreende os cinco livros iniciais, caracterizados por um posicionamento tcnico,
racionalista e onde a influncia de Plato e Aristteles pode ser percebida nas referncias
diretas e transcries, ipsis litteris, de trechos de suas obras. O carter normativo da obra de
Alberti sustentado mediante o uso e a apropriao da teoria da origem do homem e da
sociedade j amplamente discutido em A Repblica e em A Poltica. Todas as etapas do
desenvolvimento social e poltico, assim como suas conquistas artsticas e materiais, so
apresentados como produtos da necessidade e da capacidade do homem para inventar e
reinventar a vida. Nesta perspectiva, a arquitetura se torna smbolo maior desta conquista
dado expressar os valores essenciais da cidade e dos cidados; a segunda parte do De Re
dificatoria trata das questes concernentes beleza, ao ornamento e harmonia, cujos
pressupostos de utilidade e convenincia naturais conferem significado virtude, honra e
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glria como fundamentos da vida civil. Tal princpio, sustentado como lei natural ou de
natureza por Alberti, recebeu o nome de concinnitas termo proveniente do latim que
expressa o sentido de composio, disposio, regularidade e simetria, mas que, em Alberti,
encontra uma correspondncia poltica e social. Deste modo, pode-se afirmar que esta parte da
obra est intimamente identificada com o pensamento poltico de Ccero e com o
neoplatonismo (BRANDO, 2000, p. 62) comum ao humanismo cvico entre os sculos XIV
e XVI. Sob vrios aspectos estas ligaes podem ser observadas: primeiro, pela identificao
com as formas e as instituies pblicas da cidade antiga herdadas dos etruscos e dos
romanos; depois que, ao eleg-la como cidade ideal, o mito de Roma revivido e defendido
por ele de forma idntica ao que era sustentado pelos humanistas daquele perodo; pela
apropriao do civismo ciceroniano; e, por ltimo, pela busca de um princpio de regularidade
e equilbrio social com base nos conceitos de harmonia de Plato. Tudo isso fez com que,
segundo Franco Borsi, o texto de Alberti se tornasse o pioneiro desse gnero na Idade
Moderna, influenciando, direta ou indiretamente, autores como Filarete, Francesco di Giorgio
Martini, Leonardo da Vinci, Philibert de lOrme e Albrecht Drer (1996, p. 344 349).
No obstante, a extensa reflexo acerca da cidade e suas prticas fomentadas em
diversas reas da cincia, s recentemente esta se tornou o tema preferido dos historiadores.
Tradicionalmente, a Histria, enquanto disciplina, evidencia o espao urbano apenas como
palco dos grandes eventos polticos, econmicos e sociais, quando no afere a este, munida de
um marco terico j esgarado pela emergncia dos novos paradigmas, uma smula
totalizante de todos os processos de desenvolvimento urbano. Outrossim, esta mesma
historiografia identifica a teoria poltica moderna apenas com os trabalhos exponenciais de
Nicolau Maquiavel, Jean Bodin, Thomas Hobbes, John Locke, Montesquieu e Jean Jacques
Rousseau sem levar em considerao a vasta documentao que, atualmente, pe em
desacordo muitas das certezas acerca das origens da teoria poltica moderna. Ora, a descoberta
de registros notariais de preos, salrios e rendas, assim como de livros de recordaes
(ricordi) e de conselhos, manuais de comrcio, panegricos, peas de retrica, cartas etc., ps
em evidncia o perfil das rendas, os comprometimentos fiscais de seus cidados e a existncia
de um apurado controle administrativo (WOLFF, 1988, p. 253 254). Tais documentos pem
em contradio a originalidade da teoria poltica moderna com base nos autores supracitados.
Sob vrios aspectos esse material evidenciou uma ruptura, mas, tambm, uma continuidade
entre as concepes polticas da Idade Mdia e do mundo moderno. A partir dos elementos
apresentados nesses documentos foi possvel observar que uma sociedade bastante adiantada
em termos de poltica, economia e sociedade se revelava por entre as estruturas persistentes
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do mundo medieval. Essas mesmas fontes permitiram uma ampliao dos quadros de
referncias polticas, no mais pautadas, unicamente, nos textos de filosofia, mas tambm nos
tratados de arquitetura e urbanismo. Estes, na medida em que versam sobre as formas de
organizao do espao social, apresentam-se como instrumentos de afirmao poltica, como
produtos ampliados das necessidades de produo social da riqueza e de domnio territorial
GARIN, 1996, p. 60 61).
Nesse novo cenrio de descobertas, os desafios Histria e aos historiadores se
tornaram mltiplos e variados, pois a cidade deixou de ser pensada apenas como locus
privilegiado da produo e da ao poltica para ser apreendida como fenmeno complexo
que se realiza ao longo da histria suscitando vises e explicaes sob perspectivas variadas.
Noutras palavras, passou a ser explicada a partir das representaes que nela so produzidas e
que se objetivam nas prticas sociais cotidianas. Todavia, dado que a cidade no se
caracteriza pela homogeneidade social, nem pode ser explicada universalmente, de forma
inequvoca, a natureza das representaes que dela emana se prende realidade e fico de
quem as elabora. Logo, implica que toda tentativa de definio da cidade uma representao
que, como tal, se articula com a posio que cada indivduo ou grupo ocupa no tecido social.
A cidade, portanto, se resolve num misto de realidades vividas, sonhadas e imaginadas, s
evidenciadas pelas prticas, tendncias e perspectivas das representaes sociais (CERTEAU,
1994, p. 172 175). , portanto, nesta perspectiva que buscamos apreender o sentido do De
Re dificatoria, de Leon Battista Alberti, ou seja, como tentativa de respostas aos problemas
originais de sua poca. Cumpre-nos, portanto, como objetivo principal, analisar a forma pela
qual o urbanismo albertiano se conectou ao humanismo cvico do sculo XV e, por sua vez,
tradio literria de pensadores como Plato, Aristteles e Ccero, marcos originais da teoria
poltica moderna.
Assim, delimitada a pesquisa, impe-nos estabelecer seu marco terico e
metodolgico. No entanto, por entender que toda obra, tenha ela um carter cientfico,
artstico ou literrio, constitui-se numa representao que, como tal, figura uma poro do
objeto representado ou do universo de seu produtor; que toda obra estabelece uma imagem,
um signo, uma entidade cognitiva passvel de leitura e interpretao, que toda representao
tem como fundamento ltimo afirmar princpios de legitimidades individuais e/ou coletivos
como fundamentaes vlidas (CHARTIER, 1990, p. 13 28), evidenciando prticas e
perspectivas cientficas, polticas e sociais, elegemos como instrumentos operadores os
conceitos de representaes e prticas culturais de identidade e alteridade.
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Os conceitos de representaes e prticas culturais sero trabalhados na perspectiva
terica de Roger Chartier. Esta nos pareceu ser a que melhor se ajusta aos propsitos de nossa
pesquisa. Para o historiador francs o discurso uma construo social que nasce a partir das
prticas ordinrias da realidade que o circunscreve, assim como as prticas de leitura e
escritura que constituem as aes efetivas dos indivduos e grupos situados historicamente.
Em suas palavras, a histria cultural tinha
por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social construda, pensada, dada a ler. [] As representaes do mundo social assim construdas, embora aspirem universalidade de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam (Ibid., p. 16 17).
Entretanto, para no incorremos no erro de fazer do conceito de representao o
epifenmeno das lutas sociais, destituindo seus agentes da capacidade de perpetrar aes
conscientes e voluntrias, contrabalancearemos a teoria de Chartier com a Psicologia social de
Serge Moscovici.
Para a Psicologia social as representaes tm origem nos indivduos e nas relaes
que eles mantm com as estruturas do mundo no qual esto inseridos; surgem da interao
entre os indivduos, ou grupos, como produto das aes e comunicaes que orientam as
percepes. Sua aplicabilidade, seu uso, pode variar em funo das discrepncias comuns ao
organismo social, mas sempre facultam as percepes da realidade, sejam determinando-a, ou
sendo por ela determinada (MOSCOVICI, 2003, p. 34 e 41). Assim, para Moscovici,
afirmar que nossas mentes so pequenas caixas pretas, dentro de uma caixa preta maior, que simplesmente recebe informao, palavras e pensamentos que so condicionados de fora, a fim de transform-los em gestos, juzos, opinies, etc.; assegurar que grupos e pessoas esto sempre e completamente sob o controle de uma ideologia dominante, que produzida e imposta por sua classe social, pelo estado, igreja ou escola e que o que eles pensam e dizem apenas reflete tal ideologia. Em outras palavras, sustenta-se que eles, como regra, no pensam, ou produzem nada de original por si mesmos: eles produzem e, em contrapartida, so produzidos. Descobrimos aqui, quer gostemos ou no, a metfora da caixa preta, com a diferena que agora ela est composta de ideias j prontas e no apenas com objetos. Pode ser esse o caso, mas ns no o podemos garantir, pois, mesmo que as ideologias e seu impacto tenham sido amplamente discutidos, elas no foram extensivamente pesquisadas. O que estamos sugerindo, pois, que pessoas e grupos, longe de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, produzem e comunicam incessantemente suas prprias e especficas representaes e solues s questes que eles mesmos colocam. Os acontecimentos, as
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cincias e as ideologias apenas lhes fornecem o alimento para o pensamento (Ibid., p. 44 45).
Isso implica dizer que as observaes feitas por Alberti podem agregar no apenas os
traos gerais e culturais daquela sociedade, mas tambm as particularidades da camada social
na qual ele estava inserido, ou mesmo seus posicionamentos particulares, idiossincrticos.
J os conceitos de identidade/alteridade sero evidenciados na opo terica
correspondente antropologia social de Fredrik Barth e Tomaz Tadeu da Silva.
Para Barth, a sociedade o campo de manifestao da concorrncia entre os grupos
etnicamente constitudos. Estes se reinvestem de autoridade por meio da identificao cultural
e estabelecem as fronteiras reais de poder. Para este autor a sociedade formada por um
conjunto de microestruturas de carter cultural que interagem pelas relaes que mantm com
uma estrutura maior definidora de aes e comportamentos (BARTH In: POUTIGNAT &
STREIFF-FENART, 1998, p. 124). Dele extramos o conceito de fronteiras de poder que ser
til anlise do contedo da obra de Alberti.
Para Silva, identidade e alteridade so conceitos focados na relao entre os grupos
operada por meio de discursos em virtude de uma prtica social de poder. Deste modo, toda
identidade relacional e contingente.3 Tanto num como noutro autor, a identidade e a
diferena (alteridade) representam uma necessidade fundamental de promoo da distino,
do pertencimento sociocultural e do direito de propriedade dos meios de produo. Com base
nas definies da sociedade moderna, estratificada, cuja mobilidade corresponde ao
imperativo categrico do capital, consenso entre os autores que a identidade e a diferena
perfazem uma necessidade que inerente ao sistema social de poder (BARTH, 2000, p. 47
54); uma condio sine qua non, sem a qual as sociedades no conseguiriam estabelecer seu
frgil equilbrio. Temos que a antropologia social de Fredrik Barth e Tomaz Tadeu da Silva
nos possibilitar identificar as proposies urbansticas de Alberti com os princpios
humanistas de seu tempo, assim como contrap-las ao conjunto da sociedade no qual ele
estava inserido.
3 A identidade e a diferena tm que ser ativamente produzidas. Elas no so criaturas do mundo natural ou de
um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos ns que as fabricamos, no contexto de relaes culturais e sociais. [] So outras tantas marcas da presena do poder: incluir/excluir (estes pertencem, aqueles no); demarcar fronteiras (ns e eles); classificar (bons e maus; puros e impuros; desenvolvidos e primitivos; racionais e irracionais); normalizar (ns somos normais; eles so anormais) (SILVA, 2003, p. 76 e 83).
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Em termos metodolgicos, adotamos o Estruturalismo gentico de Lucien Goldmann
por entender que seu mtodo de investigao histrica complementa as teorias de Chartier e
de Moscovici. Logo, para Goldmann,
o conhecimento dos fatos empricos permanece abstrato e superficial enquanto no for concretizado por sua integrao ao nico conjunto que permite ultrapassar o fenmeno parcial e abstrato para chegar a sua essncia concreta, e, implicitamente, para chegar a sua significao no cremos que o pensamento e a obra de um autor possam ser compreendidos por si mesmos se permanecermos no plano dos escritos e mesmo no plano das leituras e das influncias. O pensamento apenas um aspecto parcial de uma realidade menos abstrata: o homem vivo e inteiro. E este, por sua vez, apenas um elemento do conjunto que o grupo social. Uma ideia, uma obra s recebe sua verdadeira significao quando integrada ao conjunto de uma vida e de um comportamento (GOLDMANN, 1979, p. 7 8).
E mais, que a conscincia coletiva s existe nas conscincias individuais, mas no a soma
destas (Ibid., p. 20). Alm do mais, explica o autor, o prprio termo
infeliz e se presta confuso; preferimos a ele o de conscincia de grupo acompanhado, sempre que possvel, da sua especificao: conscincia familiar, profissional, nacional, conscincia de classe, etc. Esta ltima a tendncia comum dos sentimentos, aspiraes e pensamentos dos membros da classe, tendncia que se desenvolve precisamente a partir de uma situao econmica e social que engendra uma atividade da qual o sujeito a comunidade real ou virtual, constituda pela classe social (Ibid., p. 20).4
Como se pode constatar, suas observaes esto centradas nas aes factveis dos
indivduos dentro de uma estrutura bsica de conhecimento e de percepo social. Deste autor
utilizaremos os conceitos de estrutura englobante, significando o conjunto das interrelaes
histricas e culturalmente constitudas; de estruturas significativas, ou seja, tudo aquilo que o
autor faz figurar como essencial dentro da obra, como princpios negados e/ou sustentados por
ele; e, por ltimo, o conceito de viso de mundo,5 como produto de um determinado
4 Grifo do autor. 5 Para Lucien Goldmann, por viso de mundo se entende um conceito de origem dialtica empregado por
Dilthey, mas de maneira vaga e pouco rigorosa. O mrito de sua preciso foi construdo, segundo Goldmann, por Georg Lukcs que o definiu como instrumento conceitual de trabalho indispensvel para compreender as expresses imediatas do pensamento de um autor. No preciso, entretanto, ver na viso de mundo uma realidade metafsica ou de ordem puramente especulativa. Ela constitui, ao contrrio, o principal aspecto concreto do fenmeno que os socilogos tentam descrever, h dezenas de anos, sob o termo de conscincia coletiva Ademais, conclui Goldmann, uma viso de mundo um ponto de vista coerente e unitrio sobre o conjunto da realidade []; o sistema de pensamento que, em certas condies se impe a um grupo de homens que se encontram em situaes econmicas e sociais anlogas, isto , a certas classes sociais (1979, p. 16, 17 e 73).
20
posicionamento individual diante dos fatos e do mundo, em outras palavras, um ponto de
vista coerente e unitrio sobre o conjunto da realidade (Ibid., p. 73).6
Ancorados nestes referenciais, organizamos o contedo de nosso trabalho em trs
partes, sendo que na primeira buscamos delimitar as razes histricas da Idade Moderna e as
abordagens conceituais com ou contra as quais, atualmente, se dialoga. Em seguida, tratamos
de investigar a forma pela qual a arquitetura, a vida e a obra de Alberti se inseriram no
contexto das novas relaes sociais de poder do sculo XV. No segundo captulo,
apresentamos, em primeira instncia, as linhas de fora da poltica italiana a partir das
descries feitas por Dino Compagni, Dante Alighieri e Marslio de Pdua. Posteriormente,
no intuito de apreender o modo pelo qual as lutas polticas deram azo ao humanismo cvico,
analisamos um amplo conjunto de fatos e obras que animaram o cenrio e o pensamento
poltico num amplo recorte cronolgico entre os sculos XIII e XV.
De igual modo, no intuito de conferir maior autenticidade pesquisa, optamos
trabalhar com textos e autores originais do perodo. Nosso objetivo foi no somente atestar a
existncia de uma tradio poltica anterior a Maquiavel, Bodin, Hobbes, Locke, Rousseau e
Montesquieu, mas tambm incluir o pensamento albertiano na longa lista dos autores
fundamentais teoria poltica moderna. Dentre esses autores analisados esto Dante Alighieri,
Dino Compagni, Marslio de Pdua, Francesco Petrarca, Coluccio Salutati, Leonardo Bruni,
Poggio Bracciolini e, claro, Leon Battista Alberti. Das obras desses autores sobressai grande
variedade de temas e termos que fundamentam os interesses e as perspectivas polticas do
humanismo cvico. A recorrncia a temas como a ilegitimidade do imprio ante a repblica, a
valorizao da cultura dos antigos gregos e romanos, a defesa da liberdade e da soberania, a
participao pblica dos cidados, a proeminncia da arte e da eloquncia na educao cvica,
os limites civis da religio, a condio do homem entre causas e consequncias (como no
opsculo Fatum et Fortuna) etc. Os usos e as apropriaes de termos como cidado, vida
ativa, virtude, decoro, prudncia, magnanimidade, temperana e justia indicam uma
retomada do estoicismo e do republicanismo de Sneca e Ccero. A estes foram coligidos
termos como liberalidade, engenho, arte e funcionalidade autenticando, assim, o princpio da
renovao (renovatio) auferida ideologia burguesa em ascenso, que compunha o ncleo da
conscincia desse novo estamento e que foi, vigorosamente, defendida por Alberti.7
6 Grifo do autor. 7 Os princpios dessa concepo burguesa de mundo se encontra difundida em diversas passagens da obra de
Alberti, em especial no Della Famiglia, no De Pictura e no De Re dificatoria.
21
Na terceira e ltima parte, com base na compreenso de que a obra de Alberti a
expresso de uma determinada viso de mundo fundamentada na cultura e nas premncias
sociais, procuramos identificar o modo como a retrica albertiana, presente nas obras De Re
dificatoria, Da pintura, Iciarchia e Profugiorum ab rumna libri III, reflete o humanismo
de sua poca. Para tanto, aps a apresentao dos fundamentos da teoria poltica moderna,
articulamos a filosofia poltica de Aristteles, Plato e Ccero ao contexto das obras
supracitadas. Tal abordagem nos permitiu identificar os elementos discursivos e os esquemas
narrativos do texto albertiano e, ao mesmo tempo, apreender a forma pela qual suas
prescries se articularam com o contexto poltico, social e humanstico do sculo XV.
22
CAPTULO 1: A DINMICA DA MODERNIZAO 1.1. A EMERGNCIA DO MUNDO MODERNO
O reaparecimento das cidades8 no Ocidente Medieval a partir do sculo XI realizou
uma etapa importante no desenvolvimento poltico e social. Um dinamismo sem precedente
nas relaes de produo fez-se acompanhar de uma mutao social que fundamentou, no
campo e nas cidades, os espaos de contestao das ordens senhoriais. Todo esse impulso ao
crescimento se encontra radicado no melhoramento das condies de existncia promovido
pelo fim das invases, o aumento das reas produtivas e o incremento das tcnicas de
produo agrcola. Embora se admitam variaes de uma regio para outra, a partir do sculo
XII o aumento da taxa demogrfica se torna expressiva e continua aumentando at seu
declnio por volta do sculo XIV (PIRENNE, 1982, p. 72).
A concorrncia territorial entre prncipes e senhorios, senhores e vassalos, radicada
nos princpios da hereditariedade, abriu margem futura centralidade poltica (BLOCH, 1987,
8 As origens das cidades a partir do sculo XI no Ocidente europeu se tornaram um assunto polmico entre os
historiadores. O debate teve incio com o economista ingls Maurice Dobb que, em 1946, publicou o livro Studies in the Development of Capitalism, traduzido para o portugus com o ttulo de A Evoluo do Capitalismo. Nesta obra, dentre as muitas questes discutidas sob o vis marxista, Dobb questiona o historiador belga Henri Pirenne que em seu livro Histria Econmica e Social da Idade Mdia, de 1926, defendeu a tese de que as cidades ressurgiram no sculo XI a partir da revitalizao do comrcio internacional. Para ele, nos cruzamentos das rotas das caravanas que vinham do Mediterrneo, surgiram feiras que, posteriormente, transformaram-se em cidades. Dobb rejeita esta tese e afirma existir muitas vises a respeito desse processo. Para ele, o comrcio internacional no explica a causa do surgimento das cidades medievais. Disso resulta que, em suas palavras, por fora de coerncia, deve-se contentar por enquanto com uma explicao ecltica do surgimento das cidades medievais (DOBB, 1987, p. 55). Esta perspectiva foi durante criticada principalmente por Paul Sweezy que reafirmou a teoria de Pirenne. J Lewis Mumford, defendeu a tese de que o nascimento das cidades medievais esteve ligado muito mais necessidade de proteo que propriamente de comrcio, segundo ele, uma atividade pouco regular. Mas ele parece concordar com Maurice Dobb quando afirma que esse movimento urbano que nasceu da insegurana e desordem da Europa romnica, teve uma existncia dividida em partes: marchava sob vrias bandeiras, nasceu de diferentes circunstncias e produziu resultados diversos (MUMFORD, 1998, p. 272 277). Do debate em questo, originaram-se vises nem sempre concordes e termos dos mais variados sentidos como surgimento, reaparecimento, revitalizao, renascimento etc.
23
p. 399). Por meio de lutas intestinas, de concesso e reverso de direitos, os reis foram,
paulatinamente, estabelecendo seus poderes sobre seus territrios (ELIAS, 1993, p. 88 89.
2v).9 Os elementos visuais confirmadores dessa ordenao social, grosso modo, era o castelo,
as igrejas, a catedral com suas torres em caso de cidades maiores , a abadia ou o convento
e, envolvendo tudo isto, a muralha smbolo singular das cidades no Medievo. O traado
dessas cidades, embora parea obedecer mais s necessidades cotidianas do que a um
planejamento orgnico, apresenta linhas que convergem a um ponto determinado. Trata-se,
portanto, de um sistema rdio-concntrico representado por ruas curvas que, segundo
Mumford, contornavam o ncleo central da cidade e davam mais segurana e proteo a seus
habitantes (MUMFORD, 1998, p. 326 332).
O mecanismo de dominao e a expanso territorial criaram as condies para a
consolidao dos poderes da realeza. Nos quadros polticos destas monarquias eram gestados
os novos Estados Nacionais. Esses, geralmente sediados em uma cidade-capital, despontavam
como instrumentos plausveis de afirmao das novas foras produtivas. As transformaes
econmicas, polticas e sociais da Baixa Idade Mdia foraram o aparecimento de novos
mecanismos de controle social que punham em cheque as prerrogativas senhoriais. As novas
foras produtivas em desenvolvimento lastrearam o surgimento de uma sociedade mais
complexa, escalonada pela diviso das atividades laborativas.
A revitalizao das prticas comerciais promoveu o aparecimento de novas cidades
junto aos castelos, igrejas, mosteiros e abadias (BLOCH, 1987, p. 415 416). O tecido
urbano, resultante dessas matrizes funcionais supracitadas, passou a refletir as exigncias da
nova ordem. Um investimento de energia e capital movimentou a construo de cais,
mercados, pontes e igrejas paroquiais (PIRENNE, 1982, p. 59). A expanso do comrcio
descreve um itinerrio que toma como ponto de partida a simplicidade das carroas ou das
tendas ao ar livre, nos cruzamentos de rotas, junto aos muros e portas das fortificaes, at os
amplos espaos internos da cidade (LOPEZ, 1988, p. 62). As cidades se tornaram ilhas de
liberdade que, em certa medida, absorviam o excedente populacional campestre.
O trao mais notvel das alteraes da ordem espacial urbana foi dado pela mudana
do eixo poltico da catedral (centro natural de encontro dos cidados), para o palcio pblico
com suas funes administrativas e judiciais. O ncleo bsico dessa ruptura foram as
9 Um exemplo notvel dessa dinmica foi a luta entre o rei Lus VI, herdeiro de Roberto Capeto e a famlia
Montlhry. O rei Roberto em 1015 doou aos Montlhry uma vasta rea em torno de Paris e Orlans. Acrescido a esse territrio foi concedido a esta famlia o direito de construo de um castelo. Em pouco tempo os Monthlry j dominavam toda a rea circundante, impondo sobre ela a autoridade de senhores independentes, restringindo a comunicao entre Paris e Orlans. O resultado final dessa disputa foi uma luta de conquista que consumiu boa parte do reinado de Lus VI.
24
corporaes de mestres e ofcios. Essas corporaes, medida que se faziam imprescindveis
ao desenvolvimento da cidade, impunham limites aos direitos tradicionais. O jus mercatorum
o exemplo evidente dessa nova configurao de poder.10 A essa evoluo acompanhou-se
um incremento das leis de regulagem das atividades sociais de produo.
As magistraturas, o desenvolvimento de um sistema centralizado de poder, os
privilgios dele decorrentes, a acumulao de funes administrativas acentuaram as
rivalidades entre os grupos. Na Itlia, onde esse modelo comunal parece comportar certa
regularidade, essas lutas foram intensificadas a partir do sculo XIII. As disputas entre as
famlias abastadas representavam um desafio ao bom andamento das funes pblicas. A
ascenso material de indivduos provenientes das camadas baixas da populao e sua busca
por prerrogativas polticas aprofundaram as divergncias entre os novos ricos e as classes
senhoriais. Famlias como a dos Alberti, dos Medici, dos Albizzi, dos Strozzi e outras,
sobressaram dos estratos mais baixos da sociedade do fim da Idade Mdia e ganharam
projeo social no Mundo Moderno (Ibid., p. 33 e 58).
As lutas polticas se tornaram a base do processo de emancipao dessas classes e,
como consequncia, fundamentaram a autonomia dos centros urbanos aos quais pertenciam.
Amparados na riqueza e no mecanismo que ela movimentava numa esfera maior de poder,
esses novos ricos (nouveaux riches) conseguiram, por meios da instituio de direitos
urbanos, restringir, ou mesmo proibir, o acesso da nobreza ao poder. Em outras palavras, no
era to somente a conquista de privilgios que arregimentavam os novos ricos, mas tambm
o privilgio territorial inerente ao solo urbano (PIRENNE, 1982, p. 57). As medidas
restritivas impostas pela comuna, no somente aos nobres, mas tambm s classes populares,
fizeram da excluso social a norma de preservao do prprio sistema (MUMFORD, 1998, p.
450). O ar que tornava os homens livres na cidade no era o mesmo que os tornavam
cidados. A bem dizer, era o ar do mercado que lhes conferia tal estatuto. A participao na
dinmica mercantil daquelas praas exigia que o indivduo nela residisse por, no mnimo, um
ano e um dia e fosse admitido pelo sistema corporativo da cidade. Como at as sociedades
mais prsperas e organizadas tm seus mendigos, seus invlidos, seus bbados, marginais de
todos os tipos polticos e religiosos , os centros urbanos medievais e mesmo os modernos
no eram diferentes. Neles a riqueza de alguns contrastava com a misria de outros tantos
tomados de acoite pelo advento das relaes pr-capitalistas.
10 Segundo Pirenne, essa talvez seja a origem dos tribunais que o direito ingls designa de courts of piepowders,
ou seja, tribunais dos ps poeirentos.
25
As segregaes cotidianas tornavam o ambiente citadino instvel e perigoso. A maior
parte dos trabalhadores dessas cidades existia em separado do mercado de trabalho. Eram
poucos os que dispunham de um lugar no sistema produtivo das comunas. Segundo o
historiador Jacques Le Goff, o percentual de trabalhadores alocados formalmente nas
corporaes de Paris, no sculo XIII no superava o ndice de 30%. Os demais indivduos
orbitavam em torno de trabalhos temporrios como prestadores de servios. Os mais
afortunados, segundo ele, podiam conseguir contratos semanais. Nestas condies de misria
multiplicava-se o nmero de excludos (mendigos, punguistas, ladres) assim como as
agitaes e revoltas. As reivindicaes dos midos eram seguidas de grandes
demonstraes de fora por parte das classes dirigentes. O estatuto de Douai de 1245 nos
evidencia esta situao: Ningum deve ter a audcia nesta cidade, s ou acompanhado,
homem ou mulher da classe baixa, de comear uma greve. Se algum a empreender, pagar
uma multa de 60 libras e ser banido da cidade, estar sujeito mesma multa, qualquer que
seja o seu ofcio (LE GOFF, 1998, p. 233). Ainda segundo Le Goff, as convulses sociais
em Paris e Douai no parece contrastar com outras praas, a exemplo das cidades italianas do
mesmo perodo. O movimento comunal na Itlia impunha um sistema de excluso social que
operava por meio do afastamento das classes tradicionais e a proteo vigorosa ao lucro. O
resultado dessa poltica mercantil foi evidenciado nas contestaes inorgnicas, espasmdicas
e, em certos sentidos, espontneas das classes populares, a exemplo da revolta de Siena em
1355 e dos revoltados de Ciompi em 1378.
O sculo XIV foi marcado pelo emperramento dos mecanismos de produo social. A
crise do sistema feudal ocorrida neste perodo se abateu sobre as cidades e as demais
estruturas da sociedade europeia. As fomes, as pestes e as guerras promoveram uma
verdadeira hecatombe. Ningum estava livre da Peste. Nas cidades e nos campos a Peste
imps a destruio (PEDRERO-SNCHEZ, 2000, p. 193). Os corpos eram amontoados nas
ruas e os vivos, de fato, quase no conseguiam enterrar os mortos, ou os evitavam com
horror (Ibid., p. 194). Extensas zonas foram evacuadas. Muitos edifcios, grandes e
pequenos, caram em runas nas cidades, vilas e aldeias, por falta de habitantes, de maneira
que muitas aldeias e lugarejos se tornaram desertos, sem uma casa ter sido abandonada neles,
mas tendo morrido todos os que a viviam (Ibid., p. 197). Entre 1347 e 1349, o cronista
sienense Agnolo di Tura de Grasso escreveu: Tantos morreram que todos acreditam tratar-se
do fim do mundo (RICHARDS, 1993, p. 25). Neste sentido, no parece estranho que as
tentativas de resoluo, as mais variadas, tenham sido feitas com o propsito de recuperar a
ordem pretrita do mundo. Procisses de flagelantes, exploses selvagens de violncia cata
26
de um bode expiatrio (Ibid., p. 26), tarantismo, massacres e perseguies s minorias
consideradas disseminadoras de males como prostitutas, homossexuais, judeus, bruxas e
hereges tiveram a cidade como cenrio.
Fig. 1. A morte no perdoa nem bispo nem nobre. Guyot Marchant, La Danse Macabre, 1485. Paris.
Os ataques da Peste se repetiram ao longo de todo o sculo XIV e posteriormente a
ele, chegando mesmo ao sculo XVIII (WOLFF, 1988, p. 17 19). Na maioria das vezes, a
organizao formal das cidades dificultava o combate epidemia. Ruas circulares, estreitas,
com baixa luminosidade, pouca ventilao e a falta de higiene tornavam os ambientes
insalubres, facilitando o contgio da doena. Segundo o historiador francs Jean Delumeau,
a peste, nas ruas estreitas e sujas das cidades desse tempo, propagava-se como fogo. Os contemporneos deram, sobre as vtimas da doena, nmeros comparveis queles que foram j possvel obter em relao a Florena ou Albi no tempo da Peste Negra: 600 mortos por dia em Constantinopla (1466), 230 000 falecimentos em Milo no tempo de Ludovico, o Mouro, 50 000 em Veneza entre 1575 e 1577, 40 000 em Messina entre 1575 e 1578, 60 000 em Roma (1581). Estes nmeros, naturalmente, sero exagerados, mas indicam, sem erro possvel, que um quarto ou um tero de uma cidade podia desaparecer bruscamente numa poca em que os conhecimentos de higiene e de medicina no davam defesa contra o contgio. E concordam com todas as narraes j lidas, com a descrio de ruas juncadas de mortos, da carroa que passava diariamente cheia de cadveres empilhados uns sobre os outros, em to grande nmero que j no se podia dar-lhes sepultura (DELUMEAU, 1994, p. 256. 1v).
27
Por muito tempo, esta foi a forma como a historiografia caracterizou o sculo XIV, e
parte do XV: um perodo de estagnao, de depresso, de crise, marcados pelas fomes, as
epidemias e as guerras. Todavia, a partir de 1950 as pesquisas realizadas em histria
demogrfica e econmica expuseram uma extensa documentao sobre o perodo, a exemplo
dos registros notariais de preos, salrios e rendas, assim como a descoberta do catasto
florentino de 1427 (WOLFF, 1988, p. 253 254)11 registro de bens das pessoas tributveis
de Florena e das cidades sob seu domnio. Os cruzamentos dos dados do castato puseram em
evidncia no apenas os gastos da Repblica,12 o comprometimento fiscal de seus cidados
o que comprova a tese dos defensores da ruptura e a existncia de um sofisticado aparelho
burocrtico, mas tambm um quadro social dinmico e bastante complexo. No obstante todas
essas descobertas, afirma Philippe Wolff, ainda resta muito a ser analisado e compreendido.
preciso levar em considerao o carter fragmentado dessas fontes e a multiplicidade de
cenrios discordantes que, vez por outra, surgem entre documentos analisados. Contudo,
possvel afirmar que estes sculos tambm se evidenciam pelas grandes descobertas e
invenes, pela extensa produo intelectual e pelo incremento das atividades econmicas,
polticas e sociais. Os sculos XIV e o XV, portanto, para Philippe Wolff, se mostra como
termo mdio entre o mundo feudal e o moderno. Assim, se a designao de outono da Idade
Mdia, tal qual os caracterizou Jan Huizinga, legtima, tambm o defini-lo como a
primavera dos novos tempos, segundo Wolff. Em qualquer dos casos, notrio que se trata
de um perodo instigante, de transio, de transformaes rpidas e tentaculares, que imps
Europa uma nova viso de uma nova civilizao, mais urbana que rural, ou, como afirmou
poeticamente o historiador Jacques Le Goff, uma nova civilizao que desabrochava sobre o
cheiro de sangue e rosas (1992, p. 235).
Em termos urbansticos, este perodo tambm apresenta um duplo carter: por um lado
significou uma cristalizao do tipo medieval de cidade, por outro, a superao desse modelo,
o alvorecer de uma nova cultura urbana, mais regular e mais articulada s circunstncias
polticas de cada lugar. Mesmo no se tratando de um perodo de paz e de grandes
prosperidades, exceto em alguns casos, o sculo XV foi marcado por profundas e
intermitentes transformaes do tecido urbano. Segundo Donatella Calabi, possvel observar 11 Publicado em 1978 por Christiane Klapisch e David Herlihy, o catasto florentino mudou, por completo, os
conhecimentos a respeito da demografia medieval daquela regio. Composto em 1427, o catasto traz em si, de forma muito bem preservada, segundo Philippe Wolff, um retrato bastante detalhado das rendas, das tenses sociais, das relaes entre Florena e as pequenas cidades por ela anexadas, das dimenses territoriais, do nmero de famlias e de indivduos (pelo menos os tributveis), das propriedades e dos bens dos florentinos. O catasto, juntamente com toda a documentao produzida nos sculos XIV e XV, corresponde, de acordo com Wolff, a uma verdadeira revoluo intelectual.
12 Por Repblica entende-se aqui a cidade de Florena.
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quatro linhas de tendncias consoantes s quais se deu a renovao das cidades europeias:
primeiro, um investimento de capital na melhoria da rede viria. Ruas mais largas, retas,
convenientes ao trfego de pessoas e mercadorias so observadas em boa parte das cidades.
Fig. 2. La Tavola Strozzi su Napoli. Rosselli, F. (?), 1483. Museu de S. Martino, Npoles.
Todavia, embora exista a tendncia regularizao do traado, muitas dessas ruas
continuaram correspondendo natureza do lugar e s intervenes do poder pblico.
Fig. 3. Planta em perspectiva de Npoles. Duperac E. A. Lafrery, 1566. Npoles
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As pontes foram tambm ampliadas e aparelhadas conferindo suporte e sentido nova
estrutura viria de produo e comrcio (CALABI, 2008, p. 57 62);13 segundo, a realizao
de novos tipos edilcios, resultante da abertura de ruas, bairros e praas, impe mudanas
fundamentais ao funcionamento dos mesmos. As praas, geralmente retangulares, passaram a
abrigar funes cada vez mais complexas e especializadas, identificando-se com as
necessidades religiosas, governamentais e de mercado (Ibid., 67 89); terceiro, a ampliao
dos bairros, em consequncia do adensamento demogrfico, teve um impacto importante na
hierarquia funcional de algumas cidades. O aumento considervel do nmero de palcios e
edifcios (pblicos e privados) dotou as cidades de um carter mais dinmico e policntrico,
incidindo sobre a administrao pblica. Um novo esquema tipolgico de residncia, mais
conveniente s exigncias funcionalistas, se imps no tecido urbano (casas para os
mercadores, para os artfices, para os senhores; casas para moradias e aluguis etc.); uma rede
de novos equipamentos se destacou nessa paisagem urbana, tais como bibliotecas, hospitais,
leprosrios (tambm chamados de hospital dos lzaros), tribunal de justia, casas de crdito,
cmbio, bolsa e, no menos importantes, igrejas e catedrais, cujas obras de ampliaes e
renovaes estilsticas conferiram-lhes um carter monumental e poltico, destacando-as
como novos pontos de convergncia visual da cidade; quarto, a elaborao terica e o
aperfeioamento dos modelos de referncia.
Antes mesmo que o primeiro tratado moderno de arquitetura viesse a lume, j a
preocupao com a organizao social do espao, em cidades constantemente abaladas pelo
antagonismo poltico-social e pelas exigncias ordinrias das classes dirigentes, faz-se
presente nos tratados de poltica, nos panegricos, cartas e crnicas. O De Re dificatoria, de
Leon Battista Alberti, foi a primeira obra do gnero a fulgurar no horizonte ps-medieval e a
prestar, sem sombra de dvidas, uma importante contribuio ars aedificandi e formao
do homem moderno. Escrita em 1452 e publicada em 1485, esta obra no apenas props
solues aos problemas urbanos e sociais de sua poca, como tambm objetivou preservar e
rediscutir o pensamento dos antigos. Embora para alguns estudiosos Alberti repita as formas e
esquemas da cidade medieval, no se pode negar que, pela primeira vez no mundo moderno,
uma obra logrou traduzir, em regras e endereos, a organizao dos conhecimentos
construtivos at ento transmitidos pelos costumes e ordenanas das municipalidades. Assim
13 As pontes construdas ou reformadas no sculo XV se destacam na paisagem urbana pela grande quantidade
de funes que desempenham. Serviam como instrumento de defesa, impedindo a aproximao de embarcaes nas proximidades de cidades beira-mar, como posto de pedgio, de fiscalizao aduaneira e como depsitos, alm de abrigar uma grande quantidade de atividades de produo e comrcio especializados como joias, porcelanas, quadros, armas, tecido, chapus, papis, artigos em couro, remdios, perfumes, tapetes etc.
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como Alberti, tambm se destaca, a partir de ento, o Trattato di Architettura de Filarete; o
tratado de Architettura Civile e Militare de Francesco di Giorgio Martini; I Quattro Libri
dellArchitettura de Andrea Palladio; A Arte de Fortificar as Cidades e as Cidadelas de
Albrecht Drer; LIdea della Architettura Universale de Vincenzo Scamozzi, dentre outros.
Isso posto, possvel afirmar que a cultura humanstica surgida nas cidades italianas entre os
sculos XIV e XVI manifestou-se, tambm, nos tratados de arquitetura (GARIN, 1996, p. 10,
passim). Este novo campo de saber, s voltas com a realidade concreta do social, permitiu a
ampliao do espao de discusso poltica. centralidade da cultura, fundamentada sob o
signo da revalorizao da Antiguidade Clssica greco-romana, produziu o fenmeno
sociocultural denominado risorgimento, posteriormente Renascena ou Renascimento.
1.2. RENASCIMENTO E HUMANISMO: etiquetas cmodas ou processo civilizatrio?
Os estudos acerca do Renascimento ou Renascena foram marcados por uma longa
srie de controvrsias, ambiguidades e imprecises. A primeira e mais longa das controvrsias
orbitou em torno da continuidade ou da ruptura entre Idade Mdia e Idade Moderna.
A concepo do Renascimento como ruptura remonta aos sculos XIV, XV e XVI,
quando, na tentativa de impor uma viso de mundo oposta ao teocentrismo medieval, os
humanistas o afirmaram como risorgimento ou conforme se verifica na obra de Giorgio
Vasari, como ressurreio das artes. Sculos mais tardes, j no XIX, o velho conceito
reaparece agora problematizado pelas concepes de Michelet e Jacob Burckhardt, mas ainda
sob o prisma da novidade, do risorgimento.14
Nas primeiras dcadas do sculo XX, mais precisamente no ano de 1942, quando, no
Collge de France, Lucien Febvre ministrou seu curso intitulado Michelet et la Renaissance,
deu-se incio ao debate entre continustas e defensores da ruptura. Contrapondo-se ideia de
que a Renascena significou um aperfeioamento da personalidade, um despertar da
conscincia e da individualidade tese defendida por Burckhardt15 , Febvre afirmou ser a
Idade Mdia e a Moderna rtulos, etiquetas cmodas (FEBVRE, 1995, p. 34) que, fixadas
14 A anlise de como o Renascimento chegou Frana de Lus XI, descrita por Michelet, evidencia a forma
como o historiador pensou esse movimento. Em suas palavras, um acontecimento bem grandioso se cumpria. O mundo estava mudado. No havia um Estado europeu, mesmo dos mais atrasados, que no se encontrasse envolvido num movimento totalmente novo (FEBVRE, 1995, p. 199).
15 Para Arnold Hauser, as percepes de Michelet e Burckhardt foram regidas pela ideologia do liberalismo do sculo XIX. Em suas palavras, a descoberta da natureza pela Renascena foi uma inveno do liberalismo do sculo XIX, que colocou o deleite renascentista na natureza em contraste com a Idade Mdia, a fim de desferir um golpe na filosofia romntica da Histria (HAUSER, 1998, p. 275).
31
sobre tais contextos histricos, tinham a pretenso de melhor design-las. Segundo ele, no
era possvel determinar onde terminava a Idade Mdia e comeava a Idade Moderna.
Ademais, era um erro conceber o Renascimento como um individualismo sem freio e a Idade
Mdia como um comunitarismo sem sal (Ibid., p. 33); um equvoco:
imaginar que um toque de varinha mgica, despertando as individualidades adormecidas, assim como nos contos de fadas o jovem cavalheiro desperta hspedes que dormem no palcio da Bela Adormecida, tenha podido transformar em alguns anos aquele mundo dormente num mundo de indivduos exaltados e furiosos puerilidade ainda. No, certamente, no se trata de perodos. A histria no feita de fatias alternadas nas quais se possa grudar alternativamente duas etiquetas: individualidade coletividade. Qualquer desenvolvimento de civilizao mostra ao observador uma dupla srie de efeitos (Ibid., p. 437).
Na dcada de 1950, depois da publicao do livro Lumanesimo italiano, do
historiador, tambm italiano, Eugenio Garin, o debate entre os defensores da continuidade
entre Idade Mdia e Idade Moderna, e aqueles que advogavam em favor de uma ruptura
radical , foi reiniciado. Os continustas, ou medievalistas, atestavam que as disciplinas e
conhecimentos adquiridos por meio dos documentos antigos j faziam parte da realidade do
homem medieval e que, portanto, os humanistas quase nada tinham acrescentado tradio do
Medievo. A tese principal dos defensores da continuidade, originalmente postulada pelo
historiador Paul Oskar Kristeller, destitua a Renascena do seu carter poltico, cientfico,
para dot-lo de caractersticas puramente intelectuais, sem qualquer efeito prtico.
O humanismo italiano do Renascimento foi um humanismo que no era nem verdadeiro nem integral, nem Cristo, nem cientfico no sentido corrente da palavra. Ele era simplesmente (o que no pouco) uma orientao cultural em direo ao estudo das lnguas, da literatura, da histria e da filosofia da antiguidade grega e latina e uma renovao da poesia e da prosa oratria, da historiografia e do pensamento moral tudo isso buscando inspirao, tanto na forma quanto no contedo, nos modelos fornecidos pelos autores antigos (KRISTELLER apud BIGNOTTO, 2001, p. 21).
Garin rebateu esta tese ao afirmar o humanismo como um movimento original de
ideias que fundamentou a Renascena e permeou todas as estruturas da vida civil. Em suas
consideraes:
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o arteso florentino foi na Europa o primeiro a participar da cultura cientfica. [] A vista e a mo prepararam os primeiros elementos da cincia do intelecto e todo o pensamento se pe ao servio, no da especulao soberba e estril, mas daquilo que, tempos depois, Bacon chamaria de scientia activa (GARIN, 1994, p. 16).
Ademais, acusou os defensores da continuidade de formular hipteses partindo de uma
esquematizao das prticas sociais em categorias estanques como se no houvesse qualquer
articulao entre elas.16
Para Garin, a Renascena foi um movimento cultural complexo, de mltiplas faces e
variantes intercambiveis (Ibid., p. 11). Suas observaes mudaram o foco da discusso
acerca do humanismo. Enquanto os historiadores, defensores da continuidade, viam no
humanismo renascentista uma sntese cultural verticalizada nas relaes com os valores da
Antiguidade Clssica, Garin o percebeu como instrumento de afirmao de uma nova ordem,
de outra conduta diante dos fatos e da vida. Para ele, o humanismo no era somente um
exerccio de erudio, orientado magnificao das elites da poca, mas uma prtica social
difundida em todas as camadas da sociedade (Ibid., p. 16). Em suma, o autor defende a
existncia de uma cincia, de uma poltica e de uma cultura prprias do Renascimento; no
nega as permanncias, as continuidades, mas afirma as inovaes do perodo como as mais
pertinentes ao desenvolvimento das prticas sociais modernas. Na esteira desse debate
iniciado por Garin em 1947, Paul Kristeller em 1950 e Hans Baron em 1955, vieram
estudiosos como Quentin Skinner, Jean Delumeau, Lewis Mumford, Arnold Hauser, Jacques
Le Goff, dentre outros. Alis, este ltimo, eminente historiador francs, defendeu
recentemente a tese de uma longa Idade Mdia entre os sculos V e o XIX.
Contudo, em torno ao debate da continuidade e da ruptura, surgiu como mais um
ponto de controvrsia entre os grupos a polmica acerca do carter poltico do humanismo
italiano identificado por Hans Baron com o nome de humanismo cvico.
Em 1955, a partir da anlise criteriosa de Garin que destacou o perfil intelectual da
Itlia e o desenvolvimento de um novo esprito cvico,17 Baron considerou que o significado
16 Segundo Eugenio Garin, um nmero demasiado grande de historiadores, ou que acreditam s-lo, por uma
exigncia de continuidade cada vez mais exasperada (the cancerous growth of the continuity), esfora-se para apresentar a cincia do sculo XVII como o ltimo pargrafo do saber medieval, esvaziando a importncia de parte da obra dos sculos XV e XVI, unicamente por no conseguir inclu-la nos esquemas do passado. No percebem a armadilha implcita nessa maneira de compreender a continuidade, confinada, em ltima anlise, aos limites de uma linearidade fixada segundo classificaes escolsticas. Dessa maneira fecham toda via de acesso aos momentos da histria em que a ordem se dilua e o novo ainda no se afirmara. As novas concepes, e as revolues que lhe so solidrias e as fazem triunfar, no se explicam dentro dos quadros do passado, em relao aos quais representam um desvio (GARIN, 1996, p. 9).
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poltico de autores como Francesco Petrarca, Coluccio Salutati, Leonardo Bruni dentre outros,
era muito mais expressivo do que at aquele momento havia sido verificado. E interpretou
essa outra fase dos studia humanitatis como sendo uma nova forma de compreenso da vida
social, denominando-a de humanismo cvico. A tese de Baron, em pari passu com a de Garin,
centrou-se na ideia de uma mudana de perspectivas polticas entre o Medievo e a
Renascena. Na viso de Baron, o humanismo cvico foi um instrumento ideolgico que se
originou na Itlia a partir do sculo XIV no mbito das lutas civis, da guerra contra o papado
e, principalmente, da poltica expansionista do senhor de Milo, Gian Galeazzo Visconti,
entre os anos de 1385 e 1402.
As crticas ao conceito de humanismo cvico de Baron e, por consequncia direta, de
Garin, comeam a aparecer j na dcada de 1960. O ncleo principal das discusses era a
ideia de ruptura sustentada por ele. Para os estudiosos que se contrapunham a Garin e Baron,
os humanistas do Quattrocento no haviam acrescentado qualquer novidade cincia,
retrica e nem mesmo aos estilos j existentes na Idade Mdia. Ao contrrio, estes se
limitaram a repetir as frmulas medievais h muito utilizadas. Nem mesmo a defesa de certos
valores republicanos lhes foi original, uma vez que diversos autores, seguidores de Toms de
Aquino, assim j o faziam nas lutas contra as tiranias do sculo XIII. Todavia, na dcada de
1970, Baron reafirmou seu ponto de vista acerca da ruptura e asseverou que no desconhecia
a existncia desses elementos nas concepes do Medievo, mas que, o essencial para ele, era a
forma como, no final do sculo XIV, esses conhecimentos passaram a ser utilizados.
17 Em seu livro Cincia e Vida Civil no Renascimento Italiano, escrito na dcada de 1960, Garin reafirmou os
princpios defendidos em seu LUmanesimo Italiano da seguinte forma: A cultura humanstica que desabrochou nas cidades Italianas entre os sculos XIV e XV, manifestou-se principalmente no campo das disciplinas morais []. Concretizou-se nos mtodos educativos adotados nas escolas de gramtica e de retrica; atuou na formao dos dirigentes das cidades-Estado, oferecendo-lhe tcnicas polticas mais refinadas. Serviu no apenas para a compilao eficaz do epistolrio oficial, mas tambm para formular programas, compor tratados, definir ideias, elaborar uma concepo da vida e do significado do homem na sociedade. As palavras de um passado com o qual se pretendia estabelecer uma continuidade de tradio nacional, os livros de autores dos quais todos se proclamavam herdeiros contriburam para uma auto-conscincia e para a formao de uma viso de conjunto da histria do homem (Ibid., p.10). Grosso modo, na perspectiva historiogrfica de Eugenio Garin, o humanismo cvico, ou, com ele o designou, sua vocao cvica, foi o resultado de um desdobramento circunstancial dos Studia humanitatis a partir dos estudos das artes, da lgica e da retrica. Sua interface com os campos da moral e da poltica traz as marcas de uma conjuntura especfica, a saber, a guerra dos florentinos contra o papa Gregrio XI, a tentativa de domnio de Gian Galeazzo Visconti e, por ltimo, os Tumultos dos Ciompi. Construdo s margens das ctedras universitrias e dos tericos das cortes refinadas, esse humanismo, inaugurado por Petrarca, surgiu, segundo Garin, no Pallazo dei Signori de Florena, com os chanceleres Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Carlo Marsupini, Poggio Bracciolini, Benedetto Accolti e Bartolomeo Scala. Estes, especialmente Salutati e Bruni, ergueram Florena categoria de legtima defensora da liberdade, herdeira inconteste do passado glorioso da antiga Roma republicana. A funo poltica desses homens junto municipalidade teve um papel importante na renovao do saber que recebeu de Petrarca.
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Dentre as principais crticas dirigidas ao humanismo cvico, enquanto pressuposto de
uma ruptura com as concepes medievais de vida pblica, encontra-se o trabalho do
historiador ingls Quentin Skinner. Este dedicou nove dos dezoito captulos de seu livro As
Fundaes do Pensamento Poltico Moderno para provar que as razes de muitas teorias
utilizadas pelos humanistas do Quattrocento j faziam parte do Medievo porque derivaram do
estoicismo romano. Portanto, para este autor, negar a teoria republicana e a valorizao da
doutrina cvica de Ccero como inexistentes no perodo medieval se constitui um grave
equvoco, pois, parte dos elementos dessa conscientizao poltica teve sua origem na
escolstica francesa, importada para a Itlia cerca de um sculo antes. Em suas palavras,
havia,
porm, dois fatores ambos centrais numa leitura do humanismo renascentista que nos obrigam a questionar a exposio de Baron. O primeiro que, tratando a crise de 1402 como um catalisador que fez emergir novas ideias Baron ignorou em que medida tais ideias no eram novas em absoluto, mas, antes, um legado das cidades-repblicas da Itlia medieval. O outro problema que, enfatizando as qualidades especficas do humanismo cvico, Baron deixou de considerar a natureza dos elos que havia entre os escritores florentinos de incio do quatrocentos e o movimento, mais amplo, do humanismo petrarquiano, que j desenvolvera no correr do sculo XIV (1996, p. 93).
Para Skinner, a descoberta e traduo dos textos de Aristteles, a partir dos sculos
XII e XIII, alm de ter conferido as bases da escolstica francesa, tambm contribuiu para o
surgimento do humanismo renascentista na Itlia. Textos como a tica a Nicmaco, traduzido
parcialmente por Hermannus Alemannus em 1243, seguida de uma traduo integral, ainda na
dcada de 1240, feita por Guilherme de Moerbeke, o mesmo que, pouco depois de 1250
tambm realizou a primeira traduo de A Poltica, alm de influenciar profundamente as
obras de eminentes doutores da Igreja, autores do quilate de Alberto Magno e Toms de
Aquino, tambm serviram de esteio aos pr-humanistas. Seus receptores italianos foram Joo
de Viterbo, Brunetto Latini, Dino Compagni, Bonvesin della Riva, Marslio de Pdua, Bartolo
de Saxoferrato etc (Ibid., p. 71).
Em linhas gerais, Skinner afirma que o problema da teoria de Baron, ou seja, do seu
conceito de humanismo cvico, foi desconsiderar em que medida os humanistas do
Quattrocento se serviram da produo dos dictatores medievais. Como se pode observar,
Skinner no nega o desenvolvimento de uma conscincia cvica entre os humanistas do sculo
XV. Ao contrrio, assegura que partir de uma perspectiva muito limitada quem
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considerando explicar o humanismo com base apenas numa histria interna sua, se dispuser
por isso a descartar completamente as explicaes externas, como as de Baron (Ibid., p.
124). E conclui afirmando que mesmo sua tese da ruptura no pode ser descartada em sua
totalidade, pois seria um equvoco enorme concluir pela existncia de elos igualmente fortes
entre os humanistas e os expoentes da filosofia escolstica (Ibid., p. 125). Dos escolsticos
os humanistas herdaram a filosofia moral e suas virtudes cardeais (prudncia,
magnanimidade, temperana e justia). Todavia, os humanistas do Quattrocento cristalizaram
sua diferena em relao aos escolsticos ao estabelecer o uso prtico da filosofia na vida
social e poltica.
Alberto Tenenti, por sua vez, percebe o humanismo como um trao de uma cultura
burguesa em ascenso que buscou, por meio de uma conduta menos dogmtica, mais
autnoma, afirmar uma posio poltica e social. Sua concepo de humanismo, orientada
pelos princpios da luta de classe, radica no plano da expanso das atividades econmicas com
amplos alcances socioculturais. No plano artstico, o autor destaca Dante Alighieri, Francesco
Petrarca e Giovanni Boccaccio como esplendidos frutos, marcos de uma nova civilizao
surgida nos dois primeiros teros do sculo XIV. No plano poltico, destaque para Coluccio
Salutati, Leonardo Bruni, Leon Battista Alberti, Giannozzo Manetti, Matteo Palmieri e
Alamanno Rinuccini, autores que compunham a elite do pensamento poltico de Florena,
bero do humanismo e de sua precpua vertente cvica. Deste modo, o humanismo italiano do
perodo se apresenta como produto de nova sensibilidade, de gosto renovado, refletido no
apenas nas artes, mas em todos os campos da vida prtica cotidiana. Tudo, absolutamente
tudo, diz Tenenti, medido e calculado. o comportamento de uma humanidade diferente
daquela que fora concebida at ento pela civilizao do Ocidente (TENENTI, 1973, p. 56).
Identificado como um instrumento de luta, como a ideologia de uma classe rica,
designada de popolo grasso, ou magnati, o humanismo descobre que o pathos republicano e
libertrio de certos autores latinos lhes convm maravilhosamente na luta mantida contra o
tirano Joo-Galeazzo Visconti [sic.], que ameaava sufocar a cidade (Ibid., p. 59). Munidos
de um saber tcnico, prtico, condizente com as necessidades operantes do ambiente burgus
em ascenso, esses humanistas, aos poucos, foram ocupando os cargos (embaixadas,
chancelarias, direo de escolas superiores, ctedras etc.) que antes eram reservados aos
telogos, aos pregadores e aos eclesisticos de modo geral. Nessa conjuntura, os humanistas
se tornam arautos da liberdade. Todavia, ressalta Tenenti, o humanismo no foi um
movimento politicamente popular. A liberdade reclamada por esse movimento no se estendia
ao conjunto da populao, mas apenas aos cidados cultural e economicamente afortunados.
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Em outras palavras, a liberdade humanista era restrita ao popolo grasso, ao mercador, ao
letrado e, quando necessrio, ao artista. Em suma, o humanismo foi, para Tenenti, a investida
eficiente de uma classe amadurecida que soube forjar seus prprios valores e, como eles,
uma nova civilizao.
Deste modo, possvel observar que Tenenti, mesmo abstendo-se de tomar partido na
polmica em torno da legitimidade conceitual do humanismo cvico, entende que o civismo
que animou os humanistas no sculo XV foi fruto de um novo contexto social, poltico e
cultural. E, como Hans Baron, afirma que o movente desse retorno vigoroso liberdade
republicana dos Antigos foi a expanso dos Visconti. Todavia, mesmo aceitando parte da tese
de Baron e Garin, Tenenti faz ressalvas quanto ao que chamou de engajamento enrgico e
deliberado dos humanistas na vida poltica de seu tempo (Ibid., p. 132). Para ele, nem todos
os humanistas do sculo XV participaram da poltica quanto fazem crer as teorias acerca do
carter civil do humanismo (Ibid., p. 132). Em suas palavras,
certo que essa problemtica do humanismo civil, no sentido poltico independente com base na cultura antiga, no vai longe e quanto mais se quer alargar-lhe a ressonncia e a zona de esplendor, mais se corre o risco dos desmentidos das realidades poltico-sociais italianas e at florentinas (Ibid., p. 133).
De fato, preciso considerar que a bandeira da liberdade h muito havia sido
desfraldada nas principais cidades da Toscana. Outrossim, que o humanismo se prestou a
diversos papis tanto no plano religioso, como no literrio, artstico, ou mesmo no poltico, o
que significa afirmar que, sendo a sociedade florentina do sculo XV to rica em contraste,
seria, portanto, um equvoco considerar apenas a existncia de um tipo nico de relao entre
os intelectuais humanistas e o restante da sociedade. Por outro lado, tambm no seria justo
afirmar o humanismo apenas como um exerccio de erudio, um simples retorno ao passado
sem qualquer implicao poltica e social. Ao contrrio, um empreendimento como esse seria
inconcebvel sem a necessidade e a aquiescncia de todo um meio socialmente estruturado.
Como se observa, a polmica extensa e nem de longe pensamos em esgot-la. Nosso
propsito aqui foi apresentar, por meio de seus aspectos principais, sua definio e a
problemtica que envolve tal conceito. Sua emergncia est circunscrita a um conjunto de
fatores: a revolta operria dos Ciompi de 1378; as pretenses polticas da Igreja; a expanso
milanesa de Gian Galeazzo Visconti que, em 1390, sitiou diversas cidades no norte da Itlia e
declarou guerra a Florena; a guerra contra Ladislau, rei de Npoles, entre 1412 e 1414; a
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retomada da expanso de Milo feita pelo filho de Gian Galeazzo, Filippo Maria Visconti
entre os anos de 1420 e 1423 e a ascenso dos dspotas que, no caso de Florena, se deu com
a chegada dos Medici ao poder em 1434. Embora, em linhas gerais, estes fatos paream
restringir-se unicamente a Florena, seus alcances foram bem mais amplos, envolveram
grande nmero de cidades, tais como Brescia, Forli, Arezzo, Pisa, Cortona, Livorno, Roma,
Siena, Verona, Vinceza, Luca, Assis, Perugia, Parma, dentre outras. A partir disso, possvel
afirmar que o humanismo cvico, embora tivesse Florena como ncleo, no lhe foi restrito.
Ao contrrio, estendeu-se por um grande nmero de cidades no norte da Itlia com
caractersticas comuns e variadas de acordo com as circunstncias polticas de cada uma
delas.
Paralelo a esse debate, desenvolvia-se, tambm na dcada de 1950, a polmica
marxista em torno da transio do feudalismo para o capitalismo entre os sculos XIV e o
XVI. O debate teve origem nas crticas feitas pelo economista norte-americano Paul Sweezy
obra A Evoluo do Capitalismo do tambm economista, o britnico Maurice Dobb,
publicada em 1946. Nesta obra, Dobb afirmava a necessidade de se reexaminar as relaes de
produo no interior do sistema feudal, pois, segundo ele, a tese sustentada pelo historiador
belga Henri Pirenne, de que o comrcio foi a causa do declnio do feudalismo, no era
suficiente para elucidar a questo. Para Dobb, a causa da dissoluo do feudalismo devia ser
buscada nas contradies internas do prprio sistema, na sua ineficincia enquanto modo de
produo e na necessidade crescente de renda por parte da classe senhorial. Em suas palavras,
a necessidade de renda adicional promoveu um aumento da presso sobre o produtor a um
ponto em que se tornou literalmente insuportvel (DOBB, 1987, p. 32).
Sweezy, por sua vez, pondera que, tanto o feudalismo quanto o capitalismo deveriam
ser analisados como processos distintos e no como movimentos contguos, imbricados por
relao de pertena. Para ele, este perodo entre o sculo XIV e o XVI deveria ser entendido
como intermedirio, uma fase de preparao que teve a acumulao primitiva de capital,
promovida pelo comrcio, como a mola mestra do colapso feudal. A este perodo o
economista estadunidense resolveu chamar, tal qual Marx, de pr-capitalista. No que concerne
s cidades onde o drama da acumulao primitiva de capital foi encenado, Dobb afirmou ser
insuficiente a explicao que vinculava seu surgimento revitalizao do comrcio como
havia sustentado Pirenne. Para Dobb, era provvel que os ncleos urbanos medievais tenham
surgido de formas e circunstncias muito variadas. Assim, sugeriu que, enquanto no se
chegasse a uma soluo plausvel, convinha aceitar uma explicao ecltica para esse
processo. Esta via explicativa aceitava como hiptese o fato de que muitas cidades se
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desenvolveram a partir dos stios das antigas cidades romanas, que outras tantas tiveram suas
origens a partir do adensamento populacional em reas rurais e que outras nem chegaram a
desaparecer, como foi o caso de Gnova e Veneza. Todavia, Sweezy advertiu que Dobb, em
sua teoria, no conseguiu ver que a ascenso das cidades estava ligada ao comrcio e que,
dificilmente, poderiam se desenvolver numa economia de tipo feudal. A vida urbana, afirmou
Sweezy, foi uma consequncia direta do crescimento do mercado e da dissoluo das
estruturas do mundo feudal.
Outra interpretao desse fenmeno histrico foi dada por Lewis Mumford. Crtico da
tese de Pirenne, Mumford defendeu, em seu livro A Cidade na Histria, a tese de que a nfase
no papel aglutinador do mercado na promoo da cidade era um exagero, uma vez que para
haver comrcio, segundo ele, fazia-se necessrio, como condio fundamental, uma produo
de excedente populacional e de produtos rurais. Igualmente, a defesa do comrcio
internacional como gerador de cidades, tambm no se sustenta uma vez que este era muito
transitrio e tinha sua ocorrncia, quase sempre, ligada ao calendrio de festas religiosas que
aconteciam em determinadas cidades no mximo quatro vezes por ano. Quando muito, este
tipo de comrcio pode ter favorecido o crescimento de algumas cidades como Veneza,
Gnova, Milo, Bruges etc. Na opinio de Mumford, a revivescncia do comrcio,
principalmente o internacional, e o surgimento de boa parte das cidades medievais foram
muito anteriores ao sculo XI. Em contrapartida, o comrcio interno, realizado,
no raro, duas vezes por semana, sob a proteo do bispo ou abade, era um instrumento de vida local, no o comrcio internacional. Assim, no deve surpreender que, j em 833, quando o comrcio a longa distncia, em sua maior parte, ainda no existia, Lus, o Pio, na Alemanha, desse a um mosteiro permisso para cunhar moedas para um mercado j existente. A revivescncia do comrcio, no sculo XI, portanto, no foi o acontecimento crtico que lanou as bases do novo tipo medieval de cidades: como j mostrei, muitas novas fundaes urbanas antecedem quele fato, e novas provas poderiam ser acrescentadas (MUMFORD, 1998, p. 278 279).
Mas, voltando s questes que nortearam o debate sobre o Renascimento, h outros
fatos que precisam ser considerados, tais como as ambiguidades e imprecises que o termo e a
cronologia desse perodo comportam. Como conceber que uma cultura considerada extinta
possa retornar, como a fnix da mitologia, vida, com nimos e alegrias renovadas? O que
caracterizou, de fato, o Renascimento? Em que espao se desenvolveu originalmente? Qual
foi sua abrangncia social?
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Os historiadores divergem quanto aos limites cronolgicos do Renascimento. H
aqueles que o limitam ao sculo XII, como fez Le Goff e Mumford; outros, como Burckhardt,
Garin e Wolff, que preferiram circunscrev-lo aos sculos XIV e XVI. Mas h tambm
aqueles que o querem entre o XV e o XVII, como preferiu Braudel; ou mesmo entre o XIII e