DEUS MENDIGO
TEOGRAFIAS
L u i s C r u z V i l l a l o b o s
H E B E L
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DEUS MENDIGO
TEOGRAFIAS
L u i s C r u z V i l l a l o b o s
HEBEL Ediciones Arte-Sana|Poesía
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DEUS MENDIGO | TEOGRAFIAS
© Luis Cruz Villalobos
Poemario perteneciente a la obra:
Poesía Toda 1991-2011
© Luis Cruz Villalobos, 2012.
Registro de Propiedad Intelectual N° 213.820.
Santiago de Chile.
Traducción al portugués:
Flavia Romera y Jorge Barro.
Impreso en Chile
© HEBEL Ediciones
Colección Arte-Sana|Poesía
Santiago de Chile, 2012.
www.benditapoesia.webs.com
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Dedicado ao Logos empobrecido;
A Enrique e a Carmen;
A J. Caputo y G. Vattimo;
E à memória de Facundo Cabral
recém assassinado.
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θεον ουδεις εωρακεν πωποτε μονογενης θεος
ο ων εις τον κολπον του πατρος εκεινος εξηγησατο
João 1:18
A PORTA DA CATEDRAL
Nas portas das catedrais
Juntam-se os loucos e os pobres
Estiram-se no chão
Nos degraus de mármore milenário
Cheiram mal
Vêem-se horríveis com seus trapos
Espantam aos devotos dignos
Que nem ousam olhar a tais sujeitos
E passam de longe com piedade nos olhos
Conta a lenda
Que um dia Deus se disfarçou de mendigo
E se recostou junto à porta principal
Da catedral mais esplendorosa
Contam que com o passar dos dias e das noites
Desse mês invernal
Deus morreu de frio e de fome
Também contam alguns
Que isso ocorreu
Que não é simples lenda
Desde então as catedrais estão vazias
Deus ressuscitado foi refugiar-se em outra parte
Contam que vive feliz por esses dias
Em uma tenda de ciganos perto de um porto.
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DEUS MENDIGO
Este Deus verdadeiro
Absoluta substância única
(tudo mais é robusto porvir)
É muito divertido
É um apaixonado pela vida
E pelos sorrisos simples
Aclaremos que é sério também
Pois a vida é dolorosa
Por etimológica definição
Em um desses lúdicos tropeços
Nosso Senhor do céu e da terra
Vestiu-se de mendigo
Elegendo-o como seu traje predileto
E para o cúmulo da ironia
Sempre leva consigo
Um texto de Mark Twain
Como sua Bíblia sacra santa
O príncipe e o mendigo!
Este é o texto sagrado!
Costuma gritar pelas ruas
Levantando o velho texto
Com sua mão tremula
Arrependam-se príncipes e princesas!
De vossa vida de mendigos!
Grita a boca de jarra
E o povo o olha e sorri
A esquizofrenia é engraçada
Quando não a tenho eu mesmo
Ou um familiar que se ama
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O Deus mendigo
Perambula pregando pelas praças
E costuma descansar de suas pregações
Dando seu pão às pombas
Em profundo e litúrgico silencio.
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O DEUS-PARDAL
Se Deus existisse
Nada mudaria
Dizia Sartre
Desde sua estrábica perspectiva
Mas está claro
Que o deus platônico
Ou o aristotélico
Ou o não-deus do príncipe Gautama
Ou o Logos estóico
Ou o de Spinoza
Enfim
Nada poderiam mudar
Como o deus deísta
Relojoeiro louco
Falante distante
Impotente por definição
Apático por essência suprema
Esse Deus
Nada
Zero a esquerda
Definitivamente
Sartre estava certo
Zero aporte
Um Deus frio e calculista
Impávido
Nada
Mas não me poderão negar jamais
Que o Deus-pardal
O Deus empobrecido
O Deus apaixonado por sua obra de arte
O Deus louco por amor
O Deus kamikase
Este e só este Deus
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Muda tudo
Tudo deixa em desconstrução
Como os dançarinos átomos.
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DEUS ENFERMO
Um dia Deus se enfermou de câncer
Começou a emagrecer
Rapidamente
Olheiras
Voz pastosa
E ninguém o visitava
Na sala de hospital público
Essa sala fria e alta
Com camas metálicas
De um branco que algum dia o foi
Deus olhava
A seus companheiros de sala
Todos enfermos do mesmo inferno
Todos longe
Perto da morte
Cheios de dores
Como ele
Mas em sua maioria acompanhados
Deus por sua vez
Só
Em uma ocasião
Despertou justo à meia noite
E como nunca
Pensou imediatamente
Na morte
Sua morte
Mas não a redentora
Não morte simbólica
Não morte mítica nem cósmica
Senão uma morte
Como dessas que abundam
Uma morte solitária
Fria
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Triste e vazia
Uma morte absurda
Tragou saliva
Olhou pela janela
E viu um pomar florescido
Fechou os olhos
Respirou profundo
E chorou.
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VISITA AO SENHOR
Um dia triste
Brigado com minha doce mulher
Cheio de uma amargura
Que não podia esconder-se
Fui a refugiar-me
No lar do Senhor
Vivia por aqueles tempos
Em um edifício antigo
Perto do Parque Florestal
Seu apartamento era simples
Mesa
Dois sofás
Três cadeiras
Oito quadros de óleo
Vários livreiros
Discos antigos e novos
Enfim
Um lugar normal
Claro e cálido
Como tem que ser
A casa de um amigo de verdade
Ai estava eu
Com umas quantas lágrimas
A ponto de escapar
Subindo o elevador veterano
Piso sete
Porta setenta e sete
E eu tocando sua campainha
Ele abre
Olá
Brigou com ela
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Diz lendo meus olhos
Sim
Respondo em silêncio
Entra
Trago-te um café
Sentamos
Silêncio
Silêncio
Meu e d´Ele
Silêncios que se juntam
E se compreendem
Logo se põe de pé
Passa sua mão pelo meu ombro
E me diz
Deixo-te de dono de casa
Pois devo sair para um encontro
Então fico só
Olhando o entardecer
De perfeita e móvel aquarela
Pelo balcão
Em profunda paz.
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A ESPÍRITO DE DEUS A todas elas
A Espírito de Deus
É sensível e terna
Como um sopro
Alento delicado
É como uma donzela
Que se transforma em beija-flor
E se posa no ar
Para beijar as flores
E deter-se sobre as águas
Para criar a vida
No início dos tempos
A Espírito de Deus
Feminina e doce
Como mãe e avó
Foi-se a viver
No coração das crianças
Também no pão
Na geléia de amora
E na água das vertentes
A Espírito de Deus
Um dia recordo haver-la visto
Como branca pomba
Empapada pela chuva
Na cornija do antigo templo
Desconsolada
Tremendo de inverno
Ao ver ao longe
No monte da caveira
Ao seu amado construtor
Jovem robusto e claro
Morrendo a morte
De todos os malditos e condenados
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INALANDO ACETONA Às crianças e jovens do porto
Era de noite
Às portas do mercado
Do malcheiroso porto
E ai se foi a dormir
Deus onipotente
Criador do céu e da terra
Curiosamente ninguém o desconheceu
E deixaram-no um espaço
No meio dos corpos
Úmidos e sujos
Essa noite foi especial
As crianças dormiam tranqüilas
Sem frio
Sem fome
E a acetona não teve a ver
Não foi obra de sua magia
Mas Deus essa noite
Sobressaltou-se com pena e pudor
De frio e de fome
Inclusive descobriram-no inalando
Aquela substância milagrosa
Que o distanciou da miséria.
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DEUS ATEU Em memória de A. Schopenhauer
Um dia
Nublado e frio
Deus se fez ateu
Não creu mais
Negou-se a confiar
Na vida de além-mundo
Na esperança eterna
No amor universal
Deus sem Deus
Caminhava cabisbaixo
Pelas ruas da urbe
Parecia um mortal qualquer
E começou a emagrecer
Seu coração se tornou fel
E deixou de falar
Deixou de sorrir às crianças
Ali ficou
Um dia qualquer
Depois de vários anos
Sentado em um parque
Olhando seus sapatos
Ruminando solidões
Com seu abrigo negro
Suas mãos nos bolsos
Em silêncio
E chegou o guarda do parque
Pensando que era um mendigo
E o Senhor
Que faz aqui
O disse inquiridoramente
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Deus lentamente
Levantando a vista
O olha desde o fundo
É exatamente
O que me tenho perguntado
Já por vários meses
Responde Deus sem Deus
Quase morto de vergonha.
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VELHO DEUS
Deus
Misteriosa e inexplicavelmente
Considerando sua excelsa natureza
Um dia se fez velho
Não podia mastigar bem
Já não controlava o esfíncter
Começou a esquecer as coisas
E a repetir as mesmas histórias
Seus filhos e filhas
Puseram-se seriamente de acordo
E levaram-no a um lar
Onde o cuidariam bem
E ali ficou Deus
Esquecido
Hoje o podem ver conversar
Com seus amigos
Que às vezes andam por outros mundos
Baixo as altas doses de benzodiazepinas
E costuma repetir suas aventuras
De como esculpiu a seu querido Adão
Como surgiu da
Como dividiu o mar vermelho
Como multiplicou os pães
Como deixou vazia a tumba
E de como um dia próximo voltará em glória
Fazendo voar pelos ares
Lugares como esses
Onde o foram a deixar
Aqueles e aquelas que ele tanto amava.
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DEUS VERMELHO À Patrícia
Nesses dias estranhos
De supor e de ilusões
Deus decidiu somar-se
Às filas da vermelha revolução
Era estranho n’Ele
Apoiar uma causa tão dura
Especialmente uma causa
Onde se o considera ausente
Mas ali estava
Um a mais nas milícias
Que lutaria pelo povo
Até que o povo
Fosse o que sempre devia ser
Seu próprio dono
Livre e soberano
Recordou
Para motivar-se
Esses parágrafos de São Lucas
Onde descrevia a primeira comunidade
De nazarenos em Jerusalém
Como irmãos e irmãs
Que vendiam todo o seu
Pessoal
Privado
Para fazer nosso
De todos e cada um
E encontrou sentido
Ao seu gesto de utópica decisão
Ali estava Deus
Sendo adestrado
Por esses jovens sonhadores
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Que haviam chegado da ilha
E manejavam ao dedo
Rifles e fuzis
Bombas e explosivos
Enfim
Ferramentas de mudança
Recursos para a vermelha transformação
Deus tinha dúvidas
Em especial
Quando aprendeu a usar
Aquelas curvas facas
De fio sem igual
Essas deviam dar uma veloz saudação
Pelas gargantas dos infelizes
E pronto
Como quem diz basta
O treinamento foi completo
Aprendeu a esquecer os nomes
E os números
Fez-se especialista em amnésia
Para resguardar os companheiros
Mas uma noite
A mais escura de todas
Enquanto Deus meditava em silêncio
Soldados vestidos de guerra
Capturaram-no em sua casa
E levaram-no cego
Às salas desconhecidas
Onde conheceu a morte de muitos
Onde aprendeu de golpes
O rosto mais macabro dos homens
Onde soube que muitos daqueles
Que ele havia criado para o amor
Não eram mais que demônios encarnados
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Bestas sem consciência
Que arrancavam palavras
Com a violência mais especializada e grosseira
A mais barata e sinistra
Deus chorou
Nunca o haviam feito algo desse modo
Chorou de medo
De vergonha
De raiva
De fome e de sede
De asfixia repetida
De espasmos elétricos
De pudor violado
De silêncio fiel e viril
Deus
Vermelho
Ensangüentado
Sonhador
Equivocado ou não
Não importa
Quem sabe onde ficou
Não houve lápide
Não houve tumba
Foi um desaparecido.
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TAXISTA Ao Sr. Manuel
Por um tempo
Um par de anos
O Senhor todo poderoso
Criador dos céus
Tomou o oficio de taxista
Costumava contar histórias
Aos estressados passageiros
Perguntava sobre a atualidade
E cobrava o justo
Talvez um pouco menos
Pois sabia daquele costume
Das grandes urbes
Do fique com o troco
Assim Deus
Salvou muitas vidas
Pois cada dia
Deixava uma semente
Nos corações de seus passageiros
Quem respondiam
Em geral
Com um surpreso sorriso
De gratidão
Ante o obsequio inefável
Daquele lapso de misteriosa paz.
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ESCRITÓRIO E DEMISSÃO
Deus trabalhava em um escritório do centro
Cubículo pequeno
Com um ar acondicionado
Que nunca funcionou
Preparava café para o chefe
Corria de lá para cá
Toda a afanada manhã
De banco em banco
E em ocasiões se sentava na praça
Olhava as pombas
Comia um sanduiche
Um suco de caixinha
E seguia sua sina pulando o almoço
À volta pra casa pela tarde
Para o Senhor perene
Era igual ao traslado de madrugada
Hora e meia
Transbordos de ônibus-metrô-ônibus
Apertões e empurrões
Pouco ar
Sonolência
Deus chegava cansado
Fatigado das tarefas
Ligava a TV
Assistia algo das noticias
E dormia no sofá
Para logo despertar com cãibras
E ir para sua cama
Essa manhã foi tudo igual
Para nosso Senhor
Despertador insistente
Ducha
Pão com queijo
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Café forte
E logo ônibus-metrô-ônibus
Corrida de quatro quadras
Elevador cheio para o décimo andar
Cartão marcado
E já
Mas essa vez
Sobre sua mesa
Um envelope
Por necessidades da empresa
Prescindimos de seus serviços
Passe para buscar seus papéis
Diante de cinco anos
Que terminavam de bruços
Deus se sentiu mal
Muito mal
Nunca lhe havia acontecido
Demitido
Pensou
Saiu à rua
Com todo o tempo livre pela frente
Com todo o tempo inútil
Com todo o tempo vazio
Comprou um jornal
Para ver um trabalho
Mas era complicado
Nosso onipotente Deus
Não tinha estudos terminados
Assim a busca durou dias
Semanas e meses
O pobre não agüentava mais
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Passou pela sua mente
Começar a beber
Saltar de uma ponte
Mas não
Como não ia aparecer um trabalho
Um simples trabalho
Para ele que tinha a disposição
E a necessidade
Mas nada
Faz um ano e três meses
Que Deus está sem trabalho
E as contam se acumulam
O crédito do instituto
A água
A luz
Deus ex-administrativo
Agora desempregado
Olha o calendário
E lhe parece infinito
Para Ele
Que criou o infinito.
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DEUS ILEGAL Aos milhões de indocumentados
Como todos sabem
Nosso Deus justo e amoroso
É estrangeiro
No planetário sentido da palavra
Uma vez lhe pediram seus documentos
E a policia não ficou satisfeita
Além disso, seu sotaque
Seu tom de pele
Seu ar suspeito
Tudo indicava que teria que ir
Nem para turista seria aceito
Tomaram-lhe de solapa
Revistaram-lhe até as cuecas
E deixaram-no na fronteira
Humilhado
Partiu Deus a buscar outro lugar
Mas a história se repetiu
Este ilegal de merda
Que faz aqui
Veio a roubar-nos
A ocupar nossos trabalhos
Que se vá esse maldito
E de fronteira em fronteira
O Deus único
Criador da terra e dos mares
Indocumentado
Partia a procurar um lar
Mas nada
Era estrangeiro em todas as partes
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Por último
Simplesmente decidiu
Usar caminhos fronteiriços ocultos
E viver na clandestinidade.
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DEUS DOWN Ao sonho de Cristian A.
Deus
Um dia apareceu pelas ruas
Com um rosto especial
A inocência era a aureola de seu rosto
E a fria abstração se distanciou de sua mente
Deus Down
Alegre
Cândido
Criança
Amor
E carinho encarnada
Muitos pensaram que era mais um outro
Desses meninos
Que o destino havia marcado
Com essa dolorosa trissomia do par 21
Más não
Era Deus
Deus mesmo
Diminuído em onisciência
Mas aumentado em simplicidade
E em espontâneo beijar
O Mestre
Já não tinha resposta às perguntas
Já não discutiria com Nicodemos
Nem com Gamaliel
Com Hegel
Nem com Nietzsche
Simplesmente sorriria
E cantaria sua canção breve
Daria um aplauso
E seguiria as borboletas
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Deus Down
Cheio de amor para semear
Cheio de instante
Aqui e agora
Para sempre.
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O “DEUS” GUERRA Às crianças do oriente médio
Enquanto Deus
O único e verdadeiro
Vestia-se de criança
Mefistófeles colocou seu traje de neon
E foi a seduzir pela terra
Dedicou-se como sempre
Aos reis do momento
E com suas comidas de poder e glória
Instaurou a guerra
Multitudinaria
Infernal
Insuportavelmente memorável
E Deus
Ali estava
Vestido de criança
Chorando junto aos outros
Enquanto soava a sirene
Dos bombardeios
Contam que estava em um refúgio
Quando os verdugos libertários
Lançaram o míssil exato
Justo pela chaminé
(logo se elogiariam a si mesmos por tanta pontaria)
E fizeram voar em pedaços os corpos
De todos os meninos e meninas
Que aquele dia
Ocultavam-se ali do inferno
E que não entendiam
Nem entenderão pela eternidade toda guerra.
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FILHA – MÃE – SOLTEIRA
Deus teve uma filha
Que se engravidou
Sendo solteira
O Senhor se alegrou diante da notícia
Pelo milagre da vida
Sempre dom profundo
Mas também se agarrou a cabeça
Com suas duas mãos gastadas
Pensando onde foi que havia errado
Minha pequena
Jovenzinha de tão só quinze
Como foi possível
Perguntava-se e a olhava de longe
No que falhei
Seguia se perguntando
Dormia de noite
Durante os meses da gravidez
Pensando em seu neto
(que já sabia o nome)
E o imaginava correndo
Indo com ele ao estádio
Ou empinando pipa no parque
No entanto todas as manhãs
Ao despertar descobria
Cada dia com menos surpresa
Que seu travesseiro
Estava molhado.
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DEUS DEFICIENTE A Carla
Ninguém sabe como
Um dia Deus apareceu em cadeira de rodas
Alguns pensaram que era uma brincadeira
Que não era possível
Que Deus andasse assim
Mas ai estava
Com um dano a nível lombar irreversível
Era difícil para muitos
Seguir crendo n’Ele
O Todo-poderoso
O - responde - desejos
Milagroso por definição
Nesse estado
Mas a Ele não lhe importou
E ai estava
Com suas pernas sem sensibilidade
Necessitando que o ajudassem
A subir escadas
Ao se instalar nos ônibus
Enfim
Um Deus deficiente
Deus sorria
Apesar de seu estado
E todos começaram a duvidar de seu juízo
De fato várias devotas
Deixaram de acender suas velas
E outras se mudaram a seitas prometedoras
Mas ai Deus
Com seu rosto sorridente
Com sua bela atitude de esperança
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Saia cada manhã a enfrentar a jornada
Que dia mais lindo!
Ajuda-me a atravessar rua, por favor
Eram suas primeiras palavras
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ÓRFÃO E VIÚVA A Ernesto Cardenal, por exemplo
O mesmo que fez dançar
O primeiro átomo de hidrogênio
E que sabe o número de galáxias
Costuma visitar os órfãos
E as viúvas
De noite
Sussurra- lhes uma canção
No ouvido
Beija-lhes a testa
E se vai triste
Desejando fazer-se carne
Fazer-se pai-mãe palpável
Fazer-se esposo-esposa visível
Mas já não pode
É outro o projeto
Por isso
Parte fugaz
Como vento espectral
A sussurrar a mesma toada
Ao ouvido dos que o tem
Um amor extremista
Indiscriminado
Fundo
E que estão e estiveram dispostos
A serem os pais-mães-esposos-esposas
Dos desolados da terra
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A PERDA A Maxy
Contam que muitos anos atrás
Deus vivia tranquilamente
Com sua esposa e seu filho pequeno
E um dia qualquer
Seu filhote amanheceu muito enfermo
Levaram-no ao hospital público mais próximo
Em um taxi que pagaram
Com notas e moedas
Que não lhes sobraram
E o deixaram nas mãos de médicos
Passaram as horas
E Deus ansioso e cansado
Olhava o relógio na parede
Médicos e enfermeiros corriam
De lá para cá
Daqui pra lá
Deus continuava ali
Mordendo as unhas
Junto a sua esposa
Sem saber o que pensar
Finalmente um médico aparece
Pela porta da UTI
E com voz séria e contida
Anuncia-lhes
Como explosão estrelar
(supernova de dor)
A morte de seu filho
Seu amado
Deus abraça a sua esposa
E ambos se aferram um ao outro
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Sabendo ser o único que tem
E entre soluços e silêncio
Buscam consolo
Até hoje.
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SUA HORA Al joven albañil de Nazaret
I. Prelúdio
E ai estava Deus
O haviam despido
Vergonha do Cosmos
Despido como um menino
Logo lhe puseram em cima
Um manto sujo
Como de rei do sarcasmo
Deus despido
Deus vestido de piada
E recém começava
A mais profunda tortura
O escárnio sideral
Coroa de espinhos
Do lixo dos campos
De material desprezado
Que agora abraçava a cabeça
Do Soberano Criador
Despido e revestido de humilhação
E um cetro
Como rei digno de levar esse nome
Não teria seu próprio cetro?
Para Ele um pedaço de pau enfarpado
Um pau seco e encurvado
Para sua destra do Rei-miséria
Agora cospem em sua face
| - 40
O sangue se dilui
E desce até sua barba e ai se confunde
Meu Deus
Despido e recoberto de escárnio
Coroado de dor e com cetro de pau
Agora choro e sangue e saliva de iníquos
Lava seu rosto de Deus
Que incompreensivelmente
Parece a encarnação da impotência e miséria
Mas não basta
É necessário fixar bem a coroa
E com seu mesmo cetro golpeiam sua cabeça
E os espinhos perfuram mais fundo
E a dor vermelha desce e cai ao chão
E caem com ele
As últimas gotas de dignidade que restavam
Ao nosso Deus
Ao nosso Criador Eterno
Ao Verbo feito carne
Carne de matadouro
Carne de sacrifício
Por tua vida e pela minha
II. Vitória frente a Tentação Final
Ao longe
E cada vez mais perto
O monte da caveira
Essa que sempre gratifica a morte
Gólgota de antes e de hoje e de amanhã
O monte da caveira esperava
E sem poucos tropeços
| - 41
Nosso Deus feito pó caminhava
Com o peso do mundo
Em seus ombros de Homem – Deus Filho
E a hora exata chegava
O Filho devia ser lançado
Para que atraísse a todos com seu olhar
Com sua cruz reconciliadora
Do céu e a terra
Ali estava o Senhor
O Kürios absoluto
Novamente nu
Mas esta vez ninguém cobriria seu corpo
Nem por piada nem por compaixão
Despido
Com a vergonha do Universo na pele
E com sua coroa de espinhos
Como única indumentária
E começou a chegar a seu ouvido
Assim como tantas vezes
Mas agora a voz se fazia potente
Como coro infinito
Multidão polifônica que gritava
Não morras!
Se tu és o Rei
O Cristo
O Filho de Deus
Não morras!
E Satã em seu interior gemia
A súplica como rei tentador
Não morras, por favor!
Filho do Altíssimo não morras
| - 42
Que se morres me mata
Que se morres eu morro para sempre
E deixo meu reinado
Não morras Deus!
Jesus misericordioso tem piedade de Ti!
E não morras pelo amor de Deus
Se salvaste a outros, salva-te a Ti mesmo
Se curaste a outros, cura-te a Ti mesmo
E não morras
Satã com mil vozes
Cantam e entoam o hino
Da tentação final
Não morras!
Mas Cristo vence
Jesus
Com o coração destroçado
Pela ira do Pai contra todo o mau
Com o rosto contorcido
Pela dor do abandono
Pela dor da negação
De Deus a si mesmo
Grita por ti e por mim
Desde o profundo inferno da alma
Deus meu, Deus meu
Porque me desamparaste!
E no templo de Jerusalém
Momentos depois
Escuta-se a resposta do Pai
Ao romper o véu do templo
Que simboliza a separação
De Deus com os homens
O véu se rasga de cima a baixo
| - 43
E Deus canta
Abandonei-te para que todos cheguem a mim
Por meio de Ti
Filho amado
Carreguei em Ti
-Em nós-
O pecado deles
Para assim recebê-los e acolhê-los e amá-los
O Filho venceu com sua morte
Pagou nossa dívida
Cobriu o abismo
Triunfou sobre sua última tentação
Morrendo
Como a semente que cai na terra
Para logo renascer
E trazer muito fruto de vida nova e eterna
Para todos os que o acolhem
Com fé e esperança.
F I M
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POSLÚDIOS
Como é possível, logo de Auschwitz, a fé em Deus e o ser
homem? Não sei. No entanto me ajuda a história que
conta E. Wiesel em seu livro sobre Auschwitz (Night). Dois
homens judeus e um menino foram enforcados
intencionalmente na presença de todos os presos. Os
homens morreram em seguida. Os tormentos do menino
duraram um longo tempo. “Então gritou alguém detrás
de mim: Onde está Deus? Eu calei. Ao cabo de meia
hora voltou a gritar: Onde está Deus? E uma voz dentro
de mim respondeu: Onde está Deus? Está ali pendurado
na forca.”
Jüngen Moltmann
Meu sofrimento e o dos demais são e permanecem sendo
um mistério. A dor de um inocente é um escândalo. É
inútil solucioná-lo com a chave da lógica. Por favor, não
maltratemos o mistério. Evitemos nossas pretensões de
explicações lógicas. Alem disso, já encontrei a resposta.
Não é uma resposta convincente intelectualmente e nem
sequer exaustiva desde um ponto de vista racional. Algo
melhor. Abro o Evangelho e me encontro com Cristo ante
o sepulcro de seu amigo Lázaro. Está rodeado por uma
multidão que mastiga seus próprios por quês: Não podia
ele, que abriu os olhos do cego, fazer que não morresse
este? (João 11:37). Encontramo-nos diante do estúpido
dilema de sempre: Ou Deus não pode impedir o mal, ou
então não é onipotente, ou é que não quer, e então não
é bom. Cristo não responde diretamente a pergunta.
Responde com duas palavras: “Jesus chorou”.
Sobra-me com esta imagem: o rosto de Deus sulcado
pelas lágrimas. Já não me interessam os doutos volumes
sobre o problema do sofrimento. Basta-me com esta
noticia. Deus não quer os sofrimentos de suas criaturas.
Deus não aceita tranquilamente a dor humana.
Deus chora. Basta-me isso. Agora posso expressar-te meu
agradecimento por essas lágrimas mais convincentes que
todas as explicações.
Alessandro Pronzato
| - 45
Era desprezado e o mais indigno entre os homens, homem
de dores, experimentado nos trabalhos e, como um de
quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e
não fizemos dele caso algum. Verdadeiramente, ele
tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores
levou sobre si; e nós o reputamos por aflito, ferido de Deus
e oprimido. Mas ele foi ferido pelas nossas transgressões e
moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a
paz estava sobre ele, e, pelas suas pisaduras, fomos
sarados. Todos nós andamos desgarrados como ovelhas;
cada um se desviava pelo seu caminho, mas o Senhor fez
cair sobre ele a iniquidade de nós todos. Ele foi oprimido,
mas não abriu a boca; como um cordeiro, foi levado ao
matadouro e, como a ovelha muda perante os seus
tosquiadores, ele não abriu a boca. Da opressão e do
juízo foi tirado; e quem contará o tempo da sua vida?
Porquanto foi cortado da terra dos viventes e pela
transgressão do meu povo foi ele atingido. E puseram a
sua sepultura com os ímpios e com o rico, na sua morte;
porquanto nunca fez injustiça, nem houve engano na sua
boca. Todavia, ao Senhor agradou o moê-lo, fazendo-o
enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do
pecado, verá a sua posteridade, prolongará os dias, e o
bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. O trabalho
da sua alma ele verá e ficará satisfeito; com o seu
conhecimento, o meu servo, o justo, justificará a muitos,
porque as iniquidades deles levará sobre si. Pelo que lhe
darei a parte de muitos, e, com os poderosos, repartirá
ele o despojo; porquanto derramou a sua alma na morte
e foi contado com os transgressores; mas ele levou sobre
si o pecado de muitos e pelos transgressores intercedeu.
Isaías 53:3-12
De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve
também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de Deus,
não teve por usurpação ser igual a Deus, mas esvaziou-se
a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se
semelhante aos homens; e, achado na forma de homem,
humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte, e
morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou
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soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo
nome; para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho
dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e
toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para
glória de Deus Pai.
Filipenses 2:5-11
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