I 8 i
O A N T I G O R E I N O D E K A N D R A
Os kandrianos eram tão antigos quanto o próprio Reino.
Seu código de leis rígidas mas benevolentes imperava em
todo o território, até nos pontos mais remotos. Era
diferente de todos os códigos conhecidos, pois não
dependia, para ser aplicado e seguido, nem de uma
burocracia gigantesca nem de redes de espionagem nem de
guarnições armadas espalhadas por todas as vilas e
cidades. O poder do Reino de Kandra emanava do controle
que os kandrianos tinham sobre o Mana, as forças
mágicas.
O S P O D E R E S M Á G I C O S D O S K A N D R I A N O S
Os kandrianos eram mestres da arte da magia – todos eles,
mesmo os mais simplórios, eram capazes de transformar
água em cerveja e sabiam como acabar com verrugas, até
as mais feias. Acreditava-se que, juntos, os Five Wizards of
Kandra (Cinco Magos de Kandra) tinham poder suficiente
para destruir todo o universo. E acreditava-se também que,
pelo menos em parte, esse poder brotava de um objeto
secreto, muito bem guardado, conhecido como Heart of
Thesh (Coração de Thesh). Dizia-se que quem possuísse o
Coração de Thesh disporia de uma força descomunal e
D o i s : C R Ô N I C A S D E D A R I E NE M T E M P O S I M E M O R I A I S , H Á M I L Ê N I O S , O M U N D O D E D A R I E N
E R A U M S Ó : O R E I N O D E K A N D R A .
I 9 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
devastadora, contra a qual não havia defesa ou proteção
possíveis.
Felizmente, os Cinco Magos de Kandra eram, além de
poderosos, muito sábios. Embora soubessem,
simultaneamente, de cada vez que seu código – chamado
Laws of Life (Leis da Vida) – era desrespeitado e, embora
todas as infrações fossem punidas, os magos jamais
abusavam de seu poder e posição, pois sabiam que
qualquer abuso que violasse as leis naturais inerentes à
manipulação do Mana levaria ao desastre e à tragédia.
Assim, se seu imenso poder provocava neles algum prazer
pessoal ou era motivo de alegria, esses sentimentos eram
logo ofuscados pela consciência de sua enorme
responsabilidade.
Os magos de Kandra praticavam suas artes mágicas em
lugares especiais, sagrados, que acentuavam o poder da
magia. Esses locais, demarcados por um círculo de pedras
em pé, continham provavelmente extraordinárias
concentrações de Mana. O que se sabe, sem sombra de
dúvida, é que até hoje as propriedades mágicas desses
locais mantêm-se intactas. Às vezes, quando os magos
trabalhavam com concentrações muito grandes de Mana,
gerava-se um mineral muito raro, conhecido como
mogrito, substância que dava poderes mágicos aos seres
humanos – mesmo aos mais humildes – e os tornava
imortais.
A S C I N C O R E L Í Q U I A S
Não demorou muito para que os kandrianos percebessem
o valor do mogrito. As cinco rochas de mogrito
encontradas foram reunidas, trabalhadas e transformadas
em cinco peças – conhecidas como as Cinco Relíquias: um
colar, um bracelete, um cetro, um anel e... um trono.
Cada uma dessas Relíquias simbolizava um dos quatro
elementos – terra, água, ar e fogo. A quinta Relíquia era
tida como um amálgama desses quatro elementos e
formava uma única entidade: o mundo. Assim, o colar com
a pedra de mogrito – chamado Stone of Darien (Rocha de
Darien) – simbolizava a terra; o bracelete com outra pedra
– chamado Soul of Kandra (Alma de Kandra) – simbolizava
o ar. O cetro, encimado com a pedra chamada Angvir’s
Flame (Chama de Angvir), simbolizava o fogo; e o anel,
I 9 i
I 1 0 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
cuja pedra era um fragmento pequeno mas incrivelmente
puro de mogrito, chamado Macha’s Tear (Lágrima de
Masha), simbolizava a água.
A maior das Relíquias de mogrito, símbolo da
indivisibilidade do mundo, ficou conhecida como Modron’s
Eye (Olho de Modron). A pedra de mogrito foi incrustada
no espaldar do Throne of Ludd (Trono de Ludd) –
imponente peça esculpida em rocha-negra, abundante em
Darien e resistente como aço.
As Cinco Relíquias ficaram sob a guarda dos Cinco
Magos de Kandra. Durante um ano, cada um dos magos era
responsável por uma das Relíquias. Ao final do ano, os
magos trocavam as Relíquias entre eles, prática que foi
adotada para que todos tivessem sempre em mente que
não eram proprietários, mas meros guardiães, das Relíquias.
O D E C L Í N I O D A C I V I L I Z A Ç Ã O K A N D R I A N A
Os kandrianos imaginavam que, sob a guarda dos magos,
as Relíquias estariam bem resguardadas e protegidas para
sempre. Infelizmente, porém, eles estavam enganados!
Com o tempo, os magos se deram conta de que, com
uma pedra de mogrito, cada um recebia muito mais do que
poderes mágicos. O mogrito lhes dava outras coisas:
ficaram imunes a todas as doenças, seus ferimentos
cicatrizavam em instantes e tinham vida bem mais longa.
Os magos descobriram que as pedras de mogrito
incrustadas nas Cinco Relíquias aumentavam muito os
seus poderes. O Olho de Modron, em particular, tornava
seu proprietário – ou guardião – praticamente imortal.
Ora, o princípio de unidade, que mantinha coesos os Cinco
Magos era, precisamente, a absoluta igualdade entre eles.
Ao descobrirem os poderes mágicos das Relíquias, os
magos também descobriram que o guardião do trono no
qual estava incrustado o Olho de Modron teria, no período
em que a Relíquia estivesse sob sua guarda, mais poder que
os demais.
Como se não bastasse isso, nem todos os kandrianos
estavam satisfeitos com a extraordinária longevidade dos
magos. O ressentimento cresceu lenta mas continuamente.
De modo geral, os kandrianos tinham vida longa – um
kandriano comum tinha uma expectativa de vida de bem
mais de 100 anos. Mas passadas duas gerações de
I 1 1 i
kandrianos, sempre com os mesmos Cinco Magos a
governar o Reino, o mal-estar estabeleceu-se e começaram
as indagações.
Os cinco candidatos à sucessão dos magos interrogavam
quase abertamente os velhos regentes. O treinamento dos
candidatos, escolhidos dentre os kandrianos mais
talentosos, demorava 36 anos. Era um treino duro, nas
condições de isolamento quase absoluto em que viviam os
magos. Um grupo de candidatos sucumbiu, sem jamais ter
colocado em prática os conhecimentos tão duramente
aprendidos. Os candidatos à sucessão dos magos, aliás,
protestavam cada vez com mais veemência, muitas vezes
em público, e isso era um escândalo sem precedentes na
história de Kandra.
A Q U E D A D E K A N D R A
Nos bons tempos, os Cinco Magos saberiam
instantaneamente que seu povo não estava satisfeito. Teriam
corrigido os erros, punido os culpados – caso houvesse – e
tudo, em pouco tempo, teria voltado ao normal. Mas os
magos, então, já estavam mais e mais envolvidos na luta pelo
poder. Àquela altura, cada um já tinha uma Relíquia
preferida – ou ambicionada – e, de todas, a mais cobiçada
era o trono com o Olho de Modron.
A catástrofe final eclodiu de repente, sem aviso. Não há
documentos nem registros precisos sobre a causa direta do
trágico colapso do Reino de Kandra. Teria um dos magos
forçado um golpe de Estado, na luta pelo poder absoluto? Ou
um dos eternos candidatos, frustrado com a longa espera,
teria aplicado seus conhecimentos em alguma atividade
menos nobre, ou mesmo proibida?
Ninguém sabe e ninguém jamais saberá.
O D I A D O G R A N D E C A T A C L I S M O
A única prova que resta e que chegou até nós informa que
427 anos – precisamente! – depois de as Relíquias terem
sido postas sob a guarda dos Cinco Magos, Darien foi
atingida por um golpe fatal. Desastre! As leis naturais, de
um momento para outro, deixaram de prevalecer. Nas
fazendas, os animais incharam e explodiram, como se o
sangue em suas veias, repentinamente, se tornasse gasoso.
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
I 1 2 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
Homens e mulheres morreram numa espécie de
autoflagelação, com os corpos contorcidos e os ossos
partidos, dobrados por alguma força inexplicável, olhos
esgazeados, rostos desfigurados, crânios rebentados como
frutos apodrecidos. Na capital de Kandra, as árvores que
margeavam as grandes avenidas retorceram-se e se
racharam de alto a baixo, cuspindo uma seiva de visgo,
vapor e mau cheiro. Os mares e os lagos ferveram, os rios
secaram e sumiram em desfiladeiros profundos. As
montanhas ruíram e desapareceram na forma de planícies
de pedra e pó. Por fim, até o chão gemeu, um gemido de
morte e horror, e toda a terra de Darien foi sacudida por
um terrível terremoto.
O horror foi absoluto, mas breve: alguns instantes... e o
silêncio voltou a envolver o mundo torturado de Darien.
E do céu caiu uma chuva de sangue, por três noites e
três dias.
O R E N A S C I M E N T O D E D A R I E N
Por incrível que pareça, alguns resistiram e sobreviveram a
tudo – pobres testemunhas, enlouquecidas, que assistiram
ao cataclismo. Não sabiam por que nem como haviam sido
poupadas, mas também não se atreveram a investigar.
Imediatamente após a desgraça, Darien foi abençoado por
um período de bom tempo e bem-aventurança
inacreditáveis, que durou quase um século. Da terra
brotaram novas fontes de água cristalina; onde havia
desertos surgiram campos recobertos de grama verdejante
e macia; os pássaros voltaram a cantar e a fazer ninhos nas
árvores, outra vez cobertas de brotos.
Foi como se a natureza houvesse decidido acalantar o
mundo e curá-lo de todos os males. Aos poucos, os infelizes
sobreviventes da catástrofe reuniram-se novamente em clãs
e tribos. Mas, por mais distantes que vivessem uns dos
outros, mesmo que uns sequer soubessem da existência
dos demais, em todos esses pequenos núcleos de
civilização havia uma única crença, e todos partilhavam a
mesma postura: o mais profundo e absoluto horror por
tudo que lembrasse o tempo em que o mundo fora
dominado pelas artes mágicas. Qualquer palavra ou gesto
que fizesse lembrar o ‘tempo mágico’ da história de Kandra
era punido com extrema severidade.
I 1 3 i
Perdeu-se, assim, o enorme patrimônio de conhecimento
mágico que os kandrianos haviam acumulado. E, à medida
que os casebres formavam vilas, e as vilas viravam cidades,
os kandrianos desenvolveram uma nova fé: a certeza de
que tudo estava absolutamente perfeito. Se uma coisa era
de um certo jeito, aquele era o modo como ela tinha de ser,
indiscutivelmente, para sempre.
O N O V O D A R I E N
O renascimento de Darien durou milhares de anos. As
novas tribos que se formaram adotaram um novo
calendário, que começava no dia do Grande Cataclismo,
tomado como Dia Um. Por isso, sabemos hoje que Darien
recomeçou a cultivar a terra no final do Primeiro Milênio;
que no início do Segundo Milênio a flora e a fauna
ganharam uma grande diversidade de novas espécies; e
que, ao final do Terceiro Milênio, já haviam desaparecido
quase todas as cicatrizes deixadas no solo de Darien,
novamente recoberto de campos e florestas. Na metade do
Quarto Milênio, quase todas as tribos que habitavam o
território de Darien já haviam restabelecido contato. O
progresso voltou e muitas áreas de conhecimento voltaram
a ser exploradas, de tal modo que, em relativamente pouco
tempo, os fragmentos de saber de cada grupo de
kandrianos tornaram-se acessíveis a toda a população.
Uma área do saber, contudo, permaneceu intocada,
evidentemente aquela que mais preocupava a todos: a
magia kandriana. Para os criadores da nova civilização de
Darien, a magia era como uma Caixa de Pandora que
aniquilaria quantos se atrevessem a usá-la.
Naquela época, não eram necessárias leis que proibissem
atividades relacionadas à magia. Para a maioria da
população do novo Darien, admitir qualquer tipo de
interesse nas artes mágicas seria tão absurdo quanto, entre
nós, admitir algum tipo de interesse em, por exemplo,
assassinatos em série. Tudo parecia resolvido.
Até que surgiu Garacaius.
O M E N I N O D A F L O R E S T A
Era um dia especial: o último dia do Quarto Milênio. Pesco,
um pescador, conduzia seu barco junto à praia, numa costa
de vegetação fechada. Não era tarefa simples, porque um
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
I 1 4 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
denso nevoeiro descera sobre a água, e Pesco tinha de
desviar dos troncos que boiavam e, também, evitar os
juncos que brotavam junto à praia, na água mais rasa. Ele
tinha pressa porque a noite prometia muita festa para
comemorar a chegada do Novo Milênio, e a pressa foi a sua
perdição. O fundo do barco, de repente, bateu num tronco
parcialmente submerso, o barco saltou como um cavalo
assustado e Pesco caiu na água.
Por sorte estava no raso, a água mal chegava à cintura, o
que não o impediu de vociferar alguns palavrões. Depois de
tirar o excesso de água do chapéu, colocou-o de volta sobre
a careca e olhou em volta. A primeira coisa que percebeu
foi que os peixes estavam de volta à água, festejando a
inesperada liberdade. Pescara os peixes e os deixara vivos
porque era um homem bom, mas eles escaparam.“Eu
devia ter...” – ia recomeçar com os palavrões e os berros,
quando ouviu... um choro de bebê! De olhos arregalados,
tentava enxergar através da névoa. E ouviu outra vez: havia
um bebê por ali!
Deu alguns passos na água e aproximou-se, intrigado, de
uma árvore retorcida que avançava sobre a praia; nunca
vira árvore como aquela. O bebê tornou a chorar e Pesco foi
tomado pela sensação de que algo estava para acontecer.
Assustado, nem sentia a água escorrendo do chapéu e
molhando seu rosto. O ar estava parado. Impulsionado por
uma força incontrolável, o braço de Pesco agarrou um dos
galhos da árvore. Momentos depois, o pescador caminhava
em meio ao musgo e à grama, ferindo seus pés nos
espinhos espalhados pelo chão.
O bebê estava à sua frente. Quase tropeçou nele, ao passar
entre os ramos de um arbusto seco. Estava no centro de uma
pequena clareira, completamente nu, com uma bolsinha de
couro amarrada ao pé.
Com uma habilidade que ninguém esperaria daqueles
dedos calosos, Pesco desatou as tiras de couro e olhou o
conteúdo da pequena bolsa. E soltou-a, apavorado, com a
expressão de quem vira o rosto da morte. Num gesto rápido,
jogou a bolsinha na direção da floresta, com toda a força, o
mais longe que pôde. Aquelas sementinhas claras, macias...
aquilo era coisa de mágicos... só podia ser! O bebê tinha um
saco de sementes mágicas amarrado ao pé!
Pesco, ofegante, olhou em volta, à procura de algo que
I 1 5 i
pudesse usar como arma, um galho ou uma pedra. Pegou
um pedaço de madeira, respirou fundo para criar coragem
e aproximou-se do bebê.
Um bebê! Um menino... Pesco tinha nove filhos e mesmo
se aquela criança não trouxesse a marca do demônio, ele
não teria como alimentar mais uma boca. Mas... e se
achasse alguém para criá-lo? Não... que idéia! E a bolsa
com as sementes mágicas?!
Ele ergueu o pedaço de madeira, aproximou-se do
bebê... mas parou.
Um bebê... um bebê...
Com um grito de raiva, Pesco jogou a arma, que caiu
longe, entre as árvores, com um ruído seco. Não parou de
maldizer a sorte, um instante sequer, enquanto pegava o
bebê e o levava ao barco; e continuou a praguejar, durante
toda a viagem, até chegar em casa.
Pesco era conhecido por blasfemar demais. Por isso
pescava sozinho.
O H U M I L D E P E S C A D O R
Há registros de que no quinto dia do sexto mês do décimo
sexto ano do Quinto Milênio, um jovem chamado
Garacaius foi aprovado no exame final da Academia Ugarit
e saiu da famosa instituição de ensino seguido por uma
nuvem negra.
Antes da formatura, cada aluno tinha de apresentar um
ensaio sobre um tema extracurricular, de sua livre escolha.
O assunto, de fato, não era importante – o que interessava
aos professores era avaliar a capacidade do estudante de
expor suas idéias, argumentar logicamente e convencer os
interlocutores. Naquele ano, um dos ensaios premiados foi
“A alegria de voar: exame das relações entre insetos
domésticos selecionados e o pote de geléia de amora”, além
do sensacional “Histórias que meu pai (que é mudo) nunca
me contou: a aventura da carpintaria”. E o jovem Garacaius
ousou escrever um tratado sobre o ... Mana! O Mana e a
função da magia no mundo natural!
Para muitos, foi a prova que faltava de que o tal
Garacaius não merecia confiança. Para começar, todos
sabiam que a Academia só o recebera porque era um dos
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
I 1 6 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
protegidos do clã dos Leimar, que mandavam e
desmandavam em Ugarit. Verdade que o rapaz dizia
sempre que não pertencia àquele clã, sobretudo depois da
tensão entre os Leimar e os Balistan ter crescido tanto que
os grupos chegaram a se enfrentar em combate. A quem
lhe indagasse sobre suas origens, Garacaius dizia que
nascera numa aldeia de pescadores ao sul de Ugarit. Mas
alguns estudantes, que haviam visitado a aldeia à procura
de informações, descobriram que lá ninguém jamais
ouvira falar dele. Em resumo, mesmo antes de seu
polêmico trabalho de formatura, muita gente já tinha
motivos para suspeitar de Garacaius e, em toda a cidade,
não havia um único lugar onde ele pudesse sonhar em
conseguir emprego.
O rapaz, aliás, não pediu ajuda a ninguém. Deixou Ugarit
e partiu de volta à aldeia de pescadores onde acreditava ter
nascido. Seus ‘parentes’ do clã dos Leimar haviam contado
sobre um pescador muito humilde, que não tinha como
alimentar mais uma boca... E Garacaius, afinal, encontrou
Pesco na aldeia, já muito, muito velho, mas ainda
perfeitamente capaz de praguejar. Para tristeza do rapaz,
Pesco recusou-se a falar sobre o seu nascimento.
Como não tinha para onde ir, Garacaius decidiu ficar e
passou a pescar com Pesco – o primeiro homem a fazer tal
coisa! – e o velho começou a gostar de ter um
companheiro, principalmente porque o rapaz não
reclamava de seus maus modos e ajudava em algumas
tarefas que, com o tempo, iam tornando-se cada vez mais
difíceis. Melhor que tudo isso, contudo, foi que, em pouco
tempo, Pesco percebeu que o rapaz tinha talento... e isso o
divertia.
O B A R C O Q U E M U D O U D A R I E N
Pesco trabalhava com um barco de fundo chato, como
todos fabricados em Darien. O barco era excelente em
águas rasas e calmas e servia perfeitamente para os rios da
região. Mas uma chuva forte já significava perigo.
Depois de muita insistência, Pesco afinal concordou em
ajudar Garacaius a construir outro barco, de maior calado e
desenho revolucionário. Mais da metade do casco ficaria
abaixo da linha d’água. Pesco argumentou que, daquele
jeito, ficaria difícil de manobrar o barco, ele seria lento e,
I 1 7 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
pior, quem conseguiria fazê-lo parar?! E, além disso, com
tanto casco submerso, seria difícil de calafetá-lo. De nada
adiantaram os argumentos – Garacaius era mais teimoso
que mula empacada e, afinal, Pesco acabou cedendo.
No ano seguinte, ao começar a temporada de pesca, o
barco estava pronto. Para surpresa geral, era quase tão fácil
de manobrar quanto o modelo tradicional. Mais: como o
novo barco era muito mais estável que os modelos antigos,
podia-se usar vela mesmo em dias de vento mais forte. Não
demorou para que Pesco e Garacaius pudessem viajar para
mais longe e alcançar áreas de pesca até então inacessíveis.
Numa dessas viagens mais longas, afinal, Pesco contou a
Garacaius como o encontrou, ainda bebê, abandonado na
floresta. Entretanto, não se sabe com certeza se falou, ou
não, sobre a bolsinha mágica. O que se sabe, sim, é que
Pesco e Garacaius passaram a trazer cada vez mais peixe;
numa das viagens os dois pescaram mais peixe que todos
os outros pescadores da aldeia juntos.
Pela primeira vez em sua longa vida de labuta, Pesco
tinha dinheiro para passar os fins de semana no bar da
aldeia, bebendo como se cada garrafa fosse a última, como
se não houvesse dia seguinte, beliscando todas as moças
que passassem por ele. Certa noite, depois de muito beber,
o pobre Pesco voltava para casa. No caminho, tropeçou e
caiu num buraco, cheio de água de chuva. Más línguas
diziam que já estava morto ao cair na água.
As más línguas diziam também que Pesco, embriagado,
contara que Garacaius havia usado artifícios sobrenaturais
para encher as redes. Que os dois discutiram. Que houve
briga. O fato é que Pesco, o velho pescador, completamente
embriagado, morreu afogado em um palmo de água. E
Garacaius, de repente, virou suspeito. A família de Pesco o
acusou do crime, menos de um mês depois de tanto ter-lhe
agradecido por haver mudado a sorte de todos.
Uma semana após a morte de Pesco, Garacaius carregou
seus poucos pertences e partiu com seu barco em direção
ao Oeste, rumo ao alto-mar. Os pescadores que
remendavam as redes na ponta do píer levantavam a
cabeça, de tempos em tempos, para ver afastar-se aquela
vela solitária. A vela foi ficando cada vez menor, até
transformar-se num pequeno ponto branco no mar
dourado pelo crepúsculo e desaparecer.
I 1 8 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
A B O A S O R T E D O S M E R C A D O R E S
D E I R G I R O N
A ilha de Irgiron, localizada bem no centro de Darien,
sempre foi um importante centro comercial. Ao final do
Quinto Milênio, havia instalada em Irgiron uma dúzia de
grandes casas comerciais, que praticamente controlavam
todo o comércio intercontinental de Darien.
O único fator que limitava o sucesso dos mercadores de
Irgiron eram seus barcos, de fundo chato, como quase
todos naquele tempo, pesados e pouco ágeis. Resultado da
péssima tecnologia naval de que dispunham, os
mercadores, na prática, acabavam perdendo no mar quase
a mesma quantidade de bens que conseguiam comerciar.
Não surpreende, portanto, que a chegada de um jovem que
dizia haver inventado um barco realmente adequado
àqueles mares tenha despertado muito interesse.
Em pouco tempo, Garacaius conseguiu todo o patrocínio
e o apoio de que precisava para começar a construir um
grande barco, capaz de enfrentar os oceanos. O novo barco
ainda tinha remos – as naves de Darien sempre haviam
sido movidas pela força de braços humanos – mas
Garacaius acrescentou-lhe uma grande vela quadrada. A
estabilidade que o calado mais fundo dava ao barco –
como explicou aos mercadores – permitia usar a vela em
praticamente todas as condições de tempo, mesmo em
tempestades. Além disso, havia muito mais lugar para
armazenar carga. Garacaius dizia que seu barco tinha
capacidade para transportar uma quantidade de
mercadorias equivalente à que meia dúzia de barcos
tradicionais comportava. E, com ele, a mercadoria sempre
chegava ao destino.
Estava certo. Em poucos anos, a população de Irgiron
duplicou. Novas fábricas surgiam, praticamente, a cada
semana, e os mercadores de Irgiron engordavam e sentiam-
se cada vez mais felizes.
A A S C E N S Ã O D E G A R A C A I U S
Quanto a Garacaius, ele cuidara de estabelecer seus
próprios entrepostos de comércio nos principais portos
de Darien e, em pouco tempo, era um dos homens mais
ricos do Reino. Estabeleceu seu centro de operações em
Estoril, a maior cidade de Irgiron, e ali construiu uma
I 1 9 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
magnífica moradia. Essa casa abrigava, dizia-se, a maior
biblioteca de Darien.
Mas Garacaius não dava sinais de querer aproveitar os
frutos de tanto trabalho – com freqüência cada vez maior,
deixava os negócios entregues a empregados de confiança e
desaparecia durante meses, em expedições particulares.
Explorou assim todos os mares de Darien, e dizia-se que
havia chegado até terras estranhas e muito distantes, bem
além de Darien. Também explorou o interior do território
e, numa dessas viagens, chegou à cidade perdida de
Waleph, cujos habitantes viviam, há cinco mil anos,
separados de Darien.
A S E S T R A N H A S V I A G E N S D E G A R A C A I U S
Os homens que acompanhavam Garacaius em suas
expedições eram de pouca conversa. Mas, vez ou outra,
quando o alívio por ter voltado os fazia relaxar e soltava-
lhes a língua, eles falavam de coisas extraordinárias.
Falavam de cidades-fantasmas, com ruas pavimentadas
e casas de pedra, onde só viviam pássaros e outros animais
selvagens. Falavam de seres estranhos, meio homens, meio
animais, e de gente ainda agarrada à vida, mesmo depois
de seus olhos terem sido arrancados das órbitas e de sua
carne, apodrecida, soltar-se dos ossos. Os homens também
falavam de outros lugares – imensos círculos de pedra,
onde o chão brilhava com uma luz úmida e suave.
Mas já no dia seguinte, se alguém lhes pedisse que
explicassem melhor o que haviam visto, que contassem
outras coisas, os homens balançavam a cabeça e calavam-
se. Só havia uma coisa que nunca se cansavam de repetir e
diziam com alegria, a quem quer que perguntasse: que
Garacaius era um homem excepcional, em quem confiavam
plenamente, de corpo e alma. Mas bastava essa rara e
estranha referência ao mundo espiritual para fazer
estremecer os curiosos que, imediatamente, desistiam do
interrogatório.
A mais longa das expedições de Garacaius, que o levou
ao coração de Zhon, estendeu-se por quase dois anos. Ao
voltar, sua tripulação ganhara mais um membro: uma bela
mulher, cujos cabelos negros e pele muito morena faziam
forte contraste com a tez clara de Garacaius. Em tempos
normais, bastaria a chegada de Lasha, aquela deusa
I 2 0 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
morena, para gerar infindáveis comentários e despertar
olhares curiosos. Mas as coisas haviam mudado muito
entre a partida e a volta de Garacaius. Nada estava como
antes. Darien inteiro havia sido tocado pela chama da
guerra.
A G R A N D E G U E R R A C I V I L D E D A R I E N
Tudo começou em Taros, a terra que Garacaius deixara,
tantos anos antes, ao partir para tentar a sorte no mar.
Os clãs de Leimar e Balistan haviam passado por outro
período de conflitos mas, desta vez, a Casa de Ontinor
havia decidido intervir. Ontinor era ligada à Casa de
Aidenfel, na terra de Aramon, e na confusão que se seguiu,
a Casa de Buriash, também de Aramon, aproveitou para
invadir um território que há anos estava em disputa. Daí, a
guerra alastrou-se como fogo em campo seco.
Um ano mais tarde, todos os clãs e todas as Casas
Nobres de Darien estavam envolvidas em algum tipo de
hostilidade contra um ou vários inimigos. A rede de
comunicações que Garacaius havia tecido com seus barcos
serviu para disseminar a guerra por todos os portos.
Garacaius tentou manter-se neutro mas, naquelas
circunstâncias, a neutralidade era difícil, senão impossível.
Um mês depois de ele ter voltado, um de seus entrepostos
comerciais da ilha de Caora foi saqueado por soldados que
chegaram por mar e todos os habitantes da ilha foram
assassinados a golpes de espada. Garacaius organizou um
pequeno exército de voluntários para punir os saqueadores
e, quase sem perceber, acabou envolvido em meia dúzia de
confrontos armados contra diferentes facções.
A Grande Guerra Civil de Darien durou oito anos.
Durante os primeiros cinco, a guerra não chegou a se
disseminar: os confrontos não passavam de combates
rápidos, seguidos de curtos períodos de paz, novamente
interrompidos por batalhas, quase sempre violentas e
sangrentas.
O N A S C I M E N T O D E V E R U N A
Ao final do quinto ano de guerra, porém, as coisas
mudaram. As várias facções independentes, muitas das
quais se reuniam em torno de Casas Nobres, clãs e tribos
de Darien, finalmente organizaram-se em quatro grandes
I 2 1 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
grupos. Três desses grupos estavam decididos a continuar
em guerra até a morte. O quarto grupo – uma federação de
cidades-estado insulares – queria a paz imediata e pregava
que as diferenças fossem discutidas e resolvidas pela
negociação. A atitude pacifista desse grupo não era
surpreendente, pois as cidades localizadas nas ilhas
constantemente eram obrigadas a se defender de ataques
inimigos, uma vez que haviam sido apanhadas pelo fogo
cruzado em um campo de batalha global.
Ninguém tampouco se surpreendeu quando Garacaius
foi eleito líder da federação das ilhas. Afinal, há anos que
ele operava nas ilhas, nelas construíra sua base e os ilhéus
tinham profundo respeito por ele. Surpresa para todos,
sim, foi o nome escolhido para batizar a federação das
ilhas: Veruna, uma antiqüíssima palavra, do kandriano
clássico, que significava “profundo respeito à verdade” .
O S T R I U N F O S D E G A R A C A I U S
Em pouco tempo, ficou evidente que o vínculo entre os
kandrianos era bem mais profundo que o nome que
adotaram. As forças de Veruna, sob o comando de
Garacaius, resistiam e derrotavam os atacantes com
espantosa facilidade. No sexto ano da guerra, uma das
Casas Nobres de Aramon, a Casa de Dernhest, declarou-se
aliada de Veruna e, ao final do ano, Garacaius já controlava
todo o continente de Veruna. No ano seguinte, sétimo ano
da guerra, Garacaius ocupou, no sul, a terra de Zhon. Mas,
à medida que se expandia o território controlado por
Garacaius, cresciam também os rumores de que o líder das
Forças da Verdade vinha empregando recursos mágicos
para derrotar seus inimigos.
No oitavo ano da guerra, Garacaius invadiu Taros. Seus
soldados desembarcaram na praia, a menos de um
quilômetro de distância da aldeia de pescadores onde ele
vivera. Encontraram-na deserta: com medo de serem
massacrados, os habitantes haviam fugido antes da
invasão. Na mesma noite, horas depois do desembarque,
Garacaius sentia-se muito triste e andava, pensativo, pelo
acampamento dos soldados, de olhos perdidos, vendo o sol
se pôr no horizonte, para além das casas vazias e ruelas
desertas.
I 2 2 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
O R E A P A R E C I M E N T O D A M A G I A
É possível que, naquele momento, Garacaius estivesse
prevendo o que viria. A campanha de Taros foi a mais
selvagem e violenta de toda a guerra. As Casas Nobres de
Taros deixaram de lado as lutas internas e uniram-se para
enfrentar o invasor. Mas, com número menor de soldados,
os nobres de Taros logo perceberam que não teriam como
resistir e, desesperados, recorreram à antiga e eterna arma
secreta dos kandrianos: magia.
Sempre houve, em Taros, um número maior de magos do
que no restante do território. Para alguns, isto se explicaria
pela existência de muitos vulcões ativos na cordilheira de
Kaf – a espinha dorsal do continente. Nas celas do Palácio
da Justiça, em Elam, sempre havia meia dúzia de
desgraçados, condenados por prática de magia ou algum
tipo de interesse mórbido nas artes mágicas. Naquele
momento, com os exércitos de Garacaius em rápido avanço
sobre o continente, aqueles patéticos aprendizes de magos
foram arrancados das masmorras e convocados a salvar o
exército de Taros do que parecia ser uma derrota inevitável.
Por sorte, já na primeira tentativa, os pobres magos
conseguiram cegar um destacamento avançado de
cavalaria que sondava a estrada de acesso a Elam, capital
de Taros.
Os historiadores são unânimes ao afirmar que Garacaius
quase enlouqueceu de fúria ao receber a notícia. Ordenou
avanço imediato sobre Elam, em marcha forçada, e exigiu
rendição completa e incondicional dos exércitos que
defendiam a cidade. A resposta demorou. Quando já era
evidente que Taros não se renderia, Garacaius voltou à sua
tenda e de lá saiu usando um anel que ninguém jamais
vira. Andou para a linha de frente de suas tropas, ergueu os
braços e, aos gritos, pronunciou algumas palavras numa
língua estranha. Depois, ajoelhou-se e baixou a cabeça.
Como um só homem, todo o seu exército de 50 mil
soldados fez o mesmo.
Contam as testemunhas que um estranho nevoeiro,
escuro e denso, desceu sobre Elam e fez calar os gritos e
insultos dos soldados que defendiam as muralhas da
cidade. Fez-se um longo silêncio, de espanto e terror, e a
I 2 3 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
neblina começou a se dissipar. Um momento depois,
Garacaius levantou-se e, com seu exército, avançou sobre as
muralhas e entrou na cidade. Não havia ninguém. A
população inteira havia desaparecido, sumido no ar.
Nunca, antes, houve exército de ocupação mais atônito e
silencioso. Ninguém ousava falar, e os soldados mal
conseguiam acreditar no que viam: Garacaius era um mago
com grandes poderes, tão grandes quanto os mais terríveis
poderes dos infames e malditos Magos de Kandra.
O N O V O I M P E R A D O R - M A G O D E D A R I E N
Consumada a vitória, não havia como duvidar de que
Darien estava outra vez unificado. Quanto a quem seria o
novo Imperador, só havia um possível candidato:
Garacaius.
Garacaius movimentou-se com cautela. Começou por
estabelecer a nova capital de Darien na cidade de Estoril,
na ilha de Irgiron, sua terra e seu lar durante tanto tempo.
Em parte a escolha deve ter sido motivada por afeto que
nutrira por aquela região onde havia começado sua
fortuna. Mas também foi uma brilhante escolha estratégica.
Garacaius imediatamente cuidou de reformar sua
magnífica casa, ainda em bom estado, e transformou-a
num verdadeiro palácio.
No dia em que oficialmente assumiu o poder, Garacaius
discursou para os nobres de Darien, reunidos na
assembléia do novo parlamento. Nesse histórico discurso,
revelou que, ao longo de muitos anos, havia trabalhado
para recuperar o saber mágico dos kandrianos e que, em
suas expedições, conseguira recuperar as Cinco Relíquias, o
grande legado desse povo. No mesmo discurso – que a
história registra como o Juramento de Darien – Garacaius
jurou jamais fazer mau uso do saber mágico que tinha
conquistado. Só lançaria mão da magia como último
recurso e se estivesse de acordo com a vontade de seu povo.
Jurou também jamais, em nenhum caso, quaisquer que
fossem as circunstâncias, usar seus saberes mágicos em
benefício próprio.
O R E I N A D O D E G A R A C A I U S
Nos anos seguintes, Garacaius manteve a palavra. O novo
Império enfrentou sérias dificuldades. Vez ou outra houve
I 2 4 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
ameaças de guerra interna, pois os derrotados na Grande
Guerra Civil se rebelaram. Mas jamais, em momento
algum, o Imperador lançou mão de seus poderes
extraordinários. As discussões seguiram o curso normal, as
disputas acabaram resolvidas pelos meios tradicionais, sem
intervenção de qualquer força sobrenatural. Houve mesmo
quem começasse a murmurar que seria mil vezes melhor
usar alguma magia temporária para vencer os adversários
do que matá-los com o aço frio das espadas.
Os primeiros cinco anos do reinado de Garacaius também
foram marcados por eventos de caráter privado. O Primeiro
Imperador-Mago (título que, diziam alguns, Garacaius
detestava e só adotara porque era expressão da vontade da
população, assustada, mas também muito grata) uniu-se
oficialmente a Lasha – a beldade morena que o acompanhava
desde a expedição à terra de Zhon. Dessa união nasceram
quatro filhos muito belos: um menino e uma menina
morenos como a mãe e um casal louro como o pai.
Quando seus filhos aproximavam-se da idade adulta,
Garacaius já havia pacificado todo o Reino: Darien era um
território de paz e prosperidade. O Imperador podia, afinal,
dedicar-se um pouco mais à família, o que parecia fazer-lhe
muito bem. Garacaius sempre foi um homem muito ativo,
cuja fisionomia deixava transparecer a tensão em que sua
alma se debatia. Mas, afinal, na maturidade, parecia
relaxado, calmo e quase feliz.
A T R Á G I C A M O R T E D A
I M P E R A T R I Z L A S H A
A tragédia atingiu a família real como sempre: de repente.
Certo dia, Garacaius levou a família para um passeio no
primeiro barco que construiu, aquele que revolucionou a
engenharia náutica de Darien. Não parecia haver qualquer
perigo, e o Imperador não planejava aventurar-se em alto-
mar. O dia estava lindo, ensolarado, sem vento. Mas, no
mar, o tempo pode mudar repentinamente; afinal, Estoril,
na ilha de Irgiron, estava localizada no centro de um
grande oceano.
O furacão atingiu o porto como o bote de uma serpente.
Num instante, o mar ondulava como um lago; no outro,
encrespava-se em ondas encapeladas e ameaçadoras, e o
vento uivava. As crianças entraram em pânico. O barco
I 2 5 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
virou. Excelente nadador, Garacaius conseguiu salvar os
quatro filhos, mas Lasha, sua amada Imperatriz, afogou-se.
Assim como surgira, o furacão desapareceu rapidamente,
mas nada, nunca mais, seria como antes. Garacaius poderia
ter salvo a Imperatriz se lançasse mão de seus poderes
mágicos. É possível até que tenha pensado nisso, mas
vacilou, temeroso de quebrar seu juramento solene.
Quando afinal decidiu-se, já era tarde demais.
Naquela manhã, ao ver a família embarcar em seu velho
barco, Garacaius era um homem no esplendor da
maturidade e, graças às Relíquias que conservava muito
bem guardadas, podia contar ainda com muitos anos de
saúde e prosperidade. Na mesma noite, o Imperador era
um velho, alquebrado e amargurado. E, à medida que os
dias passavam, mais ele se deixava afundar no desespero e
na dor, atormentado pela própria consciência.
O D E C L Í N I O D O I M P E R A D O R - M A G O
O tempo passou, mas não cicatrizou as feridas. O grande
Imperador-Mago parecia cada dia menos interessado no
destino do Império. Os problemas começaram a se
acumular. Em todo o Darien, reabriam-se velhas feridas,
surgiam novas. Garacaius permanecia distante e
indiferente: mal atendia os emissários, que não paravam de
chegar, dispensava-os com um aceno de mão e voltava,
calado, ao seu inferno particular.
Por fim, reuniu-se, em Estoril, uma assembléia de
representantes das várias tribos e Casas Nobres de Darien.
Discutiram durante um dia inteiro e, afinal, decidiram
apresentar um ultimato a Garacaius: que voltasse a
governar ou abdicasse em favor de um de seus filhos.
Parecia justo, e os nobres esperavam que o Imperador não
se enfurecesse – quem se arriscaria a desafiar a ira de um
mago desesperado? Se o sucessor de Garacaius fosse um
bom Imperador, ótimo. Se não, ele – ou ela – poderia ser
manipulado.
Garacaius optou por uma solução intermediária: não
abdicaria mas, na prática, o Império passaria a ser
controlado pelos quatro príncipes. Dividiu o território em
quatro partes e entregou cada uma delas a um de seus
filhos, consideradas suas características particulares: às
princesas entregou os territórios que mais bem se
I 2 6 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
adaptavam aos seus temperamentos; aos príncipes, aqueles
que estavam de acordo com suas habilidades. Cada jovem
rei recebeu também uma das Cinco Relíquias. De posse das
Relíquias, os jovens sempre teriam como se proteger das
intrigas palacianas e gozariam de mais poder do que
qualquer eventual aspirante ao trono.
A S Q U A T R O C O R O A Ç Õ E S
O primogênito, Elsin, o Louro era conhecido por seu
caráter franco e aberto e por ser muito justo. Era honrado,
muito prático, muito objetivo, mas não era considerado
excepcionalmente inteligente. Dizia-se que só pensava em
fazer justiça, que não via nada além da justiça. Havia,
contudo, uma área na qual Elsin, o Louro era insuperável –
a ciência da engenharia, com suas leis e regras muito
claras, precisas, incontestáveis.
A Elsin, o Louro Garacaius entregou a terra de Aramon,
talvez o melhor dos quatro territórios em que o Império foi
dividido. Aramon já era o continente mais desenvolvido de
Darien, e Elsin rapidamente o fez progredir muito mais:
fundou cidades, construiu estradas e pontes e fundou a
famosa Academia de Engenharia e Projetos de Aramon, em
Kaluen, nova capital provincial. Para confirmar e assegurar
sua ascendência e seu poder, coube a Elsin, dentre as Cinco
Relíquias, o colar de mogrito chamado Rocha de Darien.
Na linha de sucessão de Garacaius estava, a seguir, a
princesa Thirsha, morena como a mãe e muito parecida
com ela. Thirsha amava a terra natal da Imperatriz, a terra
de Zhon, em cujas selvas fechadas e perigosas se
embrenhava para caçar, semanas a fio, acompanhada
apenas por um servo.
Garacaius entregou a Thirsha o seu bem-amado Zhon, o
continente mais selvagem e menos explorado de Darien.
Com o território, Thirsha recebeu o bracelete de mogrito
chamado Alma de Kandra. Fazia pleno sentido, pois as
florestas de Zhon escondiam muitas ruínas misteriosas do
período anterior ao Grande Cataclismo. Como no caso de
Elsin, que recebeu Aramon, a entrega de Zhon a Thirsha
mostrou-se perfeita. Em pouco tempo, a nova rainha
controlava as tribos semicivilizadas de seu continente.
Entre as tribos, ficou conhecida como Thirsha, a Caçadora.
I 2 7 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
O príncipe Lokken, o terceiro filho de Garacaius, foi
criado como uma das grandes esperanças do Reino. Mas
depois da morte da mãe, tudo o que antes era brilho e
inteligência transformou-se em ressentimento e amargura.
Garacaius amava-o ternamente, provavelmente mais do
que a Elsin. Ele acreditava que mentes inquietas precisam
de estímulo apropriado, ou correm o risco de desvanecer.
Por isso, decidiu ocupar a mente de Lokken.
Lokken recebeu Taros. O antigo continente era habitado
por algumas tribos rivais dos kandrianos e vivia em
conflito. As quatro Casas Nobres de Taros eram separadas
por disputas que se arrastavam há anos, e o território
estava devastado por infindáveis combates. Junto com a
terra, Lokken recebeu o cetro com o mogrito chamado
Chama de Angvir. Também nesse caso, a decisão de
Garacaius mostrou-se sábia: em um ano, Lokken
estabeleceu a paz, que muitos acreditavam ser impossível.
Para tanto, usou uma eficiente combinação de diplomacia,
violência e magia.
A filha caçula, Kirenna, era de todos a mais parecida
com o pai. Entre as muitas semelhanças, os dois eram
apaixonados pelo mar, um amor que, no caso de Kirenna,
sobreviveu à morte da mãe. Logo que teve idade para viajar
sozinha, Kirenna engajou-se em várias expedições que
partiam de Estoril e conheceu todo o Império de seu pai.
Os companheiros de viagem logo passaram a chamá-la de
Maga do Mar, porque ela sabia, como ninguém, prever as
mudanças dos ventos e do tempo e era capaz de conduzir
qualquer barco, em segurança, no mais denso nevoeiro.
A Kirenna coube o domínio de Veruna e o anel com a
pedra de mogrito chamado Lágrima de Macha. Uma de
suas primeiras providências foi abolir todos os impostos
internos e dobrar o salário pago aos marinheiros mais
experientes. Os ilhéus da federação de Veruna tinham,
afinal, uma governante que sabia, instintivamente, do que
eles eram capazes: em pouco tempo, Veruna detinha o
monopólio de todo o comércio marítimo.
A Garacaius coube, nos primeiro anos, a tarefa de
supervisionar o trabalho dos filhos. Mas ele era uma figura
miserável e soturna que vagava pelo palácio de Estoril, um
I 2 8 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
velho triste, sentado no Trono de Ludd, a quinta das
Relíquias, esculpida em rocha-negra. Embora o Olho de
Modron – fragmento de mogrito incrustado no trono – lhe
garantisse saúde e vitalidade, o pobre Garacaius envelhecia
dia a dia. Falava pouco e respondia com um olhar
infinitamente triste a todos que o procuravam em busca de
conselhos.
O F I M D E U M A E R A
Os anos passaram. No palácio de Estoril, preparavam-se as
grandes festas comemorativas dos dez anos das Quatro
Coroações, com inúmeras atrações: um desfile marítimo
das mais belas naves da armada de Veruna; a inauguração
da Grande Feira de Darien, na qual seriam exibidas as mais
modernas máquinas criadas pela Academia de Engenharia
de Aramon; a inauguração de uma galeria – Maravilhas de
Zhon – onde todos poderiam conhecer as preciosidades do
artesanato e da produção artística dessa terra exótica. À
noite, esperava-se com ansiedade a exibição dos Comedores
de Fogo de Taros, grupo de artistas especializado na
manipulação do fogo, nas mais incríveis situações.
O dia da festa raiou, numa aurora colorida. O palácio de
Estoril brilhava. As pedras brancas do chão pareciam
tocadas pelo pincel de um mestre que as recobria de tons
suaves, quando Gudnor, criado que acompanhava
Garacaius nos últimos 40 anos, resolveu sair à procura do
seu mestre. Começou pelos quartos do palácio. Estava
decidido a convencê-lo a se preparar para as festividades.
Por menos que Garacaius quisesse, era importante que se
apresentasse bem.
O Imperador não estava em seu quarto nem havia sinal
de que houvesse dormido em sua cama. Ao aproximar-se da
Sala do Trono, depois de muito procurar, Gudnor já
começava a dar sinais de extrema preocupação. Que idéia...
passar outra noite em claro, sentado em seu trono,
justamente na véspera de um dia tão importante. Na manhã
seguinte às noites em que não dormia, o Imperador parecia
ainda mais velho e alquebrado. Gudnor apertou na mão a
caixinha de pomada que Kirenna lhe entregara e entrou na
Sala do Trono. E o palácio estremeceu, primeiro com os seus
gritos, em seguida com os seus soluços desesperados.
I 2 9 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
Por que Garacaius não estava lá? Não havia ninguém
sentado no Trono de Ludd. E no espaldar, no lugar onde
devia estar, como sempre estivera, o Olho de Modron, havia
um buraco vazio.
I 3 0 i
C R Ô N I C A S D E D A R I E N
Mais uma vez, estamos às vésperas de grandes mudanças.
Nos últimos dois séculos, as diferenças entre os quatro
monarcas se acentuaram cada vez mais. O surgimento de
quatro diferentes “religiões de Estado” é uma evidência de
que a unidade de Darien já é passado e dificilmente poderá
ser restituída. Em Darien, havia uma só religião. De
repente, os cidadãos de Aramon passaram a exibir anéis de
prata com a Mão de Anu, o Senhor da Luz. O povo de Taros
cultua uma terrível entidade noturna chamada Belial. Em
Zhon, cultua-se Tammuz, a Deusa da Caça. Em Veruna,
pratica-se o culto a Lihr, uma poderosa divindade marinha.
Os Quatro Reinos já lutaram entre si mas, a certa altura,
começou a surgir uma grande divisão entre os Reinos do
Oeste e do Leste.
Mesmo depois do desaparecimento de Garacaius, os
Reinos de Aramon e Veruna mantiveram-se leais ao
juramento de Garacaius e renunciaram às práticas
mágicas, exceto em casos de extrema necessidade. Os dois
monarcas, para construir Reinos poderosos, usaram
recursos econômicos: Aramon cuidou da indústria e do
desenvolvimento interno; Veruna é uma potência do
comércio intercontinental. Elsin, governante de Aramon, e
O s Q u a t r o R e i n o sO D E S A P A R E C I M E N T O D E G A R A C A I U S O C O R R E U H Á 1 5 2 7 A N O S . S E U S
F I L H O S , I M O R T A I S P O R P O S S U Í R E M A S R E L Í Q U I A S , C O N T I N U A M A
G O V E R N A R S E U S R E S P E C T I V O S R E I N O S .
I 3 1 i
D O I S : C R Ô N I C A S D E D A R I E N
a Maga do Mar de Veruna, Kirenna, não têm dúvidas de
que a lei de seu pai tem de ser obedecida para que não
haja guerra.
No Leste, Taros rebelou-se contra a lei de Garacaius.
Lokken já usara recursos mágicos desde os primeiros
tempos, quando teve de subjugar, pelo terror, as Casas
Nobres de Taros, que se recusaram a aceitá-lo. Fascinado
pela facilidade com que venceu os primeiros combates,
Lokken jamais deixou de recorrer à magia e chegou a
remodelar a natureza de seu Reino, o que teve
conseqüências que ele, de modo algum, poderia ter
previsto. Pelas antigas Leis Kandrianas da Vida, aquele que
manipula o Mana é como um nadador que cruza um rio
caudaloso. É possível tirar vantagem de suas águas se se
nadar a favor da corrente. Mas quem tentar domar o rio, ou
nadar contra a corrente encontrará a tragédia. Lokken
afirma que tudo está correndo como planejado, mas as
coisas não parecem bem.
Ao sul de Taros, no coração das selvas de Zhon, a
Caçadora Thirsha também recorre freqüentemente à
magia. Orgulhosa e independente, a Caçadora reagiu com
escárnio às exigências de Elsin e Kirenna. Não reconhece o
direito de ninguém dizer-lhe onde e quando usar seus
encantamentos e apóia abertamente o direito de Lokken
fazer, em seu Reino, o que bem entender.
Nos séculos precedentes, as diferenças entre os irmãos
monarcas já haviam levado à guerra várias vezes. Aramon
enfrentou Veruna nos pântanos de Kuvera, no noroeste, e
em várias ilhas do Mar de Mannan. Os piratas de Zhon
atacam os barcos de Veruna e massacram tripulações
inteiras. As tribos de Zhon assaltam as ricas costas de
Aramon, cujo monarca, em retaliação, envia expedições
que invadem o território de Zhon. Um ódio implacável
separa os Reinos de Taros e Aramon, que várias vezes
envolveram-se em guerras sangrentas, motivadas sempre
por diferenças ideológicas.
Cada um dos monarcas tem muitas restrições contra os
demais, e o Império está a ponto de explodir. Os monarcas
reúnem seus soldados e se preparam para uma guerra
iminente.