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A INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS NUMA PERSPECTIVA DIALÉTICA
Potyara A. P. Pereira1
Introdução
A intersetorialidade é um termo dotado de vários significados e
possibilidades de aplicação prática que, recentemente, vem despertando
crescente interesse intelectual e político. Sua defesa no âmbito da política
social pública apóia-se no reconhecimento de que a relação entre “setores”
dessa política implica mudanças substanciais na sua gestão e impactos, bem
como ampliação da democracia e da cidadania.
Portanto, além de principio ou paradigma norteador, a intersetorialidade
tem sido considerada uma nova lógica de gestão, que transcende um único
“setor” da política social, e estratégia política de articulação entre “setores”
sociais diversos e especializados. Ademais, relacionada à sua condição de
estratégia, ela também é entendida como: instrumento de otimização de
saberes; competências e relações sinérgicas, em prol de um objetivo comum; e
prática social compartilhada, que requer pesquisa, planejamento e avaliação
para a realização de ações conjuntas.
Enfim, trata-se, a intersetorialidade, de um conceito polissêmico que, tal
como a política social, possui identidade complexa e, talvez por isso, se afinem.
1 Professora titular do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília.
Pesquisadora do CNPq e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (NEPPOS), do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (CEAM) da UnB. Líder do Grupo de Estudos Político-Sociais (POLITIZA) do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB e registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.
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Com efeito, como já dizia Titmuss2 (1991) a política social não se dá no
vácuo e nem é desfalcada de relações. O seu trato (intelectual e político) não
prescinde do “exame da sociedade como um todo no conjunto de seus
variados aspectos [históricos, culturais] sociais, econômicos e políticos” ( p.16).
Em vista disso, tal política se impõe como um conceito complexo3 que não
condiz com a idéia pragmática de mera provisão, ato governamental, receita
técnica ou decisões tomadas pelo Estado e alocadas verticalmente na
sociedade (como entendem os enfoques funcionalistas). E, para além de um
conceito, a política social constitui um processo internamente contraditório, que
simultaneamente atende interesses opostos - o que exige esforço mais
aprofundado de conhecimento dos seus movimentos, tendências,
contratendências e relações, com vista ao estabelecimento de estratégias
políticas compartilhadas favoráveis à extensão da democracia e da cidadania.
Portanto, é pela perspectiva dialética, e não linear, ou meramente
agregadora, que a intersetorialidade das políticas sociais deve se pautar, caso
queira ser fiel à realidade – que, por natureza, é dialética - e não pretenda
transformar processos políticos, potencialmente conflituosos, em neutras
prescrições administrativas.
Uma medida necessária no trato dialético da intersetorialidade da
política social é descobrir a importância de seus vínculos orgânicos essenciais
(conceituais e políticos) com outros fenômenos e processos, a partir da
constatação da inoperância do saber e da ação fragmentados, e conhecer os
fundamentos teóricos e históricos dessa vinculação.
Para tanto, convém precisar o significado da intersetorialidade pela
comparação e contraste com outros vocábulos que lhes assemelhados, como o
de interdisciplinaridade - que lhe serve de referência - além de outras
denominações correntes, como multidisciplinaridade, pluridisciplinaridade e
2 O inglês Richard Morris Titmuss (1907-1973) foi precursor nos esforços de conceituar política
social pelo ângulo de suas relações complexas e como política eminentemente comprometida com as necessidades sociais. É dele a primeira classificação do bem-estar social e do Estado de Bem-Estar (Welfare State), que serviu de inspiração para as classificações contemporâneas, como, por exemplo, a de Esping-Andersen (1991). 3 Complexo aqui tem o sentido de um conjunto que encerra vários elementos e determinações.
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transdisciplinaridade. Esta providência faz-se necessária por dois motivos
principais:
i) Pela urgência de precisar o termo intersetorialidade, visto que o
mesmo vem sendo constantemente invocado, mas não possui
sentido unívoco e tem se prestado a diferentes interpretações. O
mesmo pode ser dito dos termos que lhe são assemelhados,
acima descritos, e que costumam ser confundidos com ele;
ii) Pela importância de explicitar o caráter dialético que, neste texto,
o prefixo “inter” quer significar como superação da setorialidade
das políticas sociais e como medida de requalificação da
disciplinaridade no conhecimento e na práxis dessas políticas.
Como os termos setor e disciplina já estão sacramentados na literatura
sobre o tema, eles não podem ser desconsiderados nesta discussão. A
problematização de seu uso e pertinência far-se-á no momento de sua
aparição.
Principais características dos termos afins à inter setorialidade
Reflexões críticas preliminares
Começando pela intersetorialidade vale reiterar que este termo não tem
sido definido com precisão. O elemento comum que une a esmagadora maioria
dos intentos de demarcá-lo conceitualmente é o da superação não
propriamente da idéia de setorialidade, mas da desintegração dos diferentes
setores, que compõem um dado campo de conhecimento e ação, e do
conseqüente insulamento de cada um deles. De acordo com esse
procedimento, a noção de “setor” é ponto pacífico e, portanto, permanece
intacta, principalmente quando se fala de políticas públicas e, dentro destas,
das políticas sociais. Isso porque, se convencionou achar que tais políticas são
divididas em “setores” particulares, incluindo-se nessa categorização até
mesmo a assistência social, que tem visível vocação supra “setorial”.
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Esse convencionalismo se torna mais insólito quanto mais se sabe que
os chamados “setores” das políticas sociais, como a saúde, a educação, a
previdência, a assistência, fazem parte, na realidade, de um todo indivisível, já
que cada política contém elementos das demais, o que dificulta a sua
programação e financiamento específicos. No caso da assistência, vale lembrar
que a transferência de recursos dessa área para a de outras políticas, que
também a contemplam, é um sinal de que a política de assistência está
presente nas demais e as demais nela. Portanto, se o termo “setor” não
corresponde à realidade, é lícito inferir que ele é um arranjo técnico ou
burocrático criado para facilitar a gestão das demandas que pululam no
universo complexo da política social e nas arenas de conflito que nesse
universo se estabelecem. Mas, como arranjo técnico não funciona como critério
político, é um erro tomá-lo como base definidora de políticas compartilhadas.
Talvez seja por isso que o discurso corrente da intersetorialidade ora se refira a
esta como articulação, soma, síntese, unidade, rede, ora como superação da
fragmentação desses “setores”. Contudo, embora as palavras síntese, unidade
e superação sejam usadas na linguagem dialética, o seu significado no atual
discurso da intersetorialidade geralmente é outro: significa integração de
“setores”, com reforço à permanência destes.
É em meio a essa imprecisão terminológica que a intersetorialidade nas
políticas sociais é definida, revelando ambivalências e incorências.
Assim, embora a intersetorialidade seja identificada como
transcendência do escopo “setorial”, essa transcendência geralmente traduz-se
como articulação de saberes e experiências, inclusive no ciclo vital da política4,
que compreende procedimentos gerenciais dos poderes públicos em resposta
a assuntos de interesse dos cidadãos. Por outro lado, ao ser, a
intersetorialidade, considerada um rompimento da tradição fragmentada da
política social, que se divide em setores, admite-se que ela propicie mudanças
de fundo, isto é, de conceitos, valores, culturas, institucionalidades, ações e
4 Esse ciclo vital “inicia-se com a fixação de uma agenda e adoção de critérios de atuação”
(MORENO, 2000, p. 131), que prevêem a identificação do problema, a tomada de decisões, o planejamento e a execução compartilhados, com vista ao atendimento conjunto de demandas e necessidades sociais.
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formas de prestação de serviços, além de um novo tipo de relação entre
Estado e cidadão. A primeira vista esta mudança poderia ser identificada como
dialética, principalmente quando, nela, o Estado, a sociedade e os cidadãos
são vistos como sujeitos das políticas e, como tais, assumem papéis ativos na
identificação de problemas e na definição de soluções. No entanto, nesse
processo, a relação entre estrutura e história não são considerados e conceitos
mais totalizantes são substituídos por outros, mais restritos, como quando, em
lugar de espaço público, isto é de todos, que está na base das políticas
universais, fala-se de territorialização como lócus biofísico com o qual um
coletivo social se identifica e por ele se responsabiliza (por exemplo, a escola).
E há, ainda, quem veja no exercício da intersetorialidade a possibilidade de
substituição de necessidades por direitos, como se as políticas sociais não
tivessem como principal atribuição a concretização de direitos sociais para
atender necessidades que, no sistema capitalista, constituem a força
desencadeadora da conquista da cidadania. Afinal, não se pode esquecer que
o trabalho constitui uma necessidade vital e eterna, que intermedia a relação
do homem com a natureza e propicia a transformação de ambos. Por fim, e em
maior conformidade com a perspectiva dialética, há os que percebem a
presença de contradições e conflitos nas relações intersetoriais, o que indica,
no contexto dessa temática, o prenúncio de uma abordagem analítica mais
complexa, dinâmica e relacional, que pode ser melhor explicitada, a partir do
exame da contribuição que o conceito de interdisciplinaridade fornece à
compreensão da intersetorialidade.
Efetivamente, a concepção de intersetorialidade vincula-se
primariamente à discussão de interdisciplinaridade que, por ser mais antiga e
com maior produção bibliográfica, lhe serve de referência. Daí a importância da
explicitação dos principais traços da interdisciplinaridade como o paradigma
epistemologicamente mais analisado – embora não esgotado - da concertação
de saberes com vista ao conhecimento mais denso e abrangente de realidades
complexas.
A interdisciplinaridade como necessidade e acerto de contas
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Parafraseando Japiassu (1976, p. 30), pode-se dizer que a
interdisciplinaridade surgiu não propriamente do avanço real da ciência, mas do
sintoma de uma espécie de “patologia do saber” ou de uma “alienação
científica”. Ou melhor, a interdisciplinaridade surgiu da consciência de um
estado de carência no campo do conhecimento, causado pelo aumento
exagerado das especializações e pela rapidez do desenvolvimento autônomo
de cada uma delas. Com efeito, diz Japiassu,
o saber chegou a um tal ponto de esmigalhamento, que a exigência interdisciplinar mais parece, em nossos dias, a manifestação de um lamentável estado de carência. Tudo nos leva a crer que o saber em migalhas seja o produto de uma inteligência esfacelada. Nesse domínio, até parece que a razão tenha perdido a razão, desequilibrando a própria personalidade humana em seu conjunto (30/31).
Diante desse fato, diagnosticar o problema constituiu o primeiro passo
em busca de solução que culminou na descoberta da interdisciplinaridade
como um recurso aglutinador de saberes desconexos e independentes. Mas,
esse recurso pode trazer ou agravar problemas, ou não surtir efeitos
desejados, se o seu sentido não for explicitado e adequadamente aplicado à
luz da comparação com outros recursos congêneres – mais adiante definidos.
Como diz Jupiassu (IDEM), a interdisciplinaridade “não possui ainda um
sentido epistemológico único e estável” (p. 72) e, por isso, mais se assemelha
a um neologismo do que a um conceito. Mas, nada impede que, uma vez tendo
o seu sentido explicitado, a partir das carências reais que o solicitam, ela
constitua algo mais do que uma reorganização metódica no campo
fragmentado do conhecimento. E, longe de configurar uma panacéia científica,
ela poderá constituir uma nova maneira de encarar a repartição dos saberes
disciplinares e ir mais fundo e mais longe nas análises, desde que as
especializações produzam conteúdo consistente.
Isso quer dizer que a interdisciplinaridade não propõe o aniquilamento
das especializações, como será visto mais à frente. Entretanto, o exercício de
sua constituição como unidade de saberes diversos exige a elaboração de uma
concepção que, ao optar por uma dada visão de mundo, terá de romper com
outra que lhe é oposta.
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Em outras palavras, o esforço cognitivo despendido para qualificar o
caráter dialético da interdisciplinaridade terá de romper com a visão de mundo
positivista, que não apenas impera no reino da disciplinaridade, mas também
se infiltra em muitas propostas de superação dessa visão.
Eis porque, em nome da interdisciplinaridade, observa-se, nos anos
recentes, especialmente no Brasil, um significativo empenho de intelectuais,
políticos e gestores em romper com a hegemonia da metodologia positivista de
cientificidade que levou “a uma fragmentação do saber e ao sacrifício da
unidade do real” (SEVERINO, 1995, p.15). Ou melhor, caminhando na
contramão de uma tradição de pensamento que, desde a filosofia clássica,
passando pela razão iluminista, estava ciente da íntima ligação da consciência
com a prática humanas e da necessidade de uma inteligibilidade universal, o
positivismo seguiu rumo diferente. Escravizou-se em demasia “ao protocolo da
experiência” e privilegiou a “autonomização dos vários aspectos da
manifestação do real”, tornando-se, consequentemente, “o maior responsável
pela fragmentação do saber e o maior obstáculo à interdisciplinaridade” (Id.
Ib.). E, ao ganhar foros de autoridade como filosofia da ciência adepta da
precisão, da formalização e da comprovação empírica de fatos específicos, o
positivismo marcou profundamente a cultura contemporânea, comprometendo
os esforços de unificação do saber, particularmente no âmbito das Ciências
Sociais (id. Ib.).
Por isso, defender a interdisciplinaridade implica, como bem diz Severino
(Id. Id.), “acertar contas com o positivismo” e renegar a sua herança, que
contempla: o domínio da disciplinaridade; a classificação ou tipologização dos
saberes; a verticalização das especialidades; o raciocínio dicotômico; a perda
de contato do conhecimento com a realidade e a linguagem incomunicável
entre diferentes áreas(PEREIRA-PEREIRA, 1992). Em suma, o positivismo
prevê e provê um “discurso tanto mais rigoroso quanto mais bem separado da
realidade global, pronunciando-se num esplendido isolamento relativamente à
ordem das realidades humanas” (GUSDORF, 1975).
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Um caso exemplar dessa tendência, que pode também ser
representativa de outros casos, é o da medicina, assim comentado por
Gusdorf:
A medicina contemporânea tornou-se, por excelência, o reduto privilegiado dos ‘especialistas’, cuja competência se exerce sobre um território cada vez mais reduzido. O homem doente é um homem cortado em pedaços; um clínico se encarrega de seu coração, outro de seus pulmões, outro ainda de seus órgãos sexuais ou do seu sistema nervoso, etc. Cada um aplica sua terapêutica própria, sem pensar nas possíveis repercussões sobre os órgãos vizinhos, nem nas reações do moral sobre o físico. O inconveniente dessa medicina fragmentária surge com toda evidência nos países ditos ‘avançados’ que chegam a reclamar a instituição de uma nova categoria de especialistas, os ‘clínicos gerais’, que seriam os especialistas da não-especialidade, atentos às regulações de conjunto da vida humana, não somente na ordem fisiológica, mas também no domínio da psicologia e da psicossomática, da psiquiatria e da psicanálise (IDEM, p. 25).
E a tentativa de romper com esta postura positivista fez com que se
descobrisse na lógica dialética a orientação para um conhecimento da
realidade no seu conjunto (ou totalidade) sem suprimir as suas contradições,
sem retificar as suas sinuosidades e sem desconsiderar o seu caráter dinâmico
e relacional.
Contudo, nem sempre o que se diz dialético merece essa denominação.
Correntemente, o discurso do chamado pós-modernismo, que também critica o
positivismo como uma anacrônica herança da modernidade5 e reivindica a sua
superação, vem ganhando adeptos. Só que, sob esse discurso, o acerto de
contas com o positivismo seria romper com a ciência moderna, datada do
século XIX, de pureza kantiana – cujos pilares são a neutralidade, a
experimentação, a quantificação - colocando em seu lugar uma ciência pós-
moderna, assim definida por Boaventura de Souza Santos (Apud SOUSA
JUNIOR & AGUIAR, 1992, p. 449): uma “ciência assumidamente analógica que
procura ‘descobrir categorias de inteligibilidade globais, conceitos quentes que
5 Ganhando evidência no século XVIII, o projeto da modernidade visava “usar o acúmulo do
conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento das formas racionais de organização social e modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana” (HARVEY, 1993, p. 23)
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derretem as fronteiras em que a ciência moderna dividiu e encerrou a
realidade’ ”.
Donde se conclui que a crítica ao positivismo e o uso de categorias de
inteligibilidade globais nem sempre convergem para um mesmo entendimento
acerca da relação dialética entre saberes, seja no terreno da pesquisa e do
ensino, seja no campo da prática.
Em verdade, o apelo ao discurso da pós-modernidade contém um
complicador, a despeito de o mesmo se apresentar como transgressor dos
estilos de pensamento, sensibilidades e estéticas da modernidade, qual seja: a
estreita relação desse discurso com “a envolvente e vertiginosa dinâmica do
capitalismo globalizado” (BORON, 2001, p. 369) que, ao mesmo tempo em que
articula, fragmenta. Não por acaso, Jamenson (2002), em trabalho pioneiro,
definiu o pós-modernismo como “a lógica cultural do capitalismo tardio” (isto é,
avançado), ou “o reflexo e aspecto concomitante de mais uma modificação
sistêmica do próprio capitalismo” (p.16).
Sendo assim, não é de estranhar a atual combinação do pós-
modernismo com o neoliberalismo, já que ambos se configuram como estágios
avançados do capitalismo e compartilham do mesmo desprezo pela reflexão
teórica, pelo universalismo, e por qualquer concepção que não seja
eminentemente relativa. E disso resulta, no campo da política social, um
reforço à focalização, ao pragmatismo, ao localismo, ao presentismo, ao
desenvolvimento tecnológico, ao mundo da imagem, à construção plural e à
concepção do todo como um mosaico ou caleidoscópio feito de pedaços
diversos (BORON, IDEM; MAFFESOLI, 2004).
Isso posto, cabe fazer brevemente a distinção entre a
interdisciplinaridade e seus principais termos vizinhos, para, no próximo item,
qualificar o caráter dialético da intersetorialidade à luz da concepção de
interdisciplinaridade, que lhe serve de referência.
Os sentidos da multi, pluri e transdisciplinariedade
Partindo das concepções de disciplina, como ciência ou ramo de
conhecimento científico, e de disciplinaridade, como
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a exploração científica especializada de determinado domínio homogêneo de estudo, isto é, o conjunto sistemático e organizado de conhecimentos que apresentam características próprias nos planos do ensino, da formação, dos métodos e das matérias, [com vista a] fazer surgir novos conhecimentos que se substituem aos antigos (JAPIASSU, IDEM, p. 72),
fica mais fácil precisar o sentido que os prefixos multi, pluri e trans conferem à
disciplinaridade, em comparação com o inter. Mas, desde logo, é preciso
informar que se está fazendo apenas um exercício didático, já que, para os
propósitos da discussão aqui desenvolvida, considera-se o prefixo inter o mais
adequado e pertinente.
Assim, diferentemente da interdisciplinaridade (que evoca vínculos
orgânicos entre especialidades) a multidisciplinaridade refere-se a um conjunto
de disciplinas ou de ramos especializados de saberes que se agregam em
torno de um tema, uma problemática ou um objetivo comum, mas não se
interpenetram. Isso significa dizer, conforme Japiassu (IDEM), baseado em
Jantsch, que a relação entre as diferentes especialidades “só exige
informações tomadas de empréstimo”, sem que essas especialidades sejam
”modificadas ou enriquecidas”. Trata-se, em outros termos, de um
agrupamento, intencional ou não, de conhecimentos, experiências, profissões,
achados de pesquisa, informações, recursos, agentes, sem necessariamente
requerer “trabalho de equipe e coordenado”; ou, então, de um objeto estudado
“sob diferentes ângulos, mas sem que antes tenha havido um acordo prévio
sobre métodos a seguir ou sobre os conceitos a serem utilizados” (pp. 72/73).
Um exemplo ilustrativo do exercício da multidisciplinaridade, concebido
por Vasconcelos (2006) no campo das práticas da saúde mental, é a seguir
apresentado. Segundo ele, tal exercício pode ser
visualizado nas práticas ambulatoriais convencionais, onde profissionais de diferentes áreas trabalham isoladamente, geralmente sem cooperação e troca de informações entre si, a não ser por meio de um sistema de referência e contra-referência dos clientes, com uma coordenação apenas administrativa (p. 46).
Essa mesma forma de agrupamento disciplinar é observada na proposta
pluridisciplinar, com uma diferença: há, nesta, “justaposição de diversas
disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de
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modo a fazer aparecer as relações existentes entre elas” (JAPIASSU, IDEM,
p.73). Dessa feita, tanto a multi quanto a pluridisciplinaridade, a despeito das
diferenças de seus respectivos objetivos (diversos, na primeira, e distintos, na
segunda), apresentam a mesma tendência: de um “monólogo de especialistas”
ou de “diálogos paralelos”, em torno de um assunto de interesse comum. É o
que pode ser aferido nos exemplos referentes à pluridisciplinaridade,
fornecidos por Vasconcelos (IDEM), a saber:
Reuniões clínicas em que casos de clientes são discutidos trocando-se informações dos diferentes profissionais que os acompanham, ou reuniões de equipe técnica com profissionais variados que planejam ou avaliam ações e procedimentos científicos ou assistenciais, sem ainda criar uma axiomática própria que coordene seus trabalhos. Painéis e mesas redondas em congressos com especialistas de várias áreas ou artigos do tipo ‘enciclopédico’ com contribuições em geral superficiais e isoladas de várias áreas, também podem constituir outros exemplos desse tipo (p. 46).
Por fim, a transdisciplinaridade que, segundo Japiassu (IDEM), foi
concebida por Piaget para significar uma etapa superior das relações
disciplinares, compondo um sistema total e sem fronteiras de saberes, é uma
proposta ambiciosa, de difícil realização. O próprio Piaget, diz Japiassu, a
considerava um “sonho”, passível de previsão, mas ainda não realizado. Por
isso, concordando com Piaget, acrescenta: “estamos ainda muito longe de
chegar a um sistema total, de níveis e objetivos múltiplos, coordenando todas
as disciplinas, tomando por base uma axiomática geral” (IDEM, p. 76).
Todavia, percebe-se atualmente, no campo da produção do
conhecimento, um movimento favorável ao uso do termo transdisciplinaridade,
o qual, embasado na teoria da complexidade6, poderia, segundo esse ponto de
vista , expressar melhor o significado de interdisciplinaridade. É nesse sentido
que Inojosa (2001) associa a interdisciplinaridade à transdisciplinaridade, da
mesma forma que associa, no âmbito das políticas públicas, das organizações
e das instituições, a intersetorialidade à transetorialidade. E informa que, na
literatura, é possível encontrar esses termos como sinônimos, o que a leva a
6 Teoria adotada e difundida por Edgar Morin, sociólogo francês, considerado pai do
pensamento complexo, que inclui o pensamento não pertencente aos círculos acadêmicos convencionais. Tal teoria pauta-se por uma visão transdisciplinar de sistemas complexos e diversos.
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optar pela noção de transdisciplinaridade, empregada por Morin. Este, por sua
vez, apresenta dois exemplos de transdisciplinaridade: a ecologia “porque usa
várias disciplinas, porém é mais do que a mera composição de saberes
disciplinares, pois cria um novo conhecimento apoiado em diversas disciplinas”;
e, a universidade, porque esta “poderá romper as clausuras setoriais e criar
conhecimentos articulados” (INOJOSA, 2001, p. 103).
A essa altura, e com base na convicção de que o termo
interdisciplinaridade é o que melhor se presta a um trato dialético - além de
constituir a referência mestra da concepção da intersetorialidade - indica-se a
seguir o que, neste texto, é considerada a sua melhor interpretação, iniciando-
se com uma explicação sobre o prefixo inter.
Características da relação dialética que qualifica a interdisciplinaridade e a
intersetorialidade
O prefixo inter, aqui adotado, que serve tanto para nomear a
interdisciplinaridade quanto a intersetorialidade, remete à relação dialética, isto
é, à relação que não redunda em um amontoado de partes, mas em um todo
unido, no qual as partes que o constituem ligam-se organicamente, dependem
umas das outras e condicionam-se reciprocamente. Trata-se, portanto, de uma
relação em que nenhuma das partes ganha sentido e consistência quando
isolada ou separada das demais e das suas circunstâncias (de suas condições
de existência e de seu meio).
Esse enunciado expressa uma primeira característica da relação
dialética: a de ser unitária ou total. Essa característica sempre foi necessária ao
progresso do conhecimento e das conquistas sociais. Mas, essa mesma
relação possui outras características que devem ser consideradas, como a
reciprocidade e a contradição. Isso quer dizer que a totalidade dialética
propiciada pela relação dinâmica e interdependente entre partes, comporta ao
mesmo tempo atitudes recíprocas e caráter contraditório.
É pela reciprocidade que diferentes aspectos da realidade prendem-se
por laços necessários e cooperantes. Esse princípio é de grande importância
prática, pois, ao mesmo tempo em que demonstra que não há, nem na
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natureza e nem na sociedade, um caos incompreensível, adverte para o fato de
que toda e qualquer atividade deve considerar as condições que a determinam
e a explicam. A relação dialética, por conseguinte, não se realiza com base em
voluntarismos. Entretanto, apenas a totalidade e a reciprocidade não bastam
para revelar a existência de uma relação dialética. Tal relação afigura-se
também contraditória, o que permite dizer que se a totalidade não for
contraditória, ela não é dialética e vice-versa: toda contradição se exerce na
totalidade de relações.
O caráter contraditório da relação dialética tem a ver com a constatação
de que tudo que é unitário é também movimento, mas não qualquer
movimento. Aqui não se está falando de deslocamento mecânico ou de
mudança de algo de um lugar para outro, como os ponteiros do relógio. Está-se
falando de movimento de transformação de quantidades em qualidades,
porque não há movimento que não seja conseqüência de contradições, de luta
de contrários, que lhes são internas e, portanto, inerentes. A mera soma de
partes, ou a articulação entre elas, não propicia mudança qualitativa. Toda
mudança na qualidade da relação requer o reconhecimento de que o todo,
constituído pela relação entre partes, tem potencialidades de se desenvolver,
de inovar, de superar o passado, a partir do desaparecimento de alguns
elementos e aparecimento de outros, no seu interior. É a oposição entre o novo
e o velho, instaurada num todo orgânico e dialeticamente reacional, que
desencadeia o processo de mudança e de superação desejadas e operadas
por agentes. Até nas atividades de estudo, de pesquisa e de experimentação
de novas ações essa dinâmica está presente. Veja-se o caso de alguém que
se disponha a estudar algum assunto. Esse estudo só será promissor se o
estudante ou o estudioso simultaneamente tiver consciência de sua ignorância
a respeito desse assunto e quiser superá-la para conquistar o saber almejado.
O confronto entre a ignorância e a vontade de superá-la constitui a contradição
ou a luta dos contrários inerente a todo processo. A conquista do saber, que se
desenvolve por meio do confronto entre a ignorância e o seu contrário (a busca
de conhecimento), e se processa num trajeto de contínuas superações de
novas contradições que aparecem após cada conquista, caracteriza a
contradição interna de que se está falando. A mudança qualitativa que daí
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decorre, é produto de relações orgânicas que se desenvolvem no tempo e, por
isso, é histórica e tem caráter inovador, já que representa a fecundidade da
contradição, isto é, a prevalência do novo como síntese dos termos que se
opunham; ou a conversão de um no outro: o velho tendo necessidade do novo
para se renovar e o novo se apoiando no velho para se desenvolver.
Superação dialética, portanto, não significa aniquilações das particularidades,
mas ultrapassagens, apoiando-se nas particularidades.
Essa percepção conduz ao entendimento de que a contradição, apesar
de ser um princípio (ou lei) universal, não deve se realizar de forma indistinta,
passando por cima das formas particulares e concretas de movimentos, já que
toda forma de movimento contém suas contradições específicas. Ao se tomar a
ciência como exemplo dessa afirmação, ver-se-á que ela constitui a unidade
não só da teoria e da prática, mas de particularidades da vida concreta que
contem contradições específicas referentes aos seus próprios objetos. Isso,
porém, não quer dizer que esses objetos sejam irredutíveis uns aos outros e
que essas contradições particulares não se observem também dentro de uma
mesma ciência. Saber examinar concretamente caracteres e contradições
específicos da realidade é condição imprescindível para evitar o dogmatismo
no campo científico e a aplicação uniforme de um paradigma a situações
diferentes.
Tal observação explica a existência de saberes particulares no conjunto
unitário da ciência, mas de uma forma que cada saber particular não seja visto
como absoluto, e sim relativo. Na relação dialética é inconcebível a existência
de saberes absolutos desvinculados de um movimento do conjunto que os
condiciona, assim como é inconcebível a existência de um conjunto ou do
universal que não esteja inscrito no particular. Em síntese: o particular ou
específico só tem valor quando relacionado ao universal, o que significa dizer
que o particular e o universal são inseparáveis, ou que um existe no outro.
É por esse entendimento de raízes seculares que a concepção de
interdisciplinaridade e de intersetorialidade deve se pautar, exigindo a dispensa
de relações não dialéticas que, embora se considerem inovadoras ou pós-
modernas, são incapazes de ofertar uma alternativa relacional mais
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consistente. Na verdade, poder-se-ia até dizer, com base em Jameson (2006),
que as novas visões de mundo, geralmente identificadas como “pós” a algo que
lhes antecede, não passam de um pastiche7. O caso do pós-modernismo é,
nesse sentido, exemplar: conforme Jameson (IDEM), a sua unidade (se existe),
“é dada não por si mesma, mas pelo próprio modernismo que busca destronar”
(p..18).
Retomando e explicitando o significado de interdisciplinaridade e de
intersetorialidade na perspectiva dialética
Como já mencionado, a forma mais simples de caracterizar a
interdisciplinaridade é contrapô-la à disciplinaridade, conceito com o qual a
interdisciplinaridade mantém divergências, mas não total rejeição. Ou, tomando
de empréstimo uma antiga expressão de Otávio Ianni (1986): mantém relação
de reciprocidade e antagonismo ao mesmo tempo, o que põe em evidência o
caráter dialético dessa relação. Se não, veja-se:
Disciplina significa domínio especializado do saber, domínio este que
tende a ficar cada vez mais confinado a um recorte da realidade quanto mais
essa realidade se torna complexa e mutável e amplia a cadeia de fatos a serem
conhecidos e cientificamente controlados. Diante dessa tendência, cada
ciência, ou ramo de conhecimento, interrompe a cadeia de fatos no ponto em
que julga dominar, perseguindo uma verdade particular, ao mesmo tempo em
que renuncia a outros conhecimentos por não serem de sua alçada. Tal
procedimento, embora propicie conhecimentos parciais, passíveis de compor
um todo articulado, tem incentivado o isolamento intelectual, a fragmentação de
objetos de estudos e o distanciamento do sujeito (cognoscente) do mundo real
(cognoscível), que só é real porque é a síntese de múltiplas determinações,
como já dizia Marx (1982). Portanto, a disciplina, ao se isolar no seu recorte, ou
no seu ponto de repouso arbitrário (artificial), deixa, por isso mesmo, de
merecer o nome de ciência, porque a ciência tem caráter universal.
7 Imitação pálida, ou infiel, de um estilo peculiar e único.
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É em contraposição a essa tendência que a interdisciplinaridade se
impõe. E se impõe não como uma proposta de aniquilamento da
especialização, já que esta configura o particular que se realiza no universal e
vice-versa, mas como um convite ou um alerta ao especialista para que este se
torne também sujeito da totalidade. Significa, portanto, procurar realizar a
unidade, e não a mera articulação, entre diferentes disciplinas no interior de um
projeto (intelectual ou de intervenção) de interesse comum. Nesse sentido, a
interdisciplinaridade diferencia-se não só da disciplinaridade e da sua
propensão individualista, mas também da multi , da pluri e
transdisciplinaridade, que mais se assemelham a “justaposição disciplinar” .
A interdisciplinaridade sugere, pois, relação de reciprocidade entre
saberes distintos, com suas contradições específicas e inerentes, tendo em
vista à recomposição da unidade segmentada do conhecimento, que, na
realidade, não é compartimentalizado (PEREIRA-PEREIRA, 1992 ).
Tal afirmação remete à complexa questão epistemológica da existência
ou não de espaços específicos ou singulares de conhecimento que seriam do
domínio exclusivo de disciplinas particulares.
Embora reconhecendo a complexidade da questão e a incipiência do
debate sobre a mesma, tem-se que admitir a existência de interfaces entre as
disciplinas, que permitem a interconexão de seus achados científicos, apesar
de sua delimitação formal. E isso só é possível porque não existem territórios
cativos do saber, mas espaços móveis cujas fronteiras se alteram e se
expandem de acordo com o movimento do real e do vivido que não comporta
segmentações. Assim, para que cada especialidade possa ser a representação
confiável desse real e desse vivido é preciso se abrir para o intercâmbio
interdisciplinar (PEREIRA-PEREIRA, IDEM).
É por essa visão interdisciplinar que a intersetorialidade deve ser
tratada, com uma diferença: os denominados “setores”, que devem se
interligar, não são propriamente “setores”, mas políticas particulares, ou
especiais, com seus movimentos concretos e contradições específicas, mas
com uma lógica comum. Como cada política é um conjunto de decisões e
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ações, que resulta da relação conflituosa entre interesses contrários, fica claro
que a intersetorialidade é a representação objetivada da unidade dessas
decisões e ações. Portanto, é preciso ter claro que a divisão da política social
em “setores” é procedimento técnico. E só nesse sentido essa divisão tem
cabimento, pois o conhecimento, assim como os bens públicos e os direitos,
não são divisíveis e sua separação para efeitos de estudo não é disciplinar ou
setorial, é temática. O conhecimento avança à medida que seu objeto se
amplia e se desvenda na sua integralidade (PEREIRA-PEREIRA, 2004).
Por isso, a intersetorialidade não é uma estratégica técnica,
administrativa ou simplesmente gerencial. É um processo eminentemente
político. Ela envolve interesses competitivos e jogo de poderes que, muitas
vezes, se fortalecem cultivando castas intelectuais, corporações, linguagem
hermética e auto-referenciamento de seus pares. Por isso, a tarefa de
intersetorializar não é fácil, mas também não é impossível, desde que todos
estejam conscientes de que vale a pena persegui-la em prol da democracia.
O status da aplicação da intersetorialidade no Brasil 8
No Brasil, segundo Monnerat e Souza (2010), há poucas publicações
sobre a intersetorialidade. A maioria da bibliografia disponível é oriunda das
áreas da Administração Pública e da Saúde Coletiva. As áreas da Educação e
da Assistência Social têm produção pequena embora a assistência se
apresente como intersetorial por princípio e por sua própria natureza dita
transversal.
Com isso fica claro que, apesar dos avanços sociais inscritos na
Constituição Federal de 1988, prepondera a fragmentação da ação social
estatal. E esta fragmentação se torna mais acentuada quanto mais a realidade
se torna complexa e portadora de novos desafios sociais (envelhecimento
populacional, transformação da família, problemas migratórios, ameaça ao
meio ambiente, etc). Em face dessa tendência e da prevalência dos discursos
pós-modernos, a intersetorialidade vem sendo pensada de forma pragmática:
como uma estratégia de gestão competente e eficaz, com o objetivo de otimizar 8 O conteúdo deste item apóia-se basicamente no artigo de Monnerat e Souza (2010)
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recursos humanos e financeiros. Esta é uma visão mais própria da
Administração pública.
Visão da Administração Pública: intersetorialidade como síntese
Segundo essa visão, a intersetorialidade é uma condição imprescindível
para articular áreas de conhecimento e de práticas com memórias técnicas e
institucionais específicas (MONNERAT E SOUZA, IDEM, p.203).
O maior debate recai no planejamento de ações. Esse planejamento,
sob o prisma da intersetorialidade, não é entendido na perspectiva normativa e
prescritiva, mas como negociação de interesses, considerada a chave para a
construção de sinergias entre diferentes saberes e áreas. Neste caso, o
planejamento deve ser conjunto, traduzindo-se como a articulação entre
saberes e práticas setoriais, na qual a intersetorialidade funciona como síntese
de conhecimentos diversos para atuar sobre problemas concretos. Mas, a idéia
de síntese não prescinde dos fazeres e atribuições setoriais, pois dá grande
importância aos domínios particulares.
Entretanto, essa perspectiva esbarra nos seguintes desafios:
a) Enfrentar a lógica dominante da ciência moderna que continua a
valorizar a segmentação dos campos de conhecimento e ação e,
consequentemente, a fortalecer a esquizofrenia intelectual e
operativa. Esse enfrentamento requer análise global dos
problemas e das estratégias de gestão intersetorial em relação a
práticas mais eficazes;
b) Avaliar os prós e os contras da defesa da territorialização para a
“boa” prática da intersetorialidade. É que para muitos a
delimitação de uma área comum para a ação de diferentes
políticas setoriais é condição primeira para a promoção da
intersetorialidade (IDEM, p.202). Mas isso é polêmico.
Geralmente essa área comum recai no município por ser o locus
mais descentralizado e onde as pessoas vivem. Entretanto, há
que se ter cuidado com o prorização do localismo,
desresponzabilizando as esferas estaduais e federal. É certo que
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muitas iniciativas inovadoras vêm ganhando espaço nos
municípios, mas é forçoso reconhecer que estas ações esbarram
em limites locais. É problemático restringir as práticas
intersetoriais no âmbito local e torná-las experimentais, porque os
municípios tendem a reproduzir a fragmentação prevalecente na
gestão de cada política setorial devido às dificuldades de
implementação de políticas que cada um enfrenta. Ademais, não
se pode esquecer que o Brasil é uma Federação;
c) Promover mecanismos que favoreçam o diálogo e os fluxos de
informação e comunicação (IDEM, 204). “Estes aspectos são
considerados cruciais para o enfrentamento das diferentes formas
de pensar dos atores envolvidos e das disputas de poder que
atravessam a concretização de ações intersetoriais” (Id.Ib).
Em suma, por essa perspectiva a intersetorialidade afigura-se como uma
síntese possibilitada pela predisposição ao diálogo. E a sua pedagogia é a da
comunicação. A sua grande tarefa é romper as barreiras comunicacionais que
impedem o diálogo entre diferentes setores. Isso não significa anular
particularidades, mas reconhecer os domínios temáticos, comunicando-os para
a construção de uma síntese. E, para ser conseqüente, a ação intersetorial
implica trabalhar com problemas concretos, de gentes concretas, em territórios
concretos.
Visão da Saúde Coletiva: intersetorialidade como articulação
Embora a Saúde coletiva não discorde da concepção de
intersetorialidade da Administração Pública, ela possui um entendimento mais
específico sobre este assunto. Essa área concebe a intersetorialidade no
mesmo sentido da Organização Mundial de Saúde (OMS), a saber, qual seja:
“uma articulação de ações de vários setores para alcançar melhores resultados
de saúde” (MONNERAT e SOUZA, IDEM, p.205).
Além disso, diferente da Administração, ela “vem apresentando uma
visão bastante endógena de intersetorialidade”, por entender que são as
outras áreas da política pública “que devem se juntar a ela para intervirem
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coletivamente sobre um problema de saúde previamente identificado” (IDEM,
p.206). Para flexibilizar essa compreensão a Organização Pan-Amerticana de
Saúde (OPAS) considera que “a ação intersetorial demanda da área de saúde
não somente iniciativas, mas atendimentos a convocatórias de outros setores”
(Id.Ib).
Entretanto, a preocupação atual da saúde com a intersetorialidade pode ser observada na revitalização do debate sobre os determinantes sociais do processo saúde-doença e o resgate de princípios fundamentais do projeto de Reforma Sanitária [universalidade, por exemplo]. Isso indica a intenção de recuperar a potência política da reforma setorial e, ao mesmo tempo, buscar saídas para os impasses setoriais após vinte anos de implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Em virtude disto, a perspectiva da promoção da Saúde, cuja lógica incorpora necessariamente ações intersetoriais, vem ganhando cada vez mais centralidade no âmbito das discussões nesta arena política (IDEM, p. 206)..
No campo da Assistência Social o governo federal, por meio do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, “tem investido
na reconstrução da política de assistência social com base na formulação de
programas com desenho intersetorial. Essa preocupação pode ser vista na
concepção do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e do Programa
Bolsa Família (IDEM, p. 206). Mas, o problema com a assistência social é que
ela é tratada formalmente como setorial, quando, mesmo nesse nível, ela se
revela intersetorial.
Na Educação,
principalmente no período mais recente, são notórios os esforços para empreender experiências de gestão intersetorial. A necessidade de articulação se evidencia com a persistência de indicadores negativos quanto à evasão escolar, altas taxas de analfabetismo, disparidade na relação idade série. Assim, o olhar da educação sobre a intersetorialidade tem como base o reconhecimento de que os problemas estruturais que afetam as famílias repercutem diretamente nas condições de aprendizagem das crianças e adolescentes (IDEM, p. 206/207)
Há, portanto, “um campo de possibilidades de diálogos entre as áreas
citadas, mas que se traduzem em enormes desafios práticos” (Id. Ib).
Por isso, pode-se dizer que, sobre a intersetorialidade,
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há um consenso discursivo e um dissenso prático. Esse dissenso nasce da contradição entre a necessidade de integração de práticas e saberes requeridos pela complexidade da realidade e um aparato de Estado setorizado no qual se acumulam, com maior ou menor conflito, poderes disciplinares e poderes advindos de composições político-partidárias (ANDRADE, 2006, apud MONNERAT e SOUZA, IDEM, p.208).
Isso sem falar que só pelo diálogo e comunicação não se articula e nem
sintetiza nada.
Na verdade a integração desejada é muito audaciosa. “Passa
necessariamente pela construção criativa de um novo objeto de intervenção
comum aos diferentes setores do Estado” (Id. Ib. ). . Isso difere da mera
sobreposição ou justaposição de ações setoriais (articulações e sínteses) e
requer também uma nova institucionalidade.
E, dessa forma, a intersetorialidade surge não só como uma alternativa
de gestão social, mas como uma ruptura epistemológica com os modelos
disciplinares prevalecentes. Mas, novamente adverte-se que a
intersetorialidade assim pensada não anula os espaços específicos das
políticas particulares, ditos setoriais, pois a intersetorialidade fortalece e
atualiza essas políticas, universalizando-as.
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