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Este é u m livro q u e pretende discutir o
princípio d a pureza metódica, como cr i -
tério epistemológico vertebral d a Teoria
Pura d o Direito. Através deste critério
s ã o
estabelecidos
o s
fundamentos cate-
goriais d e u m a ciência normativa d o direi-
t o b e m como enunciada u m a condição d e
sentido para
a s
normas
e
proposições
jurídicas.
Trata-se de um trabalho inserido n o
universo d e questões levantadas pela
epistemolog ia crítica d a s ciências sociais,
preocupada e m explicitar a s dimensões
Ideológicas
d o
conhecimento numa dada
sociedade. Esta teoria crítica analisa a
dimensão simbólica d a política, visando
mostrar o poder que o discurso d a ciência
atinge invocando critérios epistemológi-
c o s puros. Neste sentido é que a domina-
ç ã o adquire pela ciência u m reforço para
o seu exercício. Assim, este livro fala d a
pureza
d o
poder
e m u m
sentido ambiva-
lente: o poder d o discurso e o poder d o
Estado.
O fascínio q u e este livro desperta está
n a
medida
em que o
autor concilia,
em
u m a
perspectiva inovadora
o
engendra-
mento d a teoria pura d o direito c o m a s
modernas contribuições d a semiologia,
ciência política e a sociologia. Paralela-
mente
a
estas abordagens,
o
livro revela-
se extremadamente didático, podendo o
leitor adquirir u m conhecimento d a obra
d e Kelsen q u e o faça refletir em torno à
s u a
importância
e
seus limites.
A s idéias s ã o apresentadas dentro d o
espírito d e u m a obra aberta, q u e provoc a
naqueles
q u e a
lêem vontade
de
reescre-
vê-la. Como diria Barthes, u m texto que
você terá prazer e m t raba lhar .
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PUREZ
DO
PODER
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J L
UNIVERSIDADE FEDERAL D E SANTA CATARINA
Ernâni Bayer — Reitor
Nilson Paulo — Vice-Reitor
Conselho Editorial
Silvio Coelho
d o s
Santos
—
Presidente
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Carlos Humberto
P .
Corrêa
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E d ú
Rosa
Rosa Weingold Konder
Walter Celso
d e
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Salim Miguel — Diretor Executivo
d a
Editora
d a
UFSC
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LUIS ALBERTO WARAT
U N I V E R S I D D E E S T D U L
E
L O N D R I N
4. ,/fti.i. 4
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t
Ç-Dipeuir « m̂r<i Am
*
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Hío OÍ
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PUREZ
DO
PODER
U m a anál ise cr í t ica d a teoria jur ídica
FLORIANÓPOLIS
EDITORA DA UFSC
1 9 8 ?
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C ) Luis Albert o Warat . 1983
Editora d a UFSC,
Campus Universitário — C.P . 476
Trindade
88.000 — Florianópolis — S . C .
Revisão: João Francisco Sepetiba
FICHA CATALOGRÁFICA
Catalogação
na
fonte pelo Depar tamen to
d e
Biblioteconorrlia
e
Documentação
d a
UFSC)
W253 Warat, Luis Albe rto
A pureza d o poder: u m a análise crítica d a teoria
jurídica/Luis Alberto Warat. — Florianópolis:
Ed . da UFSC. 1983.
1 3 4 P -
1. Teoria d o Direito. 1. Título.
C D U 340.11
CDD 340 .1
índice para
o
catálogo sistemático
C D U )
1 —
Teoria
d o
Direito
—
340.11
Reservados todos os direitos d e publicação total ou parcial, pela Editora d a UFSC.
Impresso no Brasil/Printed in Brazil
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Dedico este trabalho meus
companheiros do Mestrado em
Direito d Universidade
Federa de Santa
Catarina
professores e alunos.
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Sumário
APRESENTAÇÃO 13
OBSERVAÇÕES
D O
AUTOR
17
INTRODUÇÃO 19
CAPÍTULO I
A PUREZA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES 27
CAPÍTULO
II
A PURIFICAÇÃO POLÍTICA E IDEOLÓGICA 41
CAPÍTULO
III
A PURIFICAÇÃO ANTI JUSNATURALISTA 57
CAPÍTULO IV
A PURIFICAÇÃO ANTI NATURALISTA O U
ANTI C A U S ALISTA 67
CAPÍTULO V
A
PURIFICAÇÃO INTRA NORM
ATI VA 81
CAPÍTULO V I
A PURIFICAÇÃO MONISTA O U ANTI DUALISTA 99
CAPÍTULO VII
CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE O PRINCÍPIO D A
PUREZA METODOLÓGICA 117
CONCLUSÕES 123
BIBLIOGRAFIA
127
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Apresentação
O
pensamento filosófico-jurídico
de
Hans Kelsen, apesar
da
oposição
qu e
jamais deixou
de
suscitar,
é o
mais importante marco
de
referência do dogmatismo positivista e logicista do saber jurídico
contemporâneo.
Curiosamente,
é
também
a
tentativa mais interessante
e
expressiva
d e superação da velha dogmática jurídica, construída a partir da re-
cepção do direito romano e consubstanciada nos paradigmas d a ciência
jurídica européia, cujas manifestações mais importantes foram
a
escola
da exegese, na França, a jurisprudência analítica no mundo d a common
l a w e a
jurisprudência conceituai
no
mundo germânico.
Herdeiro do cientificismo logicista característico da tradição filo-
sófica alemã, procurou o grande mestre da escola de Viena superar todo
ceticismo epistemológico,
o
qual.defluía daquela maneira
de
conceber
o
direito como o sistema de normas positivas, e sua ciência, como a teoria
d a
interpretação
do
direito positivo mediante
os
instrumentos
da
lógica
formal;
e o
caminho Kelseniano, coerentemente
com o
contexto teórico
onde abebera sua formação filosófico-jurídica, foi o dos neokantianos
d e
Marburgo, procurando
a
categoria gnósica fundamental
do
direito.
Essa categoria vislumbrou-a
no
soll n
— a
imputação
— que não é
a
concreta obrigação jurídica,
m as o
nexo lógico entre
o
antecedente
e o
conseqüente, ao ocorrerem num contexto d e liberdade, nexo imputativo
que é apreendido pelo trabalho intelectual do jurista; essa apreensão
todavia começa
por um
trabalho
de
depuração
do
direito,
de
seus
con-
teúdos éticos, políticos e ideológicos.
Eis o princípio da pureza metódica erigido em postulado científico,
ou seja, em condição primeira do direito como ciência normativa.
Neste estudo da teoria pura do direito, o qual tenho a honra de
apresentar, o jovem professor da Universidade Federal de Santa
Catarina, Luis Alberto Warat, toma o princípio da pureza metódica
como o núcleo do pensamento kelseniano absorvido pelo senso comum
teórico
dos
juristas,
e
trata
de
considerar
as
respectivas implicações
epistemológicas, segundo
a
perspectiva crítica
do
instrumental teórico
da
moderna filosofia
d a
linguagem
e da
argumentação.
1 3
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Segando esse enfoque Luis Alberto Warat põe a descoberto a
falácia em que o princípio se constitui quando pretende fundar uma
teoria jurídica apolítica
e
descompromissada especialmente levando
em
conta
os
seus propósitos
de
rigor científico
e
também
a
contradição
implicada pela
sua
irresistível transformação
em
tópico
de
legitimação
da ordem jurídica.
Mas não se
trata
no
estudo
a
seguir
de uma
refutação
do
postulado
kelseniano
nem
mesmo
de uma
teorização analítica
dos
pressupostos
ideológicos da teoria pura; o objeto das reflexões de Warat não é a obra
de Kelsen mas a interpretação que dela f az o saber jurídico acumulado
cujos resultados operacionais não são a neutralidade almejada pelo
mestre
mas a
legitimação ideológica
da
ordem social pela legitimação
da
exigência
de
neutralidade como condição
do
saber jurídico.
U m a releitura da concepção kelseniana do direito ta como é re-
cuperada pela ciência jurídica eis portanto o que nos oferece o profes-
sor de
Florianópolis.
S ua
proposta epistêmica
não
fica adstrita
à
leitura
crítica
dos
silêncios
das
entrelinhas
da
exigência
de
pureza metodoló-
gica; a teoria pura é somente o ponto de partida para a articulação de
novas idéias que vêm enriquecer sobremaneira a filosofia do direito no
Brasil; nesse trabalho pioneiro Warat adentra novos caminhos suge-
rindo as alternativas de superação das insuficiências do postulado da
pureza metódica pela assunção consciente
de seu
alcance ideológico
a
partir de sua internalização pelo pensamento dogmálico-jurídico.
Warat revela como ocorre a recuperação d os postulados kelsenianos
pelo senso comum teórico
dos
juristas mediante
um
processo
de dog-
matização
que
insere
a
teoria pura
nos
parâmetros
da
ciência jurídica
tradicional. E o resultado dessa recuperação é justamente o efeito ideo-
lógico
de
legitimação
o
qual demonstra Warat
é
algo inerente
à
expe-
riência jurídica
e não
pode
ser
elidido pelo saber jurídico.
Da í a proposta de um a superação do postulado d a pureza metódica
segundo um realismo crítico que o leva a buscar as determinantes da
significação jurídica
nos
marcos teóricos
d a
filosofia
da
linguagem
e que
Warat expressa pelo princípio da heterogenia significativa. Por ele,
f assevera o autor que as expressões normativas do direito não são porta-
doras de significação autônoma m as receptáculo das significações ela-
, boradas pelas diversas instâncias do poder social; e entre estas privi-
; legia a doutrina jurídica ou seja as criações teoréticas da ciência do
direito.
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Warat é expressivo exemplo de como é possível o trabalho intelec-
tual sério e de conteúdo crítico sem o tom enfadonho e a absoluta
carência
de
originalidade
de
tantas exposições destinadas
ao
ensino
jurídico e ao consumo profissional dos bacharéis em direito com as
quais
o
país
tem
sido inundado; criar sobre
o
estabelecido questionar
o
intocável problematizar o institucionalizado e com isso inovar des-
bravar os novos campos de pesquisa no contexto de um saber que
nunca como
no
atual momento histórico esteve
tão
necessitado
de
renovação eis o alcance da obra que me cabe apresentar e cuja impor-
tância é evidente.
Tal como em seus trabalhos anteriores voltados para a renovação
d a epistemologia educacional do direito Warat destrói os mitos que o
ensino jurídico construiu para acostumar
o
estudante
de
direito
a
apren-
der sem perguntar e por isso j á o chamaram iconoclasta. M as Warat é
antes
de
tudo
um
pioneiro
um
professor cuja presença
no
Brasil
o
transformou em núcleo de irradiação de um pensamento sempre reno-
vado e compromissado com a realidade do direito e da sociedade. Eis
um autor que consegue a proeza bachelardiana de criar seu próprio
objeto num campo teórico em que a repetição e a inautenticidade
constituem lugar comum.
Luiz Fernando Coelho
1 5
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OBSERVAÇÕES D O AUTOR
Este trabalho, originalmente intitulado Considerações Epistemo-
lógicas sobre
o
Princípio
d a
Pureza Metodológica ,
foi
elaborado para
cumprir
u m d o s
requisitos necessários
ao
Concurso
de
Professor Titular
d e introdução ao Direito e Filosofiado Direito, da Universidade Federal
de
Santa Catarina.
Fo i
submetido
à
banca examinadora integrada pelos
professores Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Tarcísio
d e
Miranda Burity
e
Luiz Fernando Coelho.
O s debates com os examinadores permitiram-me perceber aspectos
n ão
explorados, silêncios
a
serem preenchidos, idéias
a
serem aclara-
d a s
como também a)guns fragmentos
que
exigiam alteração
e
supressão.
Destarte, deve levar-se
em
consideração
a
natural inconformidade
q ue
todo autor sente
ao
reler
seu
próprio texto.
N o
entanto, muitas
vezes
n ão
existe
a
material possibilidade
de
reescrevê-lo. Neste caso,
aliou-se
à
carência
d o
tempo,
a
sensação
de que
poderia
ser
interessante
manter
a
redação
ta l
como
foi
apresentada, pois todo tribunal examina-
d o r assume um certo compromisso intelectual com o que aprova.
Posteriormente ao Concurso prestado, o texto foi discutido em
vários seminários, principalmente
em
minha cadeira
de
Epistemologia
Jurídica
d o
Mestrado
d a
UFSC. Estes debates produziram algumas idéias
que me
pareceram úteis incorporar
à
presente edição, através
de
notas
complementares (indicadas
em
letras minúsculas)
ao
final
de
cada
capítulo.
Quero expressar , po r outro lado, os meus sinceros agradecimentos,
em
primeiro lugar,
aos
professores examinadores,
que
emprestaram,
com seu
saber,
u m a
dimensão incomum
a
esse
ato.
Tenho, também,
um a
dívida profunda
de
gratidão para
com o
Prof.
Paulo Henrique Blasi
e
demais colegas
do
Mestrado, pelo constante
apoio e estímulo ao meu trabalho.
Agradeço profundamente
a
Gisele Cittadino pelo monumental
es-
forço
em
traduzir-me.
A ela
como
a
Leonel Severo Rocha
e
Elza
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Pereira Cunha, o meu profundo reconhecimento pela ajuda teórica e
afetiva
a o
longo
do ano da
pesquisa; gratidão extensiva
a
Iara Silva,
Dirce Bravo e Afonso Nascimento.
M eu
reconhecimento intelectual
aos
professores José Maria Gómez
e Júlio Raffo, cujas observações e críticas me foram extremadamente
úteis para
a
redação final
d o
texto.
Finalmente, mais qu e um agradecimento, a dedicatória deste livro a
meu pai , com
quem discuti toda
a
vida
os
temas deste trabalho,
a
ponto
de não
mais poder distinguir
as
suas opiniões
d as
minhas.
Ilha
de
Santa Catarina, outubro
de 1981.
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Introdução
1.
Este
é um
livro sobre
o
método
da
Ciência Jurídica. Neste sentido,
propõe um reencontro metodológico com a Teoria Pura d o Direito. E ,
po r qu e um reencontro com Kelsen? D e início, a pergunta sugere várias
respostas: preencher u m certo silêncio acadêmico sobre os textos
kelsenianos; realizar
um
estudo sobre alguns problemas colocados pela
Teoria Pura
a
partir
de
novas posições teóricas; explorar
os
limites
e
possibilidades
da
Dogmática Jurídica, apelando
a um
marco teórico
considerado, reiteradamente, como seu melhor espelho. Desta forma, a
proposta de um reencontro com a Teoria Pura do Direito poderia ser
entendida como u m a metáfora que indica a necessidade de uma dupla
atualização: d a Dogmática Jurídica e d a própria Teoria Kelseniana. N o
entanto, o alcance de minha proposta é mais abrangente do que essa
visão.
O
trabalho
q u e
agora apresento, deve
ser
considerado como
um
segmento de um projeto mais amplo que , no plano da epistemologia
jurídica, procura esclarecer a função que o saber jurídico cumpre como
fator co-determinante d a organização da sociedade. O tipo d e indagação
\ qu e
desejo fazer
a
respeito
da
epistemologia jurídica, trata
de
mostrar
os
i
efeitos sociais
de um
sistema
de
conhecimento visto, realmente, como
u m a técnica eficiente para o controle d o comportamento humano. E ,
i nesta perspectiva, as inquietações epistemológicas que constituem o
traço característico
de
minhas últimas reflexões podem
se r
inscritas
no
marco geral d e u m a Sociologia do Poder do Conhecimento 1), com toda
a
ambigüidade
q u e ,
hoje, caracteriza
a
delimitação
de um
espaço disci-
plinar
n as
Ciências Sociais.
A o
interrogar-me sobre
o
poder
dos
discursos jurídicos, devo
começar
p o r
reconhecer
que o
objeto temático resultante dessa investi-
gação é bastante distinto daquele q u e , seguindo o modelo positivista,
apresenta-se como um discurso superador objetivo, logicamente con-
sistente e desideologizado) das articulações conotativas evocadas pelo
sistema d e noções d a Dogmática Jurídica. Assim, poder-se-ia presumir
q u e ,
para tentar explicar
os
efeitos
que o
saber jurídico cumpre
na
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sociedade, ver-me-ia obrigado a u m duplo movimento de ruptura: em
relação
a o s
costumes
e
hábitos
do
pensamento jurídico-clássico
e em
relação
à
crença kelseniana
de que se
possa reconstruir
um sistem de
conceitos (logicamente controlados), liberados
das
enganadoras articu-
lações ideológicas. N o entanto, mais do que uma dupla ruptura, prefiro
falar de um deslocamento, de uma troca de lugares. Com efeito, se não
pretendo valer-me
d as
velhas noções conotadas pelo pensamento
dogmático d o Direito, tampouco tentarei expurgá-las, recorrendo, ilu-
soriamente,
à s
fantasias purificadoras daqueles
q u e
acreditam
no s
mila-
gres
d o
pensamento axiomatizado.
E m
princípio, tentarei organizar
um
esquema d a s razões qu e permitem explicar os efeitos específicos dos
diferentes planos
do
conhecimento jurídico
na
sociedade. Nesta
con-
cepção, tomando como ponto de referência a descrição das condições
sociais
de
existência
do
conhecimento jurídico, deve-se tentar teorizar
sobre
o
papei material
que o
saber jurídico cumpre
no
modo
de
organiza-
* çã o de um a sociedade. Aceitaüdo a idéia de que o saber jurídico sofre, no
processo d e construção d e suas categorias e significações, influências
d o
con texto social,
é
preciso superar
a
discussão
d e
tais condicionantes,
para tematizar
o s
efeitos
d o
saber jurídico
na
sociedade. Esta
é a
função
social q u e cumpre um discurso que, por sua vez, encontra-se social-
mente condicionado. Indubitavelmente a tarefa que me proponho, vin-
cula-se
à
recente problemática construída pelas reflexões epistemoló-
gicas dirigidas à construção d e u m a teoria crítica d a s ciências sociais.
T a l
teoria orienta-se
em
duas direções convergentes.
A
primeira esfor-
ça-se p o r mostrar as insuficiências epistemológicas surgidas pela acei-
tação indiscriminada
d o
paradigma cartesiano-positivista.
A
segunda
trata d a inserção do saber científico na prática social. Tais caminhos
convergentes permitiram à teoria crítica apresentar a Ciência Jurídica
nã o
como
um
ciência
dos
fatos,
m as
como
um a
técnica
de
efeitos.(2)
P o r tudo isto, é necessário, estabelecer, agora, algumas demarca-
ções provisórias
d o
campo específico desta pesquisa,
ao
mesmo tempo
q u e efetuar várias reflexões paralelas n a mesma linha da s anteriormente
elaboradas. N ã o pretendo, e m absoluto, com este trabalho, esgotar as
questões precedentemente colocadas. Elas constituem
as
idéias meto-
dológicas
de
base,
a
partir
das
quais tentarei problematizar várias
das
crenças q ue governam a produção das significações jurídicas; crenças
que, por sua vez , servem de fundamento às funções míticas que tais
significações desempenham. Deste modo, discutirei, especialmente,
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nesta pesquisa, os princípios d e egocentrismo textual qu e oferecem aos
juristas
o
critério central
d a
condição
de
significação normativa
po r
eles
adotado. A partir desta perspectiva, procuro analisar o papel desempe-
nhado pelo teoria kelseniana na consolidação e reprodução de tal con-
dição d e sentido, b e m como n a manutenção d a Dogmática Jurídica como
um a
técnica
de
efeitos. Assim, pretendo apoiar-me
na
Teoria Pura
do
Direito para identificar pontos de partida teóricos aptos a integrar, em
um
segundo momento
de
maior profundidade,
a
problemática
do
jurídico
n o quadro de uma teoria crítica das ciências sociais. Para tanto, exa-
minarei a complexa articulação interna da Teoria Pura, realizando uma
leitura ideológica (crítica)
que
rejeitará certos chavões interpretativos,
colocando-nos diante
de
seus próprios silêncios, ambigüidades, fraque-
zas e efeitos ideológicos. Esta leitura deve abrir caminho à explicitação
da
função
d e
controle social
e
legitimação
que
desempenham
os
discur-
sos
coerentes
e
sistemáticos, mostrando
o
caráter político
da
função
explicativa d a ciência.
2. Para questionar o princípio de imanência da análise jurídica,
tentarei efetuar um a leitura ideológica d a teoria onde ta l princípio apa-
rece, mais conscientemente, explicitado. Es ta leitura ideológica crí-
tica), tendo
e m
vista
a
problemática apresentada, refere-se
ao
princípio
de
imanência significativa,
não só
para discutir
as
condições internas
produção do saber jurídico, m as para mostrar as conseqüências ideoló-
gicas
e
políticas
de um
princípio epistemológico
q ue
considera externo
a
seu campo problemático os fatores extranormativos. A leitura ideoló-
gica sobre
a
teoria kelseniana necessitará, também, explicitar suas
relações latentes
com o
jusnaturalismo. externando
a
reintrodução
de
um sutil sincretismo entre as duas perspectivas. C om efeito, ambas as
tendências, aparentemente antagônicas,
nos
propõem
a
idealização
de
u m a categoria que , estabelecendo certas condições para a determinação
d a
verdade, cumpre claras funções mitificadoras. Assim,
o
Jusnatura-
lismo, mediante a categoria na tu reza , produz a mitificação do con-
teúdo
d o
Direito,
e o
positivismo, através
da
categoria
da
imputação,
realiza
a
mitificação
da
forma
d o
Direito.
3)
N a
verdade,
a
Teoria Pura
d o
Direito representa, também,
um
lugar
ideológico importante,
na
medida
em que,
deslocando problemáticas,
encontrando um fundamento epistemológico para o princípio de
fmanência significativa, criando a ilusão da posse de um discurso
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objetivo, conforma
um a
cadeia
d e
conotações específicas, claramente
articuláveis com o sistema d e conotações da Dogmática Jurídica e das
doutrinas d o Direito Natural.
E necessário acrescentar que um discurso crítico sobre a teoria
kelseniana deve se r capaz, antes de tudo, de mostrar como um discurso
logicamente consistente estabelece, também, um a proposta de racio-
nalidade ideológica. Como assinala Marilena Chauí, a racionalidade
ideológica não é apenas aquela do discurso tradicionalmente reco-
nhecido como ideológico
mas é
sobretudo
a
racionalidade
que
sustenta logicamente o q u e entendemos por saber científico e por
objetividade
nas
ciências sociais.(4)
A meu
juízo,
o
discurso crítico
que
estou propondo
n ão é um
outro
discurso alternativo, oposto
ao
discurso kelseniano,
mas um
contra-
discurso, um texto negativo construído dentro do próprio discurso de
Kelsen.
Em
princípio, trata-se
de um
processo pelo qual
se
torna
manifesto
um
sistema
de
sentidos latentes.
N a
leitura ideológica,
no
discurso crítico, há , por assim dizer, um a permanente busca d e elemen-
to s indicativos de um sistema d e silêncios significativos. E m outras
palavras, estou falando de um sistema de sentidos conotados que,
apesar
de
serem captados (nebulosamente) pelos receptores
das men-
sagens,
não
podem
ser
lidos
na
superfície textual
dos
discursos.
E m
virtude disto, é impossível externar os sentidos ideológicos fora do
próprio discurso
que os
transmite
(5). O ra , é a
explicitação desses
sentidos silenciados que permitirá indicar sua função na sociedade. É
este
o
sentido
de meu
retorno
a
Kelsen.
3 .
Antes
d e
prosseguir nestas considerações introdutórias, desejaria
aprofundar, um pouco mais, as pretensões kelsenianas em torno à
produção
de um
discurso logicamente consistente para
a
Ciência
do
Direito.
A Teoria Pura coloca-nos diante de um controle lógico e intra-
sistemático
d a
Dogmática Jurídica. Assim,
a
crítica
que o
método kelse-
niano n o s propõe limita-se a uma ruptura c om aqueles conceitos dogmá-
ticos q u e apenas constituem resíduos d a s opiniões, do s costumes e dos
apelos metafísicos
(e que
parecem articulados
sob a
forma
de uma
necessidade essencial).
A
crítica kelseniana resulta, pois,
no
aperfeiçoamento lógico-racio-
nal da
metodologia jurídica existente, propondo
a
transformação
da
doxa jurídica, d a s falsas transparências conceituais e prenoções so-
bre o Direito, em epist eme .
2 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Kelsen, c o m a Teoria Pura, procura romper a unidade ilusória d a
doxa jurídica (ideologia), através
de um
processo crítico
q ue
conduz
à purificação lógico-racional d o conceito. Acredita na possibilidade d e
descobrir relações paradigmáticas essenciais q u e permitem constituir
racionalmente
a s
verdadeiras articulações
d o
real. Deste modo, para
Kelsen, o s conceitos definem as condições abstratas d e toda ordem
jurídica possível.
Entretanto, o divórcio progressivo entre os conceitos racionais e o
campo ideológico d o discurso (o qual a té então estava articulado),
conduziram
a uma
ilusão oposta:
a
suposição
de que ,
além
d o
discurso
d a doxa , o s conceitos isolados de qualquer articulação ideológica ou
metafísica podem, através
de um
simples desdobramento
d e
suas virtua-
lidades lógicas, reconstruir
o
conjunto
d a
realidade.
U m a
reconstrução
que , por sua vez , pressupõe a neutralidade no plano político e moral.
Se, ao nível d a doxa , o s conceitos aparecem articulados por
princípios ideológicos externos
à sua
natureza lógica,
a
filosofia racio-
nalista transformou
a s
propriedades lógicas
n o s
únicos princípios
vin-
culantes
d o s
conceitos. Além disso,
ta l
filosofia postula
o
caráter siste-
mático destas, relações
e a
possibilidade
de
reconstruir, através
das
mesmas,
um
sistema
tão
amplo como
o que
caracterizou
o
discurso
d a
doxa :
o que é
epistemologicamente impossível
e
ideologicamente
suspeito.
Mas , em que
radica esta impossibilidade epistemológica?
A
meu ver e la se refere à noção d e objetividade adotada p o r Kelsen; ou
seja,
a
noção
d e
objetividade aceita
p o r
Kelsen promove
u m a
idéia
de
racionalidade inscrita no próprio real e , desta forma, qualquer trabalho
teórico filiado
a
esta perspectiva, fica reduzido
a uma
tarefa
d e
redesco-
brimento d a s verdadeiras articulações d o real. P o r isto mesmo, o
discurso crítico adquire su a consciência, realizando u m questionamento
d a própria noção de objetividade, o que equivale a dizer que ele necessi-
ta forçosamente estar ligado a uma teoria crítica d as ciências so-
ciais. (6)
4. Discutir a s concepções kelsenianas implica aceitar um certo
desafio e engajar-se em um espaço teórico amplamente controvertido.
Evidentemente, existem inúmeras interpretações sobre
o
conteúdo,
significado
e
alcance
d a
Teoria Pura
d o
Direito. Algumas claramente
formuladas contra
o
pensamento kelseniano
e ,
portanto, reducionistas
e
simplificadoras. Outras, s em se oporem a Kelsen, relacionadas com as
2 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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mais variadas
e
divergentes fontes inspiradoras: Kant,
o
positivismo,
o
neopositivismo lógico, Husserl, Weber,
e tc . N a
verdade, estas diver-
gências podem,
em
parte,
ser
atribuídas
ao
fato
de que nas
várias
versões da Teoria Pura que Kelsen apresentou-, raramente são explici-
tados em forma plena os fundamentos metodológicos em que o autor se
apoia. Isto provoca sérios problemas interpretativos. Naturalmente, a
explicitação
do s
supostos metodológicos implícitos, provoca
um a
série
d e
leituras alternativas
d o
discurso kelseniano, conforme
o
lugar
em que
tais supostos são inseridos como complemento d a argumentação. E este
problema também m e coloca frente a um a das principais opções meto-
dológicas deste trabalho.
Optei pela vertente positivista.
N o
entanto, isto
n ão
quer dizer
que
esquecerei certas influências kantianas ou neo-kantianas) vinculadas
principalmente à s origens da Teoria Pura, mas que perduram, de algum
modo, reformuladas pelas bases positivistas, as quais foram paulati-
namente assumidas p o r Kelsen.
U m a v e z solucionado este impasse epistemológico, preciso realizar
a escolha d o s autores q u e tomarei como marco de referência para a
elaboração do contra-discurso d a teoria kelseniana. P o r certo, como
n ã o poderia deixar de ser , apelei para o s trabalhos da Escola Analítica
d e
Buenos Aires,
e ,
também,
às
idéias
de
teóricos brasileiros, preocu-
pados com a obra kelseniana, como Tércío Sampaio Ferraz Jr . ,
Lourival Vilanova, Machado Neto, Luiz Fernando Coelho, entre
outros, além d e trabalhos relacionados com as novas tendências da
epistemologia crítica.
Devo ressaltar, ainda,
q u e
trabalhando
e
discutindo Kelsen
há
quinze anos, incorporei análise d e outros autores, q u e redefinidos por
m eu pensamento, subjazem e m minha crítica d a obra kelseniana. Con-
tudo, não creio haver interesse em discriminá-los aqui.
Importa afinal indicar nestas considerações introdutórias,
a
opção
feita
co m
relação
à
Semiologia, onde
as
propostas categoriais
de
Saussure,
as
recomendações desmitiflcadoras
de
Roland Barthes
e as
idéias de Viehweg sobre o caráter tópico-retórico dos raciocínios jurí-
dicos, servem
d e
marco teórico
de
referência para
meu
trabalho.
Considerando o marco teórico descrito, deveria eu escolher um
campo temático d a Teoria Pura d o Direito que servisse de elemento
gerador
a
toda
a
problemática
a ser
desenvolvida.
O
princípio
âa
pureza
metodológica pareceu-me
um
tema
que
satisfaz tais exigências
e e a
partir dele q u e busco fazer a desconstrução metodológica proposta.
4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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N o decorrer d o trabalho, este princípio é visto como um a ampla
formulação
d a s
condições
de
significação normativa
na
perspectiva
d o positivismo lógico). Sobre as conseqüências ideológicas desta pro-
posta centrarei m eu discurso crítico.
Creio, ainda,
na
necessidade
de uma
última advertência: tentei,
tanto quanto possível, n ão recorrer a conceitos externos à Teoria Pura
d o Direito; n o entanto, o leitor encontrará, em várias passagens do
trabalho, os argumentos kelseníanos, apresentados através de catego-
rias derivadas d o s rumos atuais d a Epistemologia e d a Semiologia. Isto
se
deve
a
dois motivos: primeiro,
à
necessidade
de
explicar
e, às
vezes,
aclarar
a
teoria kelseniana
a
partir
d o s
recursos teóricos
de que
atual-
mente dispomos; à necessidade d e estruturar um a linha d e raciocínio
q u e
permita tornar manifesto
o
sistema
d e
conotações latentes
na
Teoria
Pura d o Direito. Creio q u e apenas desta forma é viável a construção do
obje to temático sobre o qual possa intervir um a teoria crítica d o Direito.
Certamente, h á formas mais extensas e exaustivas de apresentar
u m
trabalho. Contudo, prefiro admitir
com
Donzelot
que uma
intro-
dução não pode se r mais do que a amostra de um conjunto de
impressões de base.
NOTAS
1) Paralelamente à realização deste trabalho, encontro-me orientando, n o mestrado em
Direito d a Universidade Federal d e Santa Catarina, u m a pesquisa sobre a Semiologia
d o
Poder,
que me t em
fornecido importantes subsídios para
a
elaboração deste
tra-
balho.
O
termo sociologia
d o
poder
d o
conhecimento pode
se r
interpretado como
express ão sinônima da semiologia d o poder.
2) Estas duas direções foram apontadas p o r Michel van de Kerchove em seu trabalho
*'Possibilite
e t
Limites d'une scier.ce
d u
droit .
in :
Revue Interdisciplinaire
d etudes juridiqves, 1978/1.
Neste mesmo texto o autor, citando Bachelard, faz
referência ã oposição ciência de fatos/técnica de efeitos, p. 5.
3) Ver a respeito o trabalho de Michel Vanderjor, anteriormente citado, p. 16.
4) Marilena Chauí. Crítica e Ideologia. Cadernos SEAF,
I, 1):
17, A go , 1978.
5) Sobre a s possibilidades e limites de um contra-discurso é importante assinalar que ele
Será eficiente que nã o reproduz, mediante u m simples deslocamento à cadeia cono-
tativa), na medida em que é construído atendendo às exigências de uma problemática
diferente.
6 ) Na verdade, a teoria crítica d a s ciências sociais deve te r como um de seus principais
objetivos a ampla discussão d a noção de objetividade. Esta análise indubitavelmente
redefine
as
relações entre ciência
e
ideologia, mostrando
que , em
muitos aspectos,
os
discur sos tradi cionalmen te identificados como ideológicos ou científicos apelam para
u m a
mesma noção
d e
objetividade.
2 5
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NOTA COMPLEMENTAR À INTRODUÇÃO
(a )
Interessa-me discutir
a s
interpretações institucionais
d o s
textos kelsenianos. princi-
palmente
a s
leituras realizadas
n a s
Universidades Latino-Americanas.
Vamos admitir q u e toda leitura institucional de um texto recria e se apropria d o
pensamento
q u e
supõe in terpret ar fielmente.
A
apropriação institucional
d o s
signi-
ficados
de um
texto produz
um a
série
d e
discursos ajustados
à
ordem,
às
relações
de
poder
e aos
interesses políticos
e
burocráticos
da
instituição. Enfim, trata-se
de uma
atividade
d e
intermediação discursiva,
q u e
recupera ideologicamente
o s
textos inter-
pretados, enquadrando-os
a
crenças teóricas
e à s
práticas políticas legitimadas pela
instituição. A instituição é , assim, um interlocutor repressivo c o m relação a o s textos
nela analisados.
AS leituras institucionais redefinem sempre a s significações textuais, pro vocando
diversos efeitos
d e
sentido,
a
partir
de um
jogo argumentativo
q u e
provoca
a
expro-
priação significativa.
N a s
Universidades,
o s
argumentos expropriadopes apóiam-se
n o
saber academi-
camente legitimado e nas leis epistemológicas que o governam. Assim, a Universida de
desempenha seu papel de marco institucional de apropriação de pensamentos e
saberes,
a
partir
de
certas crenças epistemológicas,
q u e .
como lugares comuns geral-
mente aceitos, operam como a lei de produção e expropriação d o s saberes que a
instituição
nos
apresenta.
Desta forma,
o s
testos expropriados pela instituição universitária roubam âmbi-
tos de
significações
e
reconduzem direção
de
sentido,
a
partir
d e u m a
invocação episte-
mológica,
q u e .
cancelando
os
efeitos
d e
poder
d o s
discursos acadêmicos, obtém
um a
aparência d e substancialidade insuspeita para o s diversos e sucessivos fragmentos
significativos
q u e
constitui
e
legitima.
N o
caso
d a
expropriação universitária
d o s
tex tos kelsenianos, surgem nitidamen-
te
como pano
de
fundo expropriado ',
o s
pressupostos epistemológicos
d o
Neopo-
sitivismo Lógico.
Neste trabalho, a crítica a o pensamento kelseniano encontra-se exclusivamente
dirigida
a o
discurso universitário sobre Kelsen.
N ã o m e
interessou, nesta pesquisa,
o
confronto d o kelseníanismo academicista com as interpretações d e raízes kantianas,
supostamente mais fiéis.
O s
juristas sofrem
a s
influências
de um
clima universitário:
n ã o
estudam
c o m
Kelsen,
nem com
Kant.
Sobre
os
conceitos
d e
argumentos expropriadores,
ve r
Rosa Maria Cardoso
da
Cunha:
A
Apropriação Institucional
d o
Pensamento Político-Clássico". IUPERJ,
mimeografado.
Recomenda-se. também,
a
leitura
d a
nota
b e h
deste trabalho.
2 6
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CAPÍTULO I
A
PUREZA: CONSIDERAÇÕES
PRELIMINARES
1.
Eis-nosdiantedaTeoriaPuradoDireito(l).
O
primeiro problema
co m o
qual
n o s
defrontamos
é o da
determinação
dos
princípios meto-
dológicos
q u e
permitem
a
construção
de um
objeto teórico, autônomo
e
sistemático, para
a
Ciência Jurídica.
E ,
neste sentido, como instância
epistemológica,
a
Teoria Pura pretende conhecer
os
horizontes proble-
máticos
e as
condições
de
possibilidade
d o
objeto
do
conhecimento
jurídico. Fornece-nos, também,
a
concepção
de
ciência
a que se
deve
recorrer para salvaguardar
a
produção
de um
saber científico dirigido
a o
Direito. Procura caracterizar
o
objeto particular
da
Ciência Jurídica
ou
o
Direito como objeto
de um
saber autônomo, regido
p o r
leis
que lhe são
próprias.
Para Kelsen, a autonomia da Ciência Jurídica requer a sua liberta-
ção de todos os elementos que lhe são estranhos; a Ciência do Direito
deve apenas pretender construir um conhecimento q u e tente responder
às questões d o q u e é e "como é o Direito, sem procurar explicitá-lo,
transformá-lo, justificá-lo, nem o desqualificar a partir de pontos d e
vista que lhe são alheios. Esta é a exigência metodológica fundamental
que nos
define
o
sentido
d a
idéia
de
pureza.
(2)
Textualmente, Kelsen afirma:
Quando
si
própria
se
designa
como pura
a
Teoria
do
Direito isto significa
que el se
propõe
garantir
um
conhecimento apenas dirigido
o
Direito
e
excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença o seu objeto tudo quanto
se n ã o
possa rigorosamente determinar como Direito.
(3)
Neste contexto
de
purificação,
não
pertenceriam
ao
campo temá-
tico, precisamente determinado como jurídico,
as
questões vinculadas
à
produção ou ajuizamento d as normas jurídicas. Estas constituem pro-
blemas
q u e
devem situar-se
no
âmbito
d a
Política Jurídica
(4).
Porque
o
tratamento
d e
tais questões,
n o
interior
d e u ma
Ciência objetiva
d o
2 7
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Direito, a qual se limita a descrever seu objeto, menosprezaria as neces-
sárias frontei ras entre
a
ciência
e a
política, entre
a
ideologia
e a
verdade.
Seria incorreto
n ão
perceber
que ,
quando
a
Ciência
do
Direito pretende
oferecer
—
apelando
p o r
exemplo,
a um
Direito justo
—
elementos para
a determinação d o conteúdo das normas jurídicas, encontra-se, indire-
tamente, produzindo Direito, indicando como este deve
ser
feito.
Tal
processo
é
particularmente visível
nas
análises respaldadas
po r
doutri-
n as
metafísicas
d o
Direito Natural,
uma vez que, em
nome
de uma
ciência imbricada com a problemática da justiça, o Jusnaturalismo pre-
tende legitimar
os
conteúdos
das
normas jurídicas.
A s
crenças sobre
a
possibilidade
d e
definir
e
estabelecer
um
Direito justo,
se bem que
deci-
sivas para
a
Política Jurídica, nada acrescentam
ao
ponto
d e
vista estri-
tamente científico
d o
Direito. Constata-se
que o
estabelecimento
de
padrões
d e
valor para
o
Direito positivo constitui
a
dimensão axiológica
d a
Política Jurídica.
5)
Assim, tanto
o
problema
d a
justiça, enquanto problema valorativo,
como
a
questão
da
prescrição indireta
dos
conteúdos normativos, esca-
p a m a u m a teoria jurídica exclusivamente preocupada com a análise do
Direito positivo como
u m a
realidade normativa
6). D aí,
resulta
que a
Teoria Pura, despreocupada
em
tornar
a
Ciência
do
Direito
um a
arma
poderosa
a
serviço
de
qualquer interesse político, enfrenta, decidida-
mente,
o
Direito Natural, negando-lhe qualquer valor teórico
na
produ-
ção do
campo temático
d o
saber jurídico.
O
Jusnaturalismo teria, neces-
sariamente,
um
papel destacado quando
nos
perguntamos como
o
Direi-
to
deve
ser , ou
quais
são os
conteúdos justos
q ue
devemos adjudicar-
lhe. O
Jusnaturalismo constitui, frente
a u m a
ciência normativa
d o
Direito,
um a
doutrina sobre
a
ação política
d o s
juristas.
E certo que a Ciência Jurídica produz o seu objeto. M a s , esta
produção, para
o
positivismo jurídico,
não
pode ultrapassar
o
território
gnoseológico. misturar-se
com as
formas
de
produção
e
aplicação
do
Direito, realizadas pelos diversos órgãos co m autoridade jurídica 7).
T a l
visão sobre
a
produção
d o
conhecimento jurídico deriva
d e
Kant;
para
e le ,
toda ciência constitui
seu
objeto,
ou o
produz,
ao
percebê-lo
como
u m a
totalidade significativa.
N a
teoria kantiana,
os
dados
a que
um a
teoria científica
se
refere carecem,
em seu
momento pré-científico,
d e
significação.
É
mediante
o
trabalho
de
sistematização
da
ciência
que
eles adquirem sentido; fala-se assim,
de um a
significação construída,
de
u m
objeto científico produzido.
8)
2 8
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N o
caso
d a
Ciência
do
Direito,
as
normas positivas
de um
grupo
apresentam-se
ao
olhar
do
cientista, como
um
conjunto caótico
que
configura
o
Direito pré-científico
9). Por
isso,
a
Ciência
do
Direito
constitui
seu
objeto, dotando
a
pluralidade caótica
d e
normas positivas,
no
processu
de sua
sistematização,
de uma
totalidade
de
sentido.
N a
produção
|de uma
teoria científica
do
Direito, apreendem-se
os
dados
jurídicos como
um
objeto unitário;
e
esta unidade
de
sentido transforma
as
normas jurídicas positivas
em uma
ordem jurídica. Neste ponto
convém indicar
que uma
Ciência
do
Direito,
em
sentido estrito, constitui
seu
objeto externando
as
possíveis significações,
o
complexo
de con-
teúdos alternativos
que
possa
ser
logicamente derivado
das
normas
positivas.
É
evidente
que ,
dentro
da
ordem
de
idéias
do
normativismo
kelseniano.
a
Ciência
d o
Direito apenas pode levantar
as
questões
lógicas
e
epistemológicas
que
permitam transformar
o
Direito Positivo
de um
grupo
em um
sistema unitário,
um a
ordern
sem
contradições. Esta
tese pareceria indicar
que ,
mediante
a
interpretação teórica,
não se
pode
tomar decisões sobre
as
possíveis significações desvendadas; estas
são
de
competência
d o s
órgãos encarregados
de
aplicar
o
Direito. Decidir
sobre os sentidos que devem ser adjudicados a uma norma é tarefa da
Política Jurídica. Neste caso, estaríamos frente
a uma
atividade simul-
taneamente operativa
e
retórica. Tratar-se-ia
de uma
interpretação
que
gira em tomo d o exercício e racionalização de um poder autocrático.
Pode-se dizer, pois,
que. nos
situamos frente
a
discursos legitimadores
de uma
modalidade
de
poder.
N o
âmbito desta perspectiva, importa
reiterar
que as
interpretações axiológicas,
as que
buscam
a
determi-
nação
d o
Direito justo,
a
partir
das
doutrinas
do
Direito Natural,
por
apoiarem as escolhas de significação para as normas jurídicas ou indu-
zirem
os
atos
de
legislação , respondem
às
intenções legitimadoras
a que
temos aludido, erigem-se
em um
universo tópico-retórico
que
justifica
o
exercício d a autoridade jurídica. A suspeita que aqui se pode levantar,
relativamente
à
concepção kelseniana, refere-se
às
possíveis utilizações
d o
conhecimento produzido pela Ciência
do
Direito, como tópicos
legitimadores
do
poder
dos
órgãos.
Ora ,
apesar
da
objeção colocada,
é
necessário
te r
presente
que a
tese
de que o
saber científico
não
condi-
ciona
a
escolha
d a s
significações produzidas pelos órgãos
do
sistema
de
Direito Positivo, está
na
base
do
pensamento kelseniano;
é uma
condi-
ção do
sentido
d o
próprio princípio
de
pureza metodológica.
A
especifi-
cidade
d o
objeto
d a
Ciência
d o
Direito exige distanciar
o s
enunciados
d e
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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seu
discurso, tanto
d a
política
de
produção
das
normas gerais, como
da
escolha
das
significações feitas pelos orgãos judiciais
e da
administração
estatal. Assim,
o
projeto
de uma
Teoria Pura
dü
Direito descansa
em
um a
distinção maniqueísta entre
as
normas jurídicas —gerais
e
indivi-
duais
— que
prescrevem certas condutas,
e os
juízos construídos pela
Ciência
do
Direito para descrevê-las.
C o m o
enfoque purificador, pretende-se
não
confundir
as
normas
jurídicas,
com os
enunciados
da
Ciência
do
Direito, cujo objeto
é o
Direito Positivo.
E ,
segundo esta idéia, nunca
se
poderia atribuir
à
Ciência
do
Direito
um a
atividade criadora
de
normas.
As
proposições
da
Ciência Jurídica
não são ,
para Kelsen, juridicamente obrigatórias. Esta
é uma
tese correta,
na
medida
em que não
orientemos
a
investigação
para
a
busca
d os
determinantes sociais
e
institucienais
da
produção
dos
conteúdos
d a s
normas jurídicas. Certamente este tipo
de
análise ficaria
reservado, segundo kelsen,
a uma
Sociologia
do
Conhecimento Jurídico
e não a uma
Ciência
do
Direito
em
sentido estrito. Outra característica
d o
processo
de
purificação
é que
este exige
a
superação
de
todo tipo
de
;
sincret ismo metodológico
(10).
Assim,
a
produção
de um
objeto teórico,
apenas orientado
em
direção
ao
Direito, necessita estritamente distan-
ciar-se
das
outras disciplinas
que
podem também produzir objetos
de
conhecimento sobre
os
fenômeno? jurídicos como,
po r
exemplo,
da
Sociologia,
da
Psicologia,
da
Ética
ou da
Teoria Política. Contudo,
\
Kelsen
não
pretende negara legitimidade
de
todos estes tipos
d e
análise,
antes
se
propõe
a
manter
a
Teoria
do
Direito dentro
dos
limites
de um
método próprio.
De
outra parte, quando Kelsen reivindica
o
expurgo
de
todos
os
elementos estranhos
à
produção
de um
objeto teórico exclusivamente
orientado para
o
Direito, pensa também
em
certas interferências
sur-
gidas
no
interior
do
modelo
de
Ciência Jurídica, aceito pelo pensamento
jurídico clássico.
E ,
neste sentido, indica
a
presença
de
obstáculos
epistemológicos
que
precisam
ser
afastados
no
processo
de
depuração
d o
campo temático
da
Ciência
do
Direito. Kelsen percebe
que o
modelo
normal parcial, adotado pelas chamadas teorias dogmáticas
do
Direito
constrói suas categorias
e
exemplos paradigmáticos
de
aplicação, utili-
zando
o
mesmo núcleo teórico
que
regula
a
produção
das
doutrinas
do
Direito Natural. Afirma, assim,
a
necessidade
de
deslocardo paradigma
aceito como normal pelas ciências jurídicas
—
principalmente
do
modelo parcial formado pelas teorias dogmáticas
do
Direito
— as
cate-
3 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 31/133
gorias metafísicas,
os
conceitos
que nos
mostram falsas evocações
referenciais,
o s
topoi revestidos
de
categorias explicativas,
as
classi-
ficações organizadas, retoricameníe, mediante critérios dicotômicos,
as
noções idealistas
que nos
proporcionam
um a
visão a-histórica
dos
fenô-
menos jurídicos
e as
pseudo-explicações
que
escondem critérios
de
justiça. Estaria, pois, Kelsen discutindo, especificamente,
o
lugar ideo-
lógico
e
político
da
própria produção
do
conhecimento. Verifica-se facil-
mente
q u e
para
o
autor,
o
modelo
de
ciência normal
que
descobre como
dominante, encontra-se fundamentado
em um
complexo repertório
de
noções predominantemente retóricas,
as
quais
não
respondem
às exi-
gências
d e
sistematização,
e
condicionam
os
raciocínios
do s
juristas
à
aceitação
de uma
ideologia funcional ,
que
serve como fator
de nor-
malização
de
suas práticas decisórias
e
organiza
o
consenso
em
torno
de
critérios éticos,
o s
quais legitimam
o
monopólio
da
força outorgada
ao
Estado.
O
princípio
d a
pureza metódica proporá, portanto,
o
deslocamento
d as
categorias
e
exemplos paradigmáticos
que
impedem
a
concretização
de um
paradigma
de
ciência
não
contaminado
por
todos
os
obstáculos
aludidos. Logo
nos
conduz
a
outro modelo parcial
que
tende
a
asse-
melhar-se
ao das
ciências empírico-racionais, pelo menos
no que diz
respeito
a
suas pretensões
de
rigor lógico
e
sistematicidade.
E
preciso,
também, esclarecer
que o
termo deslocar, geralmente
é
empregado
com
o
sentido
de
transportar-se para onde
n ão se é
esperado
ou ,
mais radical-
mente, abjurar
d o
lugar onde
se
estava. Quando usamos este termo
com
relação
à
Teoria Pura, estamos,
no
entanto, querendo dizer algo menos
forte, porque,
no
pensamento kelseniano,
o
deslocamento
dos
modelos
parciais (Dogmática Jurídica
e
Jusnaturalismo)
não
implica
em
mudança
d e
problemática;
ali, ele não é
utilizado
com a
intenção
de
refletir sobre
as
questões
que o
pensamento
do
Direito, deliberada
ou
inconsciente-
mente, cala.
(11)
Penso
p o r
isso
que a
elaboração
de um
esquema empírico racional
não nos
deve iludir sobre
as
funções políticas
e
ideológicas
que
este
modelo desempenha. Parece-me
que a
proposta
d a
Teoria Pura
do
Direito, partindo
do s
critérios epistemológicos
do
positivismo científico
(e, por que não,
dada
a
atmosfera
da
época,
de
neopositivismo lógico?),
acredita exageradamente
que o
ideal
d as
ciências sociais
se
cumpre
enquanto elas aproximam tanto quanto possível,
os
seus resultados
do
ideal
d e
toda ciência: objetividade
e
exatidão
(12).
Esta
não
deixa
de
3 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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se r uma
ilusão perigosa, ilusão
que
desloca efetivamente,
ao
nível
de
repulsa total,
as
funções sociais
que
toda ciência cumpre.
E ,
nesta
perspectiva, as pretensões de purificação ficam bastante enfraquecidas.
N ã o basta deslocar a questão d a função social d a ciência para o terreno
d a Sociologia d o Conhecimento Jurídico. O s discursos das ciências
constituem
seu
sentido
a
partir
de um
campo
de
evocações
—
surgido
d as
práticas institucionais
— q u e ,
mesmo sendo teoricamente esquecido,
n ã o deixa d e funcionar como gramática evocativa. Ignorá-lo é ter uma
visão extremamente opaca
d o s
processos
de
significação jurídica.
Mas
também implica na consagração de um novo lugar retórico a serviço
daquelas funções que ilusoriamente se queria afastar da construção do
objeto d e conhecimento.
2.
Temos, pois,
na
teoria kelseniana,
um
postulado
de
pureza meto-
dológica q u e constitui, p o r definição, o ponto de partida e o princípio
metodológico vertebral d a teoria. Para kelsen, o postulado d e pureza é o
q u e
fundamenta
as
condições
de
positividade
de uma
Ciência
d o
Direito
em
sentido estrito.
A
Teoria Pura
se nos
apresenta, assim, como
u m
programa para
a
elaboração
de um
saber jurídico autônomo
e
auto-
suficiente, um conhecimento baseado em uma análise metodologica-
mente imanente,
q u e
exclui
a
referência
de
fatores
e
saberes extra-
jurídicos.
O princípio d a imanência metodológica, que a Teoria Pura adota,
conduz
a uma
auto-limitação
d a
Ciência
do
Direito
que não
aceitaria
construir o objeto jurídico fora de um sistema de relações normativas.
Tal limitação obriga-nos a pensar também — como já foi dito — que um a
Ciência d o Direito n ão poderia definir-se como tal , apreender juridica-
mente seu objeto, tendo-o como norma jurídica ou aonteúdo de uma
norma jurídica.
E m resumo, a estratégia científica a té aqui delineada, exige que o
objeto
d e u m a
teoria jurídica pura refira-se exclusivamente
ao
Direito
positivo co m base em categorias próprias normativas) que não sejam
derivadas
d e
outras disciplinas,
nem se
encontrem envoltas
p o r
juízos
políticos, pretensões ideológicas, obscuridades metafísicas ou pseudo-
categorias descritivas.
Para estabelecer
um
conhecimento dirigido
às
normas jurídicas,
u m a teoria jurídica específica e auto-consciente de sua especificidade,
Kelsen n o s propõe, a meu ver , cinco níveis de purificação. Mediante
3 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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estes cinco processos
de
purificação, obteremos
um
conhecimento
nor-
mativo d o Direito, qu e exclui de seu objeto toda ideologia e prática
política, qualquer contribuição proveniente da filosofia d a justiça, da
moral, da religião e , ainda, crenças, princípios e categorias q ue regulam
a constituição das ciências causais, como também as pseudo-categorias
d o pensamento jurídico-clássico.
A s razões q u e fundamentam esta purificação em cinco níveis res-
pondem
a
diversos critérios metodológicos
que, por sua vez,
devem
estar, a té certo ponto, interrelacionadas. Com a finalidade de apresentar
o fundamento dos níveis d e purificação, d o modo mais simples possível,
ocupar-me-ei de cada um deles nos capítulos seguintes. N o restante do
capítulo, farei algumas considerações sobre a relação da Teoria Pura do
Direito com a Dogmática Jurídica.
3. Desde que a Teoria Pura do Direito limita-se ao conhecimento
normativo
do
Direito,
e
exclui deste conhecimento qualquer contribui-
ção proveniente da filosofia da justiça e das ciências causais da natureza
e da
sociedade),
sua
orientação
é
bastante semelhante
à
chamada Ciên-
cia
Dogmática
d o
Direito. Ambas procuram alcançar
seu
resultado
exclusivamente através da análise das normas jurídico-positivas.
A Dogmática Jurídica, desde sua origem, fo i sempre orientada,
ainda que de forma obscura, pelo ideal de separar o trabalho estrita-
mente científico
d o s
apelos metafísicos
e
axiológicos
que
impediam
sua
plena realização.
Pode-se dizer
que a
Teoria Pura
do
Direito
tem
desenvolvido
e
aperfeiçoado
o
método
da
Dogmática Jurídica
até
suas últimas conse-
qüências, visando o estabelecimento das categorias e bases metodológi-
cas que
permitam
a
compreensão sistemática
de
toda norma jurídica
pré-científica, independentemente das categorias ético-transcendentes,
de qualquer recurso a intuições valorativas ou políticas e a noções
emprestadas p o r outras disciplinas.
A finalidade primordial perseguida po r Kelsen, nas várias formula-
ções de sua teoria, foi precisamente a elucidação metodológica do
pensamento dogmático
d o
Direito. Trata-se
de uma
investigação reali-
zada dentro d o campo da ciência dogmática, conforme o proceder
kantiano,
de
tomar
a
ciência positiva como ponto inicial
de
todo empre-
endimento epistemológico.
O
interesse cognocitivo
da
Teoria Pura
é ,
portanto, conduzido pela
idéia de evidenciar as condições de positividade da ciência jurídico-
positiva.
3 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Em
conseqüência
da
atitude metodológica
que
Kelsen
nos
propõe,
o objeto d e conhecimento da Teoria Pura é a própria Dogmática Jurídica.
A epistemologia kelseniana n ão indica a solução de problemas concretos
d o saber jurídico positivo, mas , apesar disto, não deixa de ocupar-se da
caótica significação
de uma
série
de
conceitos usados pelas teorias
dogmáticas, como, por exemplo, os conceitos de pessoa, direito subje-
tivo, sanção, sujeito
de
direito. Estes conceitos interessam
na
medida
em que ,
elucidando
sua
significação, explicitam teoricamente
as
condi-
ções de possibilidade do conhecimento dogmático: trata-se d e conceitos
q u e
indicam
os
elementos constitutivos
do
objeto dogmático.
A
expressa referência
aos
conceitos
da
teoria jurídica tradicional
aponta
ao
desentranhamento
e
análise
do que
constitui
a
forma
d e
todo
conhecimento normativo. E um estudo que permite revelar o esquema
constituinte do objeto temático da Dogmática Jurídica. Se, alguma vez,
a Teoria Pura d o Direito ocupou-se das instituições do Direito positivo
fo i para considerá-las como possíveis exemplos de estruturas universais,
isto é , apontando diretamente os nexos de sentido e não tendo a intenção
de trabalhar dogmaticamente sobre as mesmas.
Desta forma, segundo a explicação anterior, pode-se situar a Teoria
Pura, com algumas reservas, como realizadora de uma dupla tarefa:
como dogmática geral e como discurso epistemológico constituinte
dessa instância geral 13). Assim situada, a teoria kelseniana não pode
ser confundida com a Dogmática Jurídica. M as esta pretensa distinção
necessita,
por sua vez, de
alguns esclarecimentos.
N a condição de epistemologia do conhecimento normativo ou
como dogmática geral, a Teoria Pura constitui um a proposta reflexiva
q u e representa a culminação do pensamento dogmático. E a melhor
radiografia interna de seus fantasmas, inconsistências e funções latentes.
Diante disso, constata-se que só é possível elaborar um discurso crítico
d a
Dogmática Jurídica,
a
partir
de uma
clara compreensão
d o s
pressu-
postos metodológicos
e das
categorias constituintes
da
Teoria Pura
do
Direito. Por quê?
A obra de Kelsen veio possibilitar a compreensão de certos pontos
críticos no interior do paradigma de Ciência Jurídica dominante, assim
como
o
surgimento
de uma
ampla discussão sobre
as
funções
de
legiti-
mação do modelo normal de Ciência do Direito. Certamente as signifi-
cações específicas e funções sociais do conhecimento da Dogmática
Jurídica, assim como sua própria transformação social e prática,
somente serão
bem
entendidas
e
processadas
a
partir
de
Kelsen.
3 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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4.
Para conhecer
e
explicar
a
Dogmática Jurídica, como vimos,
é
necessário recorrer a um estudo crítico da Teoria Pura d o Direito. A
conexão da Dogmática Jurídica e da teoria kelseniana não resulta sufi-
cientemente clara,
se não se
compreende
o
lugar
que uma
teoria geral
de
corte formalista ocupa, hoje, na produção do saber jurídico. O que
equivale a dizer que, na atualidade, parece impossível separar a
Dogmática Jurídica d as críticas e sistematizações feitas pela teoria
normativista de Kelsen.
Contudo,
a
gênese
de um
saber encontra-se submetida
a uma lei de
transformação q u e passa por uma forçosa recuperação de sua instância
crítica. O saber dominante sobrevive, como tal, na medida em que pode
recuperar todo
e
qualquer discurso crítico elaborado
a seu
respeito,
na
medida em que pode redefini-lo no interior de sua própria problemática.
Desta forma, evita-se que o pensamento crítico possa determinar a
produção de outro campo temático, inaugurar um espaço teórico que
fale
d a s
funções sociais
do
saber dominante
e
explicite
as
razões
de seu
silêncio e de seus ocultamentos. O saber dominante consegue reprodu-
zir-se, como
tal, se
consegue recuperar,
em seu
interior,
os
argumentos
críticos, articulando-os com suas propostas metodológicas básicas, de
forma a poder redefini-lo conforme suas próprias finalidades sociais. O
saber dominante perdura, se consegue ocultar os pressupostos e as
razões epistemológicas do pensamento crítico, substituindo-os por seus
próprios pressupostos
e
razões. Chamarei
a
esta tarefa
de
sobrevivência
d o
Processo
de
Recuperação ideológica,
b)
Desde logo, ta l proposta terminológica não é gratuita. Com ela ,
pretendo indicar, por um lado, que se trata de um processo de recupe-
ração realizado a partir da necessidade de atualização de um saber e, por
outro lado, busco assinalar a função ideológica d as redefinições episte-
mologicamente processadas. Este último aspecto resulta muito impor-
tante para entender
q u e
existem razões extra-lógicas políticas
e
ideoló-
gicas) a s quais governam o processo d e reorganização d o conhecimento.
Desta forma, relacionar a epistemologia com a ideologia e a política é já
u m a
forma
de
argumentar contra
as
pretensões
de
pureza metodológica
que nao percebem como as tarefas do conhecimento constituem espaços
pol íticos postos a serviço d as necessidades de acomodar as significações
ideológicas às transformações das condições materiais da vida social.
Portanto, convenhamos
que as
transformações
do
saber dominante
respondem, em última instância, à satisfação de certas exigências ideo-
lógicas, sendo a tarefa epistemológica o seu instrumento.
3 5
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Evidentemente, a Dogmática Jurídica tem conseguido cumprir a
tarefa de recuperação ideológica d a teoria kelseniana. A Teoria Pura do
Direito deixa assim, de ser uma instância crítica da Dogmática Jurídica
para apresentar-se como u m a teoria dogmática atualizada do Direito.
Como atualização d a Dogmática Jurídica, a teoria kelseniana passa a ser
0 objeto d e intervenção de uma teoria crítica do Direiro. (c) Diante disto,
convém esclarecer os motivos q ue levam a propor um reencontro com
Kelsen. E preciso reler Kelsen. não só realizando um esforço para
atualizar a Dogmática Jurídica, m as também buscando os iimites claros
d o
objeto
d e u ma
teoria crítica
d o
Direito. Infere-se
dai. que
para
o
processo de constituição deste novo objeto teórico precisa-se de um
estudo d a teoria kelseniana que a supere em seu apelo ao empirismo, em
suas conotações idealistas
e em
suas pretensões
de
egocentrismo
teórico.
NOTAS
(II A teor ia jurídi ca d e Kelsen começa a ser por e le desenvolvida, em 1911, com o trabalho
conhecido c o m o nome d e Hauptprobleme . A obra central q u e domina todo o seu
pensamento é a Teoria Pura d o Direito, cuja 1" edição data de 1934 e que contou c o m
u m a 2 ?
edição, ampliada
e
reformada,
em 1960. É
preciso destacar
q u e
diversas gera-
ções contribuíram para a reelaboração e divulgação d a teoria. Entre o s nomes mais
des tacados q u e vincularam s u a produção teórica a o s postulados d a teoria kelseniana,
menc iona rei: Fra nz Weyr, Leoni das Pitamac. Felix Kau fma nn, Josef L . Kunz, Josef
Dobrestesberger, Ambrosio L . Gioja, Roberto J . Vernengo. S ã o nomes pelos quais se
admite falar e m u m a verdadeira escola d o pensamento. A teoria kelseniana te m rece-
bido, a o longo d o tempo, diversas denominações: Teoria Pura d o Direito, Escola
Vienense d a Teoria d o Direito. Positivismo Jurídico, Escola Forma lista, Nomativismo
Jurídico.
N o
decorrer deste trabalho, empregaremos indistintamente todas estas
d e -
nominações.
(2) A idéia d e pureza está filiada a Kant . m a s é reformulada p o r Kelsen a partir d o
positivismo científico. Este princípio d a pureza é o que vai proporcionar, na teoria
kelseniana. a s condições d e u m a ciência jurídica em sentido estrito. Tais iniciativas
trazem consigo a necessidade d e fo rmular princípios metodológicos q u e fundame ntem
a dogmática jurídica. É neste sentido q u e Kelsen considera que o método deve ser
previamente estabelecido, c o m u m a perspectiva crítica anterior à dogmática jurídica,
o q u e conduzirá à elaboração de um conhecimento científico purificado. O propósito
d o método purificador é o de examinar a s possibilidades e limites d o conhecimento
jurídico
e d e
estabelecer
a s
condições pelas quais
é
possível formular proposições
que
possuam caráter cognoscitivo para u m a ciência d o Direito em sentido estrito.
(? ) Teoria Pura d o Direito. 2? edição, p. 17. Adiante n o s referiremos a ela como T P D .
2' ed.
3 6
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(4) A política jurídica, n o s textos kelsenianos, n ã o deve se r confundida com a teoria políti-
ca . A política jurídica f a z referência, principalmente, à s estratégias empregadas pelos
órgãos c o m autoridade jurídica, para a produção d o conteúdo d o Direito positivo,
assim como
a o s
padrões axiológicos, mediante
os
quais
se
legitimam
o s
conteúdos
adjudicados. Esta é u m a proposta d e definição qu e construí com a leitura implícita dos
textos kelsenianos, pois trata-se de um conceito empregado p o r Kelsen sem definição
expressa.
(5 ) Segundo m e u ponto d e vista, pode. também, se r vista como instância ideológica d a
estrutura d e poder.
(6 ) Efetivamente, como conseqüência d o princípio d a pureza metodológica, o objeto d a
Dogmática Jurídica fica circunscrito a u m a análise d o Direito positivo em termos
estritamente normativos. E a Teoria Pura d o Direito constitui u m a teoria geral d a
dogmática jurídica q u e propõe descrever a s categorias e condições q u e permitam a
produção de um conhecimento dogmático d o Direito em sentido estrito.
(7 ) Para Kelsen, u m órgão t e m autoridade jurídica, quando u m a norma superior d o
sistema d e Direito positivo lhe delega competência para a produção d e normas infe-
riores.
(8) O método transcendental é , para Kant, (reformado pelo neokantismo) u m a atividade
criadora q u e constitui o objeto, porquanto s u a unidade (determinada pelas categorias
d o pensamento) funda o conhecimento e , portanto, o objeto. Assim, n ã o existiria
objeto d e conhecimento q u e n ã o fosse objeto construído conceitualmente pelo enten-
dimento. A metodologia adquire u m a importância definitiva, já que o método cria e
determina o objeto . Estas reflexões s ã o muito importantes para compr eende r a funçã o
d a
norma fundamental gnoseológica, proposta
p o r
Kelsen.
V e r
capítulos
II e IV.
(9 ) Con form e Ambrosio L . Giojas, Idéias para u m a Filosofia d o Direito, p. 112.
(10) Ver a respeito o capítulo I I , deste trabalho.
(11) Na introdução à 1? edição d a Teoria Pura, Kelsen afirma que sua doutrina po de ser
entendida como
u m
desenvolvimento
ou
desimplicação
d e
pontos
d e
vista
que já se
anunciavam n a ciência jurídica d o século X I X " .
(12) Prefácio à 1? edição d a Teoria Pura d o Direito, p. 7. Adiante T P , 1? ed .
(13) Por certo, esta dupla funcionalidade q u e estou atribuindo à Teoria Pura d o Direito
pretende refletir sobre alguns pontos d e vista e caminhos metodológicos desenvol-
vidos
p o r
Kelsen
n o s
trabalhos posteriores
a 1941.
Anteriormente
a
esta data,
ba -
seando-se em Kant, a teoria kelseniana preocu pava-se, antes de rhais nada, em formu-
l a r " o s resultados particularmente característicos d e u m a teoria pura d o direito ,
enq uant o investigação transcendental d o jurídico , isto é , a preocupação d e Kelsen era
refletir sobre a metodologia constitutiva d o objeto d o conhecimento jurídico. Assim
como Kant, procurou investigar as condições d e possibilidades formais , categorias d o
conhecimento (aquelas condições mediante a s quais se constitui o objeto d a ciência
prestando-lhe su a unidade).
O
estudo particular
d o s
ordenamentos jurídicos concretos ficou reservado,
no pen-
samento kelseniano,
à
Dogmática Jurídica. Nesta fase
d o
pensamento kelseniano.
nota-se u m a preocupação e m indicar o aspecto " a priori e formal, como possibi-
lidade e pressuposto d o conhecimento jurídico.
O
caminho aberto pelos trabalhos posteriores
a 1941
tentam integrar
os
termos
3 7
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gera l e p u r o , já não visando o estabelecimento d e critérios d e validade univer-
sa l , mas
procurando resolver
o s
problemas essenciais
de
urna teoria geral
d o
direi-
t o ,
segundo
o s
princípios
d a
pureza metodológica. Isto
o
leva
a
propor
um
estudo
comparativo d o s diversos ordenamentos jurídicos, n a busca d e u m a estrutura de
categorias básicas
d o
esquema organizador daqueles conceitos
q u e
servirão como
condicionantes d o s diversos discursos d a dogmática jurídica.
Como
se
sabe,
as
diferentes especialidades
d a
dogmática jurídica empregam
u m a
série d e conceitos q u e constituem a base teórica para a construção d e suas diferentes
linhas
d e
raciocínio. Noções como sanção, direito subjetivo, órgão, pessoa, respon-
sabilidade
sã o
necessariamente empregadas
n a s
explicações desenvolvidas pelas
diferentes disciplinas dogmáticas.
O
caráter básico destes conceitos funda-se. para
Kelsen,
no
fato
d e q u e
eles constituem rasgos
ou
elementos presentes
em
todas
as
variadas formas
d e
aparecimento histórico
d as
ordens jurídicas.
A
análise
d o
signi-
ficado normativo destes conceitos constituem,
na
última versão
da
Teoria Pura
d o
Direito, a função d e u m a teoria geral do direito.
Evidentemente, para
a
construção
d o
esquema
de
conceitos básicos, necessita-se
de
u m a
discussão metodológica prévia
q u e
permita determinar
o
método
de sua
cons-
tituição
e a
forma como devem
se r
posteriormente utilizadas pela dogmática.
Como inventário d a s categorias normativas gerais, a Teoria Pura erige-se em uma
dogmática geral.
N a
medida
que nos
propõe
u m a
discussão sobre
os
métodos
de
produção destas categorias gerais, a Teoria Pura deve se r vista como u m a instância
epistemológica
d o
Direito.
NOTAS COMPLEMENTARES
AO
CAPÍTULO
I
(b ) Entendo p o r recuperação ideológica, em sentido lato, o s mecanismos d e argumenta-
ç ã o p o r
meio
d o s
quais
s ã o
redefinidos
p s
sentidos críticos, para readaptá-los
à
funçã o
d e
representação ideológica
d o s
discursos tradicionais.
D e certa fornia, podemos dizer que o processo institucional de recuperação
ideológica
d o s
discursos críticos (realizado principalmente
n as
escolas
de
direito)
pode se r determinado p o r várias causas, entre as quais:
1) as
atividades pseudo-críticas.
q u e
utilizam
a
expressão crít ica
em
certos desen-
volvimentos teóricos, apoiados
n a s
regras
d a
racionalidade positivista. Como
resultado desta positivação,
o
discurso crítico torna-se
um
discurso
tão
incon-
sistente.
q u e
termina
p o r
consolidar todos
o s
efeitos ideológicos
e
políticos
d o
saber jurídico dominante.
3 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 39/133
2) O
temor
a o
censor, derivado
d a
própria estratégia
d e
inserção
d o s
discursos
críticos n a s Universidades, q u e para n ã o correr o risco de ser marginalizado,
necessita fragmentar-se, encobrir-se, auto-desarticular-se, explicar-se através d e
indícios evocativos. Esta tendência gera a auto-recuperação ideológica.
3) Os
controles burocráticos,
q u e
impõem como
u m a d a s
regras
d e
legitimação
ins-
titucional, critérios hierárquicos
q u e
condicionam
e
limitam
n ã o
apenas
o
saber
domináhte,
m a s
também
o
modo
d e
realização
d a
crítica institucional, impondo,
assim, restrições burocráticas à coerência conceituai d o s discursos críticos.
V e r
ainda
a
este respeito
a
nota
h ,
deste trabalho.
(c ) Falar d e u m a teoria crítica d o direito é tentar abranger, sob um mesmo rótulo, um
espaço teórico bastante fragmentado, produzido a partir d e diferentes perspectivas
metodológicas e norteado p o r objetivos relativamente compatíveis.
U m
mínimo denominador comum
d a s
diferentes abordagens criticas sobre
o
direito pode s e r apresentado n o s seguintes itens:
1) Diagnosticar o s efeitos sociais d e u m a concepção nofmativista e egocêntrica d o
direito, mostrando o poder d o s discursos organizados a partir d e condições i m a -
nentes
d e
significação. Assim, tentar-se-ia indicar como, através
d a s
doutrinas
jurídicas egocêntricas, se encobrem e reasseguram as funçõe s sociais d o direito e
d o
Estado.
2) Mostrar o s mecanismos discursivos a partir d o s quais a cultura jurídica con verte-
se em um
conjunto fetichizado
d e
discursos.
3)
Denunciar como
as
funções políticas
e
ideológicas
d a s
concepções normativistas
d o direito e d o Estado encontram-se apoiadas na falaciosa separação d o direito e
d a política e n a tópica idéia d a primazia da lei como garantia d o s indivíduos. Desta
forma, a teoria crítica d o direito proporia u m a inversão d a razão jurídica dominan-
te (que
postula
u m a
análise juridicista
d a
política
e d o
Estado), para situar-nos
substitutivamente : diante d e u m a análise q u e pretende refletir sobre as dimensões
políticas d o direito. Trata-se, assim, d e u m a reflexão q u e tenta n ã o esquecer que o
jurídico é político e qu e a política contém um viés jurídico. Ignorá-lo é . sem dúvida,
u m recurso ideológico para separar o Estado político d a sociedade civil.
4)
Rever
a s
bases epistemológicas
q u e
comandam
a
produção tradicional
d a
ciência
d o
direito, demonstr ando como
a s
crenças teóricas
d o s
juristas
em
torno
d a
proble-
mática d a verdade e d a objetividade, cumprem u m a função d e legitimação epistê-
mica, através d a qual pretende-se desvirtuar os conflitos sociais, apresen tando -os
como relações individuais harmonizáveis pelo direito.
5)
Superar
o s
bizantinos debates
que nos
mostram
o
direito
a
partir
d e u m a
pers-
pectiva abstrata, farçando-nos
a
vê-lo como
um
saber eminentemente técnico,
destinado à conciliação d e interesses individuais, à preservação e à administração
d e interesses
v
gerais e à aplicação d e sanções inspiradas e indiretamente tuteladas
pela moral. Desta forma,
a
teoria crítica tenta recolocar
o
direito
n o
conjunto
das
práticas sociais que o determinam e , assim, designá-lo como um lugar particular d o
Estado n a sociedade; como u m a d a s formas pelas quais o Estado realiza o seu
projeto político.
O u
seja,
o
discurso critico sobre
o
direito, cent ran do principal-
3 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 40/133
mente s u a análise n a instância cognitiva tenta mostrar n ^ totalidade d a s condi-
ções sociais a incidência d a form a jurídica n a produção de um afo rma ção social. O
saber critico sobre
o
direito implica
n a
tentativa
d e
construção
d e u m a
teoria
das
relações
e d a s
formas jurídicas. Enfim tenta refletir sobre
a s
condições para
u m a
nova articulação entre
a
técnica jurídica
e a
prática política.
4 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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CAPÍTULO
A
Purificação Política
e
Ideológica
1. A
partir
d o s
textos kelsenianos podemos enunciar para
o pro-
cesso
de
purificação política
e
ideológica
o
seguinte critério
de
signifi-
cação: É necessário distanciar os saberes específicos do Direito das
concepções jurídicas tradicionais preocupadas em sustentar alguma
ideologia social
em
implementar certos interesses
e
ainda envolta
em
raciocínios de política jurídica ou especulações endereçadas à formula-
ção do Direito. 1)
Kelsen considera conveniente para a reformulação do paradigma
d e Ciência Jurídica — apontando em especial o modelo da Dogmática
Jurídica
—
estabelecer
u m a
severa distinção entre
o
conhecimento
jurídico
e a
política.
N o
normativismo
a
separação
d o
conhecimento
jurídico d a política é o que permitirá excluir do objeto teórico tudo
aquilo que se refere às valorações construídas ideologicamente. É
necessário evitar também
a
presença
de
fatores
q ue
coloquem
a
Ciên-
cia do
Direito
a
serviço
de
interesses políticos econômicos
ou
sociais.
Assim esta ciência não deve tentar substituir os órgãos investidos de
autoridade jurídica sugerindo caminhos prescritivos ou valorando os já
percorridos; tampouco deve aspirar
a
discutir
os
problemas próprios
de
u m a
teoria política
ou da
ética. Seria pois errôneo supor
que a
Ciência
do Direito poderia n o s ensinar a resolver os conflitos sociais ou a instru-
mentalizar certos interesses porque um saber estrito sobre o Direito
não é
teoria política
nem
política
do
Direito. Antes
ele
seria
uma
doutrina dirigida
à
análise estrutural
d o
Direito positivo
e não uma
explicação política ou econômica de suas determinações.
O objeto específico da Ciência Jurídica de que fala Kelsen é o
Direito real
ou
positivo
em
oposição
a um
Direito ideal meta
d a
política.
A
Teoria Pura
do
Direito
não
considera
seu
objeto como
um a
cópia fiel
de alguma idéia de justiça. N ã o pretende tampouco manifestar-se contra
ou a favor dos qu e detém o poder; nasceu de uma intolerância presente
na epistemologia positivista frente a esse misto de má-fé metodológica e
4 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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b o a
consciência,
que
caracteriza
o
pensamento científico médio
dos
juristas, pensamento
que
parafraseando Barthes, pode
ser
chamado
de
um a
linguagem técnica trabalhada pelo poder.
E m
resumo,
a
Ciência
Jurídica, conforme
os
textos kelsenianos, quer conhecer
o seu
objeto,
descobri-lo
tal
como
é, sem
tentar responder
às
interrogações sobre
como deve
ser o
Direito
ou a
questões sobre
sua
formação. Precisa-
mente,
a
Teoria Pura
d o
Direito pretende
nos
revelar
os
caminhos para
u m a
autêntica Ciência
d o
Direito,
em
virtude
de seu
caráter anti-ideo-
lógico. Desta forma,
a
doutrina
do
positivismo jurídico procura
a
elimi-
nação
d os
componentes ideológicos
do
conhecimento jurídico.
A
ciên-
cia
como conhecimento,
diz
Kelsen,fem sempre
a
tendência imanente
de pôr seu objeto a descoberto. Mas a ideologia veda a realidade, ora
transfigurando-a, a fim de conservá-la ou defendê-la, ora desfiguran-
do-a a fim d e
atacá-la, destruí-la
ou
substituí-la
por
outra realidade.
Toda ideologia política tem suas raízes na vontade, não no conheci-
mento; no elemçnto emocional de nossa consciência, não no ele-
mento racional. Surge de certos interesses, ou melhor, de interesses
distintos do interesse pela verdade. Naturalmente que esta obser-
vação não implica em um juízo de valor sobre os interesses. Não
existe a possibilidade de adotar uma decisão racional relativa a
valores opostos. Êprecisamente desta situação que surge um confli-
to
realmente trágico:
o
conflito entre
a
verdade, como princípio
fundamental
da
ciência,
e a
justiça, como supremo desideratum
da
política.
2)
N ã o
realizarei, neste parágrafo, maiores comentários sobre
o
texto
transcrito. Antes, tentarei fazer
um
enquadramento geral
e
esquemático
d as
grandes idéias
que
fundamentam
a
proposta kelseniana relativa-
mente
à
depuração política
e
ideológica
d o
objeto temático
d a
Ciência
do
Direito.
E ,
para isso, precisa-se
te r
presente três tipos
de
considerações:
1?) que a
depuração política proposta
por
Kelsen
se
desenvolve
a
partir
de um
conceito impreciso
e
ambíguo
d a
política,
d e
modo
que em
algumas
passagens de sua obra parece falar-nos de uma prática política específica
que tem
como objeto
o
poder
d o
Estado;
em
outros momentos, Kelsen
parece desviar
o
sentido
d o
termo, mencionando
o
poder institucionali-
zado
d o
Estado
> —
referindo-se, especificamente,
à
autoridade jurídica;
às
vezes, também, utiliza
um uso
próximo
ao
pensamento político-
clássico, onde o poder é apresentado molecularmente, fragmentado nos
mais finos mecanismos
do
espaço social
e
definido como
a
capacidade
4 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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d e
impor interesses.
P or
outro lado,
são
problemáticas
as
fronteiras
que
se abrem entre a prática política, em sentido geral, e a Política Jurídica
vista como u m a atividade produtora d e normas gerais e individuais 3).
Frente
a
este panorama ambíguo
de
sentidos, penso
que
Kelsen,
com a
su a
divisão,
n ão
pretende mais
que
distinguir
a
atividade criadora
de
normas
e as
próprias normas)
dos
desejos
e
interesses
d os
indivíduos
relativamente
à
formação
do
Direito. Expressa
ele,
assim,
u m a
idéia
da
Política vinculada
às
fontes produtoras
de
normas. Desta forma silencia
quanto
a
aspectos importantes
d o
dualismo Política-Direito
c) e
sobre
o
papel
q u e
ambos
os
domínios cumprem como fatores co-determinantes
d a
organização
d a
sociedade.
O que
procuro observar
é que
Kelsen nada
explica
com
referência
ao
papel político
que o
Direito desempenha
na
sociedade. Certamente se pode contra-argumentar q u e , segundo os
objetivos
d a
pureza metodológica estes temas devem
ser
necessaria-
mente suprimidos
da
Ciência Jurídica
e
estudados
em
outros lugares
disciplinares. Embora
a
réplica seja correta, coloca-nos
d e
qualquer
modo diante
d e u ma
definição insuficiente
d a
Política
que, por sua vez,
não
poderia deixar
de
considerar
os
órgãos jurídicos como parte
de uma
estrutura política,
com
funções muito mais extensas
que as de
legislar.
2?)
Verificamos,
em
Kelsen,
u m a
visão idealista
a
arte
d e
governar ,
para
e le , é uma
atividade dirigida
a
valores.
O
autor insiste também,
como vimos,
n a
idéia
de que a
finalidade última
da
política
é a
justiça,
supremo desideratum
d a
política
4). É
precisamente esta vocação
idealista
q u e
permite compreender melhor
as
lacunas
de sua
concepção
d e
política. Naturalmente
se a
política
é a
realização
da
justiça,
não tem
nenhum sentido discutir
as
funções
de
dominação
que as
estruturas
políticas desempenham. Esse constrangimento sobre u m a ampla pro-
blemática d o poder, leva Kelsen a falar da política como u m a atividade
valorativa permeada
p o r
fins transcendentes
e que
aspira,
sem
malícia,
à
construção
de um
Direito ideal.
5)
39)
Kelsen apóia-se
em u ma
determinada concepção
de
ideologia,
qu e a
vê
como teoria
d o
erro, ligada
aos
elementos emocionais
de
nossa
consciência
e que
expressa,
p o r
outro lado,
u m a
idéia
d e
vontade
bastante difusa.
,A
noção
de
ideologia, utilizada
p o r
Kelsen,
tem o
vício
d e
esquecer
su a
inscrição material
nas
relações sociais.
D e
qualquer
modo,
é
importante advertir
que o
lugar
d a
Política
na
ciência,
não
deixa
de ser ,
principalmente,
um
lugar ideológico.
O
poder
na
ciência revela-
se
sempre como
u m a
luta ideológica pelas significações.
E a
epistemo-
4 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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logia pode falar apropriadamente
do
poder, apresentando-o como
um a
condição de sentido das proposições científicas (6). Por isso, a Teoria
Pura, como
u m a
epistemologia
da
Ciência Jurídica, legitimamente,
pre-
tende falar do poder como ideologia; inadequadamente, contudo, por-
que ao
invés
de
analisar
os
efeitos significativos
d o
poder
nos
discursos
d a
Ciência Jurídica, pretende suprimi-los como
u m a
condição
de sua
significação. Apresso-me
e m
determinar
q ue
todas estas considerações
devem ser entendidas como conjecturas, dado o caráter incidental,
genérico e pouco rigoroso com que é trabalhada a noção de política na
Teoria Pura d o Direito. D e fato, fugindo à sua própria sistemática,
Kelsen espera que de nossa doxa jurídica possamos extrair a s evoca-
ções necessárias para intuir o que se deve excluir, como obstáculo
político, no sentido de que o objeto d e conhecimento do Direito alcance
o limiar de sua cientificidade. (e)
A
tentativa
de
expurgar
d o
saber jurídico qualquer forma
d e
mani-
festação
da
política parece-me
que
fica reduzida,
em
última instância,
a
u m a
questão muito simples;
a de não
confundir
os
atos
de
produção
normativa e seus efeitos — as normas jurídicas — com os enunciados
que as descrevem. Produzida esta desordem, a linguagem da ciência
seria u m a legislação, falaria mais do que o Direito deve ser, do que o
Direito realmente
é .
Conseqüentemente,
os
enunciados
d a
Ciência Jurí-
dica perderiam su a objetividade e sua neutralidade e o cientista, indire-
tamente, estaria produzindo normas de justiça, convertendo-se em um
representante laico
d o
Jusnaturalismo, fazendo
d a
neutralidade
e da
objetividade d a ciência dois estereótipos. A existência d e valores como
a objetividade e a neutralidade são fundamentais para a epistemologia
kelseniana, que se recusa a encará-los apenas como fórmulas de,mitifi-
cação d o saber. M as , a partir desta negativa, Kelsen pretende situar a
ciência como um conjunto de enunciados sem enunciadores, em uma
relação fatal
de
alienação.
Como o próprio Kelsen assinala, apresenta-se duvidosa a possibili-
dade
de se
precisar
o
grau
em que ,
efetivamente, ocorre
a
separação
entre o Direito e a Política. O autor supõe, ainda, que o
ideal
de um
ciência objetiva do Direito e do Estado, livre de todas s ideologias
politicas tem maiores probabilidades de ser aceita em um período de
equilíbrio social ... onde
a s
idéias gozam
de um
estima maior
que
o poder (7) . Não percebo, entretanto, as razões que sustentam tal
afirmação, nem sua força explicativa que levasse Kelsen a incluí-la
4 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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como argumento d e respaldo à tese do positivismo jurídico. N o entanto,
o
certo
é que no
plano
d o s e r d a
Ciência Jurídica
não
ocorre
a
divisão
idealizada
por
Kelsen. Neste ponto,
a
teoria kelseniana revela-se como
um
programa metafísico sobre
o que a
Ciência Jurídica deveria
ser, —
apropriando-nos da própria terminologia kelseniana — u m a instância
política
de
epistemologia jurídica.
Contrariamente ao que se poderia depreender do discurso episte-
mológico (manifesto) da Teoria Pura, ela cumpre a função d e legitima-
ção do próprio exercício do poder do Estado; este seria apresentado
como intrinsecamente b o m , graças à sua vinculação com a justiça.
Indiretamente, o Direito ficaria, d e igual forma, ideologicamente justifi-
cado, podendo se r apresentado como veículo para o exercício desse
poder justo.
O
Direito positivo cumpre funções
d e
legitimação,
não
como indu-
tor de
certos efeitos éticos
—
característica
que o
postulado
da
pureza
descarta
—, mas
através
de sua
sistemática racional,
que
serve para
organizar o consenso em torno do monopólio d a força, emprestando-lhe
um caráter racional. O monopólio da coerção, legitimado pela lei, sus-
tenta, permanentemente, as técnicas do poder. Por outro lado, o Direito
positivo, racionalmente concebido,
é
condição
da
existência
de um
determinado tipo
de
organização
da
sociedade.
O r a ,
estes dois efeitos
são
obtidos,
por sua vez ,
mediante
o
efeito
de
racionalidade
que o
saber
d a s
normas lhes empresta.
O
saber jurídico deve, assim,
ser
visto como
um
fator co-constituinte
da
instância jurídica
da
sociedade. Negar-lhe
este papel
é
contribuir, precisamente, para
a
reprodução deste fator
constituinte. (8)
O Direito positivo cumpre um a função mítica em (f) relação ao
exercício
d a
coação
por
parte
dos
órgãos
do
Estado, pois apresentando-
a
como resposta ética frente
a
comportamentos indesejáveis
dos
indiví-
duos, nega aquela coação como componente
da
organização
da
socie-
dade. Esta função mítica sustenta-se, de outra parte, na suposta vincu-
lação d a política com a justiça. C om efeito, mediante ta l aliança retórica,
consegue-se deslocar para o próprio exercício do poder os sentidos
ideológicos do Jusnaturalismo. Graças a este deslocamento consegue-
se , também, ocultar o papel ideológico que a razão cumpre no interior da
Ciência d o Direito. A razão axiomática desloca-se e se articula ao
Jusnaturalismo como dimensão ideológica do saber jurídico. U m deslo-
camento necessário para um a ciência que necessita cumprir um papel
4 5
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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político, onde o importante é a organização desta materialidade insti-
tucional do Estado.
2. Aprofundemos agora a problemática da ideologia, em Kelsen 9).
U m d o s
legados
d o
positivismo,
ou do
neopositivismo, aceito
por
Kelsen,
corresponde
à
profunda repulsa
a
todas
as
formas
de
manifestação
da
ideologia. Assim, nosso autor via o fator ideológico como um tipo de
obstáculo para a objetividade do conhecimento científico.
Kelsen, como vimos, identificava a ideologia com a noção de erro
ou mentira ou, de outro modo, como assinala Carcova como
um
desígnio consciente
do
indivíduo
por
falseara verdade objetiva
com
o
propósito
de
preservar
um
certo estado
de
coisas
ou
substituí-lo
por
outro; literalmente Kelsen afirmava: o conhecimento deve tendera
desgarrar
os
véus
com que
vontade envolve
s
coisas.
Ou
seja,
ele
acreditava poder, mediante um processo racional, garantir a objetivi-
dade e neutralidade do conhecimento científico, pensando que a razão
pode discriminar, eficientemente, d as descrições intencionalmente fala-
ciosas d o senso comum, aquelas outras puras, objetivas, não compro-
metidas com a ciência. 10)
Contudo, Kelsen não admite a idéia do neopositivismo de que
apenas
têm
sentido aqueles enunciados
que
correspondem
aos
fatos,
isto é , quaisquer outros tipos de enunciados seriam entendidos como
expressões sem sentido, meras especulações metafísicas ou ideológicas.
Kelsen, expressamente, nega tal tese, que obrigaria a assumir o dever
ser , cuja expressão são as normas, como um a categoria ideológica
construtura de um objeto metafísico. Contrapõe, assim, à condição
semântica de sentido um a condição deõntica — cuja fundamentação
teórica é estabelecida pela norma fundamental gnoseológica.
Para Kelsen, aceitar
o
caráter ideológico
e
metafísico
do
objeto
do
Direito, construído a partir do dever ser , implicaria em reduzir o conhe-
cimento científico d o Direito a mera Sociologia Jurídica. É claro que
sustentando esta tese, Kelsen nos obriga a efetuar um forte reducio-
nismo epistemológico, admitindo o positivismo como a única forma— o
único modelo epistemológico — de realização da Sociologia. E m suma,
Kelsen não admite o sentido amplo da ideologia do neopositivismo
lógico,
ou
seja,
o
sentido dado
à
ideologia
po r
aquela escola,
o
qual
situaria sua teoria como ideologia 11). Quando se entende ideologia
como oposição à realidade d os fatos d a ordem do ser, isto é , quando por
4 6
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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ideologia entende-se tudo o que não seja realidade determinada por lei
causal, ou que não seja u m a descrição desta realidade, eis que o Direito
como norma
—
como sentido
de ato da
ordem
do ser
causalmente
determinado» m as diferente deste ato — constitui um a ideologia. A
Ciência d o Direito descreve as normas que constituem o sentido nor-
mativo) destes atos,
mas o faz
através
de
proposições jurídicas
as
quais
são leis que não afirmam u m a conexão causal, mas uma conexão de impu-
tação. Para Kelsen, a conexão da imputação constitui um complexo siste-
mático diferente da natureza, m as que , apenas po r esta qualificação, não
pode
ser
vista como ideologia.
Feita a redução d a concepção neopositivista sobre a ideologia,
subsiste, contudo, na teoria kelseniana aquele mesmo sentido: a condi-
ç ã o deõntica de significado gera um a ordem objetiva de conhecimento
d e u m a
realidade
n ão
sensível, cultural:
a
realidade normativa.
Po r
esta
razão, Kelsen postula a existência de uma realidade jurídica oposta a
u m a realidade natural, mas que enquanto realidade, deve se r cientifica-
mente descrita, mediante representações sobre o Direito Positivo isento
de ideologia 12), istoé, isento de representações não objetivas, influen-
ciadas p o r juízos de valor subjetivos, que provocam o obscurecimento
d o objeto de conhecimento.
Assumindo este segundo sentido
de
ideologia, podem
ser
vistos
como conhecimento ideológico sobre o Direito obstáculos para a Ciên-
c ia Jurídica) todas a s especulações que tentem vincular o Direito a uma
ordem superior, a uma ordem com pretensões de constituir um Direito
ideal, o Direito justo. Assim, a s teorias jurídicas que têm a pretensão e a
exigência de que o Direito lhes corresponda, como condição de sua
validade, devem ser vistas como ideológicas. A s concepções sobre o
Direito Natural
ou as
diversas teorias sobre
a
justiça representam
for-
m a s
ideológicas
d o
conhecimento jurídico
e ,
como
tal ,
impedem
a
produção de um objeto científico sobre o Direito e devem ser rejeitadas
como ideologia no segundo sentido da palavra. 13)
Nesta perspectiva, a teoria Kelseniana nega-se a fornecer, a qual-
quer interesse político, as ideologias
por
intermédio
d s
quais
ordem
vigente
é
legitimada
ou
desqualificada 14). O caráter científico do
Direito se constitui a partir de seu caráter anti-ideológico, como única
salvaguarda
d a
objet ividade outra idéia
do
neopositivismo).
A
tendên-
ci
anti-ideológica diz
Kelsen,
coloca
Teoria Pura como a verda-
deira Ciência
do
Direito.
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O modelo parcial d e Ciência Jurídica, representado pelas chamadas
teorias dogmáticas do Direito, t e m , para Kelsen, um forte caráter ideo-
lógico— no segundo sentido exposto porque, consciente o u inconscien-
temente,
a s
referidas teorias partem
d a
falsa pressuposição (ideológica)
de que
poderiam
no s
ensinar
a
resolver
os
conflitos sociais, adequar
o
Direito a o s ideais d e moral e justiça d a comunidade, determinando os
conteúdos
d a s
normas
de
acordo
com
este ideal.
O s
juristas clássicos
acreditam poder produzir, ao nível d o pensamento, um raciocínio deter-
minante do que possa s e r visto como Direito justo e , conseqüentemente,
um critério d e valor para o Direito positivo e para os conflitos sociais.
E , desta forma, transformam essas teorias em ideologias, u m conhe-
cimento
n ão
objetivo.
A
objetividade, como vimos,
é
alcançada,
no
pensamento kelseniano, desvinculando-se
o
saber jurídico
d a
ideologia.
D a í
porque Kelsen nega
a
possibilidade
de
assumir, como científico,
um
conhecimento derivado d e qualquer teoria sobre a justiça, pois o conhe-
cimento
que a
envolve
é
sempre ideológico.
O tema d a ideologia é parte integrante d o discurso teórico de
Kelsen, aparecendo no curso de toda a sua obra. Ali se vê a preocupação
pela depuração ideológica
n o
tratamento
d o s
dualismos classificatórios
d a Dogmática Jurídica, o s quais, em geral, são concebidos como cum-
pridores d e funções nitidamente ideológicas (15). Questionamentos
desse tipo são efetuados, também, dentro d a problemática d a inter-
pretação da lei ; sustenta Kelsen qu e a teoria sobre a s lacunas d o Direito
não é
mais
do que uma
ficção
(um
'topos diria
eu)
destinado
a
limitar
a
autoridade d o s órgãos judiciais, criando um efeito d e autonomia con-
trolada.
E m geral, pode-se dizer q u e Kelsen, em decorrência d a concepção
de ciência d o positivismo, utiliza um sentido de ideologia que rejeita,
como dado subjetivo e obstáculo do conhecimento, toda e qualquer
doutrina axiológica. Opõe, assim, os enunciados científicos aos enun-
ciados morais, recusando
a
possibilidade
d e
entender, como racional,
o
conhecimento metafísico.
A idéia d e Kelsen, exposta n o parágrafo anterior, encontra-se bas -
tante contestada, pois, negando-se
a
tematizar
a
significação ideológica,
Kelsen favorece
o
papel ideológico
d o
conhecimento jurídico.
U m
conhecimento é científico (crítico) quando consegue explicar a s signi-
ficações ideológicas.
4 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Assim,
a
significação ideológica
há de ser
vista
em
suas simul-
tâneas funções
d e
socialização
e
organização estruturante
d a
realidade.
Toda mensagem ideológica socializa o homem e estrutura as condições
materiais de sua vida. A ideologia é algo muito mais complexo do que
poderiam sugerir os esquemas elementares que tentam identificá-la
com um processo de alienação da consciência. O sistema de normas
axiomatizadas, mediante
o
conhecimento,
é um
elemento ideológico
que, em sua materialidade, serve de suporte às atuais formas d e organi-
zação d a vida social. O marco d a coesão que permite a existência d e
relações sociais entre indivíduos autônomos, que sustenta a separação
d o
espaço social
em
público
e
privado, supõe como condição necessária,
para
sua
constituição,
a
existência
de um
sistema
de
normas formais
abstratas e sistematizadas. Apresenta-se aí em um dos grandes pro-
blemas
que a
Teoria Pura pretende calar. Para
a
existência
de um
sistema
d e
Direito formal abstrato
e
axiomatizado, necessita-se
de um
saber que o constitua, que empreste ao Direito pré-científíco (pleno de
conteúdos amorfos) o efeito de sistematicidade desejado, a partir de
então, não é difícil descobrir o caráter ideológico d a Teoria Pura do
Direito.
E la ,
como instância epistemológica
— que
propõe apenas
um
controle sistemático
no
interior
do
modelo
de
ciência predominante
—
funciona como um mito metodológico que , negando a função ideológica
d o processo de axiomatização, garante o funcionamento real do saber
como ideologia.
3. Aceitando a idéia de que o princípio da pureza metódica pode ser
visto como
um a
extensa formulação
de uma
condição
de
sentido norma-
tiva, baseada
em um
critério
de
imanência significativa, proponho-me
a
discutir, esquematicamente, algumas das insuficiências semiológicas de
u m a
proposta deste tipo
(16).
Inicialmente, preciso dizer
que o
sentido
normativo
é ,
forçosamente,
o
resultado
de um
complexo processo
de
constituição significativa, onde os textos legais (em sua forma e con-
teúdo) devem
ser
considerados como
o
plano significante
de um
jogo
sutil de solidariedades, mediante as quais se obtém o sentido normativo.
A s evocações formadoras do sentido jurídico não surgem apenas dos
textos legais. O saber acumulado — que por sua vez pode ser evocado
pela categoria d o senso comum teórico (g) — , juntamente com as práti-
c as
institucionais
dos
órgãos dotados
de
autoridade, constitui
o
código
determinante dessas solidariedades significativas.
4 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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O princípio d a pureza metodológica como condição de sentido,
não admite que os fatores extra-normativos possam funcionar como
condição de significação. A noção de pureza, em termos semiológicos
descansa no mito da conceituação pura, extraído de associações textu-
ais( in presencia e in ausência , no caso das normas pensadas como
campo denotativo
da
meta-linguagem
da
Ciência Jurídica).
A
tendência
manifestada pelo princípio da pureza importa em negar valor ao trabalho
de significação politicamente determinado. Assim, a ciência trabalharia
com sentidos construídos em um lugar fora do poder. N o pensamento
de Barthes, contudo, isto é uma ilusão, pois a linguagem humana
é
semexterior;
é um
lugar fechado ...
e,
portanto,
não
podemos ouvir
a
língua fora
do
poder
{
17). Dita de outra forma, a significação jurídica
é
sempre resultado
de um ato
político;
os
discursos jurídicos fazem ouvir
sempre a o s sujeitos do poder. Correlativamente, o s discursos jurídicos,
dependentes de um a emissão complexa e institucionalizada, conferem a
esses sujeitos o poder do discurso. (18)
4.
Delineadas algumas considerações críticas
que de uma
perspec-
tiva semiológica, poderiam afetar a depuração política e ideológica
sustentada
po r
Kelsen, tentarei concluir este capítulo, levantando
uma
segunda linha
de
argumentação contra esse tipo
de
depuração. Procu-
rarei efetuar minhas reflexões a partir de uma Epistemologia Crítica da
Ciência. Esta particular forma de Epistemologia parte da premissa de
que a ciência deve ser analisada no contexto social, vista como um
subsistema d o sistema social global.
A principal tarefa proposta por um a Epistemologia Critica d a Ciên-
cia é a elucidação d a s dimensões d o compromisso social da ciência, isto'
é , a
ciência enquanto sistema institucional
de
produção, consumo,
dis-
tribuição e censura d o saber científico, que apresenta relações com a
sociedade global,
as
quais necessitam
ser
teorizadas.
E, no caso do Direito, a elaboração institucional do saber jurídico
erige-se em um fator d e produção, circulação e censura de uma informa-
ção que , forçosamente, determina grande parte da significação das
normas: provê os topoi materiais e os estereótipos necessários para a
produção dos discursos de sustentação das decisões e incide na socie-
dade como
um
saber dotado
de
poder. Partindo destas idéias, deve-se
observar que a Epistemologia da Ciência, ao contrário de uma Sociolo-
gia do Conhecimento, não está tão preocupada com a explicitação dos
5 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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condicionantes sociais
d o
conhecimento,
m as com a
sistematização
dos
efeitos sociais
d a
produção
de um
conhecimento legitimado como cientí-
fico, quer dizer,
com a
forçosa dimensão política
da
ciência. Ocorre,
assim, um deslocamento metodológico, por via do qual o objeto teórico
fica localizado
n as
relações entre
o
saber produzido
e a
sociedade.
Com
efeito, desse deslocamento temático surge
a
necessidade
de um
amplo
reexame
d o s
valores epistemológicos
que
presidiam,
sob uma
ótica
positivista, a produção d as atividades consideradas científicas: a exal-
tação
d a
autonomia
d a
ciência,
de sua
neutralidade ideológica,
da
obje-
tividade
de seu
método.
O r a ,
aquelas idéias, dominantes
no
positi-
vismo,
s ão
agora postas
em
xeque pela Epistemologia Crítica
da
Ciên-
cia . E,
assim, passa-se
a
questionar
a
idéia
de que a
ciência
se
explica
e
se
auto-controla,
a
partir
de sua
lógica interna.
Ao
contrário,
a
avaliação
d o significado de uma teoria científica encontra-se necessariamente
determinada pela su a funcionalidade social, assim como pela análise do
caráter mítico
que o
discurso científico adquire,
a
partir
d a
negação
d o
valor
d o
contexto social
e da
exaltação
d o
controle lógico, como condi-
ções
d a
produção
de um
discurso científico. Exatamente este ponto
parecer-me-á
de
importância crucial para
se
compreender
q ue
atrás
de
toda teoria científica
se
esconde
um a
teoria social
e
política
que é
irremediavelmente transportada
aos
domínios
d a
ciência predominante,
quando
se
nega
a
vinculação
d a
ciência
com a
política, quando
não se
tematizam o s efeitos d o poder da ciência dentro e fora da comunidade
científica.
Resumindo:
a
Epistemologia Crítica
da
Ciência
nos
ensina
que a
reivindicação
de
neutralidade ideológica
e
objetividade científica, utili-
zando
um
método
q u e
rejeita
a
infiltração
da
ideologia,
não se
apóia
em
sólidos argumentos epistemológicos,
mas em
justificações valorativas
que ao se
apresentarem
de
forma encoberta, tornam-se plenamente
eficazes. Assim, optar
por uma
ciência liberada
d a
ideologia
é
optar
por
certa relação entre aquela
e o
mundo social. Trata-se
de uma
opção
de
valor,
n ão
pela ciência enquanto
ta l , mas
pela função
que a
ciência possa
cumprir
co m
respeito
à s
práticas sociais.
É ,
portanto,
u m a
opção
ideológica feita
n o
interior
d a
epistemologia.
N o
caso
da
Teoria Pura
do
Direito,
a
tentativa
de
escudar
a
Ciência Jurídica
com uma
suposta
neutralidade ideológica
e
política encobre
o
empenho, talvez incons-
ciente,
de
ideologizar esse saber, preservando, assim,
seu
poder.
5 1
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NOTAS
(1) O princípio d a pureza metodológica é visto, neste trabalho, como a enuncia ção ampla
d e u m a
condição
d e
sentido normativo.
O s
cinco níveis
d e
purificação
q u e
analisa-
remos
no
decorrer
da
obra, podem
s e r
vistos como
o s
critério»
d e
realização dessa
condição d e significação. Cada um deles constitui, assim, u m a fórmula parcial de
sentido.
(2 )
Kelsen, TGD E,
p. 9
(3 )
Poder-se-ia pensar
q u e
Kelsen utilizaria para fundamentar suas idéias sobre
a s
relações entre o Direito e a Política, um ponto d e vista metodológico próximo ao de
Jellinek,
q u e
sustenta
a
necessidade
d e u m a
rigorosa separação entre
a
teoria social
d o
Esta do como Ciência
do ser) , e a
teoria jurídica
d o
Est ado como Ciência
das
normas). Veria esta última, como
u m a
ciência
q u e
deve
s e r
constituinte
de um a
relação
d e
sentido específica.
A
teoria social
d o
Estado, expõe Jellinek,
t em po r
objeto
o se r
histórico, objetivo,
d o
Estado;
é u m a
ciência prática,
u m a
teoria
d a
arte
d o Estado. A teoriajurídica d o Estado, po r sua vez , anaiisaria o que naquele s e r real,
s e f a z
expressivo
p o r
normas
d e
direito
q u e
devam
s e r .
Assim,
c o m
alguma
semelhança, Kelsen olharia
a
Ciência Política como
u m a
disciplina empírica, regida
pelo princípio
d a
causalidade;
u m a
Sociologia especial, cujo objeto central
é a
análise
d o
jogo
de
fo rças existentes
n a
sociedade.
Po r sua vez , a
Ciência Jurídica,
em
sentido
estrito, somente recuperaria como parte
de sua
problemática,
u m a
preocupação pelo
Estado, m a s vendo-o como u m a questão a se r trabalhada p o r u m a teoria puramente
jurídica
d o
Estado, vale dizer, aceitando-a como
u m a
teoria exclusivamente enten-
dida
a
partir
d e u m a
perspectiva
d o
Direito, fora
d e
toda consideração histórica,
social, econômica, e t c . Assim, u m a Ciência Jurídica e m sentido estrito, sai ao
encontro
d o
Estado para considerá-lo somente como sistema
d e
normas, identi-
ficando
o
Estado como
um
orde name nto jurídico positivo. Sobre
a s
idéias
d e
Jellinek,
v e r
Kurt Sontheimer, Ciência Política e Teoria Jurídica ei Estado Buenos Aires.
Eudeba. 1971, p. 23 e Kelsen, Teoria general
ei
Estado, prólogo e Cap . I .
(4 )
Kelsen. TG DE ,
op. ci t . , p . 9
I? )
Kelsen. idem,
p. 7.
(6 )
Evidentemente,
u m a
epistemologia crítica
n ã o s ó
limitar-se-ia
a
discutir
o s
efeitos
do
poder emergente
d a s
formas sociais)
n o s
discursos
d a
ciência
(que se
manifestam
como
u m a
instância ideológica
de
significação),
m a s
procuraria, também, tematizar
o s
efeitos
d e
retorno
de um
discurso científico ideologizado
na
es tru tur a social global.
Estas observações bastam para que se dê conta de que não basta elucidar o s efeitos
d a s
práticas políticas
e das
representações ideológicas delas emergentes
n a
produç ão
d o dis curs o científico, senão q u e preci sa, também , teorizar sobre o poder d o discurso
na
organização
d a s
relações sociais. Voltarei
a
ocupar-me destas questões especial-
mente n a s duas próximas seções deste capítulo e n o capítulo VI I .
(7 ) Kelsen, TG DE , op. ci t . , p . 10.
(8 ) Sobre o s efeitos ideológicos d a racionalidade axiomática ver cap . IV.
(9) Sobre o papel d o saber jurídico n a constituição d o s efeitos d o Direito positivo n a
sociedade,
v e r c a p . V I I .
(10 ) Ver
Kelsen,
T.P. la . e 2? ed . ,
prólogos.
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(11)
Teoria Pura,
1?. e d ., p . 155 e
seguintes.
(12)
Conforme Teoria Pura, 2?ed.,p.
151.
(13 ) Ver , idem, p. 160.
(14) Idem, p. 160 in fine.
(15)
Idem,
p. 161.
(16) A
respeito,
v e r
capítulo
II I e VI .
(17) O
tema
d a
Teoria Pura como condição
d e
significação será aprofundado
n o
capítulo
VII .
(18)
Roland Barthes, Aula Cultrix,
S ã o
Paulo,
1978, p. 16.
(19) O
tema
d o
poder
d o
discurso suscita hipóteses
d e
trabalho frutíferas . Atualmente,
m e
encontro orientando,
n o
Mestrado
d e
Direito
d a
Universidade Federal
d e
Santa
Catarina,
u m a
pesquisa sobre Semiologia
d o
Poder, destinada precisamente
à
elabo-
ração d e u m a teoria sobre o poder d o discurso. De um modo pouco rigoroso, m a s
sucinto, pode-se dizer
q u e
nela
se
procura discutir
a s
relações entre
o
discurso
jurídico e o poder. Trata-se de um novo lugar disciplinar, cujo objeto temático visa a
problematização mais
d o s
efeitos
d o s
discursos
n a
sociedade
q u e o s
efeitos sociais
n o s discursos. N o caso específico d o s discursos teóricos d o Direito, é o ocultamente
d a
dimensão política desse tipo
d e
linguagem
q ue
constitui
seu
poder.
A
apresenta-
ç ã o d a ciência, enquanto discurso puramente descritivo, preocupada unicamente com
a
adequação
d e
seus enunciados,
c o m a s
normas jurídicas permite efetivar
o
poder
dess es discursos. Dito d e outra forma, é a linguagem unívoca, sem ambigüidades,
instalando
a
dúvida
ou um
segundo sentido,
q u e
oferece
a s
melhores possibilidades
para
o
exercício
d o
poder
d o
discurso, como também,
a
produção
de um
conheci-
mento institucionalizado sobre
o
Direito, feito
por up i
grupo profissionalizado
de
sujeitos
q u e
monopolizam
e
guardam
o
segredo
d o
saber
q u e
confere poder
a
seus
discursos.
NOTAS COMPLEMENTARES
A O
CAPÍTULO
II
(d) .
Como assinalamos
n a
nota
c , o
pensamento jurídico clássico fornece
u m a
visão
juridicista
d a
sociedade,
d o
direito,
d a
política
e d o
Estado.
D e
acordo
c o m
este ponto
d e
vista, consegue-se separar
o
Estado político,
da
sociedade civil,
e o
direito,
d a
realidade econômica, apresentando-se
as
relações
d e
classe como relações contra-
tuais, o s sujeitos sociais como sujeitos d e direito, e , assim, nega-se também o caráter
jurídico
d o
político
e a
dimensão política
d o
direito. Enfim,
com a
concepção juri-
dicista, obtém-se u m a representação distorcida d a s relações entre direito e Estado,
ocultando-se, desta forma,
o
fato
de que o
direito
te m
como função social
a
realização
d o
projeto político ideológico
d o
Estado.
A s
concepções juridicistas entram
em
crise
quando pretendem legitimar
a
transformação
d o
Es tad o liberal
em
autoritário, quan-
d o procuram justificar um projeto d e Estado q u e necessita violentar a lei, como
condição
d e s u a
sobrevivência.
5 3
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Kelsen, claramente, adere e reforça o pensamento juridicista, propondo u m a
leitura normativista
d o
direito,
d o
Estado
e d a
sociedade. Conforme este tipo
d e
abordagem,
o
direito,
o
Estado
e a
sociedade
sã o
vistos como
u m
conjunto
d e
norma s
compreendidas mediante
o
emprego
d e
conceitos normativos,
sem o
auxílio
da
Ciência Política. Desta forma,
a s
questões vinculadas
a o
poder (rejeitadas pela
Ciência Jurídica) seriam objeto específico d a Ciência Política. N o entanto, a teoria
política, controlada durante muito tempo pelos juristas
e ,
posteriormente,
por uma
sociologia
d e
matriz positivista,
n ão
deixa
d e se r .
também,
um
possível lugar
de
mistificação.
P o r
vezes,
e m s e u
interior,
o
pensament o juridicista
f o i
criticado
e , com
isto, banida
a
possibilidade
d e
análise
d a
realidade jurídica.
Verificamos, então,
q u e a
partir
d e
outros jogos
d e
crenças teóricas podem
também
s e r
falsificadas
a s
análises
d a s
relações entre
o
direito
e a
politica.
A
questão
exige a inserção desta problemática n o interior d e u m a teoria crítica d a sociedade,
onde sejam assumidas, simultaneamente,
a
dimensão política
d o
direito
e a
instância
jurídica
d a
política.
e),
Renunciando,
d e
acordo
c o m
Foucault,
a u m a
longa tradição científica, aferrada
à
idéia
d e q u e
apenas pode haver saber onde
as
relações
d e
dominação encontram-se
racionalmente banidas,
a s
leituras críticas sobre
o
direito necessitam,
a
partir
de uma
constituição correlata
d o
saber
e d as
condições
d e
dominação, demonstrar
a s
impli-
cações fundamentais
d o s
campos
d e
sign ificação jurídica sobre.as relações sociais,
a
le i que as
organiza
e
reproduz
e o s
sujeitos
q u e as
manipulam. Existe,
p o r
trás
dos
efeitos
d e
dominação,
um
elemento articulador referente
a u m
conjunto mais
ou
menos sistematizado
d e
significações,
q u e
reconduz
e
reforça
as
conseqüências
sociais
d a
dominação
e
transforma
o s
indivíduos, fazendo-os objetos
d o
saber
e do
poder.
E
precisamente
a
partir
d e u m a
clara separação entre
a lei
jurídica (cumpridora
d a s
funções
d e
organização moral
d a
coerção)
e o
saber sobre
a
mesma,
que se
constituem
o s
princípios
d o
normativismo jurídico. Mediante tais princípios, asse-
gura-se
o
isolamento
d o s
indivíduos frente
à
sociedade
e a o
Est ado (dono absoluto
dos
processos decisórios).
D e
fato,insistindo
na
idéia,
o
normativismo jurídico,
co m su a
ilusória sistematizaç ão, abstração e generalizaç ão, situa ale i como expre ssão política
q u e garante e organiza u m jog o igualitário entre o s homens, isolando-os d o sistema d e
decisões
e
interesses.
E m
suma,
a
intermediação
n ã o
participativa
e
apenas individual,
expressa mediante o direito, n ã o seria eficaz sem a produção de um saber notada-
mente elaborado para servi-la. para organizar u m a eficiente separação entre a vida
privada e a vida política. Assim, p o r exemplo, c o m a produção de noções como sujeito
d e direito, cidadania, soberania e contrato, o s juristas conseguem organizar u m
discurso d e ocultamento d a s funções e d o funcionamento d o direito n a sociedade.
Desta maneira, divorciando o direito d a coerção estatal, isto é , apresentando-o como
u m a organização independente d a coerção (legislativa e judicialmente controlada d e
q u e sociedade part ici pa através d e mecanismos d e representação), silencia-se o
fato
d e q u e as
relações sociais
n ã o s ã o
pessoais,
que a lei e o
Estado
sã o
expressões
destas relações e n ão d e u ma vontade individual delegada.
Nesta perspectiva, cremos
q u e
ainda
q u e se
aceite
a
tese
d a
irrelevância
d a
crítica a o s conteúdos da lei , elaborada p o r algumas correntes d o marxismo a lei como
forma jurídica
d a
sociedade burguesa), parece-nos importante
n ão
confundir
o co n -
5 4
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teúdo conceituai d o s textos legais c o m a significação d o conhecimento jurídico, q u e
opera como u m a d a s expressões ideológicas e políticas d a s relações sociais.
O conhecimento jurídico, simulando propor artifícios metodológicos q u e permi-
t em o controle mais racionai d o s conteúdos da lei . erige-se como sua expressão
ideológica. Neste ponto, inicia-se a discussão sobre o po der do conhec imento jurídico
na sociedade. O discurso crítico sobre o direito pretende falar sobre o poder ideoló-
gico d o saber jurídico, tentando tomá-lo como u m d o s fios condutores d a tarefa
crítica.
Deste modo, fazendo explícitas
as
evocações implícitas
d o
conhecimento jurí-
dico tradicional, procura-se elaborar
u m a
outra cadeia
d e
sentidos,
c o m a
qual
se
possa desenvolver e introduzir novos elementos conceituais, aptos para revelar as
funções sociais d o Estado, d a s normas q u e instrumentalizam su a dominação, assim
como reconhecer
e
explicar
o
poder simbólico induzido pela cultura jurídica
em
diversas instituições d e nossa sociedade.
f .)
Mito. fetiche
e
ideologia, como expressões relativamente sinônimas, remetem-nos
a um
corpo racional d e mecanismos significativos, que se dirigem à legitimação e organiza-
ç ã o d e certas relações sociais, silenciadas n o discurso. A construção de um fetiche
implica
n a
cristalização
d e
certos fenômenos
o u
processos
sob a
forma
d e u m
disc urso
posto
a
parte, abstraído
d a s
condições
q u e
presidiram
s u a
produção. Mediante
a
produção
d e
conceitos, fetiches
ou
mitos, obtém-se
u m
efeito
d e
racionalidade subs-
tancial para a s descrições d a s relações econômicas, políticas e jurídicas. Desta forma,
como conseqüência d o emprego d e conceitos fetichizados, consegue-se apresentar o s
elementos, fatores
o u
funções
d a s
relações sociais como objetos
q u e
possuem
u m a
existência autônoma e superior à d o sujeito social. Nesta perspectiva, a cultura
jurídica pode s e r vista como u m discurso fetichizado.
g ) . Em trabalhos anteriores, elaborei a categoria d e se nso comum teórico d o direito .
caracterizado como
o
conjunto
d e
representações, imagens, preconceitos valorati-
v o s , crenças teóricas, metáforas, metonírnias, q u e fu ncion ando co mo normas epis-
têmicas, governam a produção de um saber institucional legitimado como Ciência d o
Direito, O senso comum teórico d o s juristas disciplina ideologicamente as tarefas
profissionais, operando como
u
código latente
q u e
influi
n ã o
somente
n o
pensa-
mento d o s juristas d e ofício, m a s também em seu pensar e agir.
Desta forma, pode mos afirmar q u e a partir d o senso comum teórico d o s jurista s
consolidam-se as fu nçõ es sociais da lei , as dime nsões políticas d o direito e o seu papel
determinante n o projeto d o Estado. O u seja, a partir de um conglomerado d e noções
costumeiras, produzidas n a prática teórica d o direito, surgem o s padrões gerais d a
racionalidade jurídica. Taís padrões
sã o
determinantes
de um
sistema
d e
efeitos
de
significação
q u e
influi
n a
visão idealizada
d o s
sujeitos jurídi cos
e
sociais sobre
o
papel
d o direito. E m vários seminários e palestras, denominei ta l visão d e ideologia
funcional d o s juris tas . Devo acrescentar q u e esta ideologia funcional encontra-se
funda menta da, principalmente, n o senso comum teórico d o direito.
Como subsídio para u m a reflexão sobre o senso comum teórico, posso indicar
alguns lugares discursivos
q u e
gravitam
n a
produção
e
funcionamento
d o s
seus
diferentes fragmentos significativos. A s diferentes formas d e manifestação d o senso
comum encontram-se crivadas p o r idéias estruturantes provenientes: 19) d a s repre-
5 5
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 56/133
sentações costumeiras adquiridas pelos sujeitos sociais
em
suas práticas cotidianas;
2?) da
ideologia funcional nterna lizada pelos sujeit os jurídicos
em
suas práticas
profissionais;
3?)
pelos critérios epistemológicos institucionalmente legitimados para
a s ciências sociais.
P o r outro lado, o senso comum teórico d o direito, assim determinado, possui
ações
d e
retorno sobre
o s
lugares discursivos
que o
condicionam.
Posso ainda afirmar, aprofundando um pouco mais a s influências d o s critérios
epistemológicos, q u e n o senso comum teórico d o s juristas (visto como um comple xo
processo discursivo) detecta-se
a
vigência
d a
tradicional crença
na
forçosa neutra-
lidade
d o
conhecimento científico: Desta forma,
se
reproduz
a
antiga oposição ent re
ciência e ideologia, q u e indubitavelmente reforça o s sonhos d o s juristas em torno d e
u m a
ciência pura.
N a
perspectiva
d e u m a
teoria crítica, parece mais sensato pensar
que o
controle
teórico sobre
a s
determinações
e
efeitos
d o s
sentidos ideológicos
d o s
discursos
da
ciência
n a o
deve seduzir
o s
juristas
na
busca
de um
discurso onde tais componentes
sejam eliminados. Eles devem apenas tentar diagnosticar
a s
funções sociais
das
significações ideológicas.
A
intervenção polemica sobre
os
discursos
d o
senso
comum teórico n ã o deve t e r como meta a purificação ideológica. A crítica deve
encaminhar-se
à
exteriorização
d a s
funções sociais
d o
senso comum teórico.
5 6
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Capítulo III
A PURIFICAÇÃO
ANTI-JU SN ATUR ALIST A
1. O segundo critério parcial de significação que se pode derivar do
princípio
da
pureza metodológica será enunciado
da
seguinte forma:
é
falso supor que o s juristas possam produzir ao nível do pensamento
científico, um raciocínio determinante do que deva ser visto como
Direito jus to e , conseqüentemente, postular um critério de validade para
o Direito Positivo 1)
Liberar a Ciência do Direito d a idéia de justiça representa, também,
o
esforço
de
afastá-la
das
tendências ideológicas
que
tentam apresentar
o
Direito Positivo como justo
e ,
portanto, situar
o
saber teórico
do
Direito dentro
da
corrente epistemológica
que
pretende
a
neutralidade
ideológica do s paradigmas científicos. Para Kelsen, a tentativa de iden-
tificar Direito e justiça é a tentativa de justificar, política e ideologica-
mente, um a ordem social dada. Coloca-se, pois, a teoria kelseniana
contra
as
concepções
dos
juristas sobre
as
funções
de
validade
das
normas
de
justiça
2),
desqualificando, também,
o
jusnaturalismo
a
doutrina
do
Direito Natural),
3)
mediante
a
qual
se
substancializam
os
juízos
d e
valor, apresentando-os como critério
de
validade
das
normas
jurídicas.
2.
Para Kelsen,
um a
análise detalhada
da
temática
da
justiça
e do
Direito Natural, na perspectiva científica positivista, deve revelar, antes
de tudo, seu caráter político e ideológico. Assim, um a Ciência do Direi-
to, em sentido estrito, declarar-se-á incompetente no sentido d e afirmar
se um determinado Direito Positivo é, ou não, justo. ma Teoria Pura
do Direito
insiste Kelsen,
enquanto ciência não pode responder essa
pergunta em virtude de que é impossível respondê-la cientifica-
mente. 4)
5 7
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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A questão nodal que nos deve colocar um a Ciência do Direito, em
sentido estrito, é a das condições objetivas de validade do Direito
Positivo. A avaliação da produção das condições de validade objetivas
das normas positivas é o que leva a Escola Vienense a realizar uma
leitura crítica das doutrinas do Direito Natural, vistas como uma pro-
posta ideológica que pretende um a fundamentação metafísica e política
do critério de validade. C om efeito, através da doutrina do Direito
Natural,
e da
problemática
da
justiça
a ela
incorporada, consegue-se.
no
pensamento jurídico clássico, estabelecer a crença de que o Direito
Positivo deve encontrar seu fundamento d e validade com referência a
um sistema superior de normas. Isso conduz, imediatamente, à questão
da validade — como condição política. Dito de outro modo, o jusnatura-
lismo vê a justiça como elemento a partir do qual se pode decidir se o
Direito Positivo deve ser desta ou daquela maneira. Desta forma, a
problemática da validade adquire, naquele pensamento, um caráter
cientifico travestido, pois evita-se diferenciar o plano das explicações e
o das justificações, fortalecendo-se. retoricamente, estas últimas.
Segue-se. então, que o caráter político do paradigma de ciência jusnatu-
ralista. o faz mais preocupado em constituir-se como fundamentação
ideológica de certos conteúdos para o Direito Positivo, do que em
oferecer um a proposta de resolução para os problemas fundamentais
que possam surgir na construção de um objeto científico do Direito.
O desafio de Kelsen ao jusnaturalismo reside, principalmente, em
su a
negativa
de
aceitar
as
normas
de
justiça como fundamento
do
Direito, como critério
de
validade
das
normas jurídicas, como condição
de
derivação
da
ordem jurídico-positiva
e
como fórmula para
a
demar-
cação
do
campo temático
d a
Ciência
do
Direito. Kelsen desfere
um
rude
golpe n os postulados de fundamentação jusnaturalista, fornecendo
argumentos que mostram as dificuldades de fundamentar o Direito em
um princípio como a justiça, que é admitido em razão de seu próprio
conteúdo, como auto-fundado, evidente e necessário.
Certamente,
a
Teoria Pura
do
Direito, assumindo
os
fundamentos
epistemológicos
d o
positivismo científico, reivindica
a
necessidade
de
distinguir
o
problema
do
valor
do
direito,
das
questões vinculadas
à sua
validade. Isto quer dizer
que
nega
a
possibilidade
de
.subordinar
a
validade do Direito a seu valor. Evidentemente, a afirmação kelseniana
de que o
problema
da
justiça
é
diverso
da
questão
da
determinação
da
existência (validade)
das
normas positivas,
não
elimina
o
problema
da
5 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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justificação
d a
ordem jurídica, antes
o
transfere para outro campo disci-
plinar
— o da
Ética
ou da
Filosofia.
O que a
Teoria Pura
do
Direito
elimina, afirma Bobbio, não é um ou outro problema, senão a confusão
de ambos. Precisamente é desta confusão que nasce a idéia de que as
normas são válidas unicamente se são justas. Perde-se, assim, de vista,
que a
validade
é um
conceito técnico-jurídico, cujo fundamento deve
responder também a esta característica. Parece claro que Kelsen procu-
ra um fundamento objetivo da validade e, por certo, dado o caráter
relativo e subjetivo q ue atribui às normas de justiça, estas, em sua teoria,
não
podem servir para tais fins.
N a
verdade,
a
busca
de um
critério
objetivo (anti-metafísico) de validade é o que constitui a diferença
essencial entre a teoria do Direito Natural e o positivismo jurídico. O
rompimento com tal concepção metafísica de ciência permitirá a Kelsen
construir
um
critério epistemológico,
a seu
juízo, único, claro, inequí-
voco
e, ao
mesmo tempo, necessário tanto para
a
demarcação
do
campo
temático da Ciência do Direito, como para a formulação de seus enun-
ciados.
Por sua vez,
este critério permitir-nos-ia
o
reconhecimento
teórico
do
fundamento
de
validade
das
normas jurídico-positivas.
Daí, a
necessidade de estabelecer um postulado de positividade que sirva de
critério de validade. Tal postulado é enunciado, na Teoria Pura, através
da norma fundamental gnoseológica. Esta norma fundante, suporte do
pensamento, estabelece, exclusivamente, as condições jurídicas para a
validade objetiva
das
normas
de
Direito
e
para
o
reconhecimento
das
proposições
da
Ciência Jurídica.
5)
U m a teoria jurídica positiva, deste modo, não reconhece o funda-
mento
de
validade objetiva
de uma
ordem jurídica,
em
qualquer umadas
muitas normas de justiça. A validade objetiva não surge da correspon-
dência à norma de justiça, mas da conformidade, em última instância, à
norma hipotética e fundamental da ordem jurídica. A inadequação a
um a
norma
de
justiça indica apenas
um a
diferença
no
sentido subjetivo
de um ato
axiológico
de
vontade. Destes sentidos axiológicos subjeti-
vos, que se manifestam contraditoriamente, apenas adquirirá signifi-
cação objetiva aquele
que for
conteúdo
de uma
norma
que, por sua vez,
adquire o seu fundamento d e validade em outras normas superiores, do
próprio sistema d e normas positivas. Deste modo, o positivismo afirma-
se
como
um a
teoria
do
conhecimento jurídico,
que
nada
tem a ver com
u m a apreciação ou valoração desse objeto. É um saber que não reflete
sobre o conteúdo justo de seu objeto, isto é , sobre um a problemática
5 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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alheia
à
Ciência
d o
Direito,
que
mais teria
a ver com ^
Ética
e com a
Política Jurídica. Resumindo, Kelsen pretende, seguindo a epistemolo-
gia positivista, conquistar um a leitura objetiva è desideologizada dos
discursos
d o
saber jurídico tradicional, visando
a
constituição
dos
pres-
supostos
de uma
Ciência Jurídica positivada. Para situar
os
contornos
des te novo espaço teórico (neutralizado ideologicamente), Kelsen esta-
belece
su a
luta metodológica contra
as
doutrinas
do
Direito Natural,
questionando, essencialmente, a forma de verificação de suas últimas
bases 6). Como se percebe, o fundamento final de toda norma de
justiça não é outro senão a intuição de um valor intrínseco que não só
atua como pano d e fundo d o s raciocínios jusnaturalistas, m as serve, em
grande número de casos, para fundamentar, diretamente, normas gerais
d o Direito Positivo.
A
Teoria Pura
d o
Direito exclui,
de sua
proposta
de
verificação
das
normas jurídicas positivas, todo recurso a intuições valorativas as
normas
d e
justiça), vistas como meros enunciados subjetivos, enuncia-
dos que , por sua
natureza,
não
podem
ser
traduzidos
em
expressões
objetivas 7) . Em substituição ao s apelos intuitivos, Kelsen propõe um
artifício metodológico: inclina-se por um procedimento idealista, m e-
diante
o
qual
se
pressupõe como de ve r
—
toda conduta coercitiva
que se tenha estabelecido significativamente em uma norma jurídica.
Essa pressuposição pode se r enunciada, mediante um critério de sig-
nificação, denominado como já vimos por Kelsen, de norma fundamen-
ta l gnoseológica ou norma básica. Esta norma pressuposta pelo conhe-
cimento, como regra deformação d os enunciados da Ciência do Direito,
menciona condutas como devidas, sem que este dever tenha um a íntima
relação co m algum valor ou com intuições transcendentes. E la constitui
simplesmente
a
exteriorização
de uma
conexão lógica,
a
partir
da
qual
se
formam
os
enunciados
da
Ciência Jurídica. Deste modo,
o
dever
externado pela norma básica não necessita apelar para qualquer intuição
sobre valores intrínsecos para expressar as condições de significação
d as normas jurídicas positivas. A norma fundamental gnoseológica é a
q u e estabelece as condições de produção de expressões com significa-
ç ã o jurídica. Assim, a Ciência d o Direito necessita começar seu trabalho
d e
sistematização,
com a
elaboração prévia
de uma
norma básica,
que
será o fundamento último de validade de toda proposição elaborada pela
Ciência d o Direito. A norma básica nos diz qual situação fática o
teórico aceita, em sua pesquisa, como produtora originária de valores
6 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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delegados. Trata-se, pois, de um ato teorético, fruto do próprio pensa-
mento científico. Mediante a utilização da norma básica, a expressão
dever deixa de ser um conceito referido a valores, para tornar-se um
conceito
q u e
expressa
u m a
idéia lógica. Pode-se, então, dizer
que é a
partir d a postulação d a norma básica que Kelsen pretende encontrar
diferenças substanciais entre
sua
teoria
e as
doutrinas
do
Direito Natu-
ral . Por certo que o dever , como idéia lógica, exige o apelo à outra
categoria reguladora d o pensamento: a imputação.
O r a , mediante a categoria de imputação, o cientista do Direito
consegue estabelecer um a relação normativa entre um a conduta e um
ato de coerção. N o entanto, ta l relação de imputação não se baseia em
qualquer observação efetiva da conduta humana, m as sobre o conhe-
cimento de uma norma jurídica, que estabelece ta l relação, enquanto
conteúdo
da
mesma.
A o
descrever
tal
relação, mediante
o
princípio
de
imputação,
o
cientista
do
Direito enuncia
um a
proposição jurídica
que
não se refere à efetiva conduta humana, m as à conduta humana, enquan-
to determinada pela norma, a qual é o objetivo da Ciência do Direito.
Trata-se, assim, d e estabelecer a validez do Direito em um sentido
hipotético e não, como pretende o Direito Natural, segundo a intenção
de uma
doutrina teológica
ou
metafísica. Vê-se, pois,
qu e
para Kelsen,
o
carater ideológico
da
doutrina
do
Direito Natural representa, basica-
mente,
um
obstáculo
à
objetividade
da
ciência,
um a
doxa produtora
de um conjunto de raciocínios que resultam logicamente incontroláveis.
Certamente, a Ciência do Direito estará apenas buscando o s senti-
d o s objetivos das normas jurídicas positivas. E a pergunta sobre o
significado objetivo de uma norma positiva não pode, do ponto de vista
d o positivismo jurídico, se r respondida mediante o apelo a uma ordem
jurídica superior. Esta questão
se
responde
a
partir
d a
explicitação
das
condições pelas quais
é
possível interpretar
o
sentido subjetivo
dos
atos
de
vontade, como
seu
significado objetivo.
Tal
resposta
é
encontrada
quando se pressupõe a norma básica.
3. Considerada a mesma questão d o ponto de vista de uma teoria
crítica d o Direito, apenas existe interesse em observar as funções
sociais derivadas d as idéias jusnaturalistas sobre a dupla existência das
normas
de
justiça
e das
normas jurídico-positivas. Este ponto
se me
afigura d e importância crucial e não surge satisfatoriamente esclarecido
nas relevantes discussões contidas na obra de Kelsen. Quero, portanto,
6 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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apresentar as doutrinas do Direito Natural como o fundamento das fun-
ções sociais cumpridas pelo pensamento jurídico tradicional. Nesta
perspectiva, a doutrina d o Direito Natural pode se r apresentada como a
ideologia de base, a partir da qual se constituem os topoi materiais e
formais
d o
Direito, realizadores
de sua
função social. Todo topo i
produz seus efeitos
de
verdade,
a
partir
de
certas crenças, opiniões
e
representações legitimadas pelo senso comum. N o caso dos topoi
jurídicos, estas crenças
e
opiniões geraram-se
a
partir
dos
princípios,
argumentos e representações que as doutrinas do Direito Natural forne-
ceram aos juristas.
O
Direito Natural pode, assim,
ser
visto ccmo
o
lugar ideológico
d a
metodologia jurídica tradicional. P or isto, a doutrina d o Direito Natural,
apelando para certos pressupostos implícitos sobre a justiça, fornece, ao
pensamento jurídico clássico, toda um a série de falsos conceitos descri-
tivos, com um referente fetichizado q ue permite, precisamente, a cons-
trução d os discursos retóricos do Direito. N ão resta dúvida que segundo
Kelsen,
— que
expressa
ta l
questão
com
outra terminologia
— a
partir
d a
doutrina
do
Direito Natural, constitui-se
um
conjunto
de
classifica-
ções, fórmulas tópicas
e
conceitos
com
sentido anêmico,
que
servem
rnais como argumentos justificadores
do que
como descrições
dos sen-
tidos jurídicos. 8)
Uma das características evidentes das doutrinas do Direito Natural
é o fato de que, em princípio e de forma geral, elas atribuem validade às
normas
de
justiça
que, por sua vez, são
apresentadas como derivadas
da
natureza (coisas e homens), de Deus e da razão. Estes três modos de
fundamentação são expostos retoricamente pelo jusnaturalismo d e forma
solidária, para sustentar
a
crença
de que os
direitos
e
deveres estabele-
cidos pelas leis naturais (normas
de
justiça)
são
inatos
aos
homens, pois
encontram-se na natureza, como manifestação de uma vontade divina
ou racional 9). A idéia de uma natureza legisladora traduz somente uma
forma mítica
de
representação
da
problemática
dos
valores. Estes
apa-
recem através dessa argumentação como coisificados e personalizados
simultaneamente. Mas tal fetichização do valor esconde um a clara in-
tenção ideológica,
que é
preciso revelar. Mostrar como,
sob o
manto
d a
naturalidade,
a
ideologia
é
veiculada para
que os
homens vivam, como
naturais,
o s
valores
que se
lhes quer impor.
A
análise
,da
ideologia
latente
nas
doutrinas
do
Direito Natural
é,
pois,
um a
tarefa essencial
para mostrar suas funções específicas, como fator co-determinante das
condições materiais da vida social.
6 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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A s
funções ideológicas
que as
doutrinas
do
Direito Natural desem-
penham
não são , a meu ver ,
satisfatoriamente desmascaradas pela
crí-
tica kelseniana, porque o autor apela para u m a série de reflexões apoia-
das em uma
metodologia positivista pretensamente avaliada
por seu
caráte r científico, mas que , no fundo, deixa d e abordar aspectos nuclea-
res da
questão.
10)
A Teoria Pura do Direito cria um universo de silêncio sobre o poder
social
que os
discursos jusnaturalistas exercem,
o que
equivale
a
deixar
em
aberto, como diria Tércio Sampaio Ferraz
Jr. , o
problema
de se
saber quais são as condições particulares que fazem com que as dou-
trinas
d o
Direito Natural
se
perpetuem. Porque
é
necessário perguntar
pelas razões sociais
que
determinam
a
interpretação
das
normas jurí-
dicas, baseadas
na
revelação
d o
mistério divino
do
Direito.
O
êxito
do
Direito, como elemento unificador
d as
relações sociais, depende
de um
duplo apelo: à razão e à justiça indubitável.
A s
decisões
se
legitin
am por
serem,
ao
mesmo tempo, lógicas
e
equitativas. Para que esta tarefa seja cumprida, explica Tércio a
Dog-
mática Jurídica não pode ser desenvolvida como uma ciência pois
isto
só
aumentaria
as
angústias sociais.
Por
isso
ela
revela-se como
uma tecnologia que tem para aqueles que não a conhecem aspectos
de um rito cerimonial os quais respeita como uma constante dos
princípios de coerência jurídica
11).
Princípios estes
que se
encon-
tram topicamente fundamentados
a
partir
de
crenças geradas pelas
doutrinas
do
Direito Natural
e
pelos to po i constituídos
a
partir
das
próprias propostas d o posit ivismo jurídico. Um sincretismo cientifica-
mente irritante,
m as
retoricamente eficiente. Trata-se
de um
discurso
tã o normativo quanto o das normas jurídicas. Ainda nesta direção,
externo minhas dúvidas sobre
a
utilidade
de um
estudo como
o d a
Teoria
Pura
d o
Direito, enquanto pretende mostrar
um a
função ideal para
a
Ciência Jurídica, definindo
a
Dogmática Jurídica pelo
que ela não é,
insistindo
em que se
deve preocupar pela verdade d e suas afirmações
quando, na realidade, deveria discutir as razões pelas quais a procurada
verdade é só um dado retórico em seu discurso.
Parece-me, portanto, necessária
u m a
re-leitura
d a
função ideoló-
gica d as doutrinas d o Direito Natural. Neste sentido, seguindo Tércio
Ferraz , creio importante deixar claro que a doutrina do Direito Natural,
como valoração ideológica, deve
se r
vista como
um a
meta-comunicação
q u e
estima
as
estimativas
e
valora
as
valorações, para garantir
o con-
6 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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senso daqueles que precisam manifestar seus valores 12). Também,
como observa Ferraz, o papel ideológico de uma linguagem é produzido
a partir de uma neutralização ou encobrimento de sua função. Isto pode
se r realizado de duas maneiras: 1?) escondendo a presença inevitável do
emissor de uma valoração e dando a impressão de que se trata de uma
proposição
sem
sujeito
—
caso
do
Jusnaturalismo
q ue
propõe
um
sujeito
transcendente ou uma referência direta à natureza; 2?) substituindo
fórmulas valorativas por fórmulas neutras—caso da norma fundamental
em
Kelsen.
13)
Concluindo, a Dogmática Jurídica cumpre, como indica Tércio
Ferraz,
um
papel calibrador
do
próprio Direito
14),
necessitando,
porém, tanto d as doutrinas d o Direito Natural, como do positivismo,
ambos formando
um
duplo plano,
que, a
partir
de sua
forçosa ambigüi-
dade, lhe permite realizar as funções míticas, através das quais encontra
a própria razão de sua existência. P o r isso, a neutralização ideológica d a
Dogmática Jurídica, mediante
a
pretensa superação
de
seus fundamen-
to s jusnaturalistas, n ão deixa de ser um deslocamento complementar.
NOTAS
1) As criticas à s concepções tradicionais sobre a justiça e a s doutrinas d o Direito natural
aparecem como
u m a
constante
n o
pensamento kelseniano. Para
a
redação deste
capítulo utilizei
a s
seguintes obras
d e
Kelsen:
a s
duas versões
d a
Teoria Pura
d o
Direito. Teoria General d e i Derecho y e l Estado e Justiça e Direito Natural.
Certamente, a proposta d e u m a purificação jusnaturalista encontra-se estrei tamente
vinculada
c o m o
nível
d e
purificação político-ideológico analisado
n o
capítulo
an-
terior.
e ,
neste sentido
e ia
pode, também,
s e r
i nterpretada como
u m a
derivação deste
nível d e purific ação político-ideológica. E m certo sentido, a purifi cação anti-jusnatu-
ralista guarda , ainda,
u m a
estreita relação
c o m
juízos
d e
índole moral,
na
medida
em
q u e
eles
s ã o
apresentados como critérios
d e
legitimação
d e u m
dever
d e
obediência
à
ordem jurídica,
q u e s e
encontra,
p o r s u a v e z ,
fundamentada
em u m a
supos ta identifi-
cação entre a moral e a justiça. Contudo , a distinção entre a moral e o Direito não se
refere somente a o caráter ideológico d a s suas diversas pretensões d e moralização,
m a s .
também, pode constituir
um
problema metodológico derivado
da
necessidade
d e encontrar a s características específicas d e duas ordens normativas diversas. Ver
c a p . V )
Finalmente,
n o
extenso tratamento
d o
tema
d a
justiça
e d o
Direito natural,
Kelsen desenvolve
u m
amplo leque
d e
questões,
d a s
quais
s ã o
escolhidas, para
a
análise neste capítulo, aquelas
q u e se
encontram mais estreitamente ligadas
ao pro-
blema d o método. Nesta ordem d e idéias, intentarei mostrar, c o m certa nitidez, a s
relações entre a justiça e a s doutrinas d o Direito natural c o m a problemática dos
fundamentos d a validez.
6 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 65/133
2) Expr ess ão utilizada em Justiça e Direito Natural , para referir-se ás normas ideais
q u e
determinam
a
justiça como condição
d e
validade
d a s
normas jurídicas.
3)
Kelsen utiliza
a
expressão jusnaturalismo
em um
sentido lato, para fazer referência,
tanto
às
concepções tradicionais
d o
Direito natural
de
fundamentação teológica
ou
racional), como
a
qualqu er doutrina axiológica
ou
crenç a sobre
u m a
justiça absoluta
e
incondicional. A expressão, também, compreende todo juízo, mediante o qual p re -
tende-se expressar
u m a
valoração jurídica.
O s interesses políticos e d e classe — conforme Ricardo Azpurua Ayala — são
considerados, pela Teoria Pura
d o
Direito, como fundamentos
d o
jusnaturalismo.
A
m e u v e r . d e u m a perspectiva semiológica, a s doutrinas d o Direito natural podem ser
definidas como
u m
complexo
d e
saberes .crenças, mitificações
e
metá foras tendent es
a
afirmação ontológica
de um
direito supra-legal, apresentado como formando parte
d o sistema d a natureza, para condicionar, topicamente, a validade d o Direito posi-
tivo, isto é , para legitimar, retoricamente, o s fundamentos de validade d o Direito
positivo.
4) KE LS EN . Hans: Teoria General dei Derecho e dei Estado , p. 6. Adiante, TGDE .
5)
Kelsen aderiu
a
muitas
d a s
idéias
e
princípios metodológicos
d o
positivismo cientí-
fico,
q u e t em
como
u m a d e
suas características fundamentais
a
negação absoluta
da
metafísica. A conseqüência desta repulsa é que fica excluída qualquer instância
transcendente como critério objetivo d e validade. P o r isso, Kelsen. inevitavelmente,
circunscreve-se
a u m
relativismo ideológico,
a o
conside rar, como irracionais
e
subje-
tivos,
o s
motivos
q u e
determinam
a
idéia
d e
justiça, obrigando-o
a
procurar
a
fundamentação d a validade d o Direito na pressuposição — n o pensament o jurídico —
d e u m a
norma bá sica, pela qual toda cons tru ção deri vada
de tal
norma deve possuir
o
caráter hipotético
d a
mesma.
Í6) Conf orm e Ambrosio Luca s Gioja: Id eas para u na Filosofia dei Derecho , p. 133.
7) Kelsen acredita q u e o s juízos d e valor, externados pelas normas d e justiça, n ão
podem incidir, teoricamente, como fundamento d a validade d a s normas jurídicas,
n e m
podem
s e r
afirmados,
n o
interior
d a
Ciência Jurídica, como qualidade
d as
mesmas. Isto pressupõe
q u e a s
normas
d o
Direito positivo possam
se r
avaliadas
e
fundamentadas p o r normas d e justiça, q u e seriam, assim, consideradas, n o pensa-
ment o jurídico, como simultaneame nte válidas. Ora , se pressupusermos um tal
sistema
d e
justiça válido, então,
u m a
norma
d e
Direito positivo,
que a
contradiga,
não
pode
s e r
considerada como válida. Apenas podem
te r
validade
as
norma s jurídicas
q u e tenham conformidade c o m u m sistema d e normas d e justiça. Isto posto, n a
verdade, apenas o sistema d e normas d e justiça pode s e r considerado válido e não o
sistema
d e
Direito positivo como
ta l .
Este, então,
n ão
teria validade própria, além
de
apresentar u m a duplicação desnecessária d o sistema normativo.
A s normas d e justiça podem se r vistas como fundamento d o ordenamento legal
se pressupusermos a existência d e valores absolutos — baseados e m u m a ordem
transcendente ideal.
U m a
norma
d e
justiça, constitutiva
de um
valor absoluto, surge
c o m a
pretensão
de ser a
única válida, isto
é ,
exclui
a
possibilidade
d e
tomar como
válida qualquer outra norma
que a
contrarie.
O r a ,
quando
se
admite, como
o faz
Kelsen,
a
possibilidade
de um
relativismo axiológico, postulante
d e
normas
de
justiça, também possivelmente, contraditórias, tidas, a o mesmo tempo, como váli-
6 5
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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d a s , toda a ordem jurídica positiva tende a entrar em contradição co m qualquer uma
dessas normas d e justiça. Conseqüentemente, n ã o poderá haver qualquer ordem
jurídica positiva q u e deva s e r considerada como n ão válida, po r estar em contradição
c o m qualquer u m a dessas normas de justiça. Neste caso, a contradição é forçosa e
sempre haverá
u m a
norma
d e
justiça
q u e
possa fundamentar
a
validade
d o
conteúdo
d e u m a norma jurídica. Assim. Kelsen acrescenta, como argumento contrário á
consideração
d a s
normas
d e
justiça, como critério
d e
validade
d o
Direito positivo,
o
fato
d e q u e
elas, pelo
seu
caráter relativo,
n ão
podem sustentar
um
critério unívoco
d e
validade,
q u e
passará
a
depender
de um
pressuposto
d o
pensamento.
(8) A
respeito,
v e r
capítulo
VI.
(9 )
Sobre
o
caráter retórico
e
ideológico
d a
argumentação jusnaturalista
é
interessante
v e r
TGDE,
p. 9, ond
Kelsen analisa
a s
conc epções teológicas dojusnaturalis mo.
qu e ,
a o
identificar
a s
normas
d e
justiça
com a
vontade
d e
Deus, confere-lhes
um
caráter
sagrado.
E, é a
partir desta dimensão
d e
sacralidade,
q u e
elas
n os
apa recem, também,
como necessárias e auto-evidentes. Assim, o Direito natural postula, retoricamente.
que o
fundamento
d e
validade
d a s
normas
de
justiça, devg
se r
deduzido
d a
natureza
(constitui
u m a
ordem imanente
à
natureza)
e que , por não
serem aquela s normas obra
humana,
m a s
fruto
d a
vontade divina,
s ã o
imutáveis, válidas
em
todo tempo
e
lugar.
D e acordo c o m esta argumentação, a s normas d e justiça podem se r descobertas pela
razão, mediante
u m a
cuidadosa análise
da
natureza. Desta forma,
a s
normas
de
justiça representam a b o a consciência, u m a consciência natural, espelho d a vontade
divina. Assim,
as
normas
de
justiça, como expressão
d a
vontade divina, constituem
mandatos de um legislador (Deus) dirigidos à natureza, o que implica na afirmação d e
u m a
natureza legisladora.
P o r
certo,
a
doutrina
d o
Direito natural,
q u e
pretende
encontrar normas d e justiça n a natureza, apóia-se no seu caráter sócio-normativo e
religioso. Natureza
e
sociedade
s ã o ,
pois, identificadas
na
doutrina
d o
Direito
natural enquanto n ã o distinguem, afirma Kelsen, o q u e " é " d o q u e deve s e r " . A
positividade
d o
Direito, preocupação
d e u m a
Ciência Jurídica
e m
sentido estrito,
necessita fundamentar seus estudos
em
normas criadas
p o r
atos humanos
c não
divinos. Assim,
um
conhecimento científico
d o
Direito
n ã o
pode negar
a
validade
a
u m a
ordem estabelecida
p o r
atos humanos
e não
efetivos, pela razão
de que
esta
ordem coercitiva n ã o corresponde a u m a ordem imaginária de justiça, estabelecida
p o r u m a
autoridade transcendente. Para Kelsen, esta procura
n ã o
deixa
de ser
subjetiva.
(10)
Kelsen,
e m
TGDE,
p. 14,
converte,
d e
repente,
a s
doutrinas
d o
Direito natural
nas
aspirações
d o s
homens
n o
sentido
d e
serem felizes, bons
e
justos.
A
justiça fica.
assim reduzida a u m a aspiração ou a um idèal n ão controlável pela razão. Entretanto,
a
justiça
e a
doutrina
d o
Direito natural
que a
organizam ideologicamente, cumprem
funç ões específicas na organização d o s discursos jurídicos (teóricos ou operativos),
na
determinação
d o
saber como poder,
de um
saber
q u e
regula
as
evocações consti-
tutivas
d o s
sentidos
d o s
textos legais
e ,
desta forma, co-particípa, também,
nas
funções sociais
d o
Direito. Esta
é u m a
idéia
q u e
deve
s e r
explicitada para
a
compre-
ensão d a função social dojusnaturalismo.
(1 I)
FERRAZ
J R . .
Tércio Sampaio:
" A
Função Social
da
Dogmática Jurídica ,
p
181.
(12)
Idem,
p. 188.
(13)
Conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior, idem,
p. 190.
(14) Idem. p. 189.
6 6
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Capítulo IV
A
PURIFICAÇÃO
ANTI-NATURALISTA O U
ANTI-CAUSALISTA
. Enunciaremos, agora, um a fórmula parcial de significação para o
terceiro nível de purificação proposto por Kelsen: é preciso evitar um
sincretismo metodológico
que
obscureça
a
construção
de um
campo
temático específico da Ciência do Direito e dilua os limites qu e lhe são
impostos pela própria natureza do objeto.
Neste nível, Kelsen propõe-se a superar o que ele considera como
insuficiência do pensamento jurídico deste século e do anterior. Tal
pensamento é visto pela Escola Vienense como um saber acrítico, onde
se misturam categorias e princípios provenientes de diversas disciplinas.
Desta forma, os discursos da Ciência do Direito'tradicional ocupam-se
de questões que têm mais a ver com a Sociologia, a Psicologia, a Ética o u
a Teoria Política do que com a Ciência do Direito propriamente dita.
Para a Teoria Pura do Direito o sincretismo metodológico, presente no
conhecimento jurídico dominante, pode se r atribuído à estreita conexão
que o direito tem com o resto dos saberes constituintes das chamadas
Ciências Sociais. O Kelsenianismo considera, pois, que estabelecer a
posição do Direito no quadro geral das ciências constitui um a condição
necessária para
a
determinação
d a
especificidade
do
conhecimento jurí-
dico.
Segundo Kelsen, pode-se distinguir dois tipos
de
ciência:
a da
natureza e a da sociedade. Evidentemente, os objetos de conhecimento
que elas constituem são distintos, mas a diferença entre ambas não surge
p o r nenhuma qualidade q ue possa se r atribuída a seu campo temático, à
realidade referida por seu discurso. A diferença surge, no entender de
Kelsen, no plano dos princípios constituintes, organizadores de discur-
sos ou
saberes diferenciáveis. Assim,
as
ciências
da
natureza estariam
reguladas pelo princípio da causalidade e as ciências da sociedade
6 7
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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pelo princípio
da
imputação .
É
necessário, aqui, perceber
que a
natureza
e a
sociedade
são
duas categorias
do
pensamento, através
das
quais se externam o objeto de dois tipos de ciências diversas.
O
objeto
d as
ciências naturais
— a
natureza— constitui
um
sistema
de elementos ligados na forma de causa e efeito, segundo um princípio
específico: o princípio da causalidade. E m grandes traços, quando fala-
mos que um
saber encontra-se orientado pelo princípio
da
causalidade,
estamos afirmando
que a
conexão entre dois elementos
do
real deve
ser
interpretada de modo que o primeiro seja pensado como causa e o
segundo, como efeito. Quando se afirma, pois, que a relação condicional
de certos enunciados deve ser pensada como um a conexão de causa e
efeito, estamos diante de uma ciência da natureza.
O objeto d a s ciências sociais — a sociedade — é para Kelsen, um
sistema de elementos ligados segundo um princípio diferente daquele da
causalidade: o da imputação. Este princípio, também, une dois elemen-
to s externados mediante um enunciado condicionai, mas sem lhes atri-
buir u m a relação de causa e efeito, senão interpretando-os conforme um
critério de retribuição — castigo ou recompensa — de forma que o
primeiro elemento do enunciado condicional, seja visto como uma
transgressão
ou
adequação.
Assim, em analogia ao princípio de causalidade, quando se afirma
q ue
dois elementos devem
ser
interpretados como
um a
relação
de
retri-
buição (transgressão-adequação), estamos diante
de uma
ciência
da
sociedade.
Chegamos, desta forma,
a um
ponto importante:
a
sociedade,
como objeto
das
ciências sociais,
é
regida, para Kelsen, pelo princípio
da
imputação
e , por
isto,
é
sempre
um
conjunto
de
enunciados norma-
tivos. Ou , de outra forma, as ciências sociais são sempre ciências
normativas, no sentido de que estão constituídas por um conjunto de
proposições condicionais que nos dão uma explicação imputativa de um
sistema de normas, por meio do s quais se estabelecem sentidos norma-
tivos para
a
conduta
d o s
indivíduos.
O r a , evidentemente, existem vários sistemas normativos aos quais
pode
ser
vinculada
a
conduta
dos
indivíduos. Estes sistemas normativos
podem
se r
distinguidos, conforme
o
tipo
de
conseqüência imputada:
moral, religiosa ou jurídica. Temos, então, postulados pela Teoria Pura
do
Direito, três tipos possíveis
de
ciências sociais normativas:
a
Ética,
a
Teologia
e a
Ciência Jurídica.
São
saberes
que se
ocupam
da
sociedade.
6 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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enquanto ordem normativa. Isto posto, ficam esquematicamente expli-
cadas a s razões q u e levam Kelsen a postular a necessidade de uma
purificação anti-naturalista. isto é . u m a purificação q u e n o s indique u m
critério
d e
determinação
d e u m a
diferença genérica
e m
relação
à s
ciên-
cias
d a
natureza.
O
princípio
de.
purificação anti-naturalista
não
aceita, como critério
definidor, do campo temático das ciências sociais, o pressuposto de que
o s
seus saberes ocupam-se
da
conduta
dos
homens,
uns em
face
dos
outros. Para Kelsen. a real e efetiva convivência entre os homens
necessita ser pensada como parte do sistema da natureza, compreendida
através da categoria da causalidade. As ciências sociais como ciências
normativas ocupam-se unicamente da conduta humana, enquanto deter-
minada po r normas, ou seja, que tem por objeto as normas que deter-
minam essa conduta. Assim, a Psicologia, a História, a Sociologia,
enquanto reguladas pelo princípio da causalidade, não se distinguem,
metodologicamente da Física ou da Biologia. Elas são ciências causais
que nos
falam
d a
conduta humana. Surge aqui
um
problema termino-
lógico importante,
já que a
Psicologia,
a
História
e a
Sociologia
são
costumeiramente chamadas Ciências Sociais. Kelsen aceitaria
ta l
deno-
minação, embora com a ressalva de que deveríamos distingui-las em
dois tipos
de
Ciências Sociais:
as
causais
e as
imputativas. Apenas
as
últimas, contudo, seriam Ciências Sociais
em
sentido estrito.
1)
A s
chamadas Ciências Sociais causais
que
tentam explicar
a con-
duta recíproca entre
os
homens, conforme
o
princípio
da
causalidade,
apresentam só uma distinção de grau, e não de princípio, relativamente
às ciências d a natureza. Apenas pensando a sociedade como ordem
normativa d a conduta humana, interpretada a partir do princípio da
imputação, teríamos a possibilidade de considerar a sociedade como
ordem
ou
sistema diferente
do
sistema
da
natureza.
N o
quadro geral
das
ciências,
d a
natureza
e da
sociedade, (causais
e
normativas), a Teoria Pura do Direito situa a Ciência Jurídica como uma
Ciência Social normativa. Isto
é, um
saber
que se
ocupa
da
conduta
humana,
não tal
qual
e la
efetivamente
se
realiza (como causa
e
efeito),
senão como deve realizar-se,
de
acordo
a uma
ordem normativa.
A
Ciência Jurídica é um saber que nos fala de uma parcela da sociedade,
vista como
um
complexo
de
sistemas normativos referentes
às
condutas
humanas.
6 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 70/133
Em síntese, para Kelsen, a Ciência Jurídica como Ciência Social
normativa, teria a função de produzir um conjunto de proposições
explicativas do significado jurídico atribuído à conduta humana por um
sistema
de
normas,
as
jurídicas.
N ão
interessa
à
Teoria Pura
do
Direito explicar
o s
motivos,
os
fatos
que
determinam
a
produção
de uma lei, nem o
grau
de
eficácia
q ue
esta
possa chegar
a
adquirir. Tudo isto resvala para
o
plano causal
e
deve
ser
explicado
por
disciplinas como
a
Teoria Política
ou a
Sociologia.
A teoria kelseniana, como instância epistemológica da Ciência Jurí-
dica, estaria somente preocupada em estabelecer as condições metodo-
lógicas, as regras de significação a partir das quais a Ciência Jurídica,
mediante suas proposições, pode explicar o sentido jurídico que as
normas
do
Direito positivo outorgam
à
conduta
dos
homens.
A purificação anti-naturalista indica, como função central de uma
ciência jurídica,
a
explicação
d o
processo
de
produção
do
sentido
nor-
mativo objetivo atribuído pelas normas jurídicas à conduta dos indiví-
duos, e das regras de formação das proposições pelas quais estes sen-
tidos são verificados.
Retenhamos, por um momento, a idéia de que a Teoria Pura do
Direito seria um a teoria dirigida a explicar as condições de produção das
significações normativas seu objetivo central).
2. A
partir
d os
textos kelsenianos, quando
se
fala
de
condições
de
significação deôntica 2), em sentido estrito, pensa-se na norma funda-
mental gnoseológica ou norma básica). A norma básica é uma categoria
epistemológica
a que
Kelsen atribui várias funções, todas elas ligadas
à s
condições
de
verificação
das
proposições
d a
Ciência Jurídica: postulado
de
verificação
das
últimas bases
do
sistema
de
normas positivas
e
fundamento último
da
unidade
de tal
sistema; regra
de
formação gené-
rica da linguagem normativa; critério de reconhecimento do sistema de
normas positivas, no plano do conhecimento jurídico; categoria fun-
dante do processo de constituição do objeto da Ciência do Direito e
também do sentido das proposições qu e descrevem o referido campo
temático 3). Daí, a norma básica deve se r vista, por Kelsen, como o
fundamento gnoseológico, tanto do sistema de normas positivas, como
d as
proposições
que as
descrevem. Assim, para
a
Teoria Pura
do
Direito, só seriam teoricamente admissíveis como normas e proposições
jurídicas, as expressões que satisfizessem as condições impostas pela
7 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 71/133
norma básica. Desta forma, a norma fundamental gnoseológica serviria
como critério de reconhecimento, como esquema de significação das
normas
e
proposições normativas
e ,
também, como propostadefmitória
do campo temático da Ciência do Direito, na medida em que impõe
como condição para o reconhecimento destes elementos:
1 — que as
normas
em
questão funcionem,
por sua vez,
como
os
sentidos objetivos dos atos humanos por ela mencionados em seu
conteúdo);
2 — que a existência da norma seja reconhecida por uma norma
superior fundante de sua validade;
3 — que o sistema de Direito Positivo, ao qual a norma pertence,
seja. em sua totalidade, eficaz; 4)
4 — que a
norma tenha sido criada
por
órgão competente, mediante
procedimento adequado; ou bem, se estes requisitos não se dão, que a
norma seja aceita pelos órgãos de aplicação como formando parte de um
sistema (norma de habilitação);
5 — q ue o enunciado, mediante o qual se expressa a norma, externe
um juízo imputativo;
6 — que indique expressamente como devido, um ato de coerção
(sanção);
7 — que a
comunidade
de
cientistas poSsa reconhecer
a
unidade
sistemática d o conjunto de normas (representadas como formalmente
consistentes) a partir, precisamente, da norma básica, cujas caracterís-
ticas terminamos
e
expor
A enunciação da norma fundamental gnoselógica, obsessivamente
reiterada ao longo da obra de Kelsen, deixa, contudo, para os juristas
práticos,
um
amplo leque
d e
interrogações.
É
preciso dizer
que a
norma
básica surge carregada
de
mistérios.
O ra ,
muitas
das
perguntas formu-
ladas pelo jurista de ofício sobre os mistérios da norma básica, não têm
sido, suficientemente esclarecidas pela epistemologia jurídica.
Penso q u e , para a formulação d a norma básica, como conceito
teórico preciso, é imprescindível u m a análise prévia do problema
semântico
das
linguagens
do
Direito (normas
e
proposições jurídicas),
assim como um amplo estudo sobre suas regras de formação.
Eis-nos então, diante
de um
sério problema:
da
resolução destas
questões, depende toda
a
concepção
das
normas, como sentido objetivo
d as condutas sociais, e da imputação, como categoria delimitadora d o
domínio jurídico, frente ao domínio natural e como gênero constitutivo
7 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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d o objeto da Ciência do Direito 5). Em outras palavras, como fórmula
metodológica que pretende falar das estruturas que condicionam a pos-
sibilidade de um conhecimento normativo do Direito, a norma básica
necessita d a r respostas, ao problema da forma lógica e referencial com a
qual
se
pretende estabelecer
um a
ordem sistemática
no
material norma-
tivo, de sorte que , a partir da mesma, as normas jurídicas possam ser
suscetíveis de algum tipo de verificação.
3 . Mas para indicar o lugar epistemológico que deve ser reservado à
norma básica e m u m a teoria das significações jurídicas, é necessário
efetuar um breve parênteses para discutir as questões levantadas pela
teoria analítica com relação às condições de verdade das normas e
proposições jurídicas dada a ausência de um campo referencial). É a
partir d as dúvidas externadas peio pensamento neopositivista, que ten-
tarei situar a proposta de Kelsen. N a epistemologia positivista, a enun-
ciação d as condições de verificação das proposições é feita a partir do
princípio de que uma expressão tem sentido na medida em que possa
transmitir um valor informativo. Assim, o discurso fático fixa os limites
do que pode se r dito com sentido. Para o neopositivismo o significado de
u m a
proposição depende
da
possibilidade
de
prova,
da
correspondência
d o enunciado com os fatos. Se tal correspondência é possível, podemos
determinar seus valores de verdade, tornar o enunciado verificável e ,
portanto, com sentido. Para os cultores d os lineamentos formulados
pelo Círculo de Viena, se as palavras se aplicam para referir-se a situa-
ções que não têm correspondência com os fatos, se carecem de refe-
rente, elas não têm sentido. A regra de significação proposta baseia-se
em um critério semântico que considera sem sentido todo enunciado que
por não te r referente, encontra-se impossibilitado de ser submetido a um
teste sobre suas condições de verdade 6). O ra, esta regra de significação
tenta responder à seguinte pergunta: quando um a expressão tem sentido
para a ciência? E m outras palavras, quando u m a expressão pode formar
parte de um discurso científico? Vê-se, então, que esta regra de signifi-
cação nada nos diz relativamente ao sentido das linguagens naturais:
trata-se de um a condição de sentido inaplicável a este tipo d e linguagem.
Projetando estas idéias
ao
domínio
das
linguagens jurídicas, nota-
mos que tanto o s discursos da s normas jurídicas como os das teorias
dogmáticas, encontram-se formados po r expressões que foram cons-
truídas valendo-se do s recursos expressivos das linguagens naturais.
7 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Daí se deduz, obviamente, a inexistência de critérios firmes para a
determinação do sentido destes enunciados. Descarta-se, pois, e m prin-
cípio, a possibilidade de construir seus âmbitos referenciais, assim
como de um pronunciamento sobre suas condições de verdade.
Como podemos, então, estabeleceras condições de verificação das
normas
e
proposições jurídicas?
Em que
podemos basear-nos para
estabelecer u m a teoria sobre a significação normativa? A partir de
critérios, pode-se estabelecer os limites de uma ciência normativa do
Direito?
U m a primeira resposta às questões levantadas poderia ser enun-
ciada a partir das idéias de Frege. Este autor, tomando, precisamente,
como exemplo, as normas, distingue, claramente, os problemas deriva-
dos da
determinação
do
sentido
de uma
expressão,
da
determinação
de
suas referências. Assim, distinguindo sentido, de referência, levanta a
tese de que os termos de urna linguagem, quando carecem de correspon-
dência fálica, podem possuir, do mesmo modo, um sentido designativo.
T al significação designativa depende das propriedades determinadas
peio u so habitual do termo. E este sentido habitual, como termo de uma
linguagem confere-lhe, n o juízo de Frege, um a referência indireta.
Deste modo, a s normas jurídicas, carecendo de referente, não poderiam
se r
submetidas
a um
processo
de
verificação
que as
vincularia
ao
sistema da natureza). N o caso, alcançaríamos sua significação de forma
indireta. Elas nos dariam o sentido normativo de uma conduta na
medida em que fosse possível estabelecer sua existência dentro de um
certo direito positivo. A norma funciona, assim, como um esquema
referencial indireto; como esquema de significação das condutas
sociais. 7)
Numa segunda resposta, poderíamos, também, apelar para Hume,
q ue adverte sobre a impossibilidade de tentar derivar sentidos norma-
tivos, a partir de elementos fáticos ou juízos de verdade, a partir de
sentidos deônticos. E m outras palavras, o chamado princípio de Hume
estabelece a recíproca impenetrabilidade do mundo do ser e do mundo
do dever. O s sentidos normativos não poderiam ser atribuídos a partir de
nenhum tipo de observação fática, m as pela correspondência entre o
sistema da natureza e o sistema das normas. Por sua vez, o sentido
normativo estabelecido
a
partir desse processo
de
correspondência,
não
n os habilita a efetuar nenhum pronunciamento sobre as efetivas con-
dutas d o s homens, ou seja, não podemos tirar nenhuma conclusão sobre
7 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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se os
homens acomodam, realmente, seus atos
aos
sentidos normativos
propostos. Assim,
por
exemplo, frente
à
morte
de um
indivíduo,
que
sentido
lhe
devemos atribuir?
O
sentido
de .um
homicídio
ou de um
desejo natural? Para determinar
a
significação normativa deste fato
somos obrigados
a
apelar para
um
sistema
de
normas positivas.
Mas.
estabelecido
o
sentido deôntico
que um
sistema
de
normas atribui
a
essa
classe de fatos, nada sabemos sobre a efetiva adequação das condutas
dos homens a estes sentidos normativos objetivados pelas normas. Em
outros termos,
o
postulado
de
Hume impede
o
estabelecimento
de
critérios de significação coincidentes para o mundo do ser e do dever,
isto é , a verificação da eficácia de um a norma não pode ser confundida
com a verificação do sentido objetivo que ela estabelece. Trata-se de
um a
ambigüidade significativa determinada
a
partir
da
idéia
de que o
sentido jurídico não tem faticidade e que , portanto, nunca se nos oferece
como dado sensível.
É por
isso
que se
afirma
que da
observação
dos
dados sensíveis
não
podemos determinar nenhum tipo
de
sentido jurí-
dico.
Por
todas estas razões
é que as
normas jurídicas
não
podem
ser
vistas, em nenhum sentido, como proposições.
Analisadas estas questões sobre
o
plano referencial
e
designativo,
vejamos,
um
pouco mais
de
perto,
o
pensamento
de
Kelsen sobre
o
sentido
das
normas
e
proposições jurídicas.
Para Kelsen,
o
conhecimento
de um
fenômeno como jurídico
é o
resultado
de um
processo
de
interpretação específica
a
partir
de um
sentido atribuído
sem
nenhum apelo
a o
plano referencial.
A
significação
que um ato tem, do
ponto
de
vista
do
direito, surge
de uma
operação
mental pela qual
se
atribui (imputa-se)
a uma
conduta, inserida
no
sistema
da
natureza,
um a
qualificação jurídica objetiva. Partindo
de uma
argumentação análoga
à de
Frege,
a s
normas jurídicas vincular-se-iam
aos
fatos
da
natureza através
de seu
conteúdo.
A
referência indireta
das
mesmas surgiria pela menção
de uma
conduta como âmbito material
de
validade de uma norma.
Certamente,
a
problemática
do
sentido
das
normas jurídicas exige,
para
su a
resolução, certas regras
de
formação
dos
enunciados. Estas
regras seriam providas, implicitamente, pela teoria
dos
âmbitos
de
validade. Segundo Kelsen,
a
solução
do
problema
da
significação
das
normas passa pela suposição
de que .
para
a
construção
de seu
sentido
objetivo, além
da
modalidade deôntica, necessita-se explicitar
um a
ação
(âmbito material), atribuível
a
certos sujeitos (âmbito pessoal),
em um
7 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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espaço e tempo localizáveis (âmbito temporal-espacial). U m a norma
não teria um sentido teoricamente determinável, se não tivesse condi-
ções de explicitar seus âmbitos de validade 8). Da í decorre, com clareza,
que . na
caracterização
do
sentido
d as
normas,
as
condições
de
verdade
são substituídas pelas condições de validade, que funcionam como
regras de formação das expressões integrantes dos discursos do Direito.
Referidas regras de formação não se encontram formuladas, ex-
pressamente, nem pelo pensamento jurídico clássico, nem pela Teoria
Pura do Direito. Contudo, concordando com Vernengo, entendo que a
carência explícita de uma teoria das regras de formação genérica das
linguagens jurídicas pode
ser
suprida, considerando
a
teoria kelseniana,
sobre os âmbitos de validade das normas, como um a teoria implícita das
regras
de
formação
dos
enunciados normativos.
9)
P o r outro lado, a Teoria Pura do Direito afirma, em sua versão final,
a necessidade de distinguir a s normas jurídicas d as proposições d a
Ciência d o Direito 10). A partir desta divisão, sustenta-se que apenas as
proposições encontram-se sujeitas a uma lógica, onde os valores semân-
ticos têm um papel determinante. Assim, para Kelsen, os enunciados da
ciência d o Direito têm um sentido descritivo (sujeito às condições de
verdade),
na
medida
em que
afirmam
a
validade
de uma
norma
11). O s
âmbitos de validade das normas serão, deste modo, o referente das
proposições jurídicas. Sabe-se que para a Teoria Pura, o referente das
proposições jurídicas surge pela existência de uma norma dentro de um
certo Direito Positivo, reconhecido como tal, a partir da pressuposição
d a norma básica. Assim, talvez houvesse um sentido para os enunciados
d a
ciência
do
Direito,
na
medida
em que
eles pudessem externar
uma
correspondência com o conteúdo das normas jurídicas.
Pode-se afirmar
que a
verdade
das
proposições jurídicas,
em
função
da correspondência de dois sentidos, é uma tese semiologicamente
problemática, pois carrega
a
ilusão
de que o
sentido
das
normas
é
unívoco. Além disso, estar-se-ia esquecendo que os efeitos d o reco-
nhecimento d o sentido de uma norma depende de representações cos-
tumeiras. da ideologia 12) e de um complexo jogo de correlações de
força n o seio d as instituições, que devem ser vistas conio emissores
institucionais
1
' dos sentidos jurídicos. 13)
4.
Evidentemente,
com
esta exposição esquemática sobre
as con-
dições d e significação d as linguagens normativas na teoria kelseniana, a
qual parte da pressuposição de uma norma básica e da imputação, como
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7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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categoria constituinte d o domínio, jurídico em sentido estrito, estamos
deixando
d e
considerar
u m a
série
de
importantes problemas. Desde
logo, deveríamos tentar formular um a ampla discussão sobre o tipo de
analogia q u e Kelsen estabelece entre imputação e causalidade. Seria,
também, importante discutir
as
idéias
de Von
Wright sobre
a
possi-
bilidade d e atribuir modalidades deônticas às normas jurídicas. N o
entanto, tais questões extrapolam os limites deste trabalho.
Neste capítulo, contento-me em indicar, tomando um a idéia de
Cossio, que os cinco níveis d e purificação considerados ao longo deste
trabalho, devem ser entendidos como condições definitórias d a impu-
tação, e esta, vista como noção fundante e constituinte do campo temá-
tico da ciência d o Direito. Assim, mediante os princípios e argumentos
com os
quais Kelsen caracteriza
os
níveis
em que se
pode manifestar
a
pureza metodológica
e
está, também, indiretamente, atribuindo
o sen-
tido d e imputação, q u e , como termo primitivo de seu pensamento, não
precisaria de uma definição mais rigorosa. A imputação necessita, para
Kelsen, de uma definição argumentativa que ajude a captar a significa-
ção deste a priori de pensamento. Em outras palavras, os cinco níveis
d e
purificação seriam demonstrativos
de
razões pelas quais Kelsen
precisa fundamentar
su a
teoria sobre
o
conhecimento jurídico
na
cate-
goria d a imputação, oposta (e complementar, de certo modo) à categoria
d a causalidade. Neste ponto, convém observar que os níveis de purifi-
cação resultem indicativos d o s critérios que a condição de sentido
normativo
n ão
pode conter. Enfim,
a
imputação deve
ser
vista como
u m a
categoria
q u e
externa
a
operação mental
a que é
preciso submeter
o s atos inseridos no sistema da natureza, para se lhes atribuir uma
significação normativa, expressa mediante um juízo condicional, onde o
verbo dever funciona como conectiva lógica
que
permite mostrar
a
relação de imputação, o sentido normativo dos enunciados causais.
A s Ciências Sociais, enquanto ciências normativas, utilizam, como
esquema interpretativo (determinante de sua estruturação lógica), o
princípio d a imputação, que estabelece um a relação específica entre o
antecedente
e o
conseqüente
d os
enunciados condicionais integrantes
d o s discursos d as Ciências Sociais. Esta relação efetua-se mediante o
verbo copulativo de ver ,
q u e
expressa
o
sentido objetivo específico
com que se vinculam, em uma norma (ou proposição jurídica), os fatos
mencionados no s antecedentes e conseqüentes d as mesmas. O sentido
normativo objetivo
que
estas expressões constituem, mediante
o
verbo
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dever , expressam a específica relação estabelecida entre um a condu-
ta , vista como ilícita, e seu conseqüente. Por esta razão, o verbo
dever desempenha um a função metodológica e não moral, pois só
expressa
um a
relação deõntica funcional,
sem
referência
a
valorações
rnetajurídicas.
Para compreender
a
função metodológica
do
verbo dever ,
(e,
portanto, da imputação), é necessário vinculá-lo à norma básica, na
medida
em que a
Ciência
do
Direito precisa mostrar
a
multiplicidade
de
sentidos normativos no interior de uma ordem (uma unidade de pensa-
mento).
Por
outro lado,
a
fundamentação unitária
do
sistema
de
normas
é o que permite a interpretação normativa d e certos fatos como criação e
aplicação de normas válidas. P or isso, sem o apelo à norma básica,
resulta impossível conceber
a
Teoria Pura como
um a
teoria
da
inter-
pretação jurídica, entendendo, aqui,
por
interpretação,
a
atividade
do
espírito
que
permite organizar sistematicamente
a
significação norma-
tiva. Kelsen, afirma, desta forma,
a
necessidade
de um
esquema inter-
pretativo para articular os atos dos hofnens em moldes normativos.
Assim, um mero a to humano valorativo, intencional e subjetivo adquire,
a partir de um marco teórico interpretante, sua objetividade. Ao sub-
sumir u m a conduta em uma norma, esta se objetiva em dita norma, e, a
partir desta atividade interpretativa
não há
mais conduta humana, existe
somente a norma jurídica, desaparece o ato em sentido subjetivo, torna-
se a norma objetiva. Evidentemente, a questão d e fundo da passagem do
mundo
do ser ao
sentido normativo objetivo, está dada pela pressu-
posição de uma norma gnoseológica que facilita a estruturação sistemá-
tica d as normas e opera como condição necessária da adjudicação do
sistema objetivo. Ora, se a norma não pertence a um sistema, não pode
conferir o sentido normativo de uma ação (carece de condições para
fundamentar
sua
validade).
É
bastante claro
que ,
mediante
a
norma
básica, Kelsen enuncia as razões da validade de uma ordem jurídica, e,
co m isto, também, as condições, mediante as quais se pode compreen-
de r a significação de um ato como norma jurídica. Claro que, para que este
critério de significação funcione, precisa-se seguiras restrições metodo-
lógicas indicadas pelos cinco níveis de purificação. Mediante o princípio
da pureza metodológica. Kelsen pretende fixar um a fórmula de signi-
ficação
sem
interferências extranormativas, isto
é ,
todo
e
qualquer
critério que não possa ser enunciado a partir de uma análise centrada nas
próprias normas jurídicas. Assim, mediante o princípio da pureza de
7 7
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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método, Kelsen determina
as
condições metodológicas,
sob as
quais
e
possível constituir um conhecimento do Direito, fundamentado em um
pressuposto
do
pensamento.
NOTAS
(1 )
Esta mos diante
de um
ponto importante dentro
d o
pensamento kelseniano. Este
distingue, através
d o
princípio
da
causalidade
e d a
i mputação, dois tipos diferentes
d e
ciência: d a natureza e d a sociedade. N a verdade, também através desta distinção, a
sociedade, como objeto temático
d a s
ciências sociais, fica caracterizada,
em
termos
exclusivamente normativos, como
um
complexo
de
ordens normativas. Esta idéia
está claramente expressa na T P 2'.
1
e d. p. 117 e seguintes.
(2) E evidente q u e n o s limites deste trabalho n ã o possoesgotar toda a complexidade que
envolve
o
estudo teórico
d a
norma básica. Proponho-me,
em um
segundo momento
desta pesquisa, efetuar
u m
desenvolvimento mais aprofundado
d e
todas estas ques-
tões. Para
u m a
análise mais detalhada,
v e r Tem a s
para
um a
Filosofia
do
Direito,
Martino. Russo, Warat,
pg. 57 e
seguintes.
(3) Ver
Kelsen,
T P
l?ed.
p . 139.
4)
Sobre
o
tema
d a
efetividade
na
teoria kelseniana,
o
profess orTarci sio Burity
faz u ma
distinção fundamental entre a noção d e conduta efetiva e a da efetividade d a norma
jurídica.
Ele diz: a
primeira
é
bastante vaga, exprimindo
a
idéia geral
de
conduta
q u e
exis te
d e
fato, realmente,
e que se
opõe,
em
razão disto,
à
idéia
ds
conduta
fictícia, imaginári a. Ao contrário, a noção de efetividade d a norma significa algo
de bem
determinado, alguma coisa
já de
categorizado ,
de
qualificado juri-
dicamente ;
nà o
exprime apenas
a
idéia
de uma
conduta efetiva,
mas
algo
que
va i
além disso:
o
conceito
d e
norma efetiva traduz,
n a
verdade,
u m a
conduta real
que já é
imantada
p o r u m
valor,
por uma
significação bastante precisa
— a
signi-
f icação especif icamente jur íd ica . Não constitui, assim, um puro Sollen de
caráter abstrato,
se m
relação
co m o inundo
objetivo,
nem um
puro Sein , exis-
tindo
na
esfera
do s
fatos.
O
conceito
de
norma jurídica efetiva significa um-fato-no-sentido-da-norma,
vale dizer, um Sosein . A efetividade é assim, noção eminentemente jurídica.
não se
confundindo
com a
força bruta, porquanto exprime algo
que já
reflete,
de
certa maneira,
as
tradições
e a
ética
n o
meio social onde
se
produziu.
Na l inha d o formalismo kelseniano, a efetividade è um mero fato, situado
inteiramente
no
mundo
de
Sein .
Daí,
segundo
ele, a
impossibilidade
de fun-
damentar nela
a
validade
d a
norma jurídica, pois esta participa
da
natureza
de
um
dever-ser .
In :
Considerações sobre Validade
e
Efetividade,
p. 9.
(5 )
Talvez seja útil recordar
q u e , c o m o s
avanços produzidos
e m
disciplinas como
a
Lógica, a Lingüística e a Epistemologia d a s Ciências Sociais, n ã o mais é necessário o
apelo
a
categorias
t ã o
indefinidas carregad as
de
evocações metafísicas) como
a
norma básica e a imputação, para estabelecer a s condições d e significação das
linguagens normativas
e o s
critérios
de
constituição
d o
objeto
da
ciência
d o
direito.
M a s , para Kelsen, apenas as hipóteses de uma norma fundamental permitem
conferir um sentido jurídico ao s materiais empíricos que se apresentam a o exam e
7 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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3. *> '
d o s
juristas
e
considerá-los como formad ores
d e u m
s is tema
d e
normas.
P o r
vsso,
julgo convenien te
u m a
análise crítica
d e
norma básica
n a
procura
d e u m a
reinterpre-
tação q u e a atualize d o ponto d e vista lógico, lingüístico e epistemológico. A tare fa
n ão é simples, m a s , s e n ã o f o r realizada, ficar ão, difusa mente, expostos o s elementos
metodológicos, a partir d o s quais se definem, na teoria kelseniana, a s fronteiras que
a separam d e u m a interpretação causalista d a sociedade, assim também, a partir d a
referida análise crítica, poderemos perceber
a s
razõe s pelas quais Kelsen pret ente
u m a
explicação imputativa
d o
social.
(6 )
Sobre
a
condição semântica
d e
sentido
é
importante consultar Ayer, Lenguaje,
Verdad
e
Lógica, Eudeba,
1965.
(7) Ver a
respeito Roberto Vernengo, Curso
d e
Teoria Geral
do
Direito,
p. 439 e
seguintes.
(8 ) Como complementação d a argumentação proposta convém consultar o trabalho de
Vernengo indicado
na
nota anterior.
(9 )
Conforme Vernengo, obra citada.
(10)
Sobre
o
tema.
o
professor Tarcísio Burity afirma
q u e
para delimitar
c o m
exatidão
absoluta,
a
especificidade
d o
direito enquanto ciência, vale dizer, enquanto
conhecimento... Kelsen começa
po r
fazer
um u
distinção fundamental entre norma
jurídica Rechts-Norm)
e
proposição
d e
direito Rechts-Sat z)
in
Considerações
sobre Validade
e
Efetividade,
p. 4.
(11) E acrescenta o professor Burity: As proposições cle direito constituem um
Sollen porque
sã o a
descrição
de
outro Sollen :
as
normas jurídicas .
Mas
enquanto Sollen d a s normas jurídicas, a s quais s ã o criadas e aplicadas peios
órgãos jurídicos,
tem
sentido prescritivo, caráter imperativo,
o
Sollen
da s
propo-
sições
de
direito, cuja finalidade consiste
em
descrever
as
normas jurídicas,
possui apenas
a
significação
de um
juízo hipotético. Isto
qu e
dizer
qu e
elas
enunciam simplesmente qu e conseqüências determinadas poderão surgir, se
certas condições definidas pela ordem jurídica se realizam; e isto nã o implica
nenhum imperativo de ordem moral, nenhum comando, nenhum juizo de valor.
Portanto, duas funções primordiais existem no que se refere ao fenômeno jurídico, a
saber:
a da
autoridade jurídica, cujo objetivo
é
criar
o
direito
e a do
jurista (aquele
que faz
ciência
do
direito), cuja, finalidede
é
conhecer
o
direito, vale dizer, descrevê-
lo ,
analisá-lo.
(12) De
acordo
c o m a s
idéias
d e
Wittgenstein, poder-se-ia dizer
q u e a
linguagem, como
sistema
d e
comunicações,
n ã o
pode
s e r
linguisticamente interpretada, atendendo
apenas
a seu
sentido.
A
linguagem cumpre várias funções
q u e são
co-determinantes
d e su a
significação.
P o r
isso, Wittgenstein destaca
que o
significado
d e u m a
expres-
s ã o encontra-se determinado p o r su a modalidade d e u so . Estas modalidades de uso ,
n o
caso
d o s
enunciados
d a
Ciência Jurídica, externam intenções prescritivas
e
ideológicas, estando
a
função descritiva
d o s
conteúdos
d a s
normas jurídicas, exclu-
sivamente.
a seu
serviç o seria
o
mero significante
d e u m a
função mítica
d e
significa-
ção ) .
(13) A
idéia
de um
emissor institucional como
u m a
categoria
q u e
mostra
o
caráter
complexo
e
institucional
d a s
mensagens jurídicas
foi
formulado
p o r mim, a
partir
das
questões levantadas n o decorrer d a pesquisa q u e venho desenvolvendo sobre a
semiologia
d o
poder.
7 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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NOTA COMPLEMENTAR A O CAPÍTULO IV
h). A categoria d e emissores institucionais, contraposta à tradiçãò lingüística d e emis-
sores individuais, é proposta, principalmente, para diagnosticar a s possibilidades de
inserção d e u m a teoria crítica no interior d o s diferentes marcos institucionais do
direito.
Parece-
m e q u e n ã o
podemos pensar
na
produção
de um
saber crítico elaborado
externamente a uma história institucional. Esta forma d e produção n c s coloca
sempre frente a dois pólos de comunicação: o d o emissor crítico e o do interlocutor
repressivo, q u e filtram, redefinem, expropriam e recuperam o discurso, utilizando-o
conforme o s interesses d a instituição.
Estamos, pois, frente
a u m a
comunicação polêmica, onde
se
procura impor
o
peso de um discurso. A condição mínima para esta imposição retórica e política d o
discurso crítico é a de falar a partir d a linguagem d o interlocutor repressivo, rouban-
do-lhe
o s
sentidos
e
estabelecendo
u m a
espécie
d e
vacina contra
a
recuperação
ideológica, através
de seu
próprio veneno.
Desta forma, todo discurso crítico inicia-se c o m u m a fala roubada. N o entanto,
se não percebemos o s pressupostos q u e redefinem esta fala, ela r ecupera-se automa-
ticamente. Torna-se então importante, a o le r um discurso crítico, fazer referência ao
se u interlocutor repres.-.ivo. para perceber o limite da crítica, sob o risco d e margina-
lizar
o u
recuperar
ta l
discurso.
P o r
outro lado. para
a
compreensão
d o
funcionamento
d o s
interlocutores repressivos
é
importante levar
em
consideração
a
relação
burocracia/verdade.
O êxito d a cientificídade contemporânea, como elemento d e intermediação,
legitimador
d a s
relações
d e
dominação, fundamenta-se, entre outros fatores,
n o
fato
d e t e r u m a
instituição como lugar
de sua
enunciação.
A
cientificídade moderna
apresenta como
u m a d e
suas principais características
a
auto-regulação
d a s
condi-
ções
d e
produção
de
suas verdades. Desta maneira,
é a
própria comunidade científica
q u e produz a s normas prescritivas d a constituição de seu saber; normas q u e excluem
como n ã o verdades, o s enunciados inadaptáveis a o s critérios epistemológicos que a
própria ciência estabelece. A ciência, à imagem e semelhança d o judiciário , erige-se
e m
instância auto-controladora
d e
suas decisões.
A
burocracia
d a
instituição opera
como tribunal silencioso
d a
verdade científica. Depreende-se
da í que a
negatividade
de um
saber depende
de um
carinho epistemológico. Assim,
a o
tentar estabelecer
a s
condições institucionais d e produção d o s sentidos, não s e deve esquecer que a marca
d a negatividade de um saber depende de sua inadequação a o s princípios d a socializa-
ç ã o burocrática: a condição institucional d e sentido depende d e u m a condição buro-
crática d e significação.
A o
diagramar
a
referida condição institucional
d e
sentido, devemos levar
em
conta
que a s
normas
d e
verdade
s ã o
utilizadas topicamente
nas
instituições,
que
impõem âmbitos
d e
significação, legitimando certos usos
e
rejeitando outros. Esta-
belece. neste sentido,
u m a
interpretação controlada, disciplinando
as
condições
d e
produção
d a
fala institucional.
T a l
controle institucional
d o s
discursos realiza-se
simultaneamente, a partir d e argumentos expropriadores e d e mecanismos buro-
cráticos.
E m suma, o censor burocrático, e m nome d a ciência e m nome d o saber racional,
contribui para
a
organização, legitimação
e
reprodução
d a s
relações sociais
de
g q
dominação.
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Capítulo
V
A
PURIFICAÇÃO
ÍNTRA-NORMATIVA
1. O quarto nível de purificação que proponho chamar purificação
intra-normativa , pode
ser
enunciado
da
seguinte forma: para
que
haja
u m a ciência jurídica, em sentido estrito, é preciso que se proponham as
noções
de
sanção
e
órgão como princípios categoriais aptos para deter-
minar, em relação às outras ciências sociais normativas, as diferenças
específicas d o objeto temático da Ciência do Direito.
Já explicitei, mediante a depuração anti-causalista, a maneira pela
qual surge
um
novo lugar para
o
conhecimento jurídico como ciência
social normativa. Utilizar-se-á, portanto, um princípio categorial — a
imputação
—
hábil
a
situar
a
posição
da
Ciência Jurídica
no
quadro geral
d a s
ciências. Assim, opondo
a
imputação
à
causalidade, Kelsen admite,
para o universo d as ciências, um a divisão de natureza polar: as ciências
d a sociedade e as da natureza. Quanto a estas últimas, o objeto visado
pela Teoria Pura é construído tomando como ponto de referência a
interação humana determinada pelas normas. Isto significa
que , no
caso
desta proposta classificatória das ciências, a sociedade deve ser enten-
dida como u m a ordem normativa e, as ciências sociais serão vistas
como ciências normativas.
A
partir deste ponto
de
vista, elege-se
a
Ciência Jurídica como
o
saber social
por
excelência.
Relativamente às categorias polares — causalidade e imputação —
sabe-se q u e , enquanto o princípio d a causalidade nos situa diante de
categoria d a natureza— expressão d o pensamento que permite trans-
formar
em
ordem
o
caos
das
sensações
— , o
princípio
da
imputação
organiza, sistematicamente, os dados normativos, estabelecendo a
noção de sociedade. O que imediatamente resulta dessa oposição entre
natureza
e
sociedade
é a
possibilidade
de
distinguir
o
domínio
das
ciências da natureza do domínio d as ciências normativas,e não a dife-
rença específica do objeto d a Ciência Jurídica, no interior do horizonte
8 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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temático delineado para
o
conhecimento normativo.
O s
sistemas morais
e
religiosos
são,
como
o
Direito, ordens normativas,
e as
proposições,
mediante
as
quais
se
tenta descrevê-los
têm a
mesma forma lógica,
respondem identicamente
à
categoria
de
imputação.
Em
outras pala-
vras,
o
conhecimento
do
Direito,
da
Moral
e da
Religião, dispõe, efeti-
vamente,
de uma
categoria organizadora comum, cujo objetivo
é pro-
porcionar apenas
o
conceito genérico
e a
técnica
de
estruturação
que
permite distinguir
o
saber sobre
a
sociedade,
do
saber sobre
a
natureza.
Eis
porque
no
âmbito específico
das
Ciências Sociais normativas,
é
preciso contar também
com um
princípio
de
depuração metodológica
que dê
autonomia
à
Ciência Jurídica
e
permite diferenciar
o
saber
jurídico,
dos
conhecimentos produzidos pela Ética
ou
pela Teologia.
Tal
princípio purificador baseia-se
em
duas noções: sanção
e
órgão. Pode-se
dizer, contudo,
que a
noção
de
órgão encontra-se metodologicamente
subordinada
à de
sanção. Quando
se
examinam
os
textos kelsenianos,
encontra-se proposta
a
noção
de
sanção como único critério pelo qual
podemos distinguir claramente
o
Direito
dos
outros fenômenos sociais,
como
a
Moral
e a
Religião
1).
Entretanto, acredito
que, de
acordo
com a
torma pela qual Kelsen desenvolve esta proposta demarcatória. fica
implícito
na
argumentação,
o
papel reservado
à
noção
de
órgão como
critério definitório. Tentarei demonstrá-lo
no
decorrer deste capítulo.
Antes
de
estudar
o
sentido
da
purificação proposta, importa
tam-
bém
lembrar
que os
sistemas
de
normas morais
e
religiosas
são, por
vezes, passíveis
de um
tratamento jusnaturalista, enquanto aparecem
identificados
com as
normas
de
justiça
e
apresentados como parte
integrante
d o
Direito Natural. Neste caso, trata-se
de
sistemas
de
significação construídos
com a
intenção
d e
converter tais ordens norma-
tivas
em
estratégias
de
legitimação
do
Direito Positivo. Certamente, esta
situação deve
ser
analisada atendendo
aos
critérios fixados mediante
a
proposta
de
purificação anti-jusnaturalista.
N o
entanto,
não é
esta
a
questão discutida neste ponto. Aqui, tento traduzir
um
problema
que se
torna transparente unicamente
no
momento
em que se
tomam
em
conta
as
diversas técnicas
de
motivação, empregadas
na
sociedade vista
como
um
complexo
de
ordens sociais), para induzir
os
indivíduos
a se
comportarem
na
forma desejada.
Pretendo indicar
o
critério
de
demarcação
que
permite distinguir,
com
precisão,
a
ordem
d as
normas jurídicas,
dos
outros sistemas norma-
tivos
de
motivação.
P or
esta razão,
o
componente ideológico, presente
8 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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n os conteúdos da s normas morais e religiosas, será analisado neste
capítulo, unicamente
na
medida
em que
funciona como indicador
de um
valor de motivação e não em sua função de legitimação. D o ponto de
vista d a depuração intra-sistemática, é importante verificar que ela
introduz um critério de reconhecimento, d e distinção das diferentes
técnicas de motivação, sem referir-se à s funções de justificação, deriva-
d a s d a
conexão entre
a
ordem moral
ou
religiosa
e uma
idéia
de
justiça
dotada de uma validez absoluta; a depuração intra-sistemática visa o
objeto preciso
da
ordem jurídica
e da
Ciência
do
Direito, fornecendo,
para tanto, critérios que permitem localizar todas a s expressões que
pertencem
a
estes conjuntos.
E
importante destacar,
por
outro lado,
que a restrição metodológica que acabo de impor não me impedirá de
estabelecer,
na
oportunidade, algumas considerações sobre
as
funções
de legitimação do conceito jusnaturalista de justiça. De fato, não posso
falar da sanção, como diferença específica do Direito Positivo, sem
mostrar
a
depuração ynti-jusnaturalista
que o
referido conceito sofre
n a
Teoria Pura
do
Direito.
Retomemos, agora,
o
tema
de
distinção
do
Direito frente
à s
demais
ordens sociais. Nesta perspectiva, Kelsen propõe considerar as ordens
sociais como técnicas de motivação da conduta. Sugere dividir tais
técnicas de motivação em diretas — caso d a Moral, — e indiretas — caso
d o Direito e da Religião — 2). Estabelecida a classificação, Kelsen
empreende
um
estudo comparativo
dos
elementos
que
caracterizam
cada
u m a
destas técnicas,
com o
objetivo
de
separar rigorosamente
o
Direito
—
como objeto
do
conhecimento científico
— d a s
outras ordens
de motivação d a conduta social.
Sabe-se
que, no
processo
de
aculturamento,
as
técnicas
de
moti-
vação apresentam-se
de
forma combinada.
À
Ciência Jurídica compete,
pois, a produção de fórmulas de reconhecimento, mediante as quais se
possa constatar
um a
significação jurídica específica
e
idealmente
tor-
nada autônoma. Para isto, é necessário explicitar os critérios, mediante
os
quais torna-se possível estabelecer, frente
a um a
ordem social dada,
se a mesma é uma ordem jurídica, moral ou religiosa. Poder-se-ia dizer
que o
Direito, como técnica
de
motivação social específica, induz
os
indivíduos
a
certas condutas,
por
meio
da
vinculação entre
um
dano
privação cotativa de certos bens) e as condutas consideradas indese-
jáveis.
E m
outras palavras,
o
Direito, como técnica
de
motivação,
pretende provocar certas condutas, vinculando
a um
juízo imputativo
a
8 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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conduta contrária a que se pretende motivar, com a ameaça de um a to de
coerção aplicável através
de um
órgão dotado
d e
autoridade,
por
alguma
norma d o próprio sistema d e Direito Positivo. O ato de coerção, deter-
minado como devido, mediante
um
enunciado imputativo
d a
ordem
jurídica,
é a
sanção.
Antes de analisar mais detalhadamente a definição de sanção pro-
posta
p o r
Kelsen, farei
u m a
descrição
d os
elementos estipulados
na
Teoria Pura como critérios diferenciadores das três ordens sociais de
motivação.
2. Inicialmente, compararemos o Direito com a Moral. D e maneira
geral, podemos afirmar que as normas de uma ordem moral, ao contrário
d a s jurídicas, n ã o prescrevem nem autorizam sanções com respeito às
condutas sociais
q ue
desejam impedir.
Para Kelsen,
a
diferença entre
as
normas
de uma
ordem moral
e as
d e u m a
ordem jurídica
n ã o
está dada pela forma lógica
de
seus enun-
ciados
3), m as se
encontra
a o
nível
do seu
conteúdo.
As
normas
de uma
ordem moral
n ão
apresentam, como parte
de seu
conteúdo,
um ato de
coerção socialmente organizado. Assim, devem
ser
vistas como
uma
técnica d e motivação direta. A ordem moral é vista, pela Escola
Vienense, como u m a técnica de motivação direta, n a medida em que tais
normas n ã o estabelecem sanções definidas, expressamente assinaladas
pela ordem e m questão. D e fato, não se pode falar da inexistência de
sanções n o sistema d a moral. Trata-se, entretanto, de reações coativas
automáticas, espontâneas, d a comunidade. Daí que a sanção moral,
além d e impredizível (enquanto natureza do ato de coerção que a comu-
nidade exerce), — sem apelo a u ma reflexão sociológica, — carece de
órgãos expressamente autorizados para sua execução. A ordem moral,
como técnica d e motivação, apresenta, como traço sensível, a designa-
ç ã o d e u ma conduta exigível pela representação direta, nos indivíduos,
d a s vantagens deste comportamento. A conduta é regulada de forma tal
que a
representação
da
norma moral torna-se suficiente como motivação
para
o
comportamento reclamado.
A
representação
d a
norma basta para
determinar
a
conduta. Sabemos
que a
representação
de uma
norma
moral encontra-se sempre acompanhada por um juízo de valor. Daí
porque
a
conformidade
à
ordem moral aparece sempre vinculada
à
idéia
tópica
de que a
concordância
d a
conduta
com a
ordem moral
é boa, e,
portanto, necessita
ser
praticada.
8 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Enfim, Keisen parece indicar
que as
sanções espontaneamente
produzidas na sociedade como resposta a um comportamento contrário
a o
previsto
p o r u ma
norma moral,
por não se
encontrarem, digamos,
programadas no enunciado desta norma, não podem ser consideradas
relevantes paia
um
discurso teórico sobre
a
moral,
ao
contrário
dos
atos
d e coerção imputados como devidos pelas normas jurídicas, os quais
pelo fato de se encontrarem mencionados em seus conteúdos, permitem
a formulação d e proposições normativas a seu respeito. Deste modo, as
explicações sobre os atos de coerção surgidas como respostas intuitivas
de
certos indivíduos
à
transgressão
d a s
normas morais, pertencem
a um
conhecimento orientado pelo princípio
da
causalidade
e
alheio,
por-
tanto,
à
temática
de uma
ciência social normativa.
Observando o rigor metodológico proposto por Kelsen, parece
necessário opor algumas restrições
à
tese
de que as
normas morais
provocam
u m a
sanção consistente
em uma
reação automática
da
sociedade.
Tal
afirmação apresenta sérios inconvenientes metodológi-
cos e é
contraditória
em
relação
à
lógica
do
discurso kelseniano. Neste
particular, Kelsen esqueceu que ele próprio nos propõe distinguir coer-
ção de sanção, reservando o último termo apenas para aquelas condutas
previstas nas normas jurídicas como devidas. Isto significa q ue sanção
não é um conceito que exista independentemente de uma norma jurí-
dica. Assim, resulta totalmente inadequado falar de algum tipo de san-
ç ã o vinculada às normas morais. O aspecto coercitivo, que aparece
como reação espontânea da comunidade frente à ordem moral, não pode
se r pensado como sanção. O u seja, apenas se pode caracterizar uma
técnica de motivação, tomando e m conta o elemento sanção, quando um
juízo imputativo outorga o sentido devido a um ato de coerção. E claro
que a objeção proposta, reforça afinal a idéia kelseniana de que a sanção
é o elemento distintivo d o Direito frente à ordem moral. Estamos, na
verdade, corrigindo o erro de chamar de sanção à resposta coativa da
comunidade frente a u ma transgressão da ordem moral. Estamos, tam-
b é m ,
reforçando
a
explicação sobre
o
caráter programado
e não pro-
gramado
d o s
atos
de
coerção, vinculados
à
ordem jurídica
e à
ordem
moral. Desta forma, ficam também esclarecidos
os
motivos pelos quais
as respostas coativas provocadas pela ordem moral devem ser estuda-
d as
casualmente.
8 5
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3.
Analisarei, neste ponto,
as
distinções entre
a
ordem jurídica
e a
ordem religiosa. Aqui
a
teoria kelseniana entende
que
ambas
as
ordens
sociais encontram-se formadas
p or
enunciados
que
enlaçam imputati-
vamente um ato de coerção a uma conduta indesejável. Para Kelsen,
não há inconveniente em chamar, também, de sanção, ao elemento
coativo
d a
ordem religiosa.
N ã o
discutirei
a
pertinência dessa proposta
terminológica. C om certa complacência metodológica — sobretudo
atendendo
a uma
diferenciação global
d a
ordem jurídica
e
religiosa
frente
às
normas morais
—
pode-se sustentar
q u e
existe coerência
em
propor
u m a
mesma denominação para atos
d e
coerção devidos
da
ordem
jurídica e d a ordem religiosa. Esta presença fatal de um ato coativo,
como fator de motivação, permite caracterizar a ambos os sistemas de
ordenação
d e
conduta como técnicas indiretas
de
motivação.
(4)
M a s ,
quais seriam
as
diferenças entre
a
ordem jurídica
e a
ordem
instaurada pelo apelo teológico?
A
noção
d e
órgão aparece, então, como
elemento chave, para mostrar,
por sua vez, a
diferença específica entre
essas duas técnicas indiretas
de
motivação.
A
natureza
do
órgão encar-
regado
d e
aplicar
a
sanção
a
cada
um dos
dois sistemas
de
ordenação
será
o
elemento
a
partir
d o
qual
se
pode definir dois tipos
de
sanções
diversas:
as
sanções transcendentes
e as
sanções socialmente organiza-
das .
Vejamos isto
com
maior detalhe.
A s
sanções estipuladas pela ordem social podem
te r ,
para Kelsen,
um
caráter transcendente, isto
é ,
religioso,
ou um
caráter social imanen-
te ,
isto
é ,
jurídico.
N o
primeiro caso,
as
sanções indicadas pela ordem
consistem
em
vantagens
ou
desvantagens
que
devem
ser
aplicadas
aos
indivíduos
p o r u m a
autoridade sobre-humana,
por um ser
caracteriza-
do, de
certo modo, como divino
(5). No
segundo caso,
as
sanções pelas
transgressões
à
ordem social encontram-se socialmente organizadas.
sanção socialmente organizada,
diz
Kelsen,
é um ato
coercitivo
que um
indivíduo determinado pela ordem social dirige,
na
forma
estabelecida pela própria ordem, contra
o
responsável pela conduta
contrária
à
mesma ordem.
O
indivíduo
que
aplica
a
sanção atua
como órgão
da
comunidade constituída
por
essa ordem. 6)
E
preciso, então,
em
face desta distinção, interpretar
a
sanção jurí-
dica como
um a to da
comunidade jurídica; entretanto,
a
sanção trans-
cendente deve
ser
vista,
não
como reação
de um
grupo,
m as
sempre
como
a to de um a
autoridade sobre-humana
(7).
Sendo assim, apenas
as
sanções socialmente organizadas podem ser vistas como um elemento
8 6
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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constituinte da organização social (8). Isto porque sua eficácia pres-
supõe a crença n a existência e n o poder de um a autoridade humana (9).
Desta forma, resulta impossível conferir às normas religiosas o caráter
d e u m a significação objetiva d a conduta social. A s normas religiosas vão
imputar, a u m a conduta humana, um a sanção transcendente, conferin-
do-lhe
u m a
significação trans-histórica
que
pode
ser
reconhecida unica-
mente a partir d e u m a intuição transcendente sobre os valores. A norma
fundante d o discurso teológico encontra-se, assim, respaldada pela
intuição de um valor absoluto. Por esta razão, será sempre um discurso
ideológico. Sabe-se q u e , para Kelsen, aCiência do Direito satisfaz seus
objetivos
n a
medida
em que
consegue
um
grau aceitável
d e
neutralidade
ideológica. É a neutralidade discursiva um elemento característico d a
Ciência Jurídica, porque viabiliza descrever a significação normativa
objetiva d a conduta d o s indivíduos. A Teologia, por sua vez , nunca
atingirá o limiar d a neutralidade, da objetividade, pelo caráter trans-
cendente d o órgão encarregado de aplicar a sanção. A natureza dos
órgãos dotados d e autoridade, pelo Direito e pela Religião, constitui,
desta forma,
um
dado necessário
d o
critério
de
demarcação
d o
objeto
da Ciência Jurídica. É a diferença específica que deve ser explicitada
entre o Direito e a Religião, como condição para a compreensão do
limite
do
objeto
da
Ciência Jurídica. Apenas esta pode descrever
com
objetividade
a s
expressões
q ue
imputam como devendo
s e r
(como
dever) as sanções socialmente organizadas.
4 , A partir destes breves comentários sobre os critérios, a partir dos
quais se determina a diferença específica entre a Ciência Jurídica e as
outras Ciências Sociais normativas, passo a refletir sobre algumas
questões que me parecem fundamentais para caracterizar o sentido e a
função
d o
conceito
d e
sanção
na
Teoria Pura
d o
Direito.
Inicialmente convém insistir na idéia de coerção que Kelsen pro-
põe . Em termos gerais, fazendo u m a composição dos textos kelsenia-
n o s ,
veremos
que a
coerção
é a
privação
de
certos bens, como
a
vida,
a
saúde, a liberdade, a honra, a propriedade ou qualquer outro valor —
inclusive direitos em expectativa — q u e tenham ou não valor econômi-
co , realizada com prescindência da vontade do titular destes bens.
Quando a coerção é devida, isto é , quando se encontra prevista e
determinada e m u m a norma como conseqüência da realização de uma
conduta descrita nesta mesma norma, como sua condição, tal ato de
coerção deve
ser
considerado como sanção.
8 7
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Isto posto,
é
importante assinalar
que a
sanção, como
um ato de
coerção devido, como ponto final de imputação, adquire seu estatuto
normativo n a medida em que , depurado de todo componente ético e
mecanicista, pode se r visto como um conceito teórico primitivo uma
categoria normativa primitiva), mediante
a
qual
se
atribui
a
significação
jurídica a certas condutas as que aparecem descritas n as normas como
su a condição necessária e suficiente) e possibilita à Ciência do Direito o
elemento chave,
a
partir
d o
qual
se
podem definir
os
conceitos
que a
Teoria Pura propõe utilizar para analisar os sistemas de normas jurí-
dicas. P o r certo, o rigor d o método purificador exige a redefinição, em
termos estritamente normativos, d e todos os conceitos básicos (elemen-
t o s
gerais
com que se
estruturam
os
diferentes discursos teóricos
do
Direito)
c o m q u e
operam
os
juristas, partindo
de uma
noção primária,
q u e Kelsen considera conditio sine q u a n o n para a produção d o s dife-
rentes processos
d e
significação jurídica. Essa condição primária
de
significação é a sanção. S em estender-me p o r demais no tema, desejo
indicar aqui que o conceito de sanção e sua caracterização permitem a
Kelsen propor:
l)a
separação
do
Direito (como realidade normativa
transformada em linguagem d a Ciência Jurídica) d as demais ordens da
conduta social;
2) a
produção
d o
significado objetivo
das
condutas
referidas
n as
normas , como
a
condição necessária
e
suficiente
da
sanção
o das condutas logicamente derivadas dessa condição, como seria o
caso d as condutas reputadas obrigatórias; 3) a obtenção d e u m a estru-
tura teórica , q u e , como u m a entidade autônoma de dependências
internas no sentido q u e Hjelmslev dá ao termo estrutura), permite
reproduzir analiticamente tanto a ordem jurídica real como o saber
tecnológico (Dogmática Jurídica Clássica) com que , habitualmente, ten-
ta-se
su a
interpretação
10).
Assim,
a
partir
d o
conceito
de
sanção,
ficam definidos, normativamente, entre outros, os seguintes termos: ato
antijurídico, obrigação, direito subjetivo, responsabilidade, sujeito de
direito, pessoa jurídica, Estado, órgão, et c. 11). É claro que este mode-
lo estrutural d e conceitos necessita, além de sua vinculação à noção
normativa d e sanção, de um trabalho d e purificação de cada um dos seus
elementos, para evitar que se caia na armadilha jusnaturalista de uma
caracterização dualista
de
todos eles.
12)
O mesmo afã na busca de conceitos ideologicamente neutralizados
(desvinculados d o modelo parcial jusnaturalista) encontramos, tam-
b é m , n a proposta defmitória, qu e Kelsen formula relativamente à noção
8 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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d e sanção. U m estudo da concepção jusnaturalista sobre a sanção
mostraria
que , na s
doutrinas
d o
Direito Natural,
se
atribui
à
mesma,
um
caráter mecanicamente necessário.
Com
efeito,
ela
seria
um a
reação
negativa da sociedade em conseqüência de uma ilicitude essencial,
inerente à própria ordem da natureza. Quer isto dizer que , entre os
jusnaturalistas, domina
a
crença
de que
existe
um a
relação
de
soli-
dariedade axiológica entre a transgressão e a sanção. Poder-se-ia, desta
forma, pensar a sanção como um a resposta eticamente justa, frente a
u m a
conduta intrinsecamente desvaliosa.
É
óbvio
q ue
estamos diante
de
u m a tese ideológica. Mas , por quê?
Há, de fato, na concepção de sanção como um a resposta ética da
sociedade,
um
forte sentido ideológico latente. Trata-se
de uma
cadeia
de
conotações
que
cumpre,
por
assim dizer, várias funções retóricas.
E m outras palavras, afirmando-se que a sanção é uma resposta ética da
sociedade, inaugura-se um lugar tópico artículante de vários discursos
legitimadores. Em tal processo de legitimação, interessa destacar o
papel tópico que o conceito jusnaturalista de sanção cumpre em relação
ao uso da força (poder do s órgãos) do Estado. O exercício retórico é
muito simples. Para obter o efeito persuasivo buscado, basta poder
vincular topicamente os atos de força d o Estado (apresentando-os como
a
aplicação
de uma
sanção)
a uma
ordem moral absoluta, para
que os
mesmos sejam legitimados como intrinsecamente justos. É preciso
advertir que a significação ideológica transmitida remete-se a um plano
de conotação, onde nebulosamente se está fazendo a apologia indis-
criminada
do
monopólio
da
força pelo Estado; fatalmente
se
está
imo-
bilizando a significação, condicionando a interpretação, de modo a
inculcar a idéia (geral e difusa) de que os atos de coerção produzidos
pelos órgãos
d o
Estado nunca poderiam
ser
intrinsecamente injustos.
Como conceito tópico, a noção de sanção jusnaturalista tem uma carga
d e estereotipação 13) de ausência de um sentido de base manifesto),
q u e torna a mensagem ideológica eficaz, independentemente de sua
conformidade à realidade. Isto se verifica, com total clareza, na retórica
empregada para justificar os regimes de exceção.
E importante, contudo, notar que, em Kelsen, a tentativa de desi-
deologização
do
conceito
de
sanção
não
deixa
de ser, de
certo modo
frustrada. Certamente recoberta pelo verniz de uma construção teórica
logicamente consistente, nota-se, na teoria kelseniana, um a transfor-
8 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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mação
e não a
supressão
do
universo
de
significações ideológicas asso-
ciadas ao conceito de sanção. D o discurso jusnaturalista ao discurso
normativista sobre
a
sanção, verifica-se
um
deslocamento tópico
que,
independentemente
de
seus caracteres originais,
da
inauguração
de
searas retóricas,
da
supressão
de
alguns
dos
velhos caminhos ideoló-
gicos,
nos
força
a
consumir,
a
receber signos onde,
a
despeito
das
cadeias conotativas diferenciadas, pode-se reconhecer
um a
razoável
semelhança nos efeitos legitimadores. O paradoxismo purificador en-
contra, assim, um limite que nos obriga a retornar ao ponto de partida.
Dir-se-á que , por trás da máscara purificadora, existe um a mensagem
que
confia
na
neutralidade
do
exercício
da
força
do
Estado. Assim,
frente
às
relações
de
força conflitivas
da
sociedade,
o
Estado surge
na
Teoria Pura como o vigia imparcial que salvaguarda a paz social. A paz
do Direito diz Kelsen, não é uma condição de absoluta ausência de
força
um
estado
de
anarquia
mas uma
condição
de
monopólio
da
torça
um
monopólio desta
em
favor
da
comunidade
14).
Segundo
tal
concepção,
um a
comunidade
só é
possível,
se os
homens
se
abstêm
de
interferir, mediante
o uso da
força,
n a
esfera
dos
interesses
d os
outros
; a
execução
dos
atos
de
coerção deve
ser
reservada
a
alguns indivíduos
específicos, que podem ser vistos como órgãos da comunidade, pois os
atos
de
força
que
realizam
são
atribuídos
à
sociedade. Para Kelsen,
quando a ordem jurídica institui um monopólio coercitivo da comu-
nidade a ordem jurídica estabelece a paz nesta comunidade por ela
mesma constituída
15). O
Direito aparece, assim,
na
Teoria Pura,
como
um a
organização monopolizadora
da
força, como garantia
da paz
social.
A
tendência
à paz
social seria preservada pelo Direito,
no
momento
em que
garante
aos
indivíduos
que lhe
estão submetidos contra
o
emprego
de
força
po r
parte
d e
outros indivíduos. Quando essa proteção
alcança um mínimo determinado, fala-se de segurança coletiva 16). N a
versão final da Teoria Pura do Direito, aparece definida a paz social
em termos de segurança coletiva. Assim, a tendência à paz social do
que
Kelsen
nos
fala
na 1?
edição
de sua
Teoria)
é
vista como
um
mínimo
de
segurança coletiva, colocada, como
o
valor realizativo
do
Direito,
pois as situações de Direito são essencialmente situações de paz.
17).
O r a , quem possui familiaridade com a obra de Kelsen conhece sua
repulsa
ao
menos manifesta) pelas caracterizações finalistas
ou
pelos
apelos
a
elementos valorativos para
a
definição
d os
conceitos básicos
d a
9 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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teoria
d o
Direito. Sabe, também,
da
denúncia metodológica, feita pela
Escola
de
Viena,
no
sentido
de que a
busca
do fim do
Direito
é a
lacuna
pela qual penetram as ideologias na Ciência do Direito 18). Verificou-
se, no
decorrer deste trabalho,
que a
depuração metodológica implica,
minimamente,
e m um a
tentativa
de
entendimento
da
ordem jurídica,
pela análise exclusiva de sua estrutura. Esta análise estrutural não está
divorciada d a crítica aos componentes ideológicos do pensamento jurí-
dico clássico, para
que
afinal,
se
possam desmascarar
as
atitudes polí-
ticas ocultas atrás dos conceitos tradicionais. 19)
P o r certo, o que agora fica claro, se consideramos a análise feita
sobre
a
sanção
e a pa z a
segurança coletiva),
é que no
conceito kelse-
niano
de
sanção,
há
considerações
de
tipo político, encontra-se
ele
contaminado p o r tendências finalistas e conotações ideológicas. N o
momento
em que se
afirma
que o
estado
de
direito salvaguarda, pelo
menos, a segurança coletiva, tendendo assim, à paz, um objetivo apa-
rece, camufladamente, como elemento da definição do Direito. Com
isto, a problemática d a legitimidade negada e transformada em legalidade
pela norma fundamental gnoseológica) continua nebulosamente latente
na teoria kelseniana. E m outras palavras, a legalidade apesar das afir-
mações kelsenianas, cumpre a mesma função tópica da noção de legiti-
midade, expurgada
da
Teoria Pura
do
Direito.
N a
verdade,
o
conceito
kelseniano de legalidade impõe, à teoria jurídica, um sistema de legiti-
midade aparentemente neutro
e
utilitário
que, em
realidade, fundamenta
a obrigação de obediência à ordem jurídica e política). Estamos diante
d a mesma noção rousseauniana do contrato social, de uma delegação de
força
ao
Estado
que ,
unicamente,
a
aplicaria, como
um a
garantia para
o s
homens não viverem em um estado de violência permanente e mútua
repressão. N ã o é muito difícil descobrir as razões ideológicas desta
análise qu e coloca o Estado acima d as tensões sociais; que, ao identi-
ficar
o
Estado
com o
direito, elimina,
no
plano
d o
saber,
a
oposição entre
a vontade do príncipe e o império das normas, como negação de um
estado permanente
de
violência. Neste ponto, como
bem
observa
Bobbio, aflora o pensamento liberal clássico que , através de uma idéia
limitada
d o
Estado como aparato coercitivo, funda
a
ideologia
do
Estado de Direito o Es tado limitado pelo Direito e limitado ao Direito)
20). Esta ideologia do Estado de Direito é redefinida po r Kelsen, na
medida
em que
toda ordem coativa
é um
Estado
de
Direito.
Com
isto,
nada mais
faz que
reforçar
a
ideologia
do
consenso
em
relação
à
sanção.
9 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Percebe-se, facilmente, u m a subjetivaçãò do exercício do poder, sob a
busca de razões para obedecer; razões que são, pseudo-objetivadas,
mediante o apelo à legalidade feito pela norma básica; assim se aceitaria
como ordem jurídica válida-legal, logo legítima, aquele monopólio de
coerção
qu e
fosse consentido
21).
Entretanto,
não
restam dúvidas
de
q u e esta subjetividade pseudo-objetivada do consenso desempenha a
mesma função ideológica atribuída, po r Kelsen, ao pensamento jurídico
clássico, n a medida em que permite u m a representação-internalização
n o s indivíduos ética d a coerção), assim como, na medida que é subes-
timado, e m todo momento, o tratamento da coerção em termos de
fundamento d o poder. A s questões centrais sobre o poder são silen-
ciadas, para falar-se d as razões do consentimento. Estamos frente a um
raciocínio tipicamente mítico, onde se mencionam alguns temas ou
elementos para não se estar obrigado a falar em outros e , desta maneira,
conseguir que os receptores da mensagem recebam, precisamente, sem
ler na textualidade d o discurso, o que se queria dizer, ao silenciar. 1)
Vejo-me, pois, obrigado a falar sobre aquilo que Kelsen calou. O
primeiro ponto inquietante é sua visão simplista d o consentimento, que
n ã o pensa a s razões d o consenso como questões problemáticas. Teori-
camente,
não se
pode presumir,
nem
aceitar,
um a
concepção ética
do
consenso. Existem fatores materiais que o determinam. A adesão ao
poder n ão surge, como ingenuamente ou ideologicamente) afirma
Kelsen, de um interesse pela supressão de um estado permanente de
beligerância. Tampouco, pode-se presumir
que é
conseqüência exclusi-
va da ameaça d e u m a sanção negativa 22). Como assinala Bobbio,
existe, também, u m a função promotora do Estado, baseada na conces-
são de
privilégios
que não são
apenas títulos
ou
medalhas)
ou
vantagens
de ordem econômica 23), qu e desempenham um papel decisivo para a
obtenção d o consenso. Ele se encontra, ainda, submetido a um duplo
controle: inicialmente, um controle derivado d a própria coerção insti-
tucionalizada que , em seus efeitos de retorno à comunidade, desempe-
n h a u m papel decisivo na reprodução d o consentimento; a seguir, a ação
d a ideologia que , por sua vez , intervém, também, na organização do
consenso.
Estas colocações foram analisadas para
que se
possam levantar
algumas suspeitas sobre o fundamento kelseniano da sanção e do seu
tratamento ideológico camuflado, como diferença específica para a
definição teórica da ordem jurídica. Quero deixar bem claro que não
9 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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estou questionando o valor da sanção como nota defínitória da ordem
jurídica; dirijo minhas críticas aos argumentos em que Kelsen apóia a
escolha d a nota designativa d o Direito. Essas razões, além de ideológi-
cas , são teoricamente infecundas. Nesta perspectiva, exporei esquema-
ticamente alguns argumentos que sustentam esta última afirmação:
1?) É falso supor que o Estado constitui-se por uma delegação
d e coerção. N a verdade, ele se constitui por um conflito que expressa
u m a relação de força. Foucault, retomando Nietzsche, coloca a questão
d a organização d a ordem jurídica e política em termos de conflito.
Assim, é possível derivar deste autor, um a subestimação do papel
excludente do Direito, no exercício do poder no interior das sociedades
modernas; este poder se exerce mediante formas e em lugares que
ultrapassam o Estado e seus órgãos dotados de autoridade. 24)
2?)
Deve-se pensar
que a
legitimidade
do
Estado moderno, longe
de
provir d o consenso dos homens, encontra o fundamento d o monopólio
da
coerção
no
efeito
de
racionalidade
e
legalidade
que lhe
empresta
o
próprio Direito, criando a ilusão de que o Estado necessita de uma
utilização mínima d a força para ter seu monopólio válido. Outra veza
legalidade opera como legitimidade.
3?) Concordando com Bobbio, parece-me importante afirmar que a
força
não é o
único meio para
o
exercício
do
poder.
O s
outros dois
principais meios, para toda sociedade, são: 1) a posse dos instrumentos
dè produção que dá origem ao poder econômico); 2) a posse dos ins-
trumentos de formação de idéias que origina o poder ideológico). O
Estado moderno participa c om suas ações nestas três esferas 25). Ele se
apóia no trinômio coerção/produção/ideologia. A partir daí, creio na
necessidade de repensar as notas com as quais se tenta construir as
diferenças específicas d a ordem jurídica. H á, pelo menos, a necessi-
dade
d e u m a
reflexão teórica
que
indique
as
diferenças
e
relações entre
estas três dimensões e revele, ao mesmo tempo, em que medida o poder
ideológico e econômico precisa estar monopolizado. Isto permitirá
desenvolver um a concepção funcionalista manifesta do Direito, e não
encoberta, como fa z Kelsen.
4?) Creio, também, q u e , apesar das afirmações em contrário, a
estrutura normativa organizada
p o r
Kelsen,
a
partir
do
conceito
de
sanção,
nã o
formula nenhuma consideração
que
transcenda
a
formação
d o Estado moderno, assim como um a teoria de legitimação de uma
ordem jurídica estatal. É importante verificar que toda a estrutura
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7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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reflexiva
de
Kelsen perderia grande parte
de sua
censistência,
se não
adotasse como pano de fundo a referência ao Estado moderno. Neste
sentido, o apelo aos traços de invariabilidade presentes nos diversos
ordenamentos jurídicos é um recurso retórico para apresentar, de uma
forma trans-histórica, os elementos qu e compõem a ordem jurídica a
qu e
estamos submetidos.
U ma d a s
críticas
que
pode
ser
formulada
a
Kelsen baseia-se nesta quarta objeção, já qu e é apenas pela compreen-
são da teoria kelseniana, como um a explicação sobre a organização da
estrutura jurídica
d o
Estado moderno,
qu e
podemos responder
à per-
gunta sobre a função social desta forma particular de Direito.
É
claro
q ue
tais questões exigem
a
negação
da
vigência
do
princípio
da pureza metodológica. Elas rompem com a visão imanente da teoria
jurídica. Bobbio acrescenta,
a
respeito,
que a
consideração
da
função
promotora d o Direito deve ser entendida dentro
do
âmbito mais vasto
de uma ciência da direção social e que esta consideração do Direito
como instrumento de direção social seja acompanhada por uma
crítica ou, pelo menos por uma valoração negativa da função
coativa. 26)
5. Finalmente, quero tecer u m a crítica ao conceito kelseniano de
sanção, segundo a proposta da Teoria Pura do Direito. Neste sentido,
pergunto-me:
é a
sanção,
nos
termos definidos
p or
Kelsen,
um
conceito
normativo, isto é , satisfaz a coerência intrínseca d a Teoria Pura? Res-
ponde
ao
princípio
da
purificação metodológica? Tentarei demonstrar
que a noção de sanção não cumpre a s condições propostas pelo próprio
método kelseniano.
Inicialmente, indicarei a inconsistência d a sustentação conjunta de
que o Direito é uma técnica de motivação e que a coerção jurídica não
pode
se r
confundida
com a
coerção psíquica.
N a
teoria kelseniana,
o
elemento coerção é uma condição de significação jurídica. Quando um
ato de
coerção figura
no
conseqüente
de uma
norma,
ele
indica simul-
taneamente que, se é executado pelo órgão da comunidade, nunca pode
ter o sentido jurídico de uma conduta proibida; além disto, a conduta que
figura n o antecedente d a norma adquire, por essa relação de significa-
çã o , o sentido jurídico de um a conduta proibida. Desta forma, obtém-se,
também,
a
purificação
da
idéia
de
coerção. Contudo,, isto apenas
é
possível
se
tornamos absolutamente irrelevante
a
idéia
de que o
Direito
é um a técnica d e motivação d a conduta; o que não acarreta, po r sua vez,
nenhuma conseqüência negativa para o desenvolvimento da teoria
9 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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kelseniana, manifestamente despreocupada
com os
aspectos funcionais
d o Direito. D e outra parte, aceitando-se a concepção funcionalista e
duvidosa de que o direito realiza-se funcionalmente, através de um
papel de persuasão, as funções do direito extrapolam as motivações
individuais, para refletir, condensar e materializar u m a relação de forças
sociais.
A admissão d o caráter extra-normativo d a idéia d e motivação é um
b o m indicador d os recursos ideológicos e sociológicos de que se utiliza
Kelsen, para fundamentar um princípio metodológico que os repele.
Vejamos , então, o que ocorre com a definição de sanção que ele propõe.
Verificou-se que o normativismo kelseniano caracteriza a sanção
como a privação devida d e certos bens: vida, saúde, liberdade, e tc . , feita
por um
órgão
d a
comunidade; assim,
a
sanção
é
vista como
um ato de
coerção devido. M as , a definição de coerção q ue Kelsen oferece é extra-
normativa. E fruto de um estudo comparativo d e todos os ordenamentos
jurídicos existentes
ou que
tenham existido
27).
Assim,
o
conceito
de
coerção devida surge de um estudo empírico e não estrutural; surge a
partir d e u ma análise p or meio d a qual se define a estrutura lógica das
normas e proposições jurídicas e se indica um dos elementos materiais
d a s ordens jurídicas. Como se pode, portanto, construir u m a teoria
pretensamente rigorosa
a
partir
de um
elemento
tão
pouco delimitado?
P o r certo, a definição d e sanção, em Kelsen, é circular.
Desta forma, o leitor fica peiplexo ao observar que os bens enume-
rados p o r Kelsen os quais podem s e r triados mediante a sanção),
apenas podem ter um sentido normativo ao saber o que significam, a
partir d a s próprias normas instituintes d o s sentidos normativos e a
partir d a sanção). Assim, para manter a coerência interna da teoria,
necessita-se propor outro conceito
d e
sanção
ou de
coerção devida
que
não se baseie em nenhum tipo de referência empírica. É isto possível?
Certamente, em benefício d a própria coerência d a Teoria Pura,
devemos recorrer a u ma definição q ue prescinda de qualquer determi-
nação d e conteúdos e acentue o fato de q ue a sanção é um a conseqüência
devida, q u e pode te r qualquer conteúdo de conduta. Assim, se em uma
ordem jurídica enlaça-se um a conduta a uma conseqüência, esta deve
ser
vista independentemente
de seu
conteúdo como sanção inclusive
d a s sanções positivas de que nos fala Bobbio).
Deriva-se daí , que para a noção de sanção, não podemos estabe-
lecer se u sentido c o m independência d as próprias normas. Sem o re-
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curso
às
normas,
as
privações
de
certos bens apenas podem
ser
qualifi-
cadas
com
referência
a
sistema
de
valores (subjetivos para Kelsen).
O
sentido objetivo
que me
permite caracterizar
um a
conduta como sanção
depende das normas, d o lugar da conduta no-enunciado condicional que
expressa a norma. M a s , para não cair no vício da circularidade, deve-
m o s prescindir da referência a qualquer conteúdo de conduta e definir a
sanção como
a
conduta prevista
n o
conseqüente
d a
norma.
Creio
q u e
esta
é a
única maneira
de
oferecer
um
conceito
de
sanção
igualmente purificado, sem ecos ideológicos ou psicológicos, que evo-
quem,
em
torno
da
sanção,
a
idéia
de um
desvalor,
de um
prejuízo.
Com
esta colocação,
não se
encerram, certamente,
as
críticas possíveis sobre
o conceito de sanção, nem se invalidam as objeções apresentadas em
ponto anterior neste capítulo. Trata-se, simplesmente,
de um
exercício
analítico sobre u m a purificação que não é tão pura.
NOTAS
(1 ) Ver
Kelsen, TGDE,
p. 17.
( 2 ) U m a técnica d e motivação é direta, quan do a simples represent ação d a s normas pelos |
indivíduos é suficient e como motivo para o comportamento reclamado. Po r sua vez, a
técnica é indireta, se o comportamento reclamado precisa, para se r motivado, c o n -
verter o desejo d e certas vantagens, ou temor d o s prejuízos imputados, em um motivo
determinante d o comportamento.
(3 ) Ver
Kelsen,
T. P . , l a . ed . , p . 70 .
(4 ) Conforme a caracterização dada na nota 2 deste capítulo.
(5 )
Kelsen. idem. Para Kelsen,
o
lugar
d e
aplicação
d a
sanção
é
irrelevante.
O
caráter
transcendente o u imanente d a san ção provém d o órgão encarregado de sua aplicação.'
S e o
órgão
é
divino,
a
sanção
é
transcenden te, ainda
q u e
aplicada neste mundo.
Se a
autoridade encarregada d a aplicação d a sanção t em u m poder derivado d a própria*
organização comunitária, a sanção deve s e r vista como socialmente imanente. Tal
seria,
p o r
exemplo,
o
caso
d a s
sanções aplicadas pelos órgãos autorizados
nas
normas canónicas.
(7)
Conforme Kelsen, TGDE.
p. 24.
(8 ) Conforme T.P . , Ia . ed . . p . 71 .
(9 )
Kelsen, TGDE,
p. 23.
(10) O
discurso teórico purificado normativamente,
a
partir
d o
conceito
d e
sanção,
funcionaria, segundo Kelsen, como u m modelo analítico importante na medida que
sendo constituído
e m
vista
d e u m a
significação,
n ão t em
nenhu ma fun ção tecnológica
n e m política o u ideológica. É u m discurso cujo único papel é o de ti^nsmitir u m a
informação, cujo conteúdo surge a partir d e u m objeto genérico chamado, por
comod idade , Direito.
9 6
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(11) Sobre as maneiras como se relacionam alguns d o s conceitos jurídicos básicos como o
conceito d e sanção, v er meu trabalho Os
conceitos normativos
em
Kelsen
e da
desmitificação
do
modelo napoleónico
in :
Temas para
um a
Filosofia Jurídica
Martíno-Russo- Warat.
(12) Estou falando d a necessidade d e submete r todos os conceitos básicos à regra metodo-
lógica externada pelo q u e chamo o princípio d a purificação antí-dualista . Dele m e
ocupgrei n o próximo capítulo.
(13)
Veja
O
tratamento
q u e
dispenso
a o
conceito
de
estereótipo
e m m e u
trabalho
EI
Derecho y su lenguage.
(14) Kelsen, TGDE, p. 25.
(15) T .P . , 2? ed . , p . 67 .
(16) Idem, p. 67.
(1 7) N a 2 ed . d a T .P . , Kelsen adverte e m nota d e rodapé, q u e t em modificado su a idéia
e m
torno
d a s
relações entre
o
Direito
e a p az ,
propondo, assim, substituir
a
noção
d e
p a z pela d e
segurança coletiva.
U m Estado q u e garante a segurança coletiva é um
Estado q u e aspira a p az , q u e tende a ela.
(18) Conforme Kelsen — Cossio, in : Problemas escogidos de Ia Teoria Pura dei
Derecho.
(19) Sobre a oposição estruturalismo
1
funcionalismo ver o trabalho d e Norberto Bobbio
Hacia un a teoria funcional de i Derecho
in :
Derecho Filosofia y lenguaje
Homenaje
a
Ambrosio
L .
Gioja.
(20) Bobbio, idem, p. 11.
(21)
Idem,
p. 18.
(22) Idem, p. 19.
(23) Bobbio, n o texto q u e estamos citando a o longo deste capítulo, fala d e sanções
negativas (o s atos d e coerções devidos q u e priv am bens) e sanções positivas (as que
concede m benefícios, sobretudo d e índole económica). Se Kelsen aceita um conceito
amplo
d e
sanção, abrangente
d o s
dois tipos
de que nos
fala Bobbio.
a
diferença
do
autor italiano é q u e consi dera como característica q u e permite estabelecer a diferença
específica entre
o
Direito
e a s
outras ordens sociais,
a
sanção negativa.
(24) Sobre a função promotora d o Direito, ver o trabalho citado d e Bobbio, p. 16 e
seguintes.
(25) Ver Foucault, principalmente, A verdade e as formas jurídicas e Vigiar e punir.
26 ) Bobbio op. cit., p. 27.
27 ) Bobbio op. cit., p. 30.
28 )
Kelsen
T.P., 1 ed., p. 71.
NOTA COMPLEMENTAR A O CAPÍTULO V
(i). A
experiência reflexiva
d e
Kelsen sobre
a
noção
d e
sanção silencia algumas questões
importantes e m torno d a s complexas funções sociais da coerção jurídica.
D o ponto d e vista d e u m a t eoria crítica d o direito, a sanção apres enta dimensões
político-ideológicas, q u e se encont ram obscurecidas na análise normativista.
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Assim, po r intermédio d e u m a política d e coerção, assegura-sè o programa jurídico
ideológico d o Estado e determina-se u m a tática política, mediante a qual a coerção
aparece como u m d o s instrumentos tecnológicos d o poder.
O
tratamento kelseniano sobre
a
sanção desloca,
m a s nã o
desmistifica
o
trata-
mento tradicional que os juristas imprimem a o tema. A justi ficação política d a sanção
encontra-se teoricamente reforçada n as propriedades defínítórias estipuladas pelos
juristas para a sua noção. Geralmente, pretende-se definir o castigo como a conse-
qüência d a violação d e u m a norma, imposta e executada por um órgão normativo,
como resposta social a um a transgressão, q u e exige algum tipo de conseqüência
desagradável. O castigo, assim, é a expressão social d e um a desaprovação moral a o
seu transgressor.
Esta definição encontra-se respaldada em um jogo discursivo, apoiado na oposi-
ç ã o
entre
o
interesse geral
e a
transgressão individual,
e
entre
as
justificações retri-
butivas e preve ntivas. Este duplo jogo d e oposições permite articular retoricamente as
finalidades legalistas e morais. Todos estes argumentos s ã o apresentados dentro de
u m a história linear que va i da vingança d e sangue à readaptação psicológica d o
transgressor. Nesta história, misturam-se pontos d e vista mágicos, religiosos, éticos
e racionais. Esta narrativa sobre a evolução d a sanção leva o s juristas a apresen-
tarem, d e forma confusa, a s finalidades sociais d o castigo e as questões vinculadas à
justificação moral
d a
coerção.
O s atos d e coerção apresentam-se, n a literatura jurídica, vinculados à idéia do
castigo; esta relação permite iniciar u m a interminável discussão sobre a s finalidades
d o castigo. E m geral, o s juristas optam p o r dois tipos d e finalidades: preventivas ou
retributivas. E m um ou no utr o caso ficam latente s certas razões éticas q u e justificarã o
a
prevenção
o u a
repressão.
O
resultad o desta disputa estereotipada
é que os
jurista s
vinculam o castigo a um processo d e legitimação d o s valores morais dominantes,
quando, na verdade, o que legitima o castigo é o poder d o Estado.
U m a análise crítica desta história levar-nos-á a demonstrar como a imputação d e
um castigo responde principalmente à necessidade de gerar estruturas d e poder,
resultando irrelevantes a s condutas que se reprimem. O dever moral d o castigo,
fundamentado
n a
aprese ntação retórica
d a
racionalidade
da lei .
está sempre
a
serviço
d o processo d e acumulação social d o poder d ó Estado, produzindo efeitos multipli-
cadores d o poder, a o justificar, s em limites, o s atos d e administração d a coerção.
Nesta perspectiva, importa ainda assinalar
o
papel
d a
sanção
n o
processo
d e
inter-
venção d o poder no corpo d o sujeito social. Através d a política de coerç ão obtém-se a
conversão d o sujeito e m objeto social, submisso e produtivo, segundo a expressão de
Foucault.
Verifica-se, então, como a política d a coerção contribui para a constituição d o
conceito social d e normalidade, p o r meio d o qual surge toda u m a ideologia d a margi-
nalidade, claramente utilizada
e m
função
d o s
objetivos
d o
poder
e da
produção:
a
marginalidade como estratégia de submissão.
O s mecanismos d a sanção, a despeito do que os juristas teor izam, deixam ma rcas
n o s
indivíduos
que vã o
além
d a
punição
de um a to
isolado, gerando
um
espaço
d e
controle burocrático preventivo; ou seja, um programa d e intervenção e normalização
realizado pelo Estado.
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Capítulo
V I
A
PURIFICAÇÃO MONISTA
O U
ANTI-DUALISTA
1. Tratarei, neste capítulo, d o último nível de purificação proposto
pela Teoria Pura d o Direito. Este pode se r enunciado da seguinte forma:
É
preciso tornar independente
o
conhecimento
do
Direito
em
relação
ao s
pressupostos metodológicos dualistas, mediante
o s
quais
se
cons-
titui o sistema classificatório e os exemplos paradigmáticos do modelo
de
Ciência Jurídica aceito como normal
em
nossos dias.
Estamos,
de
início, diante
da
fórmula metodológica
de
base,
em -
pregada p o r Kelsen, para a formação d o sistema de conceitos objetivos
d a Ciência Jurídica. O u seja, uma vez estabelecidas as condições gené-
ricas e a s diferenças específicas que estabelecem o lugar teórico exclu-
sivo e excludente d a Ciência Jurídica, como Ciência Social normativa, é
necessário, também, estabelecer um critério que organize o regime de
produção daqueles discursos
que têm a
pretensão
de
falar objetiva-
mente, em termos exclusivamente normativos, do s ordenamentos jurí-
dicos válidos. T a l critério metodológico, proposto pela Teoria Pura, é
designado como monismo jurídico. Este deve ser visto como uma das
caracter ísticas mais destacadas, isto é um critério definitório do pensa-
mento Kelseniano.
A
proposta
do
monismo jurídico
é
geralmente, explicada naTeoria
Pura, através de um jogo de contrastes, de denúncias, de leituras críticas
realizadas contra
as
concepções teóricas comumente denominadas
dua-
lismos jurídicos. O sentido do termo monismo surge, então, precisa-
mente, deste contraste crítico. O r a estudar os dualismos jurídicos, a
partir
d e u m a
postura monista, implica, antes
de
tudo,
em
assinalar
o
significado político e ideológico, que está po r trás do s tradicionais
conceitos, teorias
e
classificações
d a
ciência jurídica.
A
Teoria Pura
do
Direito considera o s dualismos jurídicos como um sistema de conceitos
contrapostos, para desdobrar ou duplicar ideologicamente a proble-
9 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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mática jurídica. Em outras palavras, trata-se de uma técnica jurídica
completamente particular e historicamente condicionada, através da
qual
se usa com
objetivos predominantemente políticos,
o
conheci-
mento jurídico tradicional.
Dir-se-ia
que a
recusa
de uma
teorização bipolar (dualista) circuns-
creve-se,
na
Teoria Pura,
a uma
tentativa
de
denúncia
dos
vínculos
metafísicos e políticos que o pensamento clássico do direito propõe,
visando, sobretudo, demonstraras insuficiências lógicas
e
explicativas,
a
ausência
de
rigor analítico desse tipo
de
teorização.
Não se faz
neces-
sário grande esforço de interpretação para concluir que Kelsen vê, nos
dualismos, construções estereotipadas, onde
não é
possível obter qual-
quer orientação válida para
a
elaboração
de um
pensamento sistemático.
Compreende-se,
de
forma mais clara,
a
crítica kelseniana, encarando
os
dualismos jurídicos como um conglomerado de tipos ideais dispostos
retoricamente em pares dicotômicos, com o f im de propor um a distri-
buição rígida
e
maniqueísta
d o s
dados jurídicos. Assim, revela-se,
na
organização de tais dicotomias, um a metodologia estática, onde não é possí-
vel
descobrir nenhuma relação lógica
ou de
graduação entre
os
opostos.
E
como
u m a
porta epistemológica falsa, aberta pelo senso comum
teórico
d o s
juristas,
que nos
impõe, mediante
a
formação vulgar
dos
conceitos,
a
idéia
de que as
classificações jurídicas
são
necessárias,
naturais, lógicas
e que não
necessitam
de
grandes demonstrações, pois
emanam, como
d iz
Mialle, de uma r zão sã
N o
entanto,
ao
contrário
d o q u e pensam o s juristas, revelam-se, n a organização destas catego-
rias, claras intenções tópicas
de
legitimação), encobertas
por um
apelo
a um tipo de racionalidade ideal que , no fundo, pressupondo a necessi-
dade
de
estabelecer
um
princípio
de
ordenação sistemática para
o con-
junto
d e
dados jurídicos, serve como suporte discursivo para
a
imple-
mentação
de
concepções ideológicas
e
aspirações políticas.
2. A partir d as colocações anteriores, acrescentarei, à tentativa
kelseniana de romper com a concepção dualista do saber jurídico, alguns
argumentos semiológicos de reforço. Desta forma, se poderá compre-
ender
o
sistema
de
sentido
dos
discursos trabalhados pelo poder
1), e,
também, perceber
a
dependência
da
própria crítica kelseniana
de um
universo
de
significações,
que não
deixa
de
estar politicamente
con-
taminado.
j) A
semiologia
qu e
proponho
não
pretende denunciar
o
carater mítico ou o valor d a estereotipação de um conceito ou termo
1 0 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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isolado,
m as
captar todo
um
sistema retórico
de
significações:
o
sistema
retórico produzido
a
partir
dos
dualismos jurídicos.
Tratemos, pois. semiologicamente.
os
discursos formados
a
partir
d o s
dualismos; jurídicos
e .
assim podemos promover
um a
descoberta
sobre
o
poder
da
conotação.
Passemos, agora,
a
descrever
o
domínio conotativo
do
discurso
clássico
d o s
juristas, apoiados
em
categorias tópicas polares. Poder-se-
ia . nestes discursos, distinguir dois planos de significação: um mani-
festo. construído
a
partir
do
efeito
de
sistematicidade
das
categorias
dualistas, e destinado a satisfazer um a aparente função do conheci-
mento; outro, latente, situado no termo de um processo de conotação
que o
discurso manifesto praticamente força. Neste caso. estamos
fa-
lando
de um
discurso retórico onde
os
dois planos
do
sentido,
que
temos
analiticamente apresentado, relacionam-se para produzir
as
significa-
ções conotadas,
que são as
dominantes neste tipo
de
discurso.
A
cono-
tação. como nos fala Barthes. consiste, de fato. na camuflação das
significações,
sob uma
aparência natural:
ela
nào ocorre nunc sob a
espécie
de um
sistem fr nco
de
signific ções 2). As classificações
dualistas
dos
juristas
são as que
permitem, precisamente, encobrir,
com
o
manto
da
neutralidade,
a
cadeia
de
evocações conotadas. Pode-se
dizer
que o
significado
de
conotação
dos
discursos jurídicos
é
construído
a partir de uma visão sincrética do fenômeno jurídico, que remete a um
pequeno conjunto de idéias muito gerais sobre a natureza, a justiça, a
obrigação
de
obedecer,
a
neutralidade
do
Direito
e do
Estado. Compre-
ende-se. então. que . por trás de um conjunto multiforme de sentidos
conotados, existe
um a
mensagem ideológica nebulosamente configu-
rada. qu e é , de certo modo, transmitida uniformemente junto a cada uma
d as
mensagens
de
conotação.
Em
outras palavras,
as
diferentes oposi-
ções (classificações dualistas) com as quais os juristas estruturam seus
raciocínios, escondem
sua
visão ideológica
em
relação
ao
poder,
aos
órgãos
d o
Estado
e à
própria função
do
direito. Neste sentido,
por
trás
de qualquer destas classificações, parece respirar, entre outras repre-
sentações,
o
sonho
da
filosofia
das
luzes,
que
aspira
a
criar
uma lin-
guagem jurídica matematizada. unívoca, fiel espelho
de uma
ordem
natural, sonho
que, no
fundo, como todo sonho, serve para alimentar
fantasias,
no
caso.
a da
racionalidade
do
Direito
e do
poder.
Retomando Kelsen, observa-se,
na
Teoria Pura,
a
tentativa
de
reso-
lução
de
todos
os
dualismos jurídicos,
a
partir
de um
princípio monista.
1 0 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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mediante
o
qual
se
pretende liberar
o
conhecimento jurídico
de
noções
ou derivações que falem da existência de uma normatividade meta-
jurídica inscrita
no
sistema
da
natureza
e a
qual
o
Direito
e o
Estado
devem submeter-se. como sua condição de legitimação ética. Desta
forma,
o
Direito, desde
a
perspectiva monista. fica reduzido
a uma
simples estrutura normativa, onde todos
os
problemas devem
sei'
colo-
cados e resolvidos como questões normativas. Assim, a ordem jurídica,
como instância única
de
compreensão
e
referência, deve resolvei', diluir
e . portanto, superar todo.s os dualismos e falsas oposições.
De um
modo esquemático, tentei esboçar
o
sentido
que
Kelsen
impõe
à
noção
de
dualismo jurídico. Trata-se
de um
conceito
que.
como
a noção de dogmática jurídica, não encontra uma definição explícita nos
textos kelsenianos.
A
conceituação teoricamente adequada
à
noção
de
dualismo jurí-
dico se não encontra, aqui. formulada. Tentarei, nos próximos itens
deste capítulo, tornar mais evidente
o
sentido
da
noção
de
dualismo
jurídico, o u . pelo menos, explicitá-la para o nível de minha análise.
3. A teoria jurídica mantém há . pelos menos, dois séculos, um
paradigma
de
ciência, cujos modelos normais-parciais mostram
um
mesmo núcleo teórico, construído a partir das chamadas doutrinas
jusnaturalistas. Doutrinas
que, por sua vez, se
encontram determinadas
por um princípio de fundamentação categorial dualista. Deste modo, se
faz
possível entender como certos posicionamentos teóricos, aparente-
mente antagónicos às propostas jusnaturalistas, como as da Dogmática
Jurídica, respondem,
em
última instância, aeste mesmo núcleo teórico,
terminando por esvaziar suas propostas sistematizadoras (a lógica de
seu
discurso)
e
reescrever
a
Dogmática Jurídica
na
corrente metafísica
das doutrinas do Direito Natural. Tal ocorre, principalmente, porque a
estrutura
que o
conhecimento dogmático
do
direito exibe está ligada,
também,
às
condições
de
mitificação determinadas pelo princípio
da
dicotomia
(as
concepções dualistas
do
direito).
Por
certo,
os
dualismos
jurídicos cumprem um a função epistemológica nuclear na determina-
ção dos
princípios teóricos
e
conceitos básicos
em que se
fundam
o
modelo
de
ciência jurídica unanimemente aceito
até
Kelsen.íA idéia
da
organização dualista
do
saber jurídico estabelece simultaneamente
o
sentido d o limite e o limite d o sentido da problemática que o conhe-
cimento jurídico possa exibir ou formular em um certo momento. O
1 0 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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dualismo
é uma
condição metodológica
que
preside, tanto
a
definiç.
o
d o s problemas e a organização das estratégicas de resolução, como a
concepção de ciência que está na base da produção do paradigma
vigente. Deste modo.
o
princípio dualista
que o
jurista incorporou,
durante sua formação profissional, serve para determinar o universo
problemático
da
ciência
do
direito, fornecer-lhe
as
regras
de
funciona-
mento do s esquemas conceituais e metodológicos e indicar-lhe a natu-
reza
e
extensão
do
resultado
a
atingir. Assim,
a
Dogmática Jurídica
desempenha um a função ideológico-política ou de legitimação, muito
próxima das teorias jusnaturalistas que aparenta rejeitar. O princípio
dualista, como critério regulador
do
conhecimento jurídico,
não
apre-
senta suas categorias fundamentalmente separadas de uma dimensão d e
significação ideológica
e
política.
Vimos, também, como
o
ideal
dos
modelos
da
Ciência Jurídica,
desenvolvidos a partir do século XIX, encontra-se baseado em um
conjunto de topoi , que opera, aparentemente, como princípio de
avaliação do real. mas que, no fundo, serve de forma de legitimação de
todas
as
ações
dos
órgãos estatais,
de
justificação
do
poder
do
Estado.
Para exercer ta l função a Ciência do Direito recobre o conjunto de seus
topoi , apresentando-os como se fossem categorias pertencentes a um
modelo teórico respaldado pelos mesmos padrões
das
ciências empíri-
co-experimentais. Isto
é uma
condição básica para
a
produção
dos
efeitos
de
legitimação perseguidos.
Em
outras palavras, mediante
a
manipulação de um esquema categorial dualista (topicamente susten-
tado) constrói-se um jogo de conotações, em que os elementos cognosci-
tivos
d o
discurso científico servem, apenas, para ocultar
um
conjunto
de
enunciados ideológicos
e
políticos
com os
quais
se
legitimam
os
atos
dos
órgãos dotados
de
autoridade,
o que por
outro lado. constitui
a
função
primordial d o tipo de discurso teórico que nos ocupa.
Certamente, o paradigma de Ciência Jurídica predominante encon-
tra-se fundamentado em mecanismos conceituais que apresentam um
âmbito
de
significação tópico-retórico,
ou
seja,
que não têm, por
função
primordial,
a
organização sistemática
de um
discurso
de
conhecimento,
m as antes pretendem condicionar as formas de raciocínio dos juristas
de
ofício
e
órgãos jurídicos, assim como estabelecer
o
consenso
em
torno de alguns princípios éticos e do monopólio da força assumida pelo
Estado.
-
Noções
e
fórmulas tópicas como
b e m
comum , vontade
con-
1 0 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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tratual , soberania nacional , eqüidade , estado
de
necessidade ,
representação popular, igualdade do s homens perante o Estado, identi-
dade teleológica da nação e Estado, legitimidade racional do poder do
Estado, inexistência de sanção sem culpa, enlaçadas no processo argu-
mentativo
a
hipóstases, personificações
e
solidariedades metafísicas
detectáveis em noções como direito subjetivo, sujeito do direito, pessoa
jurídica, povo, território, Estado, ilicitude, relação jurídica, permitem a
sustentação retórica, tanto para as propostas decisórias, como para a
legitimação d o s atos do s órgãos do Estado (fornecendo argumentos
favoráveis
à
presunção
de sua
juridicidade
a
priori
e
autônoma).
N o
Direito,
as
noções
e
fórmulas tópicas
são
produzidas utilizando
aquilo q u e poderíamos chamar d e topoi epistemológico constituinte.
Examinando o paradigma da atual ciência jurídica no rmal , verifi-
camos
que o
princípio
d e
produção dualista
d as
categorias cognoscitivas
pode
se r
visto como
o
aludido topoi epistemológico.
É preciso reconhecer que os raciocínios organizados a partir deste
'topoi epistemológico se vêem envolvidos p or contradições lógicas e
incongruências diluídas, apenas, pelo jogo mítico surgido das solidarie-
dades retóricas, produzidas entre as noções e fórmulas tópicas e os
argumentos decisórios
ou de
legitimação.
Kelsen verif ica isto quando, analisando a dicotomia direito público
e
privado, considera: para
dividir o direito em público e privado
diversos tratadistas recorrem
aos
critérios mais diversos
e
opostos
e
não sendo raro encontrarem um mesmo escritor esta diversidade ou
oposição
de
critérios; (3) e logo agrega: s e n o s interrogamos pelos
fundamentos desta divisão entramos em u m caos d e opiniões con
traditórias
(4).
Esta estruturação contraditória
d os
diversos discursos
da Ciência d o Direito é o que permite estabelecer o complexo d e rela-
ções ideológicas d e significação,' processadas no interior de tais discur-
sos. O jogo de ambigüidades, formado a partir das noções, fórmulas
tópicas e argumentos pseudo-explicativos determina a construção do
âmbito ideológico
(de
conotação)
das
significações jurídicas. Este âmbi-
to de sentido permanece latente em conseqüência das funções d e miti-
ficação, estabelecidas a partir d a fundamentação dualista que comanda a
produção
d o s
raciocínios jurídicos. Assim,
no
raciocínio argumentativo
do direito, encontramos u m a regra metodológica que legitima episte-
mologicamente espaços d e sentido antagônicos, isto é , determinados
pelas antíteses categoriais
que
operam como condição
de sua
signifi-
cação.
1 0 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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U m a estrutura discursiva satisfaz um a função mítica, quando retira
o referente sua dimensão real e social, provocando um efeito d e trans-
e a-historicidade É u m a prestidigitação semiológica que
a
significação
da
História
e a
preenche
de
natureza. Passando
d a
à
natureza,
o
mito dissolve
a
complexidade
das
relações sociais;
a
simplicidade
das
essências.
N o plano d as significações com funções míticas encontra-se uma
de explicação do mundo, sem contradições, aparen-
u m a clareza explicativa que oculta as reais intenções, ou seja, as
e
produzir
um
efeito
de
clareza cognitiva para legitimar
u m a
determi-
ou um certo universo de valores.
O s processos de mitificação discursiva podem ser caracterizados
um
discurso
de
neutralização, onde
se
politiza, precisamente,
no
em que se
rouba
o
caráter político
de
todas
as
falas sobre
o
o discurso qu e cumpre funções míticas simplifica as
o contingente, neutraliza as valorações,
a
história, insere
na
ordem
da
natureza
a
ação política
e
produz
m tipo de clareza próprio às constatações feitas sobre a realidade.
E
como
se
pode apresentar esta organização
não
contraditória
do
é
possível
na
medida
em que os
receptores
da
mensagem
as proposições ideológicas em um universo de crenças já
O s
topoi
são os que
permitem
o
reconhecimento retórico
das
o raciocínio retórico dos juristas, valendo-se
o
repertório
d o s
topoi, refere-se
a o
real
de uma
forma
que o
elude
por
de seu determinante.
Tércio Sampaio Ferraz, lucidamente, indica que as funções de mi-
d o s discursos jurídicos são produzidas, não porque se ocultam
s
conflitos,
m as
porque
se os
disfarça, trazendo-os para
o
plano
das
(5). Isto se explica na medida em que o mito não tem
o r função semiológica a deformação d o real, mas sim prover os recep-
de uma amostra das relações sociais em um plano de abstração
sob pretexto da produção de uma
do fenômeno jurídico, legitimam-se as práticas políticas,
-se decisões e procura-se um consenso em torno a valores. Os
d o
discurso devem
se r
julgados como álibis
u m segundo nível d o sentido, ausente do discurso e, no entanto,
d a
dimensão ideológica
d e
sentido.
A
significação
as teorias jurídicas é o resultado desta ambigüidade constitutiva. Enfim,
1 0 5
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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mediante o raciocínio tópico-retórico, lança-se m ão de um jogo de simul-
taneidades pouco perceptíveis entre elementos cognoscitivos e certas
crenças geralmente aceitas, crenças estas .provenientes das opiniões
comunitárias e do senso comum teórico d os juristas 6). Assegurar-se-á,
assim, um a função de harmonização das relações sociais projetadas nos
esquemas ideais, conceitos fetichizados, estruturas simplistas
e
mani-
queístas. E , este complexo de elementos retóricos põe entre parênteses
os sentidos cognitivos, tornando-os disponíveis para receber a signifi-
cação ideológica o sentido conotado); um a significação q ue recoloca o
discurso teórico do Direito em função da questão do poder. É precisa-
mente nesta perspectiva político-retórica que é preciso situar o para-
digma de ciência, cujos modelos normais-parciais os juristas pretendem
conservar, inculcar
e
transmitir. Trata-se
de um
modelo
de
ciência
que
remonta aos exemplos escolásticos, onde se formulam problemas,
externam-se seus prós e contras com valor de autoridade e discute-se
para formular a conclusão, recorrendo a noções metafísicas e idéias
provenientes do pensamento mágico dos romanos. 7)
Por certo, este modelo normal-parcial, desde a aparição dos Es-
tados modernos, aparece articulado com outro modelo parcial que tende
a assemelhar-se ao das ciências empíricas racionais. Aparece vigo-
rando, assim,
a
idéia
do
Direito racional, onde
a
dedução
a
partir
de
princípios e a construção de um conjunto de categorias relativamente
sistematizadas e logicamente controladas, converte-se no princípio pro-
dutor d as demonstrações científicas. Contudo, esta última proposta
também funciona como mecanismo de legitimação do direito positivo,
de suas práticas decisórias e do poder do Estado. D aí porque a estrutura
teórica da Dogmática Jurídica do século XIX, a elaboração de um
esquema hipotético-dedutivo
não nos
deve fazer subestimar
as
funções
políticas e ideológicas que este modelo desempenha. Tal esquema de
legitimação apropria-se, com uma clara intenção mitificadora, do enor-
m e prestígio e eficiência d as ciências empíricas, ainda que apenas nomi-
nalmente. E utiliza este recurso como um plano de significantes para
revestir
a
dimensão política
e
ideológica
de seu
discurso.
4. Torna-se necessário agora, diante d a problemática^que acabamos
de
expor, considerar
de uma
forma mais profunda
a
concepção kelse-
niana. Sem muito esforço, poderá concordar-se que este autor pretende
questionar os modelos normais-parciais que configuram a estrutura
1 0 6
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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paradigmática
d a
Ciência Jurídica,
ta l
como
a
descrevemos.
A
Teoria
Pura opõe-se, principalmente,
ao
núcleo teórico comum constituído
pelas doutrinas d o Direito Natural, aspirando a converter a Dogmática
Jurídica
e m u m a
autêntica Ciência
do
Direito. Para tanto, propõe
uma
série d e conceitos, obtidos a partir d e u m a análise exclusiva d as normas
jurídicas positivas
e de uma
abordagem desarticuladora
do
dualismo,
mediante
a s
quais procura construir
o
sistema
de
saber
d a
Dogmática
Jurídica. Logo notamos
que a
ambição
de
Kelsen
não
passa pela busca
de um
novo paradigma
d e
Ciência Jurídica;
e m
realidade,
ele
procura
u m
deslocamento
d o
núcleo teórico comum apoiado,
por sua vez ,
indevi-
damente
n as
doutrinas
d o
Direito Natural.
Kelsen propõe
um
critério monista como condição
d e
produção
das
noções
e
classificações teóricas,
com o afã de
substituir, como núcleo
teórico comum, a concepção idealista e humanista de Ciência Jurídica,
colocando,
em seu
lugar,
um
modelo teórico
de
inspiração estritamente
cartesiana. Para Kelsen,
a
partir
d o
momento
em que o
núcleo teórico
comum
d as
Ciências Jurídicas está constituído
por um
conjunto
de
regras
q u e
sujeitam
os
discursos teóricos
a
cânones lógicos
e
bases
categoriais relativamente sistemáticas,
os
conceitos jurídicos funda-
mentais deixam
de ser
categorias universais, reificadas
e
metafísicas
e
passam
a ser
noções concretas
e
empiricamente controláveis. Assim,
todo material
q u e
seja suscetível
de um
conhecimento científico
no
Direito ficará livre
de
concepções metafísicas,
d e
imagens antropomór-
ficas,
de
intenções legitimadoras, para ficar exclusivamente sujeito
à
gramática
d o
pensamento hipotético-dedutivo.
P o r
isso mesmo,
as
questões suscitadas pelo princípio
da
pureza metodológica encami-
nham-se todas nesta direção.
O s
cinco níveis
de
purificação revelam
a
intenção
d e
alterar
o
núcleo teórico comum
da
Ciência Jurídica, indi-
cando-nos
as
bases para
sua
alteração. Recordemos:
o
núcleo teórico
comum alternativo não pode responder a propósitos políticos primeiro
nível
de
purificação);
não
pode erigir-se
em
parâmetro axiológico
do
Direito Positivo, nem apoiar-se n as doutrinas d o Direito Natural 2?
nível
d e
purificação); deve evitar reproduzir
o
paradigma
da
ciência
da
natureza, buscando
u m a
categoria fundante alternativa para seus racio-
cínios hipotético-dedutivos;
a
imputação:
de
igual modo rejeita
a
idéia
d e
aceitar, como parte integrante
de seu
paradigma, modelos empres-
tados
d e
outras disciplinas
3?
nível
de
purificação); reivindica critérios
de
demarcação
q u e
tornem autônomo
o
paradigma
da
Ciência Jurídica
1 0 7
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 108/133
em relação aos modelos d as Ciências Sociais normativas 4? nível de
purificação ; desqualifica princípios d e classificação e organização do
saber dualistas, que utilizam os elementos teóricos como álibis legiti-
madores no discurso da Ciência Jurídica 5? nível de purificação .
Vemos, então, como
o
nível
de
purificação
que nos
ocupa somente
adquire sentido pleno na medida em que se procure interpretá-lo no
contexto maior dos outros níveis de purificação. E tendo precisado o
que se deve entender p o r purificação monista, posso, agora, acrescentar
algumas observações sobre as concepções dualistas da Dogmática Jurí-
dica. anteriores a Kelsen.
5. É
possível retomar
a
formulação destas questões, analisando
como
o
pensamento dogmático
do
Direito
não
renunciou
à
idéia
de
poder relacionar e fundamentar, com suas explicações, o Direito Posi-
tivo e a natureza. A partir do momento em que se relaciona o Direito
com a natureza, pressupõe-se a existência de algum suporte metodoló-
gico para o Direito neste sistema, e com isso, fundamentam-se genetica-
mente as normas jurídicas, proporcionando, ao mesmo tempo, uma
visão ideológica para
a
atividade
dos
juristas,
os
atos
dos
órgãos estatais
e a
reprodução
de
certas condições materiais
da
vida social.
D e
fato,
o
grande trabalho de legitimação d a Dogmática Jurídica, efetuado median-
te os
critérios dualistas
de
organização
do
conhecimento jurídico,
es-
taria sustentando miticamente, entre outras crenças, que o homem
individualizado é o destinatário final d o Direito; que o Direito tem o seu
domínio
de
ação imune
à
atividade
dos
órgãos
do
Estado;
que as
normas
jurídicas estão destinadas a regular relações individuais e não relações
sociais;
a
Dogmática veria, também,
o
Estado como
um a
entidade
natural, executora d e ações intrinsecamente justas, fruto de um acordo
geral de vontades e onde os homens — a partir desta delegação —
transformam-se em sujeitos de Direito, formal e juridicamente iguais
frente à força delegada ao Estado. P o r certo, a Dogmática Jurídica
também cumpre funções de legitimação, quando propõe separar as
pessoas d a s coisas, mostrando estas últimas mediante elementos in -
trínsecos que nos impedem de vê-las ligadas a razões sociais específicas.
Claro
que a
imbricação
d o
Direito
com a
natureza acarreta sérios obstá-
culos epistemológicos, já que serve para sustentar o caráter natural e
necessário das categorias técnicas e das propostas classificatórias que
d a s mesmas se derivam. Transformadas em critério teórico, as classi-
1 0 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 109/133
ficações jurídicas passam a cumprir funções políticas claras. Sendo
classificações que pertencem ao domínio da necessidade natural, justi-
ficam, emprestando-lhes um caráter necessário, as formas de governo
d o s
homens. Constituem classificações
que
pretendem traduzir
uma
evidência; e , neste sentido, apelam para a natureza e para a racionali-
dade, como meio
de
tornar
as
categorias integrantes
de seu
paradigma
normal
de
ciência, parte
do
senso comum
e das
opiniões geralmente
aceitas. Este apelo ao inconsciente dos juristas indubitavelmente trans-
forma as categorias e classificações da Ciência Jurídica em lugares
retóricos.
Agora se vê claramente que. com a purificação monista, a Teoria
Pura do Direito pretende romper com as funções ideológicas das tradi-
cionais classificações
da
Dogmática Jurídica. Assim,
a
Teoria Pura nega
a divisão entre Direito Público e Direito Privado; propõe a identificação
entre o Direito e o Estado; apresenta os direitos subjetivos como uma
categoria construída a partir de uma análise estrutural das normas
positivas; vê as pessoas físicas como sistemas parciais d e normas, cujos
âmbitos pessoais de validade apenas podem ser preenchidos por um
mesmo indivíduo, negando o dualismo entre o Sujeito e o Direito,
identifica o Direito com a sociedade; suprime a antítese entre um sis-
tema
de
normas naturais
e
outro positivo; propõe-nos
um a
visão unitária
entre o Direito nacional e o Direito internacional, com o que desmistifica
a
categoria
da
soberania
e
rechaça
a
visão dicotômica entre
o
indivíduo
e
a sociedade.
Resta ver se a purificação monista que Kelsen propõe é suficiente,
não só
como explicação desmistificadora
dos
efeitos ideológicos
da
dogmática jurídica, senão como proposta de fundamentação de um tipo
de
conhecimento científico
não
preocupado
com a
constituição
de um
âmbito ideológico de significação. E m outras palavras, convém exami-
na r se a estrutura hipotético-dedutiva não oculta outra função ideológica
e de legitimação.
6. Para evidenciar de maneira mais consistente os limites da leitura
crítica, proposta pela Escola Kelseniana, parece-me conveniente
ten-
ta r , agora, elaborar algumas reflexões sobre as funções políticas e
ideológicas
nas
duas classificações geralmente aceitas como básicas
pelo paradigma jurídico dominante:
a que
distingue
o
Direito Público
e o
Privado; a que separa o Direito do Estado. Como as duas antíteses
1 0 9
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 110/133
encontram-se fortemente imbricadas, e consideradas as evocações
significativas
de
caráter ideológico
q ue
ambos
os
pares categoriais suge-
r e m, estes podem ser considerados altamente semelhantes, tornando
útil efetuar um estudo conjunto destes dualismos.
A
posição
de
Kelsen,
a
respeito destes dois clássicos dualismos
é
coincidente, uma vez mais com o princípio metodológico de que parte.
P o r isso, apoiando-me nas análises anteriores, não será difícil recons-
truir seu pensamento.
Por certo, as distinções feitas, pela Dogmática Jurídica tradicional,
entre Direito Público
e
Privado
e
entre Direito
e
Estado constituem
uma
clara irrupção
d a
política
na
ciência
do
direito.
Com
efeito, para Kelsen,
estas classificações foram elaboradas, e permanecem aceitas, não em
virtude de atenderem a um fim teórico, mas , porque, como pseudo-
categorias, serve para fornecer argumentos
a
favor
de um a
ideologia
de
legitimidade. Deste modo, mediante
os
dualismos analisados, pretende-
se
justificar
os
atos
do
Estado
— o
poder
do
Estado
— ,
afirmando
a
presunção de legitimidade autônoma do Estado em relação ao Direito.
H á, portanto, por trás destas propostas classificatórias, um a tese ideo-
lógica q u e serve de sustentação à crença de uma juridicidade natural e
transcendente dos atos de autoridade dos órgãos do Estado.
Explicitando semiologicamente a crítica kelseniana, teríamos um
conjunto
de
discursos retóricos construídos
a
partir
de uma
série
de
pontos de vista tópicos, com os quais a doutrina tradicional consegue
identificar o Direito Público com o Estado e ambos com certos fins
transcendentes atribuídos ao conjunto d a sociedade. Estes fins empres-
tam à noção de Estado u m a imagem antropomórfica c om nuances etica-
mente apriorísticas, imunes
à
produção
de
atos ilícitos. Pretende-se,
porém, circunscrever
a
ilicitude
ao
domínio
d o
Direito
que, po r sua vez,
é
apresentado como
um a
esfera
de
ação reservada
aos
particulares
Direito Privado). O poder do Estado é visto como intrinsecamente
b o m , graças a esta forma de argumentação metafísico-racional. Desta
maneira, também
se
pode sustentar
que
apenas
a
esfera
do
Direito
Público é o setor d a dominação política, estando esta excluída do domí-
nio do Direito Privado 8). Portanto, identificando-se o Direito Público
com a política, e o Direito Privado com o domínio a-político estritamente
jurídico, pretende-se evitar, a juízo de Kelsen, o reconhecimento de
que o
direito privado criado pela
via
jurídica negocial
do
contrato
não é
menos palco
de
atuação
da
dominação política
do que o
direito
1 10
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 111/133
público criado pela legislação e pela administração 9). Certamente,
a
partir desta crença, criar-se-ia
um
duplo efeito
de
liberdade:
do
Estado
co m relação ao Direito, e dos indivíduos com relação ao poder dos
órgãos do Estado. Em síntese, os indivíduos estariam, apenas subme-
tidos ao Direito e o Estado seria um guardião autônomo desta submis-
são, um gerdame ético que usaria a força, velando pelo cumprimento do
Direito. E , para tanto, ter-se-ia, também, a impossibilidade de um
exercício ilícito deste dever. Teríamos, desta maneira,
um a
delegação
d o poder, baseada na suposição apriorística de que este poder jamais
seria exercido ilicitamente.
Ora ,
esta argumentação, para Kelsen,
é
claramente política e , neste sentido, afirma: quando a teoria jurídica
levanta a presunção de legitimidade autônoma do Estado em relação
ao
Direito falam
por ela os
interesses
dos
grupos dominantes
dos
grupos em que nesse momento afirmam seu poder 10). Deste modo,
Kelsen pensa
q u e ,
quando tradicionalmente
se
distingue
o
Direito
do
Estado prévia identificação do Estado com o Direito Público), se está
tentando legitimar
os
atos
dos
órgãos
do
Estado,
se
está procurando
fortalecer ideologicamente
a
autoridade.
D aí que ,
para Kelsen,
a
supe-
ração metodológica crítica do dualismo Estado/Direito é, ao mesmo
tempo
a
anulação impiedosa
de uma das
mais eficientes ideologias
de legitimidade 11).
Certamente,
um a
perspectiva monista, fundamentada exclusiva-
mente no Direito Positivo, os argumentos até aqui apresentados resul-
tam inadmissíveis. Assim, partindo da classificação teórica entre formas
de produção normativas autônomas e heterônomas, Kelsen reexplicaas
distinções correntes,
na
linguagem jurídica, entre Direito Público
e
Privado. Descarta, Kelsen,
o
caráter absoluto
e
extra-sistemático desse
dualismo e reivindica seu caráter relativo e intra-sistemático. 12) Neste
sentido, define, relativamente, como
de
Direito Público aquelas normas
cuja produção e aplicação são predominantemente heterônomas e,
como de Direito Privado, aquelas de produção e aplicação autônoma
13).
Claro
que
estas distinções
têm um
caráter relativo, pois
as
normas
criadas autonomamente dependem, de alguma forma, d as normas hete-
rônomas
as qu e
determinam,
por
exemplo,
a
capacidade contratual)
e
as
normas criadas autonomamente
o
caso daqueles atos realizados
pelas autoridades administrativas, que nascem em virtude do consenti-
mento
do
obrigado; nestes casos,
a
condição
d a
conseqüência jurídica
é a
coincidência da vontade da autoridade e do súdito).
1 1 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 112/133
O caráter autônomo ou heterônomo da produção de normas, por
sua vez ,
permite
a
Kelsen falar
de uma
produção democrática
e de uma
produção autocrática do Direito. Neste ponto, pode-se notar um a certa
debilidade
na
proposta Kelseniana, pois, como assinala Vernengo,
um
sistema político configura uma estrutura excessivamente complexa
em suas articulações para que se possa defini-la como democrática
ou
autocrática
a
partir
de uma só
característica.
14)
Assim, o dualismo Direito e Estado não teria bases teóricas de
sustentação,
a
partir
de um a
perspectiva monista
d o
Direito.
Com
efeito,
sustenta Kelsen, na medida em que se define o Estado como uma
comunidade
de
homens, deve-se admitir
— q u e
esta comunidade
apenas pode ser unitariamente concebida pelo pensamento cientí-
fico como uma ordem normativa que regula a conduta mútua dos
homens
que
pertencem
a
esta comunidade.
m
conhecimento
do
Estado isento de ingredientes metafísicos ou ideológicos não pode
apreender a significação desta figura social senão como uma ordem
da conduta humana. Falar de uma comunidade constituída por uma
ordem normativa significa falar
de uma
ordem coercitiva:
o
Direito
15). Pode-se, então, verificar q u e , para um a teoria monista do Direito,
somente
se
alcança
um
conceito jurídico
do
Estado, mediante
uma
abstração
qu e
restringe
—
como objeto teórico
— a sua
ordem jurídica.
Assim, a atividade dos órgãos do Estado é vista como atos de produção
d e normas e o Estado atua produzindo seu Direito. P or outro lado, é
desnecessário apelar para teses, como,
por
exemplo,
a
vontade
do
Estado, porque esta vontade se confunde com a ordem jurídico-posítiva.
P o r certo, a partir desta idéia, a tese d a vontade do Estado é uma
concepção jusnaturalista, teoricamente supérflua. Além
do que ,
apenas
podemos descrever
a
vontade
do
Estado, enumerando suas decisões
as
normas jurídicas produzidas pelos órgãos).
Desta forma, a tese monista que identifica o Estado com o Direito,
rejeita a concepção dualista, que o vê como um a entidade metafísica e
necessária.
O
monismo, opondo-se
à
concepção dualista,
vê o
Estado
como u m a abstração teórica qu e reflete um a forma contingente da
organização
d a s
sociedades.
E ,
conforme Vernengo, descarta
a
possibi-
lidade
de que a
teoria jurídica deve procurar descrever
o estado feno-
mênico em que se manifesta aquela pretendida entidade metafísica.
16)
1 1 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 113/133
U m a v e z delineados os argumentos kelsenianos sobre as relações
Estado/Direito, é preciso reconhecer, agora, certas limitações desta
proposta. Neste momento, cabe considerar que a teoria monista mini-
miza completamente a materialidade o conteúdo) institucional do
Estado. Vê-se que a proposta de identificar o Estado com a ordem
jurídica
nos põe
diante
de uma
concepção formal
do
Estado,
um
estudo,
p o r assim dizer, reduzido ao plano dos significantes. Mas, não será a
este nível
que
entenderemos
a
função original
do
objeto Estado, visado
pela significação. É , pois, unicamente através de uma união de um jogo
de
solidariedades
das
formas normas)
e a
materialidade institucional
conteúdo) q ue podemos perceber a significação teórica do conceito de
Estado. A s normas jurídicas, do ponto de vista do processo produtivo
das
significações jurídicas,
são um
elemento anêmico, inerte,
que con-
tém um sentido que não constitui um elemento de condutibilidade de
u m a significação extra-normativa produzida. Sem dúvida, são as prá-
ticas constituintes
da
materialidade institucional
do
Estado
que
empres-
tam parte d o conteúdo significativo d as normas. Poder-se-ia dizer que se
não se examina a materialidade institucional, pouco se sabe sobre o
sentido
d as
normas. Para atualizar
o
sentido
das
normas,
os
juristas
intuitivamente tomam
em
conta
o
complexo
de
instituições estatais
que
funcionam como
um a
espécie
de
emissor institucional
17).
Esta noção
abstrata pretende indicar
que a
produção
d os
sentidos normativos
não se
realiza de um único lugar a partir de um só emissor) e que nenhum
destes lugares de emissão detém, por si só, o sentido, uma vez que há
u m a relação de solidariedade entre eles. São relações que, por sua vez,
encontram-se condicionadas pelos sentidos acrescentados
à
norma
no
ato de sua
produção
ou em
sucessivas interpretações). Assim, repro-
duzindo
a
fala
d o s
lingüistas, existiria
u m a
dupla implicação
dos
textos
legais e das práticas institucionais) na produção do sentido das normas.
A
partir
de
tais colocações, inclino-me pela manutenção teórica
de
um a
concepção dualista
do
Direito
e do
Estado,
m as
aceito
as
críticas
kelsenianas no ponto em que objetam os componentes jusnaturalistas e
metafísicos desta anti-tese. Certamente, creio que se pode manter o
dualismo
a
partir
de
outra concepção teórica, como
a
semiológica.
E m essência, é possível dizer-se que os argumentos jurídicos clás-
sicos procuram estabelecer
o
lugar
do
Estado
em
relação
ao
Direito.
Explicam, desta forma,
o
funcionamento
do
Estado dentro
dos
marcos
d o Direito, atribuindo a ambos um a identidade de caracteres, como, por
1 1 3
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
http://slidepdf.com/reader/full/warat-luis-alberto-a-pureza-do-poder 114/133
exemplo: exprimem o bem comum, representam o interesse geral, dis-
põem
d o
monopólio
da
força,
os
indivíduos mantêm frente
a
estas duas
figuras sociais relações gerais
e
igualitárias, ambos possuem órgãos
neutros, e tc . Vê-se aqui como, no fundo, o dualismo Direito/Estado
apresenta um a concepção ideológica respaldada em um monismo tópico
implícito. Deste modo, os juristas nos proporcionam um a proposta de
classificação dualista amparada em um complexo unitário de topoi.
A
análise
que
proponho deve tentar
um a
inversão
da
questão
des-
crita
na
qual
o
Direito
não
deve
ser
pensado senão dentro
das
institui-
ções d o Estado. Assim, abrir-se-ia o espaço para problemáticas arti-
culações entre o Direito e o Estado. O interrogante central a desvendar é
o da
determinação
do
estatuto (lugar)
do
direito
nas
práticas institu-
cionais d os órgãos do Estado. Nada mais posso fazer, senão levantar
aqui este problema.
Finalmente,
é
importante notar
que
Kelsen conduz
sua
postura
monista ao extremo de propor a ruptura do dualismo norma/sociedade
(18).
Este tipo
de
identificação somada
à do
Direito/Estado, leva
à
falaz
igualdade entre Estado/Sociedade. Assim, regressamos
ao
ponto
de
partida:
um a
ideologia
de
legitimidade.
Afinal, devo reafirmar o fato de que atese monista, em sua tentativa
de
superação
d o
dualismo Estado/Sociedade, deixa
de
contemplar
o
fato
de que o
Estado
(e o
Direito) devam
ser
vistos como fatores co-deter-
minantes de um tipo específico de organização das condições de realiza-
ção da vida social. A possibilidade de uma análise deste tipo perde-se na
identificação aludida.
Por
outro lado,
o
conceito
de
Estado depende
da
concepção
de
sociedade
que se
adote. Assim,
por
exemplo, teríamos
diferentes conceitos
de
sociedade
que a
conceberiam
em
termos
de
relações sociais ou individuais. Estas diversas concepções de socie-
dade, por sua vez, determinam níveis de abstração diferentes para o
conceito
de
Estado;
e
este seria
um
conceito
que
expressaria distintos
estatutos teóricos.
1 14
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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NOTAS
(1) Ver prólogo d e Roland Barthes, in :
Sistema
da
Moda.
(2)
Roland Barthes, idem.
p. 218.
(3 )
Kelsen,
TGE, p . 128.
(4)
Kelsen, idem.
(5 ) Tércio Sampaio Ferraz, in :
Função social
da
Dogmática Jurídica.
(6 ) Sobre o conceito d e senso comum teórico d o jurista, ver o prólogo d e m e u trabalho
Mitos e teorias na interpretação da lei
(7) Conforme, Roberto Jose Vernengo,
Paradigma
de
ciência
y
caso paradigmático
in : Revista Latinoamericana de Metodologia do Ensino do Direito p. 3.
(8 )
Conforme Teoria Pura,
p. 382.
(9 )
Idem,
p. 382.
(10)
Kelsen TGD E,
p. 105.
(11)
Kelsen,
T.P. , 2? ed . , p . 425.
(12)
Conforme
T . P . ,
l ? e d . , p .
182.
(13) Ve r
Kelsen,
T. P . , 2? ed . . p . 380.
(14)
Vernengo, Teoria general
dei
Derecho
p. 370.
(15) ü
argumento exposto
fo i
formulado
p o r
Kelsen
n o
texto Introdução
à
Teoria Pura
do
Direito. México, UNA M,
p. 54 a 56.
(16)
Vernengo, Teoria general
dei
Derecho
p. 285.
(17)
Sobre
a
noção
d e
emissor institucional,
v e r
Elza Antónia Pereira Cunha
e
Dirce
Dione Bravo
—
Idéias para
um a
semiologia
do
poder Comunicação ap resentada
a o I
Encontro Brasileiro
d e
Filosofia
d o
Direito.
(18)
Como
j á
vimos,
a
noção
d e
sociedade
é
identificada
p o r
Kelsen
c o m o
complexo
d e
sistemas normativos.
NOTA COMPLEMENTAR
A O
CAPÍTULO
VI
(j) É importante assinalar q u e a distinção entre s e r e dever s e r proposta p o r Kelsen,
n o s
coloca diante
d a
problemática, geralmente atribuída
a
Hobbes,
d a
necessidade
d e
centralização e burocrat ização d o poder, e d o estabelecimento d e u m a comunidade que
assegure
o s
direitos individuais, através
d o
monopólio
d a
coerção. Desta maneira,
constltni-se o corpo político, a partir de sua separação d o corpo social. T al separação é
realizada pela mediação
de um
conceito
d e
soberania vinculada
a u m
poder absoluto.
Assim, provoca-se
a
despolitização
d o
indivíduo, cujos afazeres
n ã o
estão compro-
metidos
c o m a
coerção política,
mas com a paz que o
Estado lhes garante..
Hobbes fundamenta
a
legitimidade
d o
poder soberano
e da lei em si
mesmos. Para
e l e , u m a
ação justa
é a qu e nã o é
praticada contra
a lei
(independentemente
do seu
valor
racional
o u
transcendente);
a
legitimidade
da lei
deriva
d o
fato
de que e la
emana
de
quem
t e m
poder soberano,
o u
seja. Hobbes estabelece
a
legalidade como fundamento
d a
legitimidade.
Esta
é a
mesma idéia
q u e
Kelsen pretende externar, através
d a
norma fundamen-
ta l : a divisão entre o mundo d o s e r (o mundo d o s indivíduos ou universo social) e o
mundo d o dever s e r ( no qual se processa a auto-legitimação d o direito e d o Estado.
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7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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independentemente
d a
sociedade).
P o r
isto, Kelsen. apesar
d e
prescindir
d o
dualismo
tradicional entre direito público
e
direito privado,
não o
supera,
uma vez que o
reassegura mediante
u m
dualismo epistemológico fundante.
T a l
como Hobbes,
Ke l -
s e n , a o distinguir o s e r e o "dever s e r , destrói a idéia d a hierarquia natura dos
valores, fornecendo-nos u m a representação d o social, basea da em indivíduos isolados
q u e
encontram
n o
Estado
a
segurança para conservar suas vidas
e
seus patrimônios.
Desta forma, o Estado, monopolizando a coerção, administra o " me d o d a morte",
como garantia
e
certeza
da paz .
Deve-se ressaltar, u m a v e z mais, q u e n a base d e t oda fund amen taçã o racional d o
direito e d o Estado, aparece sempre a força como elemento intermediador de uma
situação antagônica natural.
E m suma, verificamos q u e , para Kelsen, a legitimidade de um poder soberano
fundamenta-se e m u m a legalidade reconhecida teoricament e pela "no rm a fundamental
gnoseológica" ,
q u e . p o r s u a v e z ,
traduz,
em
termos epistêmicos.
a
necessidade
d e f u n -
d a r a
legalidade
em um
expresso reconhecimento
d a
ef etiva realização
d o
pa cto social.
Isto é o que nos sugere a norma fundamental, quando formulada d a seguinte maneira:
s e A
manda
e é
geralmente obedecido, deve
s e r q u e A
mande
e
sej a geralmente
obedec ido" . Eis a versão kelseniana d o pacto social.
1 1 6
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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CAPÍTULO VII
CONSIDER ÇÕES CRÍTIC S
SO
BRE O PRINCÍPIO DA PUREZ
METODOLÓGIC
I. Verificamos que , mediante o Princípio da Pureza Metodológica,
Kelsen recusa um a possível articulação da Ciência Jurídica com os
outros saberes
que , sob uma
ótica
não
normativa, foram construídos
sobre o Direito. Sustenta o autor que os elementos extra-normativos não
representam um momento constitutivo do jurídico como tal, e que por
isso devem ser excluídos de uma investigação jurídica pura ou essencial.
Ora , com a afirmação de que a Ciência do Direito deve preocupar-se
exclusivamente com a explicação d o domínio normativo, não se recusa a
idéia de que o Direito possa ser analisado a partir de diferentes lugares
teóricos. Kelsen considera váiida
a
multipiicidade
de
abordagens sobre
o fenômeno jurídico, exigindo apenas um a complementariedade externa
que não comprometa a formulação de um critério deliberativo para as
proposições
da
Ciência Jurídica. Este critério deve basear-se necessa-
riamente em elementos normativos. Assim, o princípio da pureza fun-
cionando como fórmula de demarcação do campo temático da Ciência
do Direito estabelece, como sua regra metodológica básica, um critério
d e egocentrismo significativo. Mediante ta l regra metodológica fica
excluído do âmbito de significação d os discursos científicos do Direito,
qualquer dado que não possa ser diretamente derivado das normas posi-
tivas válidas.
E
claro
que o
princípio
da
pureza metodológica incide,
também, na determinação das condições de sentido d as próprias normas
jurídicas, proibindo referências extra-normativas para adjudicação de
seu
conteúdo.
Aceitemos po r enquanto que , através da noção de pureza, cons-
titui-se
a
validade como critério decisório
das
normas jurídicas. Desta
forma, consideram-se como irrelevantes ou sem sentido os processos d e
significação que os intérpretes possam efetuar, atendendo as relações
1 1 7
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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provenientes
d e
suas representações ideológicas,
de
suas práticas polí-
ticas, de s ua concepção sobre a justiça e a doutrina d o Direito Natural ,
d a s
crenças teóricas
q u e
governam
as
práticas institucionais
d as
diferen-
te s ciências, d a s normas morais o u religiosas, d o s discursos jurispruden-
ciais
e d a
circulação institucional
d a
informação jurídica.
A
Ciência
d o
Direito,
por sua vez , de
acordo
com o
princípio
da
pureza metodológica teria p o r função a produção d e discursos tendentes
à
reprodução
d o s
conteúdos
d as
normas intrasístematicamente determi-
nadas,
a
partir
d o
critério
d a
validade.
A s
proposições
d a
Ciência Jurídi-
c a seriam verdadeiras, (significativas) caso seu conteúdo reproduzisse,
n o
plano
d o
conhecimento,
o s
âmbitos
d e
validade
d a s
normas.
Constata-se, então,
que o
princípio
d a
pureza metodológica
—
como fórmula d e significação — cumpre u m papel dual: indica as condi-
ções
d e
sentido, tanto
d a s
normas jurídicas como
d o s
enunciados
da
Ciência
d o
Direito.
D e u m a
perspectiva ampla, diremos
que as
condi-
ções d e significação propostas p o r Kelsen apontam a produção de um
conhecimento sobre o jurídico, q u e deve se r regulado p o r leis estrutu-
rais imanentes. Dito
em
outras palavras,
o
princípio
d a
pureza metodo-
lógica indica como u m a problemática carente d e sèntido para a Ciência
d o
Direito, toda
e
qualquer questão
q u e n ã o
possa
se r
situada
a
partir
das
normas jurídicas válidas. Isto posto, procurarei argüiras insuficiências
e
dificuldades de um conhecimento d o Direito regulado por um princípio
d e
pureza
ou
imanência significativa.
A
refutação conseqüente
d o
princípio
d a
pureza metodológica deve
demonstrar que a significação d o s enunciados d a Ciência d o Direito
encontram-se constitutivamente determinados
p o r
alguns
d o s
fatores
excluídos pela aplicação d o princípio d a imanência significativa. T e n -
tarei, assim, formular
u m a
regra
de
sentido oposta
à
kelseniana. Esta
condição
d e
significação alternativa necessita
s e r
regida
por um
prin-
cípio diferente q u e proponho chamar princípio da heteronímia signi-
ficativa . 1)
C o m
esta fórmula
d e
significação, procuro evitar
o
reducionismo
semiológico presente n a proposta kelseniana. Refiro-me a uma idéia
implícita
n o s
textos
d e
Kelsen, mediante
a
qual
se
pretende sugerir
que
através de um sistema d e normas jurídicas válidas completa-se plena-
mente o processo de sua significação. O s enunciados d a Ciência Jurídica
teriam, n a significação emergente d e tais sistemas normativos, o s limites
de seu
sentido. Parafraseando Saussure,
o
princípio
d a
pureza metodo-
1 1 8
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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lógica sustenta-se
a
partir
d a
crença
de que as
associações significativas
d o
Direito
se
desenvolvem através
de um
jogo
d e
oposições estruturais.
S ã o ,
portanto,
as
diferenças
o u
oposições
em
relação
ao s
outros termos
d.o sistema d e normas q u e especificam o significado de um signo jurí-
dico.
Para Saussure,
a s
relações estruturais
são de
dois tipos.
E le
fala
d e
relações sintagmáticas
e
associativas.
A s
primeiras fazem referência
à
solidariedade
que se
pode estabelecer entre vários termos, n presen-
c ia . Ou
seja,
as
combinações
d e
sentido surgidas
n a
extensão
d a
lingua-
g e m ,
como,
p o r
exemplo,
o
sintagma ma ta r alguém , onde
o
sentido
d a
expres são encontra-se co-determinado pelos termos
que a
consti-
tuem. Também poder-se-ia considerar como outro tipo
de
relação
sin-
tagmática
a s
unidades significativas, surgidas
d a
relação
de
vários enun-
ciados entre
si no
caso,
a
relação
de
várias normas). Haveria desta
forma, relações sintagmáticas de primeiro e segundo graus. U m a segunda
ordem
d e
relações estaria formada pelos campos significativos determi-
nados mediante afinidades
d o s
mais diversos tipos.
S ão
relações
que
reúnem termos n ausentia
n ão
apoiados
n a
extensão
d a
língua.
A s
relações associativas, para Saussure,
n o s
remetem
a
sistemas lingüís-
ticos
e
extra-lingüísticos. Exemplo
d o
primeiro tipo destas relações
em
ausência seriam
as
séries associativas inspiradas
em
evocações
de pro-
priedades designativas, como seria
a
seqüência: ensino
—
educação
—
aprendizagem. Esta forma
d e
associação
se
estabelece apenas recor-
rendo a evocações internas de um sistema lingüístico. U m exemplo d o
segundo tipo estaria dado pelas evocações surgidas de dados valorati-
v o s ,
ideológicos
ou
políticos.
2)
Entendo q u e poder-se-ia argumentar q u e Kelsen admitiria a produ-
ç ã o d a s
significações
d a s
normas jurídicas
a
partir
de
relações sintag-
máticas
e d e
relações associativas provenientes
de um
tipo específico
de
sistema lingüístico:
a s
linguagens
d a s
normas jurídicas válidas
3).
Quero ressaltar,
a
partir
d o
exposto,
q u e
Kelsen
n ão
leva
em
conside-
ração
o
papel
d a
própria Ciência Jurídica como instância
d e
significação
d a s
normas jurídicas.
O
sentido
d o s
termos contidos
n as
normas jurí-
dicas n ã o surgiria p o r nenhum jogo d e associações provenientes do
saber jurídico.
Contrariamente,
o
princípio
d a
heteronímia significativa reivindica
a
incorporação
d o s
fatores excluídos pelo princípio
d a
pureza metodoló-
gica (saber jurídico, contextos lingüísticos alheios ao Direito Positivo e
1 19
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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contexto extra-lingüístico) como condições necessariamente presentes
na
fórmula
de
significação para
as
normas jurídicas.
E
evidencia,
ao
mesmo tempo,
o
caráter institucional, social, político
e
ideológico
da
produção dos sentidos jurídicos. Contraposto ao que se depreende do
princípio da pureza metodológica visto como condição de sentido), o
princípio da heteronímia significativa afirma a existência de uma plu-
ralidade d e centros produtores de sentido. O sentido d as normas legais e
d o s discursos d a Ciência Jurídica delas dependentes encontra-se lingüís-
tica e socialmente determinado. A s palavras d a lei não são como poder-
se-ia inferir d o princípio da pureza metodológica, constituintes exclusi-
vos dos
sentidos
d as
normas positivas,
nem as
noções teóricas
do
Direito podem
ser
unicamente determinadas
a
partir
de seu
valor,
na
estrutura textual das normas positivas. Desde já , é possível perceber o
papel q u e Kelsen reserva à Ciência d o Direito como reprodutora de uma
significação processada a partir de uma estrutura lingüística os textos
legais)
que não a
determina
nem a
condiciona como código
de
associa-
ções significativas.
A
Ciência
do
Direito forneceria, segundo Kelsen,
elementos
de
reconhecimento
e não de
produção significativa.
A
partir
d o
dito:
a
Teoria Geral
do
Direito proporcionaria, para Kelsen,
as
noções gerais
q u e
permitiriam
a
produção lógica
e
racional
do
processo
de
reconhecimento significativo
que a
Ciência
do
Direito postula.
4)
Certamente, através do princípio d a pureza metodológica tenta-se
excluir do âmbito d as significações normativas e dos termos técnicos, os
fatores necessariamente co-determinantes na produção deste tipo de
sentido. Vê-se, então, qu e conforme o princípio da heteronímia signifi-
cativa, os enunciados da Ciência Jurídica são elementos necessários
para
a
formação
d a
unidade significativa. Isto porque
não se
trata
de
discurso q u e tenta reproduzir mecanicamente o conteúdo das normas
jurídicas. O saber jurídico dominante contém toda um a série de repre-
sentações
e
sistemas
de
sentidos próprios
que
condicionam
o
tipo
de
evocações significativas a qu e os juristas se remetem no ato de determi-
nação do sentido d a s palavras da lei.
P o r esta razão, segundo princípio da heteronímia significativa,
tenta-se evidenciar
que o
processo
d e
produção
dos
sentidos
das
normas
jurídicas envolve formas
d e
conexões
que não se
apoiam exclusivamen-
te em caracteres lógicos ou valores estruturais, mas que se baseiam no
senso comum teórico d o s juristas e nas condições materiais da vida
social. Desta forma,
o
princípio
da
heteronímia significativa levanta-se
1 2 0
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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contra
o
critério simplista
e
linear
da
fórmula
de
significação
q ue
pode
ser extraída da Teoria Pura d o Direito; fórmula que reduz a problemática
d o sentido d as normas jurídicas a uma simples articulação lógico-estru-
tural. Assim,
o
princípio
d a
heteronímia significativa recusa
as
reduções
emergentes dos cinco níveis de purificação analisados neste trabalho,
p o r entender que são precisamente os fatores que se pretende depurar,
os que operam como códigos das significações jurídicas. D e acordo com
este princípio não se pretende criar condições ideais para um processo
d e significação neutralizado, se não indicar as efetivas funções cumpri-
d as pelos fatores eliminados no processo de purificação.
Sem dúvida, os ingredientes de significação que o princípio de
pureza pretende eliminar cumprem funções míticas,
que não
deixam
de
ser
operantes
se as
suprimirmos
no
plano
do
pensamento.
Sua
supressão
no
conhecimento gera
um a
ação
de
retorno sobre
as
práticas signifi-
cativas que a reportam, precisamente, às funções míticas indicadas.
Quando se acredita na existência de um conhecimento neutro, se está
tacitamente afirmando
a
impossibilidade
de seu
questionamento
e
cons-
truindo
um
lugar retórico importante: o*topofda neutralidade.
O
resto
parece simples. Basta poder vincular qualquer interesse político,
eco-
nômico
ou
ideológico
a
este topoi, basta travestir
c om
este lugar retórico
ditos interesses para que eles sejam legitimados como a única forma de
opção racional.
Gostaria, ainda, de indicar outra função importante para o princípio
d a heteronímia significativa, q ue serve para explicar, em parte, a função
social quê o princípio da pureza metódica cumpre. N ão se trata, simples-
mente, de procurar um a substituição de princípio. O s procedimentos d e
depurações propostos pelo princípio
da
pureza metódica
não
represen-
tam incorretas concepções sobre o trabalho da significação normativa;
na verdade, elas são teses complementares aos elementos que depura.
Vejamos então: as significações normativas se estabelecem a partir de
um processo ambíguo, q ue expressa um feixe de reações contraditórias.
Através deste jogo de posições contraditórias vai-se configurando um
sistema de significações tópicas veiculantes de funções míticas. Tais
funções míticas
da
linguagem tornam-se eficazes
ma
medida
que con-
seguem tornar compatíveis, nos discursos, unidades de significações
muitas vezes contraditórias. P o r isto, o princípio de heteronímia signifi-
cativa deve procurar indicar a s razões pelas quais, na prática, o trabalho
de determinação d as significações jurídicas necessita compatibilizar
1 2 1
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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sentidos antagônicos. Aprofundando a linha de argumentação, as nor-
m as jurídicas devem ser vistas como elementos co-determinantes da
materialidade d as relações sociais. O r a , esta função constituinte não
surge como efeito exclusivo das palavras da lei, senão como um efeito
das significações jurídicas. P or isso, creio que para um estudo consis-
tente
d as
funções políticas
e
sociais
d o
Direito Positivo
é
necessário
estender o centro de atenção ao processo de significação jurídica, onde o
saber jurídico é o fator dominante. Deve-se, assim, pôr em xeque o
princípio d a pureza metódica, segundo o qual somos levados a separar o
conhecimento do Direito da sua função na sociedade. Somos levados a
negar
o
poder
d o
conhecimento jurídico. Resgatando unicamente
o
poder do conhecimento jurídico, poderíamos perceber os modos como
as significações jurídicas ficam imbricadas na própria materialidade so-
cial, co-determinando-a
e
sendo,
por sua vez,
determinadas
por ela. O
fetichismo d as formas jurídicas, das palavras da lei, adquire seu valor
simbólico n a medida em que pode erigir-se em lugar de objetivação (de
inscrição material) d as significações sociais e jurídicas, processadas
mediante o sentido comum teórico do jurista. É isto o que o princípio d a
pureza metódica fundamentalmente cala quando, em seu afã de obter
um conhecimento neutralizado, o encobre de suas funções na socieda-
d e ,
reassegurando
o seu
exercício.
NOTAS
(1) A lespeito, v er minha comunicação
o
postulado
da
pureza metódica
ao
principio
da
heteronímia significativa apresentada
a o I
Encontro Brasileiro
d e
Filosofia
do Di-
reito e m João Pessoa, outubro de 1980.
Vários
d o s
argumentos apresentados neste capítulo apóiam-se
n as
idéias contidas
na
referida comunicação.
(2) Ver Rosa Maria Cardoso d a Cunha.
O
caráter retórico
do
princípio
da
legalidade
cap . IV, e Saussure, Curso
de
Lingüística Geral p. 207 a 211.
(3 ) Como assinala Rosa Maria Cardoso d a Cunha, a s evocações provenientes d e outros
sistemas d e normas morais ou religiosas) têm valor d e sentido apenas se podem ser
apresentadas como internas
a o
sistema
d e
normas positivas, como
p o r
exemplo,
da
regra
d e
legalidade.
Op. c i t . , p . 202.
(4 )
Estas categorias gerais
s ã o
provenientes
d e u m a
observação comparativa
d o s
dife-
rentes ordenamentos positivos.
1 2 2
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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ON LUSÕES
Concluindo, o que é preciso acrescentar? Um resumo do qu e já foi
dito? Algumas declarações pomposas e categóricas sobre as teses cen-
trais d o livro? U m inventário das novas questões propostas pelo tra-
balho? Ou uma crítica geral sobre a obra de Kelsen? N a verdade não
tenho a intenção de fazer estritamente nada disto. Em outras palavras,
optarei por um caminho relativamente distànciado de todos estes mode-
los clássicos de conclusão. Enunciarei, então, como propostas conclu-
sivas, seis teses indicativas
das
questões
que
suponho interessantes
para eventuais discussões posteriores. U m a d a s razões de tal escolha
deve-se a o fato de ser este livro um documento de trabalho, um seg-
mento de uma investigação mais ampla a ser desenvolvida, a qual,
evidentemente, implicará em um reencontro crítico com o que até o
momento fo i produzido. Algumas d a s teses q u e formularei revelarão
argumentos implícitos d o trabalho. P or outro lado, é importante precisar
que as
teses
q u e
serão enunciadas antes revelam meus pontos
de
vista
sobre a Teoria Pura do Direito e a Ciência Jurídica do que as idéias de
Kelsen.
Primeira Tese
—
Sobre
as
condições
e
funções
da
Ciência
Jurídica.
O saber jurídico, enquanto ciência social, deve ser visto como um
sistema
de
articulações tópicas, construídas
a
partir
de
problemas
e
endereçados à produção de argumentos para a paralisação de conflitos
sociais. Assim, os discursos d a Dogmática Jurídica encontram-se com-
prometidos co m certos efeitos de verossimilhança e não com questões
vinculadas à problemática da verdade. U m a teoria que tenha por objeto
temático as relações entre as normas jurídicas e os enunciados da
Dogmática Jurídica não deve, portanto, preocupar-se com o estabe-
lecimento d a s condições de verdade (nem das proposições jurídicas,
n e m d a s
normas),
mas s im com as
funções sociais
que
surgem
a
partir
deste tipo de relações. O conhecimento jurídico deve ser visto mais
como
uma
técnica
de
efeitos
do que
como
uma
ciência
de
fatos.
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7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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Segunda Tese
— as
relações
da
Teoria Pura
do
Direito
com a
Dogmática Jurídica.
A teoria kelseniana cumpre várias funções em relação à Dogmática
Jurídica. Contudo, todas estas devem
ser
discriminadas atendendo
o
fato de que a Teoria Pura d o Direito encontra-se, na atualidade, ideo-
logicamente recuperada e inscrita na cultura jurídica dominante. Assim,
a Teor ia Pura pode ser vista como u m a dogmática geral q ue racionaliza o
saber dogmático, revelando as crenças e pressuposições metodológicas
q u e estão n a base deste pensamento, os procedimentos e condições de
seu método, assim como o limite das questões que podem ser colocadas
e resolvidas na Dogmática Jurídica. Trata-se de uma proposta de axio-
matização realizada
a
partir
do s
pressupostos epistemológicos
do
posi-
tivismo.
Terceira Tese — as funções ideológicas, dos objetivos
positivistas da Teoria Pura do Direito e do difuso apelo a um
a priori
do
pensamento.
A s
condições
de
possibilidade
da
ciência jurídica encontram-se
fundamentadas, principalmente,
nos
critérios
de
cientifícidade
do
posi-
tivismo, cujas idéias mais significativas
são:
1) um descrédito absoluto da metafísica;
2) a reivindicação de uma correspondência fática na base de toda
elaboração d o conhecimento científico;
3) uma profunda rejeição a todas as formas de manifestação ideo-
lógica;
4) uma
recusa obstinada
em
aceitar enunciados
que ,
externando
opiniões
ou
juízos subjetivos, impeçam
o
acesso
a um
conhecimento
objetivo;
5) uma crença cega na razão como a única via para a obtenção de
um
sistema
de
conceitos libertos
d as
articulações enganosas
da
doxa
(um saber ideológico, metafísico, sem respaldo objetivo) porém revela-
dor das
verdadeiras articulações.
Certamente, todos estes critérios encontram-se vinculados
a uma
exigência d e inteligibilidade herdada de Kant) que se baseia numa
categoria fundante vista como um a priori d o pensamento. Tais critérios
d e
cientifícidade,
sem
dúvida, levam
a uma
crescente purificação
de
1 2 4
7/21/2019 WARAT, Luis Alberto. a Pureza Do Poder
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conceitos que no fundo representam um deslocamento ideológico. D e
fato os efeitos d e supressão de um sistema de sentidos conotativos
geram, por sua vez , efeitos ideológicos específicos. N o caso, a apresen-
tação d o saber científico como u m a ordem necessária externada através
d e
vínculos racionais, silencia
o
poder social deste tipo
de
discurso.
Quarta Tese — o poder do discurso jurídico e de sua
preservação pela proposta
de
purificação conceituai.
É falso supor que o conhecimento científico do Direito pode
desenvolver-se mediante um processo purificador que silencie o fato de
que as significações jurídicas são institucionalmente produzidas, exis-
tindo, assim, centros
de
decisão significativa
que
legitimam como cien-
tíficos) certos sentidos. Tais sentidos, ao serem empregados nos dife-
rentes discursos
d o
Direito, geram claros efeitos sociais
de
poder.
Certamente, o saber jurídico confere aos sujeitos do poder o poder do
discurso. E se torna evidente que a teoria kelseniana na sua pretensão
purificadora contribui em grande medida para a preservação do poder
d o s
discursos jurídicos.
Quinta Tese — Sobre as funções de significação do prin-
cípio
da
pureza metódica.
O
princípio
d a
pureza metódica, funcionando como critério
de
sentido
da
linguagem jurídica, estabelece
um
critério
de
imanência
significativa que enclausura os sistemas de sentido destas linguagens,
excluindo principalmente as cadeias de significação evocadas a partir
d as
práticas políticas
e
ideológicas.
E m
outras palavras,
o
princípio
de
pureza considera como expressões
sem
sentido para
a
Ciência
do
Direi-
to toda afirmação que não possa ser derivada de normas jurídicas vá-
lidas. Assim, a Teoria Pura d o Direito recupera a fetichização dos
conteúdos normativos, produzidos pelas doutrinas do Direito Natural,
acrescentando-lhe um efeito de mitificação das formas do Direito. Neste
sentido,
as
condições
de
significação formuladas através
d o
princípio
da
pureza metodológica produzem
a
fetichização
d os
signos jurídicos.
Fe-
tiches estes q u e desempenham importantes funções sociais.
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Sexta Tese — Sobre o princípio da heteronímia significa
tiva.
Mediante
ta l
postulado deve-se colocar
e m
cheque
a
aparente trans-
parência
e
absoluta univocidade significativa atribuída
aos
conteúdos
d a s normas jurídicas pelo princípio d a pureza metodológica com o qual
se
pretende dissimular
e
portanto construir
os
âmbitos ideológicos
e
políticos
da s
significações jurídicas.
O
princípio
da
heteronímia signi-
ficativa estabelece
que o
processo
de
produção
das
significações jurí-
dicas envolve formas
de
conexão
qu e não se
apoiam unicamente
nos
caracteres lógico-estruturais
do
direito positivo senão
que se
baseiam
também
em
associações
de
sentido determinadas pelo saber acumu-
lado e pelas condições materiais da vida social. Resumindo o princípio
de heteronímia significativa opõe-se às reduções emergentes do princí-
pio da pureza metodológica porquanto o s fatores por este excluídos são
precisamente os que operam como códigos das significações jurídicas.
Esperamos que a partir d a s teses apresentadas s e inicie um discurso
crítico sobre nosso texto. Está aberto o debate.
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