Date post: | 24-Jul-2016 |
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RAMÓN FERNÁNDEZ-LARREA
TODOS OS CÉUS
DO CÉU POESIA
VI Prémio Internacional
de Poesia Gastón Baquero
H E B E L
2
3
Ramón Fernández-Larrea
TODOS OS CÉUS DO CÉU
POESIA
HEBEL
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5
HEBEL ediciones Bajo Cuerda | Poesía
RAMÓN FERNÁNDEZ-LARREA
TODOS OS
CÉUS DO CÉU POESIA
VI Prémio Internacional
de Poesia Gastón Baquero
Tradução de Maria do Sameiro Barroso
6
Decisão do VI Prémio Internacional de Poesia “Gastón Baquero” 2014:
Um júri, composto por Jaime Siles (Espanha), Alfredo Pérez de Alencart
(Perú), Pedro Shimose (Bolívia) e Pío Serrano (Cuba), entre os 184 livros
recebidos da América Latina e Espanha, decidiu, por unanimidade,
atribuir o Prémio à obra apresentada com o título Todos los cielos del
cielo (Todos os céus do céu), cujo autor se revelou ser o escritor cubano
Ramón Fernández Larrea.
Ao atribuir o Prémio, o Júri valorizou o uso conseguido de uma
linguagem simultaneamente inovadora e herdeira da rica tradição
hispânica; o tratamento original da sua temática variada que vai desde
a exploração íntima das angústias e do desamparo do homem
contemporâneo até um olhar onde a ironia e o humor se harmomizam
com o calor da ternura.
Salamanca, 15 de Outubro de 2014.
TODOS OS CÉUS DO CÉU | POESIA
© Ramón Fernández-Larrea, 2015.
Tradução de Maria do Sameiro Barroso.
© HEBEL Ediciones
Coleção Bajo Cuerda | Poesía
Santiago de Chile, 2015.
Concepção y Colllage: Luis Cruz-Villalobos.
www.benditapoesia.webs.com
Qué es HEBEL. Es un sello editorial sin fines de lucro. Término hebreo que denota lo
efímero, lo vano, lo pasajero, soplo leve que parte veloz. Así, este sello quiere ser
un gesto de frágil permanencia de las palabras, en ediciones siempre
preliminares, que se lanzan por el espacio y tiempo para hacer bien o
simplemente para inquietar la vida, que siempre está en permanente devenir, en
especial la de este "humus que mira el cielo".
7
Para Madalena,
sempre na minha respiração.
A Eliseo Alberto Diego, Lichi,
Nidia Fajardo, Santiaguito Feliú...
os meus vivos que já cá não estão
8
Trazei, trazei
Coisas concretas
Como um cavalo ardendo.
Charles Bukowski
9
Blues da vida diária
estou tão cansado de falar
devia administrar o meu oxigénio
porque mo vão roubar amanhã
estou cansado de sonhar
é um desgaste em cada noite
pôr os mesmos animais
a despenhar-se e a rugir
há sempre amanhecer em meu sonho
e tenho que limpar o sangue
antes que cheguem e me acusem
estou cansado de escrever
não resolvo nada com letras
vejam o que se passa com a palavra amor
todos lhe fazem buracos
e com outras palavras belas
violam-nas prendem-nas
10
batem-lhes duramente num olho
partem os dentes à palavra amor
vi-a ontem e parecia que escapava
a uma serpente gorda
o mesmo se passou com a palavra irmão
cheirava como se a estivessem a afogar
fiz-lhe jantares olhei-a de soslaio
e a palavra fritava-se
navegava nas tripas da noite
fundia-se num olho com o inimigo
e a palavra palpitava
era uma menina com pestanas
que os avós lhe queimavam
e a palavra
destripada
andava com sexo no ar
de bar em bar de porta em porta
estendendo a mão suja
onde cabiam dez dedos ou um
estou cansado de cuspir
de ter rosto o mesmo rosto
11
seria bom que a noite durasse
muito mais que uma noite
o melhor seria perder-me caminhando sobre ela
amaldiçoando a distância
pedindo ajuda às estrelas
já não para foder
para chamar a atenção
só para me fazer de morto.
12
A vida secreta dos golfinhos
assim devem ser os cemitérios
marinhos com uma paz profunda
e o coração de água olhos de água olhares
líquidos e aflitos que atravessam
a luz da água em todas as direcções
estou morto assim há muitos anos
a minha candura na água a minha anca
fundida com as minhas mãos trémulas
entre pedras e lodo entre as algas
que acariciam os peixes que não chegam
nunca a lugar nenhum
apenas os golfinhos me salvam
jogam
com as minhas palavras líquidas no fundo
de tanta escuridão trazem-me o brilho
do sol longínquo até ao abismo de água
só visitam a minha penumbra
os golfinhos
brilhantes que nunca estão quietos nem
sequer na morte isso me ensinam
a continuar a caminhar com os olhos fechados
13
líquidos
sem memória
só me lembro dos gofinhos
focinho no fundo e logo focinho ao sol
para aquele que não tem sequer nome
e depois um salto
uma pirueta
sem recordações sem dia para regressar
sem um dia marcado nas suas frontes
uma penumbra uma centelha
um impulso na víscera
o tremor
num lugar longínquo dos seus corpos
um desejo um mandato um arco-íris
no fundo de tudo o que é profundo
assim devem ser os cemitérios
marinhos com uma paz profunda
e nada então
nada
apenas um peixe de silêncio que se atravessa.
14
O jogo humano
é a vida
meu amigo
quem me afoga e mutila
é a vida
com todas
as suas árvores negras
os seus cheiros a morango
derretido
as suas gaivotas
caindo
em voo picado
sobre a prata dos peixes
a lagarta que se arrasta
pela vida acima
gritando
um grande silêncio
é só
tristemente
a vida
meu amigo.
15
O Outono a teus pés
não sou o mesmo
desde
que morreu
romy schneider
vivi
os últimos anos
como se saltasse
de cadafalso
em cadafalso
e para o topo
vivia
num regime
que me queria
feliz
a toda a hora
e que exigia
que partilhasse
com todos
a minha tristeza
o meu amor desenfreado
os fortalecidos
16
músculos
do meu coração
a minha excelente
ocultação da mágoa
a minha profunda necessidade
de romy schneider
por sorte
tu apareceste
e a vida tornou-se
um pouco mais suave
mais ligeira,
mais simples
uma vida
na ponta dos dedos
para esquecer os lábios
de romy schneider
e os seus olhos oblíquos
que jamais
serão meus
por sorte
oferecias-me
uma vida contigo
que eras tu
toda tu
17
mais tumultuosa
mais serena
uma vida
na ponta do coração
como o amanhecer
de um fantasma.
18
Se existissem anjos
aquele gato
baghera
com as suas patas de vidro
que cruzava a noite em silêncio
trazia-me a sombra de rudyard kipling
ao menino mowgli que os macacos baloo
criaram tão divertidos como um urso
aquela janela da minha casa
com uma luz tremenda à hora dos anjos
onde william blake assomava
quando lia machado em voz alta
aqueles olhos que tiveste
nua e transparente
ameaçando-me com todos os esquecimentos
com torrões de ódio ao pequeno-almoço
lembravam-me a fúria do mar
sobre cada corsário de salgari
foste todos os anjos
e a luz da janela tremenda
e o meu gato baghera trepando
19
aos barrotes do céu.
levando kipling no olhar vazio
e o jardim triste onde acreditei enterrar
a minha boca que já não falava
as minhas mãos
que já não tremiam
o meu rosto
que os caranguejos comiam pouco a pouco
os pequenos caranguejos dessa ilha longínqua
que foi um dia o meu coração.
20
Entardecer na espádua de um urso
não há tempo para o amor
não há tempo para a fúria
já não há tempo no tempo
tudo se limita a dizer olá
a ficar dentro de ti e passar
continuar a correr entre o incêndio do bosque
já não há tempo para a verdade
não há tempo para as pequenas coisas
que eram respirar tocarmo-nos ver o céu
quase não há tempo para a morte
mas isso
pouca gente sabe.
21
Cavalinho de pau
gira
aproxima-se
gira e fecha os olhos
gira louco
como gira a própria vida
logo se afasta
logo se apeia de si mesmo
tal como os bêbedos e as parturientes
e os que matam e se matam por dentro
os soldados e as putas
os carrascos e as suas sombras
o cavalinho de madeira girando
que uma criança engoliu
que já não relincha
que sonha
no estertor de um louco debaixo da água.
22
Rengo o macaco
a poesia
em seu ninho
fica onde estás
quietinha
não vás
cair
a poesia
em seu cultivo
bactéria que
se divide ela mesma
em dois
em três
em mais de cinco
em nenhum pedaço
em todos
a poesia
em seu colchão
querendo
dizer algo
mas falta-lhe o oxigénio
emagrecida
nas últimas
23
não passa de amanhã
diz o médico
a poesia
em seu sémen
fervendo
espessa
avança
para o teu grito
a poesia
colmeia
mal queimada
edifício que cai
páramo na neblina
onde me afogo
sempre
que se fecha
esta porta
por onde
fogem
os meus
maldizendo.
24
Domingo de Dezembro meio-dia
passaram três carrascos sob a lua negra
vamos compadre
beber outro copo
um está preso nesta altura
até os caçadores
nos fazem emboscadas
em cada lado
deste desfiladeiro
é fácil não ter língua nem lábios
é fácil esburacar
a casca de um vizinho
e depois incendiar-lhe os filhos
e o abdómen
da sua mulher
diante dos outros
é fácil manchar os dentes
com uma palavra
com uma mentira
deixar que alguém os destrua
com o punho
25
é fácil aguentar
as pálpebras gretadas
por uma recordação que se repete
e se repete
como na tela
de um cinema em ruínas
onde o projectador louco
com uma fita interminável
estreia em cada noite
a mesma
fita para sofrer
a punhalada inocente do amor
a invasão de todos os rancores
a exposição ao ressentimento
não morras
perto do mar ou da noite
não morras nunca
sob a chuva do Inverno
não morras nunca
antes de morrer
se o coração há-de cegar um dia
coração que não vê
olho que já não sente.
26
A saudade que resta
ele está só até
que de uma estrela
se desprende
um cabelo um aroma
um corpo de mulher
um esquecimento na água
um sofrimento
ele está só sempre
até que sonha
que chegaram os náufragos
à luz da lua
ele está só
sempre
até que sonha.
27
A cor do pássaro que morre
que atravessa a noite
que vai morrer
só
na escuridão
mas antes
canta
deixa-te
uma canção
que jamais
vais
esquecer
porque ele sabe
que vai morrer
se não o escutares
e também
se não o ouvires
mas
a tua memória será
a única cor
que terá
para continuar
28
a voar
sempre
em todas as tuas vidas.
29
Pré-história
deus fez o mundo
em sete dias
ao oitavo
a minha mãe pariu-me
sussurrou-me
avança filho
cuidado com a evolução
comecei a andar
sobre a terra
sobre o gelo
vi alguns macacos
converterem-se
em homenzinhos
outros
continuaram a ser macacos
darwin olhava sorridente
e além
na ponta
sigmund freud
30
mais sorridente ainda
atravessei
as paredes
do tempo
e cheguei ao teu país
sempre
com estes olhos
bem abertos
e sentei-me à espera
porque existias para mim
somente
para que eu fosse
um homem completo
sentei-me para à espera
que nascesses.
31
A esperança do náufrago
no início
do mundo
tu não existias
e eu tenho estado
todo este tempo
à tua espera.
32
O grito
levantou o seu dedo o seu dedo grande
sobre a sujeira e a insolência
o seu dedo inchado
aquelo dedo que nunca
se metera à força
na alma de nada
nem sequer no seu próprio
coração
levantou o dedo
com um olho na ponta
e apontou gritando
com a sua unha podre
as causas da dor
e do fogo e de toda
a argila do esquecimento
pôs um dedo
o seu grande dedo
na têmpora
a esquerda ou a direita
segundo se olha
33
porque ele tinha
à frente
a mesma angústia que as espáduas
uma raiva profunda
contra o sol contra a beira-mar
contra os formosos jardins
contra os pelotões
de fusilamento e de outros
contra o mel e os seus venenos
contra o silêncio e as medalhas
contra o pólen e as cartas de amor
contra as ordens de demissão
contra o riso contra o vento
contra as mães que põem
à janela um púcaro com flores
contra a sede contra o amanhecer
contra o grito desumano da cotovia
contra si mesmo e contra
aquele dedo tão sujo
tão imenso o seu dedo
que não sabia outra coisa
senão apontar e apontar
por cima da unha imunda
por cima
da sua cartilagem e da sua fome
por cima do horizonte e das abelhas
por cima do homem
dos homens
que têm dedos semelhantes
e que os fundem na alma de outros
34
e do mesmo que ficou sem dentes
sem palavras
sem uma almofada de areia na praia
levantou o dedo o seu grande dedo profundo
serenamente
contra a pele do crânio
e a tampa dos sonhos voou.
35
Os olhos em alvo
cada vez que você se afasta
nos momentos em que não sinto a sua respiração
nem o seu riso nem sequer os seus pesadelos
desato a chorar começo a sofrer
como fazem os loucos
como fazem os lobos
caídos na fenda da noite
cada vez que o seu fantasma desaparece
nos momentos em que não existe
a sua sombra sobre os meus ossos
desato a enraivecer
desato a rasgar coisas
como se o mundo me tivesse tirado
de novo cartas viciadas
como se a scotland yard o fbi
e a polícia montada do canadá
me perseguissem numa auto-estrada
como se a minha garganta tivesse engolido
ácido
e um dos homens que vivem dentro de mim
tivesse decidido nesse dia não mais abrir os olhos.
36
Coisas que os outros podem fazer e eu não
viver
por exemplo
todos
de uma forma ou outra
vivem
guardam os seus sonhos
a roupa do Inverno
vai-se aproximando
da janela
a pessoa
que se espera
há muito tempo
ou sempre
por exemplo
alegram-se
quando a chuva cai
dizem
que bençãos
abrem as suas bocas
como se fossem
37
os lábios da terra
por exemplo
fecham
os olhos e surgem
quando eram crianças e não cheiravam
como eu agora
catástrofes
lágrimas queimadas
e empurrões
desnudam-se
por exemplo
deixam-se desnudar
e não sangram
por essa fresta
obstinada e obscura
que se chama memória
suam brindam florescem
dormem conversam voam
sem ruído de fantasmas
sem essa bruma espessa
que levo a todo o lado
como se ter nascido
tivesse sido um pacto
não sei com que consórcios
com o laboratório dos diabos
38
penteiam-se
por exemplo
e continuam tranquilos
apesar da brisa
das suas recordações
logo se mentem
se telefonam
comem até morrer
crescem gritam
ou falam em voz baixa
e até parecem vivos
nada os tira da festa
nada lhes diz que não chorem
nada os mata esquecendo-os.
39
All that remains (Tudo o que resta)
nada é mais rude do que a morte
deixa sempre uma palavra a meio
um olhar interrompido um ódio cravado bem
fundo
um verbo rasgado na sargeta uma mão no ar
um cabelo que não vai esvoaçar em parte
alguma
um assombro caído na água
uma saliva contra as rochas
uma penumbra que nos apunhala
a morte como alívio
a morte como uma mulher de olhos verdes
a morte como já não posso mais
a morte que me beija e alarga os meus caminhos
a morte afasta-te a morte sobre todos os meus
céus
a morte que vais estranhar
a morte como vingança turva
a morte como cão que corrói
os olhos que tive até hoje
com todas as suas secreções.
40
Mundo redondo
toda a gente sabe viver
toda a gente sabe matar
toda a gente sabe
como fazer as coisas
como acelerar ou tornar
ou tornar o dia mais lento
como beijar
de cima a baixo a pele
de uma mulher
a pele de um urso
a pele do precipício
ou da tarde
tudo está em saber escolher
entre a multidão e tu
entre o governo e eu
entre a polícia e um gelado de chocolate
entre os exércitos e a tua boca
entre um verdugo e a luz dos teus seios
entre a corda ou o peixe que pede ajuda
toda agente sabe casar-se
e prosperar
41
toda a gente sabe amansar
um búfalo
todas a gente sabe sair
da água sem feridas
tudo está em não se equivocar
entre a poesia e eu
entre a morte e tu
entre os teus dentes e o porvir
não tens porque viver no meu mundo
nem eu que habitar o teu
são dois mundos diferentes
e isso é bom
desfilam muito perto gostam um do outro
trocam as suas luzes tornam-se respiráveis
vão até ao mesmo lugar o meu mundo e o teu
tudo está em saber que céu se quer
e que o teu mundo perdure junto ao meu mundo
e haja noites tranquilas em ambos
e que nunca se extingam nem os invada o medo
porque se um dia o teu mundo acabasse
viveria o resto do tempo
olhando o céu como um idiota
42
e sei que moverias céu e terra
se um dia
o meu mundo
não aparecesse
no horizonte.
43
La joie de vivre
cada vez que acordo deus toca uma campainha
os olhinhos de deus brilham
vendo como me levanto
da cama e vou
arrastando a minha alma
vim para sofrer era o seu objectivo disse
mas o sofrimento provocou-me tanto riso
que decidi tomar a vida por minha conta
sem dúvida algo anda mal algo anda muito mal
o céu escurece quando tusso
quando maldigo os pés de deus sobre este
mundo
os pés de deus sobre o meu pescoço
os imensos pés de deus metidos no útero
deste mundo que cada dia se afasta mais de
mim
algo anda mal algo anda muito mal
algo anda mal demais
na cimeira vaporosa da alegria
apenas recordo os meus mortos
nenhuma cor nenhuma nuvem
44
apenas os meus mortos
esperando
que regressemos ao ponto de partida
a qualquer ponto
que voltemos a ser algo.
45
Epitáfio
A Santiago Feliú, noutras dimensões
na idade da abelha tinha
três torres de melancolia
nuvens aquele domingo derramando
assobios trinados filhos pulsos
como um buraquinho na terra
cantou gritou soltou vida e vida
a vida com todas as suas úveas dobradas
e cada vez que abria os olhos era vida
o que escorria pelos seus interiores
pelas suas crinas verdes pelas suas luas distintas
por buenos aires ou havana
por entre o vinho e as guitarras suaves
era vida na ponta fendida da morte
e vida que não rodava silenciosa
eram brilhos de vida os seus dentes no fim de um
abraço
e na sua palavra encravada
46
mas depois havia como que um duplicação de
cães
um cheiro a casa em plena rua
o andar tropeçando ao seu lado
hoje a assassina chegou antes de todos
fechou-lhe as suas gavetas as suas músicas os
seus céus
a palavra partida os seus furacões na
sobrancelha
mas na mesma morte contudo ele cantava e
gritava
e pedaços de vida brilhavam apesar de tudo
não há buraco no planeta onde o possa ocultar.
47
Assombro
escolhe um sonho
escolhe uma obsessão
escolhe não morrer enquanto caem as folhas
daquele rosal do fundo
desamparadas e húmidas
diz-lhes que viverás apesar dos ventos
escolhe um amor antigo
um contrabando
de pequenos esquecimentos que surgem
escolhe uma missão na manhã
uma missão ao crepúsculo
uma batalha na noite serena
escolhe tu um caminho
uma sombra que ascenda com a sua estrela
e suba pelos ramos do esquecimento
como se não fosses morrer
como se o céu e o teu interior
tivessem ambos um deus
merda de riso.
48
Buraco chamado nevermore
Para Leopoldo María Panero
vejamos quantos fantasmas sempre transportei no
sangue
artéria acima artéria abaixo à noite
de manhã em cada momento espumoso
em que a bruma se interpôs às cores
agora vejamos o que lhes tiram de todos os
corpos
se o bisturi consegue fazer brotar as suas raízes
já frio nessa planície que se parece com a
palavra nunca
com a palavra sempre com todas as palavras
vejamos como se extraem os sonhos do seu
esófago
e as bolinhas que faz a coca cola rodando
momento a momento na escuridão do seu
planeta
libertado por fim do seu país cheio de grades
ferrolhos horários e pastilhas redondas
49
que espantavam os cães assustados que o iam
ferir minuto a minuto
vejamos quantos delírios se escapam tristes
nessa fenda onde se matou para sempre a
sombra.
50
Celebração da alegria
sempre quis usar esta palavra
soa bem
é musical
redonda
celebração
sai redonda dos lábios
é só isso
uma palavra que estremece
não há motivos para glorificar
a alegria
velhos asnos azuis
devoram-me
a alegria do homem
é
um estiramento animal
passe pela cabeça
ou não
é a glória do lobo satisfeito
que atravessa
a escuridão com o seu focinho
51
a alegria do homem
tem sempre
outro perdedor
para lá na ponta
um insecto
que chora
a sua orfandade
um
que rolou
pelo abismo
mas sempre
quis
utilizar a palavra
celebração
vem
elegantemente embalada
viaja
com incenso
com o seu antigo perfume
de lobo
que não esmaga a lua.
52
La donna à mobile
tens os lábios de grace kelly
e a inteligência
de um secretário municipal do partido
ao amanhecer lembras-me a bambi
que procura desesperadamente a sua mãe
a cabeça
que contém o corpo
nunca é tão rápida como a luz
o estalido da memória pode
deslocar para outro ponto da alma
outras desolações.
o teu amor está muito bem
o horror que está em mim
no centro da cabeça que viajou
por outra latitude destas vidas
por todos os céus do céu
é uma perda
uma espécie de lágrima viva
que começa a crescer por debaixo das unhas.
53
Esopo era um tolo
vive num país onde misturam o amor com o
sangue
outros misturam-no sempre com o sangue
amanhece num país onde outros
decidiram que cor há-de ter a luz
que bordas o mar
que dimensões a ilusão
que rosto o sexo e quanto o cheiro para o lençol
vive num país onde o ontem se transforma
o transformam
em contos incríveis que confundem as crianças
onde não haverá mais princesas e dragões
ou onde o dragão é por sua vez outro país
caminha num país onde o horizonte te esmaga
te cai em cima em cada tarde
o horizonte se ri dos teus dentes e uiva
para que te sintas mais rodeado
por sombras estranhas
dorme num país que nada sabe amanhã
do que terá para ti
54
nem sequer que tipo de manhã há-de ter
que animal atravessará as tuas portas movendo
as presas
vive num país onde misturam o sonho com o
sangue
outros amassam-no com sangue e medo e
contos de caminho
e fotografias dos que não chegaram porque
foram atraiçoados
abre a porta e o ar não entra
a não ser um vento o vento da história
que já não tem lábios nem olhos
vive num país onde a porta tem sangue.
55
Galgo apura donzel e fica ferido
os que têm sede
que bebam deste verso
que o apurem
até às suas últimas consequências
até às mais venenosas
consequências
se tiverem fome
que o cozinhem e o comam
mastiguem bem os seus bocadinhos
as mulheres nuas
que se cubram com ele
embora seja pequeno
triste
e que não alcance
para a sede
a fome
a nudez mundial
este verso flameja
segrega
levanta-se por si mesmo
da cama
56
pôe-se nas pontas dos pés para ver
o horizonte e outros acontecimentos
este verso cozinha
esculpe
insulta
olha a vizinha por um buraco
espera-a em todas as varandas
para não lhe dizer nada
para tentar respirá-la
este verso arrasta-se
rola pelo caminho abaixo
pára numa esquina
a ensinar os seus muslitos
este verso funde-se
tira a máscara de oxigénio
a máscara submarina
todas as máscaras
nele se montam góngora e vallejo
gelman roque toño cisneros
angelito escobar caindo no vazio
eliacer lazo ardendo no seu cigarro
borges tocando nas paredes
miguel tosiendo na voz de serrat
raúl hernandez novás cheio de sangue
57
este verso não serve
não dá a hora
não ressuscita quem quer
não ilumina
para que uma criança
veja no seu buraco
este verso afoga-se
consome-se
tontamente
pulsinanimemente falando
da serragem que fica do amor
este verso poderia
alcançar algo
ser útil a alguém
que o ponha debaixo da pata de uma mesa
e consegui assim o equilíbrio do mundo
a luz do mundo
a alegria do mundo
o silêncio do mundo pode arder
por um minuto
enquanto desapareço
sem nome já
sem rosto
sem este verso para navegar
pelo rápido rio da morte.
58
59
INDICE
Blues da vida diária 9
A vida secreta dos golfinhos 12
O jogo humano 14
O Outono a teus pés 15
Se existissem anjos 18
Entardecer na espádua de um urso 20
Cavalinho de pau 21
Rengo o macaco 22
Domingo de Dezembro meio-dia 24
A saudade que resta 25
A cor do pássaro que morre 26
Pré-história 28
A esperança do náufrago 31
O grito 32
Os olhos em alvo 35
Coisas que os outros podem fazer e eu não 36
Al that remains (Tudo o que fica) 39
Mundo redondo 40
A alegria de viver 43
Epitáfio 45
Assombro 47
Buraco chamado nevermore 48
Apologia da alegria 50
La donna è mobile 52
Esopo era um tolo 53
Galgo apura donzel e fica ferido 55
60
61
62
63
64
Ramón Fernández-Larrea (Bayamo, 1958).
Ha publicado, entre otros, los poemarios: El
pasado del cielo, Poemas para ponerse en
la cabeza, El libro de los salmos feroces,
Terneros que nunca mueran de rodillas,
Cantar del tigre ciego y Yo no bailo con
Juana. Su último libro es Todos los cielos del
cielo (Verbum, 2015), por el que obtuvo el
VI Premio Internacional de Poesía Gastón
Baquero, fallado en Salamanca durante el
XVII Encuentro de Poetas Iberoamericanos.
También tiene publicadas las antologías
personales Nunca canté en Broadway y Si
yo me llamase Raimundo. Ha residido en
Tenerife, Islas Canarias, Barcelona y Miami
Beach (USA).